Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2611/12.2T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
FACTOS ESSENCIAIS
VIOLÊNCIA
Data do Acordão: 03/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - AVEIRO - JUÍZO DE GRANDE INSTÂNCIA CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 264.º; 265.º DO CPC; ARTIGOS 255.º; 1261, N.º 2; 1279.º DO CC.
Sumário: 1. O tribunal tem um amplo poder inquisitório relativamente aos factos instrumentais, podendo investigá-los no decurso da audiência, quer por sugestão da parte interessada, quer mesmo por iniciativa própria.

2. Mas o mesmo já não se passa relativamente aos factos essenciais, os que integram e constituem a causa de pedir, uma vez que quanto a estes se nega a inquisitoriedade que se admite relativamente aos instrumentais

3. Assim, não tendo sido alegado pelas partes um facto essencial e nem se podendo considerar como complemento ou concretização de outros que hajam sido alegados e resultem da instrução e discussão da causa, estava vedado ao Juiz servir-se do mesmo e providenciar, a nível inquisitório, a actividade instrutória que para tal levou a cabo.

4. A violência, para efeitos de restituição provisória da posse, tanto pode incidir sobre as pessoas como sobre as coisas e, desde que exercida sobre estas, tenha reflexos, ainda que indirectos, como forma de intimidação sobre as pessoas.

5. Considera-se violência relevante, para este efeito, a vedação de uma loja, num centro comercial, com taipais, e a substituição da fechadura, durante a noite, para impedir que a ela tenha acesso a pessoa que a explorava mediante contrato.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            “A..., LDA.”, com sede na (...), Ílhavo, instaurou a presente providência cautelar de restituição provisória de posse contra “, LDA.”, com sede no C (...), (...), Aveiro, peticionando seja decretada a requerida providência de restituição provisória de posse, à requerente, da loja n.º x (...) , com a área de 84,5 m2, sita no piso 0 do C (...), em Aveiro e um espaço confinante à mesma, conhecido por armazém, com a área de 44,10 m2.

            Para tal, alega que outorgou, em 27 de Julho de 2007, com a requerida um contrato de utilização de loja em Centro Comercial, no qual assumiram, respectivamente, a qualidade de 1.ª e 2.ª outorgantes, o qual teve por objecto a utilização da referida loja e espaço confinante, que sofreu um aditamento, em 07 de Março de 2011, em que se estipulou que o mesmo era celebrado pelo prazo de 9 anos e 8 meses, com início em 01/08/2007 e termo em 31/03/2017.

            Na sequência do que, refere, a requerida lhe entregou os referidos espaços, em 01 de Agosto de 2007, onde passou a exercer a actividade contratada, de restauração, que exerceu até ao dia 29 de Novembro de 2012, por na madrugada desse dia, a requerida, quando o Centro Comercial em que tais espaços se inserem estava fechado, ter entaipado (ou mandado entaipar) a dita loja e espaço contíguo e mudado (ou mandado mudar) a fechadura de acesso ao seu interior.

            Em consequência do que no dia seguinte, quando os trabalhadores da requerente pretenderam iniciar funções, disso se viram impedidos, situação que permanece e acarreta que a requerente não possa exercer a actividade que ali levava a efeito e por via da qual requereu a providência ora em apreço.

Conforme despacho de fl.s 48, foi decidido não se ouvir a requerida e designou-se dia para inquirição das testemunhas arroladas, o que teve lugar, cf. acta de fl.s 49 e 50, após o que foi foi proferida a decisão de fl.s 51 a 58, na qual se julgou improcedente a requerida providência de restituição provisória de posse, ficando as custas a cargo da requerente.

             

            Inconformada, interpôs a requerente, o presente recurso, o qual foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cf. despacho de fl.s 87) finalizando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:

A) Discorda a apelante da decisão do Tribunal a quo em julgar o procedimento cautelar improcedente, porquanto foram invocados pela requerente factos necessários e suficientes para a procedência daquele.

B) Antes de mais importa dizer que no ponto 12 dos factos indiciariamente dados como provados na douta sentença recorrida, onde consta “…foi entaipada a Loja x (...)e espaço contíguo e mudada a fechadura da porta de acesso ao interior daqueles.” deve antes constar que “…a requerida entaipou (ou mandou entaipar) a Loja x (...)e espaço contíguo e mudou (ou mandou mudar) a fechadura da porta de acesso ao interior daqueles”.

C) Ainda, no ponto 12 da douta sentença recorrida, consta como facto indiciariamente dado como provado, o seguinte: “…mas após a comunicação pela requerida à ré da resolução do contrato…”, quando tal facto não devia ter sido dado como provado, nem devia ter sido levado em consideração pelo Tribunal a quo, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.

D) No caso sub judice, o tribunal a quo baseou a sua sentença de improcedência da providência cautelar no facto da privação da posse da requerente da providência (apelante) ter sido consequência da comunicação da resolução do contrato, que a requerida na providência (apelada) fez oportunamente à requerente da mesma.

E) Tal facto é, como na própria sentença se reconhece, não um facto instrumental, mas sim um facto essencial, o qual não foi alegado por quem quer que tenha sido.

F) Assim sendo, como assim foi, estava vedado ao tribunal a quo utilizar tal facto, como utilizou, na prolação da sentença que proferiu (vd. artigo 264º, nº 2, do CPC).

G) O mesmo sucedendo, mesmo que se entenda que tal facto essencial era um facto essencial complementar de um outro facto essencial principal, que tivesse sido oportunamente alegado, resultasse da instrução e da discussão da causa, e que interessasse à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas, pois que então tal facto essencial complementar só poderia ser considerado na sentença se a parte interessada, no caso a requerida/apelada, manifestasse vontade de dele se aproveitar e, à parte contrária, ou seja a requerente/apelante, tivesse sido facultado o exercício do contraditório (artigo 264º, nº 3, do CPC), o que não sucedeu.

H) E nem se diga que não tendo sido a requerida, como não foi, citada previamente para o procedimento cautelar em causa, nem nele ouvida, pois que legalmente isso não podia suceder (artigo 394º in fine, do CPC), incumbe ao Juiz como que uma defesa oficiosa da requerida, pois que tal defesa oficiosa violaria o Princípio da imparcialidade, deixando o Juiz de ser o árbitro supremo da causa, equidistante de ambas as partes.

I) Pelo exposto, ao decidir, nos termos em que decidiu, ou seja, baseando a sentença num facto que não foi levado aos autos pela requerente/apelante, o Tribunal a quo violou o artigo 264º do Código de Processo Civil.

J) A sentença recorrida também não respeitou o artigo 1º do Código de Processo Civil, pois o tribunal a quo parece ter admitido a validade das cláusulas contratuais que permitiam à requerida na providência, o recurso à chamada autodefesa, sem contudo fundamentar a validade ou invalidade das mesmas.

K) Pelo que fica exposto, entendemos que o tribunal a quo não podia ter-se baseado na comunicação da pretensa resolução do contrato, feita pela requerida à requerente.

L) Mas ao tê-lo feito, não podia o tribunal recorrido ter-se cingido então ao modo de operar da resolução do contrato e da sua formalização, devia antes ter cuidado de saber se a resolução do contrato, por parte da requerida, é ou não válida, se existe motivo justificativo para a requerida ter resolvido o contrato que mantinha com a requerente, ou seja, se estava preenchida alguma ou algumas das alíneas do ponto 1, da cláusula 19 do contrato a que se vem aludindo, o que não sucedeu.

M) O tribunal a quo limitou-se a constatar que existiu uma comunicação feita pela requerida à requerente, para resolução do contrato, sem cuidar de saber se essa mesma resolução é válida.

N) E nem diga o tribunal a quo, como aliás, disse, que “…a comunicação da resolução do contrato, independentemente da validade da resolução operada, a aqui requerida tinha o direito de, em conformidade com o expressamente convencionado no dito contrato, entrar de imediato na posse da loja, estando vedada à requerente, também por via de estipulação contratual expressa, a reacção/oposição à imediata produção dos efeitos da resolução, nomeadamente através da providência cautelar de restituição da posse.”. (Sublinhado é nosso)

O) Na verdade, seguindo de perto o clausulado do contrato (Doc. 1 da petição inicial), é possível verificar que a requerida/apelada apenas teria direito a entrar de imediato na posse da loja e espaço confinante, se existisse causa válida para a resolução do contrato, o que não existe e, por conseguinte, a requerida não podia ter entrado na posse da loja, nas circunstâncias em que o fez.

P) Contrariamente ao que é dito pelo tribunal a quo, a requerida não podia ter entrado na posse da loja, como entrou, independentemente da validade da resolução do contrato, pois do contrato resulta justamente o contrário, apenas no caso de validade da resolução poderia a requerida entrar na posse imediata da loja.

Q) Mas a verdade é que a apelante entende que não existe motivo justificativo para a requerida resolver o contrato e, como tal, não se operou qualquer resolução do mesmo que pudesse vir a “legitimar” a requerida a entrar de imediato na posse da loja nº x (...)e espaço contíguo, até então na posse da apelante – aqui reside o esbulho.

R) Neste sentido, a comunicação feita pela requerida à requerente não produziu efeitos, é como se não tivesse existido, razão pela qual não foi invocada pela apelante, no procedimento cautelar.

S) Senão veja-se, não invocar a dita comunicação, ou, invocá-la para em seguida dizer que a mesma é nula ou não produziu quaisquer efeitos, conduziria ao mesmo resultado – existiu esbulho por parte da apelada, uma vez que ocupou o espaço ilicitamente.

T) Para além disso, a apelante entende, como entendeu, que tal matéria (resolução do contrato, sua validade e eficácia) seria para discutir em sede de acção principal a instaurar após decretada a presente providência, por se tratar de matéria complexa que não se compadece com a natureza de um procedimento cautelar e por naquela sede ser previamente conferido o direito ao contraditório.

U) É importante balizar as características do procedimento cautelar em causa, verificar se as mesmas foram alegadas pela apelante, para, a final, aferir da sua procedência ou improcedência.

V) A apelante lançou mão de um procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse, previsto nos artigos 393º a 395º, do Código de Processo Civil, cujos pressupostos são: existir posse, seguida de esbulho, com violência.

X) Como lhe competia, a apelante alegou todos estes elementos, na petição inicial. Porquanto, alegou que desde o dia 1 de Agosto de 2007 estava na posse pública e pacífica da Loja nº x (...)com a área de 84,5 m2, sita no piso 0 do C (...) e um espaço confinante à dita Loja nº x (...), conhecido por Armazém, com a área de 44,10 m2.

Alegou ainda que no dia 29 de Novembro de 2012, sem motivo justificativo, a requerida/apelada entaipou (ou mandou entaipar) a Loja e espaço contíguo e mudou (ou mandou mudar) a fechadura da porta de acesso ao interior daqueles. – Veja-se petição inicial.

Z) Assim dispõe o artigo 494º, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Termos em que a restituição é ordenada, o seguinte:

“Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.”.

(O destaque é nosso)

AA) Acontece que, apesar de estar alegado e verificado que a apelante tinha a posse da coisa e que dela foi esbulhada violentamente, o Tribunal a quo não ordenou a restituição à requerente, contra o disposto no citado artigo 494º.

AB) Por todo o exposto, a Meritíssima Juíza a quo só poderia e deveria ter ordenado a restituição provisória de posse à apelante.

Termos em que, nos melhores de direito, com o mui douto suprimento de V. Exªs, deve ser revogada a douta sentença recorrida, devendo, em consequência, ser substituída por outra que ordene a restituição provisória de posse à requerente/apelante, da loja nº x (...), sita no piso 0 do C (...) e um espaço confinante à dita Loja nº x (...), conhecido por Armazém, assim se fazendo Justiça!     

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

A. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 264.º do CPC;

B. Se se impõe averiguar da validade da resolução do contrato e;

C. Se se verificam os pressupostos para ser decretada a requerida restituição provisória de posse.

Sãos os seguintes os factos dados indiciariamente como provados:

1. - A requerente é uma sociedade comercial constituída em 2 de Janeiro de 2007 e tem por objecto “Exploração de restaurante”.

1. - A requerida, na prossecução do seu objecto de “Compra, venda, administração de imóveis e gestão de espaços comerciais”, está “encarregue da organização e da exploração do C (...) (Centro Comercial”), sito na cidade de Aveiro.

2. - Na prossecução dos respectivos objectos e actividades celebraram requerida e requerente, no dia 27 de Julho de 2007, um contrato, para ter início no dia 1 de Agosto de 2007 e para vigorar pelo prazo de 6 anos, denominado “CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA EM CENTRO COMERCIAL” – junto por cópia como documento n.º 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido –, onde assumiram respectivamente a qualidade de Primeira e Segunda Contraentes.

3. - Este contrato teve por objecto: “…, a utilização da Loja n° x (...)com a área de 84,5m2, sita no piso O do C (...) … e um espaço confinante à Loja n. ° x (...), conhecido por Armazém, com a área de 44,10 m2 “ – cláusula V.

4. - Neste mesmo contrato ficou definido que a identificada Loja se destinava “… ao exercício exclusivo pela SEGUNDA CONTRAENTE da actividade comercial de restauração… “ e “…terá a designação comercial de “AQUI HÁ SOPAS” e “PRAÇA “ cláusula – 3., 3.1 e 3.2.

5. - No dia 7 de Março de 2011, requerida e requerente celebraram “ADITAMENTO AO CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA EM CENTRO COMERCIAL” – junto por cópia como documento n.º 2, cujo teor se dá aqui por reproduzido –, respectivamente na qualidade de PRIMEIRA e SEGUNDA CONTRAENTES.

6. - Neste “ADITAMENTO” foram acordadas modificações ao contrato inicial “CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE LOJA EM CENTRO COMERCIAL “ – quanto ao seu prazo e quanto ao preço a pagar pela Loja n” x (...), sita no C (...), em Aveiro, Tendo ficado estipulado que “O Contrato é celebrado pelo prazo de 9 anos e 8 meses, o qual terá início em 01-08-2007 e termo em 31-03-2017’ 2, “PONTO UM”.

7. - No dia l de Agosto de 2007, a Requerida entregou à Requerente a Loja x (...)° e o espaço confinante à mesma conhecido por armazém, sitos no “ C (...)”, em Aveiro, com todos os bens e equipamentos “necessários ao exercício da actividade comercial desta última”.

8. - Desde o dia 1 de Agosto de 2007 até ao dia 29 de Novembro de 2012, ininterruptamente e de forma continuada exerceu a Requerente a sua actividade comercial de restauração na aludida loja x (...)e armazém confinante.

9. - Para o exercício da sua actividade nesse local, celebrou a Requerente contratos de trabalho com os seguintes trabalhadores, que mantinha ao seu serviço em 29 de Novembro de 2012: D..., E..., F..., G..., H..., I..., e J....

10. - A ocupação e uso da loja n.º x (...)e armazém confinante, pela Requerente para o exercício da sua actividade comercial era do conhecimento, não só da Requerida, mas ainda de todos os que frequentavam o Referido “ C (...)”.

11. - A Requerente no dia 28 de Novembro de 2012, exerceu a sua actividade normal na Loja x (...)e espaço contíguo, sito no “ C (...)” em Aveiro.

12. - Em circunstâncias não concretamente apuradas, mas após a comunicação pela requerida à ré da resolução do contrato, no dia 29 de Novembro de 2012, quando o C (...) estava encerrado ao público e as lojas fechadas, foi entaipada a Loja x (...)e espaço contíguo e mudada a fechadura da porta de acesso ao interior daqueles.

13. - Quando os trabalhadores da Requerente se apresentaram no local, por volta das 9 horas desse dia, depararam-se com a Loja n.º x (...)e armazém contíguo entaipados e a fechadura da porta de acesso ao seu interior mudada, vendo-se dessa forma impedidos de entrar no seu local de trabalho e aí exercer a actividade para a qual foram contratados pela Requerente e impedida ficou a requerente de entrar na loja e espaço contíguo.

14. - No interior da loja x (...)e espaço contíguo tinha a requerente bens, equipamentos de que é proprietária, bem como tinham os seus trabalhadores pertences pessoais, dos quais, desde o dia 29 de Novembro de 2012, se encontra a Requerente privada.

*

Além da matéria alegada que é irrelevante, repetida, conclusiva ou que constitui matéria de direito, não resultaram provados quaisquer outros factos dos alegados além dos supra elencados.

A. Se a decisão recorrida viola o disposto no artigo 264.º do CPC.

Alega a recorrente que assim é porquanto a mesma se fundamentou num facto – resolução do contrato – que não foi alegado, o qual é essencial e como tal, não poderia ter sido utilizado para a decisão da causa.

O facto contra o qual a recorrente se insurge é o que consta da 1.ª parte do item 12 dos factos dados como indiciariamente provados na decisão recorrida e que é do seguinte teor:

“Em circunstâncias não concretamente apuradas, mas após a comunicação pela requerida à ré da resolução do contrato, …”.

 Ou seja, a recorrente entende que por nada ter sido alegado quanto a qualquer resolução do contrato e sendo o mesmo um facto essencial, estava vedado à M.ma Juiz a quo a sua utilização para fundamentar a decisão de não decretar a requerida providência.

Como consta da acta de fl.s 49 e seg.s, designadamente fl.s 50, relacionado com tal problemática, foi proferido o seguinte despacho:

“Tendo em conta o depoimento prestado pelas testemunhas, a alegação que serve de fundamento à causa de pedir da presente providência cautelar e atento o teor do contrato junto pela requerente como documento nº 1, mais concretamente as cláusulas atinentes à resolução do mesmo, afigura-se-nos essencial para a boa decisão da causa averiguar se foi ou não comunicada à requerente a resolução do contrato.

Uma vez que as testemunhas ouvidas afirmaram desconhecer tal facto, não tendo sido junto qualquer documento reportado ao mesmo, mostra-se imprescindível a audição do legal representante da requerente, que se encontra presente, em depoimento de parte, o que se determina ao abrigo do disposto nos artigos 265º e 552º, nº 1 do C.P. Civil.

Notifique.

*

Foram os presentes devidamente notificados, tendo a Mmª Juiz passado a ouvir o legal representante da requerente, que se identificou da seguinte forma:

Aníbal José Dias Marques, estado civil: casado, profissão: empresário, 52 anos de idade, domicílio: Av. 25 de Abril, 144, R/C, 3830-044 Ílhavo.

Prestou juramento legal e depôs.”.

Depoimento, este, que se veio a revelar de fundamental importância para dar aquele facto como demonstrado, como resulta do que se fez consignar, em sede de fundamentação da matéria de facto (cf. fl.s 54), nos termos que se passam a transcrever:

“No que concerne ao concreto circunstancialismo em que a requerente foi privada de aceder à loja, as testemunhas ouvidas revelaram não ter conhecimento uma vez que não assistiram ao acto de entaipamento e de mudança da fechadura, tendo apenas a testemunha G... , cozinheira naquele estabelecimento ao serviço da requerente, relatado como se deparou, quando lá chegou, com a loja entaipada e com a fechadura mudada, vendo-se impedida de entrar, e a testemunha L..., sócia da requerente e esposa do gerente, com a função de supervisora desta loja, relatou como se deslocou ao local e confirmou o encerramento na sequência da comunicação telefónica que lhe foi feita pela testemunha G.... Face ao desconhecimento manifestado pelas testemunhas, dada a natureza dos factos e as regras da experiência comum, procurando esclarecer as concretas circunstâncias em que ocorreu o encerramento da loja, o Tribunal determinou oficiosamente o depoimento de parte do legal representante da requerente, que se encontrava presente, tendo este, quando a esse respeito questionado, esclarecido que, antes de 29.11.2012, a requerida enviou à requerente duas comunicação, a última das quais a comunicar-lhe a resolução do contrato, que considera inválida e injusta, pelas razões que aduziu.”.

           

Como se reconhece na decisão recorrida, o facto em questão (comunicação efectuada pela requerida à requerente com vista à resolução do contrato) não foi alegado pela ora recorrente no requerimento inicial em que formula que se decrete a almejada restituição provisória de posse e trata-se de um facto essencial à decisão desta questão.

Efectivamente, assim é.

Cotejando o requerimento inicial verifica-se que nada é referido acerca da resolução do contrato por parte da requerida relativamente à ora requerente e o mesmo encerra um facto essencial, dado que a existência ou verificação de tal resolução do contrato, concretiza e densifica os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão da requerente e eventual defesa da requerida, sendo absolutamente indispensável à identificação e preenchimento da situação jurídica afirmada e feita valer em juízo pelas partes.

Como é óbvio, a viabilidade da pretensão da requerente pressupõe a manutenção do contrato em que funda a sua posse, em vigor e a eventual resolução do mesmo é de fundamental importância para a defesa (no caso, melhor dito, oposição) que a requerida possa vir a deduzir, daí a indiscutível essencialidade do facto em causa.

Por sua vez, os factos instrumentais destinam-se a realizar a prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa, no que, ora, se seguiu o pensamento expresso por Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, 2004, a pág.s 252 e 253.

Ora, nos termos do disposto no artigo 264.º do CPC:

“n.º 1 – Às partes cabe alegar os factos em que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções.

n.º 2 – O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.

n.º 3 – Serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório.”.

Daqui que, como se salienta no Acórdão do STJ, de 31/03/2011, Processo n.º 281/07.9TBSVV.C1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, “não obstante a reforma do processo civil de 95/96 (…) que visou também garantir a prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz, tendo nela saído revigorado o princípio do inquisitório ou da oficiosidade, imbuído de uma lógica de cooperação, a verdade é que o Juiz só pode, em princípio, fundamentar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo de poder sempre atender àqueles que não carecem de alegação ou de prova (art. 514.º do CPC) de obstar ao uso anormal do processo (art. 665 do mesmo diploma legal) e de considerar, mesmo oficiosamente, os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa e os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e da discussão da causa (art. 264.º, n.os 2 e 3, ainda do CPC)”.

Como refere Lopes do Rego, ob. cit., a pág. 253 “o tribunal tem um amplo poder inquisitório relativamente aos factos instrumentais, podendo investigá-los no decurso da audiência, quer por sugestão da parte interessada, quer mesmo por iniciativa própria”.

Mas o mesmo já não se passa relativamente aos factos essenciais, os que integram e constituem a causa de pedir, uma vez que quanto a estes se nega a inquisitoriedade que se admite relativamente aos instrumentais – neste sentido, veja-se M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, Março/Julho de 1996, pág.s 70 a 72.

Posto isto e atento a que o facto em questão no presente recurso é um facto essencial para a decisão da pretensão jurídica solicitada e que não foi alegado pela partes e nem sequer o mesmo se pode considerar como complemento ou concretização de outros que hajam sido alegados e resulte da instrução e discussão da causa (caso em que, mesmo assim, ficaria dependente de manifestação de vontade da parte em dele se aproveitar e depois de cumprido o contraditório, sendo que nada disto se verificou), nos termos do disposto no artigo 264.º, do CPC, estava vedado à M.ma Juiz a quo servir-se do mesmo e providenciar, a nível inquisitório, a actividade instrutória que para tal levou a cabo, ou seja, estava-lhe vedado inquirir, para esse fim, o legal representante da requerente.

Na prática, o que a M.ma Juiz a quo fez foi antecipar a defesa da requerida, a qual, após ser levada a cabo a notificação a que se alude no artigo 388.º do CPC, poderá recorrer ou deduzir oposição, nos moldes que entender.

Estando, como entendemos estar, vedado à M.ma Juiz a quo a investigação de tal facto – comunicação de resolução do contrato – nos assinalados moldes, de igual modo, o mesmo facto não poderá ser tomado em linha de conta para a resolução da questão sub judice, tal como reclama a ora recorrente, pelo que é de proceder esta sua pretensão recursiva.

Assim, quanto a esta questão procede o presente recurso, pelo que, em consequência se elimina do item 12 dos factos provados a referência à sua 1.ª parte, ou seja, a expressão “Em circunstâncias não concretamente apuradas, mas após a comunicação pela requerida à ré da resolução do contrato”.

B. Se se impõe averiguar da validade da resolução do contrato.

No que a esta questão concerne, alega a recorrente que a ter-se em linha de conta a comunicação de resolução do contrato, se impunha averiguar se a mesma era válida, bem como se seria legal a cláusula contratual, que proíbe a aqui requerente de se opor a uma eventual resolução do contrato, nem à imediata produção dos seus efeitos, nomeadamente através da providência cautelar de restituição de posse.

Efectivamente, conforme cláusula 19.1 do Contrato celebrado entre as partes estipularam-se as condições (motivos) em que a requerida poderia resolver o contrato, consignando-se nos seus pontos 3 e 4 que:

“Uma vez resolvido o Contrato, a PRIMEIRA CONTRAENTE terá o direito de entrar, de imediato, na posse da Loja. Caso a SEGUNDA CONTRAENTE não aceite o fundamento para a resolução o presente contrato apresentado pela PRIMEIRA CONTRAENTE, e accione judicialmente a PRIMEIRA CONTRAENTE, não poderá, em qualquer caso, opor-se à imediata produção dos efeitos da resolução, nem à assunção da posse da Loja por esta, nomeadamente através de providência cautelar de restituição da posse, uma vez que a SEGUIDA CONTRAENTE não é possuidor da Loja mas mero detentor da mesma”.

            E foi com fundamento nesta cláusula que na decisão recorrida se fundamentou o indeferimento da providência requerida, nos seguintes termos:

“Assim, no caso vertente, tendo o acto de privação da posse sido consequência da comunicação da resolução do contrato, independentemente da validade da resolução operada, a aqui requerida tinha o direito de, em conformidade com o expressamente convencionado no dito contrato, entrar de imediato na posse da loja, estando vedada à requerente, também por via de estipulação contratual expressa, a reacção/oposição à imediata produção dos efeitos da resolução, nomeadamente através da providência cautelar de restituição da posse.

Destarte, conclui-se necessariamente pela improcedência da presente providência cautelar de restituição provisória de posse.”.

            Dado que conforme decidido na questão anterior não se pode tomar em linha de conta a questão da resolução do contrato, fica prejudicada a problemática ora em análise, já que a questão sub judice tem de ser decidida sem se considerar tal facto como indiciariamente provado, contrariamente ao considerado na 1.ª instância.

            Ainda assim, muito sumariamente, cumpre referir que a tomar-se aquele facto em consideração, importaria aferir da validade da cláusula acima transcrita e da validade da resolução, sob pena de violação dos princípios da boa fé, da conformidade de tal cláusula com a lei imperativa e do abuso do direito, os quais se encontram legalmente consagrados (cf. artigos 762.º, n.º 2; 280.º, n.º 1 e 334, todos do CC, respectivamente).

            No entanto, in casu, reitera-se, como o facto em causa não é tido em consideração, fica prejudicada a presente questão do recurso, pelo que dela não se conhece.

C. Se se verificam os pressupostos par ser decretada a requerida restituição provisória de posse.

Quanto a tal, alega a recorrente que alegou e demonstrou a existência de posse, seguida de esbulho com violência.

Como já vimos, na decisão recorrida, considerou-se que não obstante a requerente estar na posse dos espaços acima identificados e que a mesma deles foi violentamente esbulhada, não era de decretar a requerida providência, por o acto de privação da posse ter ocorrido na sequência de comunicação, pela requerente, da resolução do contrato em que se fundava tal posse, isto, independentemente, da sua validade e por estar vedado à requerente o recurso ao meio legal de que lançou mão.

A não consideração da comunicação de resolução, nos moldes acima explicitados, altera os dados para a resolução da questão sub judice em termos radicais.

Assim, importa, face à factualidade indiciariamente assente, aferir da existência dos pressupostos para que seja decretada a providência cautelar de restituição provisória de posse, designadamente se a conduta da requerida consubstancia o esbulho violento.

De acordo com o disposto no artigo 1261.º, n.º 2, do CC, preceito que nos deve orientar para a classificação da violência da posse e, por isso do esbulho, já que este é uma das formas através do qual se pode adquirir a posse, esta “… considera-se violenta quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255”.

Em face do que, se têm vindo a defender duas posições quanto a esta questão: uma que pugna que a violência relevante deve ser necessariamente exercida contra o possuidor e outra que defende bastar o exercício de violência sobre a coisa, desde que ligada, de algum modo, à pessoa do esbulhado ou quando da mesma resulte uma situação de constrangimento físico ou moral.

 Como o refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, IV, vol., Almedina, 2001, a pág. 45, deve integrar-se na actuação violenta tanto aquela que se dirige à pessoa do possuidor, como a que é feita através do ataque aos seus bens.

Posição semelhante era a propugnada por Orlando de Carvalho, in RLJ 122, pág. 293, que ali refere que “… a violência contra as coisas só é relevante se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, a vítima da mesma … visando influenciar psicologicamente o possuidor”.

Em idêntico sentido (para além dos referidos na decisão recorrida), os Acórdãos desta Relação, de 12/01/99, Processo 1712/98, e de 07/02/2006, Processo n.º 4151/05, ambos disponíveis in http://www.trc.pt/trc, de acordo com os quais, a violência, para efeitos de restituição provisória da posse, tanto pode incidir sobre as pessoas como sobre as coisas e desde que exercidas sobre estas, tenha reflexos, ainda que indirectos, como forma de intimidação sobre as pessoas.

Ora, fora de dúvidas, a conduta da requerida, consubstanciada nos factos descritos nos itens 12 a 14 dos factos indiciariamente dados como provados, revela a prática de actos de coação sobre a coisa, tendo por referência o disposto no artigo 255.º do Código Civil, o que acarreta a existência de esbulho violento (artigo 1279.º do CC), pelo que se verificam os requisitos para ser decretada a pretendida providência, em conformidade com o disposto nos artigos 393.º e 394.º do CPC.

Assim, nesta parte, igualmente, procede o presente recurso, não podendo subsistir a decisão recorrida, sendo, em consequência, de decretar a providência requerida.

           

Nestes termos se decide:

Julgar por procedente o presente recurso de apelação, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que ordena a restituição provisória de posse à requerente da loja n.º x (...), sita no piso 0 do C (...), em Aveiro e um espaço confinante à dita loja n.º x (...), conhecido por “armazém”.

Na 1.ª instância deve proceder-se às notificações a que se alude no artigo 388.º do CPC, nos moldes aí consignados.

Custas pela requerente, devendo atender-se à taxa de justiça paga, a final, na acção respectiva, conforme artigo 453,º, n.os 1 e 2, do CPC.

Arlindo Oliveira (Relator)

Emídio Francisco Santos

Catarina Gonçalves