Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | MOREIRA DO CARMO | ||
Descritores: | PROPRIEDADE OCUPAÇÃO CONTRATO DE COMODATO USO DETERMINADO DIREITO DE RETENÇÃO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA NULIDADE DA SENTENÇA IMPUGNAÇÃO DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 04/24/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - C.BRANCO - JC CÍVEL - JUIZ 2 | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTS.342, 350, 1135, 1137, 1263, 1264, 1268, 1311, 1318, 1323, 1324 CC, 574,608, 615, 640 CPC | ||
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Sumário: | 1. A omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, dá-se quando o tribunal não conhece de questões de que devia podia tomar conhecimento (arts. 615º, nº 1, d), 1ª parte, e 608º, nº 2, 1ª parte, do NCPC). 2. Quando a lei, nos mencionados normativos processuais, se refere a questões está a querer dizer que o conhecimento do juiz deve abarcar todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções suscitadas, o que significa que o juiz só cometerá a indicada nulidade de omissão de pronúncia se não conhecer de causa de pedir invocada pelo A. 3. Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente; 4. Com a alteração da redacção do art. 490º do anterior CPC, introduzida pelo DL 329-A/95 (disposição similar ao actual art. 574º do NCPC), atenuou-se o rigor formal do ónus de impugnação especificada, sem que tal implique, todavia, que a parte esteja dispensada de tomar posição definida, clara, frontal e concludente sobre as alegações de facto feitas pela parte contrária; 5. Não tendo havido impugnação de factos substantivos alegados pelo A. na p.i., os mesmos têm-se por provados, por admissão, nos termos do art. 547º, nº 1 e 2, 1ª parte, do NCPC, pelo que, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo código, tais factos devem dar-se por provados, devendo, à sombra do art. 662º, nº 1, do mesmo diploma, a decisão proferida sobre a matéria de facto ser alterada pela Relação; 6. O abandono previsto no art. 1318º do CC, como causa da aquisição da propriedade por ocupação, supõe que o dono afastou a coisa da sua disponibilidade natural, sendo necessário ainda que que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi). 7. Provado que alguém “encontrou” uma Torah no entulho, guardou-a na sua casa, exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil, tendo-o emprestado ao R. Município e terminou vendendo o mesmo, fica demonstrado a aquisição originária de tal pergaminho, através do instituto da usucapião, pelo que a aquisição derivada do comprador fica comprovada e legitimada. 8. Face à presunção possessória constante do art. 1268º, nº 1, do CC, a favor do A., com base em constituto possessório, nos termos dos arts. 1263, c) e 1264º do CC, presunção não ilidida pelo R., conforme impõe o art. 350º, nº 1 e 2, do CC, é de julgar procedente o seu pedido de reconhecimento de propriedade. 9. É da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega já é feita sob o signo da temporalidade, razão pela qual a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico. 10. No empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado; 11. Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 1137º do CC; 12 Para o conceito de uso determinado é irrelevante a conservação da coisa, visto que é uma das obrigações do comodatário (art. 1135º, a), do CC); 13. Se a exposição da Torah em eventos de valor arqueológico e cultural, por autorização do comodante, já se deu, o uso determinado já terminou; não sendo concebível subjacente a tal autorização uma outra perpétua para outras exposições que o R. Município organize ou em que participe. 14. Quanto ao empréstimo para análise e estudo do manuscrito, pelo comodatário, das duas uma: se foram realizados, então o uso determinado terminou; se não foram efectivados, por inacção total do R., podemos de novo cair na perpetuidade do seu uso, entendimento que é de rejeitar, pois neste último caso cairíamos no uso determinado sem delimitação temporal, referido em x); 15. As despesas de guarda e conservação da coisa comodatada porque inerentes ao cumprimento das obrigações do comodatário (art. 1135º, nº 1, a), do CC), não conferem direito de retenção a este. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc.2033/16.6T8CTB I – Relatório 1. J (…), residente na ..., intentou acção declarativa contra o Município da ..., com sede na ..., pedindo a sua condenação a: 1- Reconhecer o direito de propriedade do A. sobre o manuscrito em pergaminho designado por Torah, melhor identificado no artigo 1º desta Petição Inicial, e ocupado e utilizado abusivamente pelo R.; 2- Restituir imediatamente ao A., seu legítimo proprietário, o manuscrito judaico designado por Torah, por o estar a utilizar sem autorização e contra a vontade do seu proprietário; 3- Pagar ao Autor os prejuízos que lhe causa com a privação do manuscrito os quais serão quantificados e liquidados em execução de Sentença, mas se estimam em 1.000€ diários. Para tanto, sustentou, em síntese, que é dono e legitimo possuidor do documento designado por Torah, manuscrito que adquiriu a …, que o teve em sua posse durante mais de 20 anos por o ter encontrado. A pedido de Vereador do Município o anterior proprietário emprestou o pergaminho ao mesmo para análise e estudo, que nunca mais o devolveu apesar de solicitado para tal pelo anterior proprietário. De igual modo o A. solicitou ao R. a devolução do pergaminho mas o documento não lhe foi entregue. Entretanto o Município remeteu ao A. uma proposta de contrato de comodato, que este não aceitou, após o que o R. voltou a recusar a entrega do dito manuscrito ao A. O R. contestou, e impugnou que o A. fosse proprietário do pergaminho, alegando ainda ter direito de retenção sobre o mesmo, visto, face ao comodato de tal manuscrito, ter despendido montantes monetários com a guarda e conservação do mesmo. Por fim, deduziu reconvenção, pedindo que se condene o A. a pagar tais montantes, a liquidar em sentença, mais juros a contar da notificação da contestação, e invocou a compensação com o peticionado crédito do A. O A. replicou, impugnando a reconvenção. * A final foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e, consequentemente, absolveu o R., e declarou extinta a lide reconvencional, por inutilidade. * 2. O A. interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) 3. O R. contra-alegou, concluindo que: (…) II – Factos Provados 1. No Cartório Notarial da ..., em 28 de Setembro de 2016, foi celebrada uma escritura de compra e venda entre J (…), como primeiro outorgante, e J (…), como segundo outorgante, tendo o primeiro declarado que “pelo preço de cem mil euros, que do segundo já recebeu, a este vende o seguinte: documento em pergaminho, com texto judaico, com suporte em rolos de madeira, com trinta metros de cumprimento e sessenta centímetros de altura, que se supõe estar escrito em hebraico, com tinta ferrogálica. O vendedor declara que o documento foi emprestado à Câmara Municipal da ..., para análise e estudo, a qual se comprometeu a devolvê-lo ao proprietário, logo que o mesmo seja solicitado. Mais declarou que pelo referido empréstimo à Câmara Municipal não recebeu qualquer contrapartida em dinheiro, ou outra, e não celebrou qualquer protocolo ou contrato. Declarou ainda o vendedor que o objecto é um bem próprio dele, pois o adquiriu em estado de solteiro”. 2. J (…) “encontrou” tal manuscrito no “entulho” de uma obra no âmbito do exercício da sua profissão relacionada com a construção civil e guardou-a na sua casa. 3. No início de 2016, o referido J (…) exibiu o documento a um Arqueólogo da UBI que comunicou a sua existência ao Município, aqui Réu. 4. Em 30 de Maio de 2016, ocorreu uma reunião entre o Sr. Vereador da Cultura da Câmara Municipal da ... e J (…), em que os representantes do R solicitaram a este o empréstimo do Torá, atentas as deficientes condições em que se encontrava e a necessidade de se proceder à respectiva conservação, estudo e análise e subsequente exposição em eventos de natureza arqueológica e cultural. 5. Nesse mesmo dia, foi celebrado entre o R e o dito J (…) “auto de empréstimo”, no qual se refere o seguinte: “ Aos trinta dias do mês de Maio da ano de dois mil e dezasseis, compareceu perante mim, J (…) Vereador em Permanência, J (…), a fim de entregar para guarda, análise/estudo: - Uma Torah, em pergaminho O referido bem foi devidamente identificado e caracterizado pelas partes e destina-se à guarda do Arquivo Municipal, para análise e estudo” 6. A referida Torá foi guardada no arquivo municipal, em ambiente protegido, com uma humidade relativa entre 45% e 60% e uma temperatura entre 16º e 20º Célsius. 7. Entre Junho e Julho de 2016, os representantes do MC solicitaram a colaboração de diversos especialistas, nacionais e estrangeiros, tendo em vista a identificação e estudo da referida Torá. 8. Em 2016.09.15, e após contacto com o Senhor J (…), os representantes do MC anunciaram, em conferência de imprensa, que a referida TORÁ seria exibida no âmbito das Jornadas Europeias do Património. 9. Na sequência do referido anúncio, o MC foi contactado por diversas entidades que solicitaram informações sobre a TORÁ. 10. Em 2016.09.23, realizaram-se as Jornadas Europeias do Património, no âmbito das quais foi exibida a referida TORÁ. 11. Em 2016.09.27, e após contacto telefónico, o Senhor Presidente da CM… remeteu carta à Direcção Regional de Cultura do Centro (DGCC), a “comunicar o aparecimento de um Torá e (a) solicitar informações sobre o modo de proceder em relação ao mesmo (…) face às dificuldades relativas à posse e prosseguimento do estudo do referido documento”. 12. Por cartas datadas, de 2016.09.29, o A. informou os Senhores Presidente e Vereador da Educação e Cultura da CM.., do seguinte: “ Venho pelo presente dar conhecimento a V. Exa. que comprei ontem, dia 28/09/2016, o documento escrito em pergaminho designado por torá e que se encontra emprestado à Câmara Municipal desde o dia 30 de Maio de 2016 para estudo e exposição. Sei pela comunicação social, que o prazo fixado para exposição vai até amanhã 30 de Setembro. Também eu pretendo incumbir alguns especialistas para analisarem e estudarem a peça, que tem elevado valor cultural, artístico e económico. Por tal motivo solicito a V. Exa. que me devolvam o torá, depois de terminada a exposição. Eu próprio irei aos Paços do Município, para o recolher, no próximo dia 3 de Outubro de 2016, a partir das 14 horas”. 13. Por carta datada, de 2016.10.04, o A. informou o Senhor Presidente da CM… do seguinte: “ Quero reafirmar que é meu desejo manter em bom estado o documento escrito em pergaminho, designado por torá, e que se encontra emprestado à Câmara Municipal, desde o dia 30 de Maio de 2016. Assim agradeço (que) enquanto se mantiver a guarda nas vossas instalações permaneça em local seco e com a temperatura adequada. Reafirmo que pretendo celebrar um protocolo com a Câmara, da digna presidência de V. Exa, no mais curto lapso de tempo, pelo que solicito que na próxima semana me seja enviada uma minuta de protocolo para definirmos, claramente, a questão do empréstimo ao Município da .... Tal protocolo deverá constar que o proprietário poderá deslocar-se sozinho ou acompanhado por especialistas para analisarem e estudarem a peça, no que respeita às suas qualidades, origem, data de fabrico ou recolha de outros elementos relevantes que valorizem cultural, artística e economicamente o documento. Pretendo também que seja feito um seguro para o documento contra furto, roubo, incêndio, inundação e outros riscos provenientes de fenómenos naturais ou humanos e que garanta o valor cultural e económico do manuscrito. Deverá consignar também as condições de utilização do documento por parte do comodatário, apenas em eventos de reconhecido valor arqueológico e cultural”. 14. Por carta datada, de 2016.10.10, o A. informou o Senhor Director-Geral da Direcção Geral do Património Cultural, do seguinte: “ Venho, por este meio, comunicar que sou proprietário de um documento escrito em pergaminho, em língua judaica, com suporte em rolos de madeira, com cerca de 30 metros de comprimento por 60 centímetros de altura, designado por Tora, e que se encontra emprestado à Câmara Municipal da ..., desde o dia 30 de Maio de 2016. Julgo que se trata de um documento de assinalável valor arqueológico e cultural. Pretendo, pois, dar conhecimento a V. Exas. da sua existência e proceder ao seu registo junto da V/ entidade e de outros organismos governamentais, para efeitos legais. Solicito o favor de me informarem das formalidades a cumprir para que a situação fique devidamente legalizada”. 15. Por carta datada, de 2016.11.02, o A. informou o Senhor Presidente da CM… do seguinte: “ Venho, de novo, à presença de V. Exa., na qualidade de legal proprietário do Torah, comodatado ao Município, dizer que esperava que a Câmara Municipal, na pessoa do Sr. Presidente, tivessem a gentileza de responder às missivas já enviadas e apresentassem uma proposta de protocolo. Parece que só da minha parte existe essa vontade em definir regras da utilização do manuscrito. Em face da Vossa inércia venho, nos termos do n.º 2 artigo 1137º do Código Civil, notificar V. Exa. e a Câmara Municipal da ... para me entregarem o Torah no dia 9 de Novembro de 2016 pelas 15 horas no edifício principal do Município. Nessa data deslocar-me-ei ao Município para recuperar o manuscrito que me pertence de direito. Se porventura não me for entregue nessa data exigirei, nos tribunais, uma indemnização de 1000,00€ (Mil euros) por cada dia de atraso na sua entrega, por perdas e danos que estou a sofrer com a privação desse importante e valioso documento”. 16. Em 2016.11.07, o Senhor Presidente da CM… remeteu ao representante do A. o “projecto de minuta de Contrato de Comodato”. 17. Em 2016.11.08, o representante do A. informou o Senhor Presidente da CM… do seguinte: “Agradeço o envio da minuta de comodato referente à utilização do pergaminho. Em traços largos o documento ficaria nas instalações do Município que facultaria a sua visita e exame ao proprietário e a quem ele indicasse, em condições a acertar. Após conferenciar com o meu cliente, Sr. J (…), este referiu-me que pretende guardar o pergaminho num cofre forte da Caixa-Geral de Depósitos, agência do Pelourinho, e facultar a sua utilização ao Município em eventos de reconhecido interesse cultural, em condições a acertar entre ambas as partes. Como há esta divergência quanto ao local de depósito não irei, por ora, apresentar propostas de alteração à minuta gentilmente remetida por V. Exa. Contudo estamos disponíveis para prosseguir as negociações referente ao empréstimo”. 18. Em 2017.01.05, o Senhor Presidente da CM… remeteu carta à DGCC, solicitando “informação sobre as diligências entretanto adoptadas por essa Exma. Direcção-Geral”. 19. A DGCC não se pronunciou até ao presente, relativamente às cartas de 2016.09.27 e 2017.01.05. 20. O Réu tem mantido o pergaminho nas suas instalações e nunca apresentou ao A. qualquer resultado de análises ou estudos, apesar de, por diversas vezes ter solicitado a sua entrega. * Factos não provados: a) O A pagou os 100.000,00€ (cem mil euros) constantes na escritura mencionada em 1. b) J (…) exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil. III - Do Direito 1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas. Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes. - Questão nova. - Nulidade da sentença. - Alteração da matéria de facto. - Propriedade da Torah pelo A. - Sua devolução pelo R. - Prejuízos para o A. - Pedido reconvencional. 2. Defende ao recorrido que o recorrente levantou uma questão nova, relativa à sua presunção de titularidade do direito, baseada na posse, o que não tinha feito nos articulados, pelo que o recurso é inadmissível, não podendo ser conhecido nesta parte. Mas tal afirmação não é correcta. No caso presente estamos perante uma acção de reivindicação, como se concluiu na sentença recorrida, e as partes não dissentem neste aspecto. Numa acção de reivindicação, a demonstração da titularidade do direito de propriedade deve fazer-se pela prova do facto jurídico constitutivo do mesmo, o que implica a demonstração da aquisição originária desse direito, ou pela prova de factos que a lei reconheça como suficientes para presumir a existência dessa titularidade – a posse (art. 1268º, nº 1, do CC) e o registo (art. 7º do CRP). Portanto, ou o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, caso em que apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito. Ou o autor invoca os necessários factos que fazem presumir tal direito (vide Ac. da Rel. Coimbra, de 9.5.2006, Proc.966/06, em www.dgsi.pt). Pode também invocar a aquisição derivada. Mas neste caso, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus juris ad alium transfere potest, quam ipse habet). É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominus auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam alguns autores. Para esse efeito, podem ter excepcional importância as presunções legais resultantes da posse, se ela puder ser oposta ao detentor, e do registo (vide Antunes Varela, em CC Anotado, Vol. III, 2ª Ed., nota 5. ao artigo 1311º, pág. 115). Ora, compulsada a p.i., verifica-se que para o efeito de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a Torah (pedido formulado sobre 1-) o A. invocou, cumulativamente, três causas de pedir: além da aquisição derivada, ao anterior proprietário original de tal manuscrito, com base em ocupação e usucapião deste, também invocou ser o titular de tal direito com base na posse do manuscrito, como decorre com clareza do art. 2º da p.i. Por conseguinte, ao trazer esta última questão ao recurso, por alegadamente o tribunal a quo dela não ter conhecido na sentença recorrida (o que seguidamente será aferido), não representa a colocação de uma questão nova, e como tal não é inútil o seu conhecimento, ou inútil o objecto do recurso nesta parte. Assim, não procede a questão prévia levantada pelo recorrido. 3. O A. afirma que a sentença é nula, por omissão de pronúncia, relativamente à causa de pedir que invocou relacionada com a titularidade do seu direito, com base em presunção de posse. A sentença é nula se o juiz deixar de pronunciar-se de questões que devesse apreciar, nos termos do art. 615º, nº 1, d), do NCPC, 1ª parte, pois o juizdeve resolver todas as questões suscitadas pelas partes, como reza o art. 608º, nº 2, 1ª parte do mesmo código. Quando a lei, nos mencionados normativos processuais, se refere a questões está a querer dizer que o conhecimento do juiz deve abarcar todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções suscitadas. Se o juiz deixa de conhecer de causas de pedir invocada, então, aí, cometerá a indicada nulidade de omissão de pronúncia (vide sobre este aspecto L. Freitas, A Acção Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013, pág. 334). Ora, lendo a decisão recorrida constata-se que a mesma conheceu apenas de duas das causas de pedir invocadas pelo A., nada apreciando sobre a acabada de referir pelo recorrente/arguente. Pelo que é patente que a sentença é nula nesta parte. Assim procedendo a arguição do apelante, o que importa que o tribunal ad quem terá de pronunciar-se sobre a mesma (art. 665º, nº 1, do NCPC). 4.1. Pretende o A. que deve aditar-se como fato provado que o manuscrito veio à posse do mesmo por compra a J (…), em 28 de Setembro de 2016, tal e qual como tinha alegado no art. 2º da p.i., tendo em consideração a prova documental produzida nos autos, concretamente a escritura de compra e venda e o auto de empréstimo, em conjugação com os fatos dados como provados sob os pontos 3. a 5., 8., 12., 13., 15. e 17. (conclusão de recurso 8.). As expressões “veio à posse” do A. “por compra” são manifestas conclusões de direito, que estão fora do campo da prova, pois não constituem factos materiais simples, únicos que cabe à parte alegar e sobre os quais pode recair a mesma, e aos quais o tribunal deve responder (cfr. arts. 5º, nº 1, e 607º, 410º e 607º, nº 3 e 4, 1ª parte, do NCPC (vide A. Geraldes, Recursos em P. Civil, Novo Regime, 2ª Ed., 2008, nota 10. ao art. 721º do anterior CPC, pág. 293). De maneira que tal conclusão de que o A. é possuidor há-de advir de factos concretos e materiais que permitam, depois, extrair a conclusão jurídica que o A. é possuidor de tal pergaminho. Não procede, por isso, a impugnação de facto nesta parte. 4.2. Também peticiona o A. que se dê por provado o facto não provado a), que o A. pagou os 100.000 € constantes na escritura mencionada no facto provado 1., pelos fundamentos probatórios que enumera (cfr. conclusões de recurso 9. e 10.). A matéria constante deste facto não tem a importância que aparenta, nem a tem para a solução do litígio e decisão do recurso. Expliquemos. A impugnação da matéria de facto consagrada no art. 640º do NCPC não é uma pura actividade gratuita ou diletante. Se ela visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados, ela tem, em última instância, um objectivo bem marcado. Possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada ou não provada, para que, face à eventual nova realidade a que se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. Isto é, que o enquadramento jurídico dos factos tidos por provados ou não provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. Assim, se por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a solução da questão de direito e para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois nesse caso mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo factual anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente destituído de qualquer eficácia, por não interferir com a solução de direito encontrada e com a decisão tomada. Por isso, nestes casos de irrelevância jurídica, a impugnação da matéria de facto não deve ser conhecida sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (vide A. Geraldes, ob. cit., nota 11. ao art. 712º, pág. 298, e Ac. desta Relação de 12.6.2012, Proc.4541/08.3TBLRA, em www.dgsi.pt). No caso dos autos, o aludido ponto da matéria não provada que o apelante pretende submeter a impugnação factual e análise por esta Relação, queda irrelevante, como acima ficou dito, já que, mesmo que dado por provado, nenhuma influência pode ter na sorte da causa e no mérito do recurso. Ou seja, mesmo que dado como provado, como o impugnante pretende, não alteraria a decisão que tem e deve ser tomada sobre o objecto do recurso com os restantes factos que ficaram assentes e com aqueles remanescentes que podem ficar provados após apreciação da dita impugnação. Na verdade, a compra e venda tem como efeito essencial a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito (arts. 879º, a), 408º, nº 1, e 1317º, a), do CC). Assim, se o vendedor for o proprietário da coisa transfere para o adquirente tal direito, por mero efeito do contrato. Se o comprador não paga o preço, a que está obrigado (art. 879º, c), do mesmo diploma), fica vinculado a efectuá-lo perante o vendedor, nem sequer este, em princípio, entregue a coisa ao comprador, podendo resolver o contrato (art. 886º do CC). Ou seja, mesmo com o não pagamento do preço, transfere-se para o comprador o direito de propriedade sobre a coisa. No caso, o A. comprou o pergaminho (facto provado 1.), pelo que viu transferido para ele o direito de propriedade sobre o mesmo, pouco importando, pois, face ao R. que tenha ou não pago o preço ao vendedor. Face ao R. o A. só tem que provar que é o proprietário da coisa, segundo as causas de pedir que invocou, pelo que a questão do pagamento do preço (ou se ainda deve o mesmo ao vendedor/anterior proprietário é irrelevante para a sorte da causa). Deste modo, a alteração da matéria de facto, no ponto preciso indicado, seria inócua atenta a decisão que no recurso tem e vai ser proferida, pelo que queda inútil a sua apreciação, já que nenhuma interferência teria na dita solução de direito. 4.3. Igualmente impugna o A. o facto não provado b), pelos fundamentos probatórios que enumera (cfr. conclusões de recurso 11. a 21.). Peticiona que que se dê por provado totalmente ou pelo menos por mais de 10 anos. Não vamos apreciar a prova oferecida, por se revelar desnecessária face ao que vamos decidir. Na realidade, esse facto global corresponde integralmente ao alegado pelo A. nos artigos 4º e 5º da sua p.i., facto esse integrante de uma das causas de pedir invocadas pelo autor, que não foi definida, como reza a lei, clara e concludentemente impugnado pelo R. na sua contestação, como decorre da leitura da mesma – o R. limitou-se a dizer que o A. não era proprietário do manuscrito, por o vendedor do pergaminho não ser o proprietário originário do mesmo, via ocupação, por não ter anunciado o achado nos termos legais, pelo que a venda era nula, e por não ter pago o preço da compra e venda (cfr. arts. 32º a 37º da apontada contestação). Não tendo havido aquele tipo de impugnação daquela matéria substantiva, a mesma tem-se por provada, por admissão, nos termos do art. 574º, nº 1 e 2, 1ª parte, do NCPC. É certo que o R. impugnou simplística e genericamente toda a matéria alegada na p.i., no art. 56º da sua contestação, dizendo que era falsa ou inexacta, nada mais - chegando neste caso ao ponto de impugnar matéria substantiva que precedentemente tinha admitido nos artigos anteriores da contestação 11º a 48º. !!! Por exemplo, admitiu que houve empréstimo do pergaminho ao Município, e depois impugnou no aludido art. 56.; admitiu que o A. enviou cartas ao mesmo a reclamar o pergaminho e que o Município enviou carta ao A. a propor um projecto de contrato de comodato referente ao uso do manuscrito e depois impugnou no dito art. 56º; o A. afirmou que o R. sempre reconheceu ser mero comodatário e não proprietário da Torah, pois foi-lhe cedida por empréstimo, favor ou tolerância e mesmo aqui impugnou no falado art. 56º (apetece perguntar aqui, se o R. impugna que é comodatário do manuscrito, então o que será ? proprietário não tem cabimento, pelo que parece que entenderá que é um simples detentor precário de tal pergaminho…). Porém, este tipo de impugnação, como se efectivou no referido art. 56º da contestação, não satisfaz os requisitos legais. Sendo o momento de relembrar o que avisada e muito justamente se escreveu no Ac. do STJ de 14.12.2004, Proc.04A4044, a propósito do ónus de impugnação previsto no art. 490º do anterior CPC, disposição similar ao actual art. 574º do NCPC: “O artº 490º do CPC sofreu alterações significativas com a reforma do código de processo entrada em vigor no dia 1.1.97. Para o caso presente interessa realçar as seguintes: - No nº 1, correspondente à 1ª parte do nº 1 originário, a expressão "perante cada um dos factos" foi substituída por "perante os factos"; - No nº 2, correspondente à 2ª parte do nº 1 originário, foram suprimidos o advérbio "especificadamente" (impugnados especificadamente) e o adjectivo "manifesta" (manifesta oposição); - Desapareceu o nº 3 originário, que dispunha: "Não é admissível a contestação por negação"; - E desapareceu, ainda, o nº 5, introduzido pela reforma intercalar de 1985, que dispunha poder a impugnação ser feita, total ou parcialmente, por simples menção dos números dos artigos da petição inicial em que se narrassem os factos contestados. O que destas "cirúrgicas" modificações resulta, sem qualquer dúvida, é a maleabilização, ou aligeiramento, ou desformalização do ónus de impugnação, tendo em vista, segundo se refere no preâmbulo do DL 329-A/95, fazer com que a "verdade processual reproduza a verdade material subjacente". Presentemente, a impugnação não tem que fazer-se, como dantes, facto por facto, individualizadamente, de modo rígido; pode ser genérica. E parece, até, que deixou de ser proibida a contestação por negação, pois caiu, como se disse, o anterior nº 3, sendo certo que a proibição ali contida era o lógico corolário do ónus da impugnação especificada. Está assim claro que, desaparecido este ónus, não pode deixar de concluir-se que ao dizer de uma só vez que são falsos todos os factos alegados pelo autor, o réu, em princípio, está a cumprir o ónus de impugnação na sua presente configuração. Por um lado porque, fazendo-o, toma uma posição definida sobre todos os factos invocados pela parte contrária na petição; por outro lado porque tal posição se traduz exactamente na refutação desses factos, na recusa de os admitir como verdadeiros. Isto, porém, como se disse, só em princípio, só em abstracto é assim. Sendo inequívoco que a lei continua a estabelecer um ónus de impugnar, socorrendo-se de uma fórmula para o definir que é um verdadeiro conceito indeterminado - "ao contestar, - diz o artº 490º, nº 1 - deve o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição" - só caso a caso, perante as particularidades de cada hipótese concreta, é possível ajuizar acerca da observância desta norma adjectiva. A posição definida a que a lei alude pode assumir os contornos, a intensidade, a "cor" mais diversa, tudo dependendo, desde logo, quer da estruturação da acção em termos de facto, quer da própria estratégia de defesa delineada pelo réu. Tenha-se em atenção que não é exactamente o mesmo, bem pelo contrário, uma defesa directa (em que o réu nega frontalmente, sem mais, a verificação dos factos) e uma defesa indirecta (em que o réu, nomeadamente, confessando ou aceitando uma parte dos factos alegados, aponta outros que são incompatíveis com a existência de factos invocados na petição). E assim, se pode reconhecer-se que em dada situação uma contestação por negação ou de todo em todo genérica não envolve infracção do ónus estabelecido na lei, terá também de admitir-se que noutras situações se imporá uma resposta diametralmente oposta. Ao fim e ao cabo o preenchimento valorativo do conceito indeterminado a que aludimos será sempre o resultado, se assim nos podemos exprimir, de duas variáveis: de um lado, o planeamento da defesa assumida pelo réu e o modo como a põe em prática, tudo em larga medida dependente do valor profissional e da exigência deontológica do respectivo advogado; do outro, o justo sentido da medida e da proporção das coisas por parte do juiz, que deve, em matéria como a presente, levá-lo a agir com toda a prudência, estudando cuidadosamente, quer todos os factos que fundamentam o pedido e a causa de pedir, quer o posicionamento assumido pelo réu em face deles. …..No caso ajuizado, os réus começaram por dizer - artº 1º da contestação - que a versão dos factos apresentada na petição era falha de exactidão e pouco rigorosa, adulterando a realidade. Só que, logo de seguida, quando seria de esperar - e de exigir - que apontassem as inexactidões e as faltas de rigor, "repondo" a verdade, isto é, descrevendo a sua versão das coisas, limitaram-se, comodamente, a afirmar que daquele modo ficava a petição integralmente impugnada, como a lei determina. Ora parece evidente que, tendo em conta a natureza dos factos invocados na petição, por um lado, e da própria impugnação anunciada no referido artº 1º da contestação, por outro, - uma impugnação em parte directa, em parte indirecta - a posição definida perante os factos invocados pelo autor que integra o núcleo irredutível do ónus de impugnação reclamava uma explanação minimamente detalhada da versão tida por verdadeira por parte dos réus; uma explanação que não só pusesse a nu as alegadas inexactidões e faltas de rigor relatadas na petição inicial, mas também descrevesse os factos concretos que, contrapondo-se àqueles, pudessem levar o juiz à conclusão, ou de que não há contas a prestar, ou de que tal obrigação existe, mas com conteúdo diverso do desenhado na petição. Tal seria, de resto, a conduta processual que melhor se ajustaria aos princípios da igualdade e da cooperação que dominam o processo civil (cooperação das partes entre si e com o tribunal para se chegar à justa composição do litígio, difícil, se não mesmo impossível de obter quando logo no apuramento da base de facto claudica o esforço que todos sem excepção, a começar pelas partes, devem fazer nesse sentido). Importa dizer, para concluir, que a atitude dos réus - de puro e simples refúgio na negação total dos factos da petição, sem mais - suscita mesmo dúvidas acerca da boa fé com que litigam, sabido que alguns dos factos dados como assentes estão plenamente provados por documentos autênticos, como é o caso da cessão de quotas e das alterações do pacto social da sociedade referenciada nos autos.” – o sublinhado é nosso. Entendimento que perfilhamos, e plenamente aplicável no nosso caso, e que nos faz de novo concluir e repetir que entendemos não ter havido correcta impugnação da matéria de facto, nos termos do aludido art. 574º, nº 1 e 2, 1ª parte, do mesmo código. Pelo que, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo código, tal facto não provado está, ao invés, provado, sendo que à sombra do art. 662º, nº 1, do mesmo diploma, a decisão proferida sobre a matéria de facto deve ser alterada por esta Relação no sentido referido. Passando tal facto a constar do elenco dos factos provados sob 21., a negrito (ficando a indicada b) em letra minúscula). 21. J (…) exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil. 4.4. Finalmente, propugna que o facto provado 4. padece de imprecisão que deve ser suprida, devendo este ser modificado para a redacção que sugere, atento os elementos probatórios que indica (cfr. conclusões de recurso 22. e 23.). Se bem se reparar, o A., face à redacção que propõe, diverge do teor do facto 4. apenas quanto à participação do vereador da cultura na reunião, pois estiveram nela, não o Vereador mas outros funcionários do R. – (…), quanto ao propósito de conservação do documento e subsequente exposição do mesmo. É algo incompreensível esta impugnação. Em primeiro lugar, porque (…)são funcionários do R. E se o A./apelante aceita que eles são representantes do R. muito mais cabimento e aceitação terá a afirmação que o Vereador da cultura era o representante do R. naquela área específica, não se descortinando qual a importância/relevo de tal distinção para o caso concreto e solução do litígio. Tanto mais que o empréstimo foi efectivamente celebrado nesse dia e o documento que o comprova está assinado pelo Vereador, como decorre do facto provado 5. e doc. de fls. 9 v. apresentado pelo próprio A. Em segundo lugar, por uma razão de natureza lógica. Se o A. aceita que o pergaminho era para estudo e análise, infere-se, logicamente, que tinha de ser devidamente conservado ! Por último, a subsequente exposição pública do mesmo é reconhecida pelo A., como decorre do doc. nº 3, assinado pelo A. e junto pelo próprio com a p.i. a fls. 11/12, assim como resulta dos factos provados 8., 12. e 14., factos não impugnados pelo recorrente. Nos termos explicitado terá, pois, de improceder a impugnação do apelante. 5.1. Acerca da causa de pedir relacionada com a aquisição derivada do A. ao proprietário originário, por ocupação, do manuscrito, escreveu-se na sentença recorrida que: “Alega o A que o vendedor da Torá o tinha na sua posse há mais de 20 anos, por o ter encontrado quando iniciou a profissão de servente de construção civil e desde a data do achado que o manteve em sua casa, exibindo-o, sem oposição de quem quer que seja. Aduz, então, uma das formas de aquisição originária como título do direito de propriedade na pessoa do vendedor. As formas de aquisição do direito de propriedade encontram-se previstas no art. 1316.º do Código Civil – contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão, entre os demais modos previstos na lei. Ora, resulta provado, que “João José Inácio Leitão “encontrou” tal manuscrito no “entulho” de uma obra no âmbito do exercício da sua profissão relacionada com a construção civil e guardou-a na sua casa”. A Ocupação é uma das formas de aquisição do direito de propriedade. Prescrevendo, a este propósito, o artigo 1318.º do Código Civil que «Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvo as restrições dos artigos seguintes.» Ou seja, para que as coisas móveis possam ser objecto de ocupação, devem ser «de ninguém», no sentido de que nunca tiveram dono ou que foram abandonadas; deve também aquele que ocupa a coisa ter intenção de adquirir para si a propriedade dessa coisa. No entanto, a lei impõe algumas restrições à ocupação, nomeadamente: a) Art.º 1323.º do Código Civil, “Animais e coisas móveis perdidas”: Aquele que encontrar animal ou outra coisa móvel perdida (uma jóia, por exemplo) e souber a quem pertence deve restituir o animal ou a coisa a seu dono ou avisar este do achado; se não souber a quem pertence, deve anunciar o achado pelo modo mais conveniente, atendendo ao valor da coisa e às possibilidades locais (anunciar no jornal da localidade), ou avisar as autoridades. Se no prazo de um ano ninguém reclamar a propriedade da coisa ou do animal, o achador torna-se proprietário do achado. b) Art.º 1324.º do Código Civil “Tesouros”: se aquele que descobrir coisa móvel de algum valor, escondida ou enterrada, não puder determinar quem é o dono dela, torna-se proprietário de metade do achado; a outra metade pertence ao proprietário da coisa móvel ou imóvel onde o tesouro estava escondido ou enterrado. Assim, se alguém encontrar num terreno que não é seu, um objecto, deverá dividir o valor do mesmo com o proprietário do terreno onde o objecto foi encontrado. Todavia, o achador continua a ter as mesmas obrigações de anunciar o achado, conforme explicado no caso anterior. Só não precisará de anunciar o achado quando for evidente que o tesouro foi escondido ou enterrado há mais de 20 anos. Revertendo, de novo, ao caso que nos ocupa, não foi alegado, nem vem provado, que o vendedor, …, tenha cumprido qualquer um dos pressupostos para a aquisição por “ocupação”, pois não resulta que tenha anunciado o achado ou avisado as autoridades, como se lhe impunha, caso não soubesse quem era o seu dono, pois, neste caso, era obrigado a restituir o bem.”. O A. não contesta esta argumentação jurídica, relativamente à não aplicação dos normativos referidos, arts. 1323º e 1324º, até reconhece que assim é, por não estamos perante coisa perdida, nem escondida ou enterrada, caso em que deveria ter havido a respectiva publicitação, mas defende que se trata de coisa abandonada/res derelictae, pois o proprietário afastou-a da sua disponibilidade, pelo que se aplica o disposto no referido art. 1318º do CC. (cfr. conclusões de recurso 27. a 29.). Mas não tem razão. Na verdade, o abandono supõe que o dono afastou a coisa da sua disponibilidade natural, como sucede quando se deita fora o jornal. Mas, para que se verifique o abandono, é necessário ainda que que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi). Não há, portanto, abandono quando se perde ou esconde a coisa, ou quando é a própria coisa que sem intervenção do dono se escapa à detenção deste (vide A. Varela, ob. cit., nota 4. ao artigo 1318º, pág. 125). Tendo o A. o respectivo ónus de prova (art. 342º, nº 1, do CC) cabia-lhe a ele provar que a coisa foi abandonada, o que não logrou, como decorre da matéria apurada, porque nem sequer alegou o referido abandono. Não procede esta parte do recurso. 5.2. A propósito da causa de pedir relacionada com a aquisição derivada do A. ao proprietário originário, por usucapião, do manuscrito, na sentença recorrida entendeu-se que ela não se verificava. Isto porque não tinham decorrido os prazos previstos no art. 1299º do CC. O apelante entende que sim (cfr. conclusões de recurso 30. a 33.), e tem toda a razão. A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião (art. 1287° do CC). A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua sobre uma coisa por forma correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como titular desse direito (animus) - art. 1251° do CC. O corpus é o poder de facto, o exercício, a prática ou possibilidade de prática de actos materiais, virados para o exterior, visíveis por toda a gente, e o animus é o elemento psicológico, vontade, intenção de agir como titular do direito real correspondente aos actos materiais praticados. Para obviar às dificuldades que a prova do elemento subjectivo da posse implica, o nosso legislador no nº 2 do art. 1252º do CC, estabeleceu uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus). Por outro lado, a posse para conduzir à usucapião tem sempre de revestir duas características: ser pública e pacífica (arts. 1261º, 1262º, 1297º e 1300º, nº 1, do CC), pois que se for violenta ou oculta, os prazos que permitem a sua aquisição por usucapião apenas se iniciam com o fim de tais situações. Diz-se pacífica a posse quando não foi adquirida com violência, ou seja, quando o possuidor não usou de coacção física ou moral para obter a posse (art. 1261º) e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º). Os restantes caracteres da posse (boa ou má fé, titulada, etc.) influem apenas no prazo necessário à usucapião. No que concerne ao carácter titulado, ou não, da posse o art. 1259º, nº 1, do CC, diz que é titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico. Enquanto que a posse diz-se de boa-fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem – art. 1260º, nº 1, do CC. Sendo certo que a posse titulada presume-se de boa-fé e a não titulada de má-fé – art. 1260º, nºs 1 e 2, do CC. Revertendo agora ao caso em apreço, estamos perante um bem móvel não sujeito a registo, devendo neste caso aplicar-se o dito art. 1299, designadamente os prazos aí referidos de 3 anos (posse, de boa fé e fundada em justo título) ou 6 anos (independentemente da boa fé e de título, tiver durado). Descendo ao nosso caso concreto, temos provado que o J (…) “encontrou” a Torá no entulho, guardou-a na sua casa, exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil, tendo-o emprestado ao R. e terminou vendendo o mesmo (factos provados 1., 2., 4., 5. e 21.). Por conseguinte, provados os caracteres da posse e o decurso do prazo da mesma, por mais de 20 anos, é óbvio que decorreu o prazo para a aquisição originária da Torah, através do instituto da usucapião, por parte do vendedor da mesma ao A., pelo que a aquisição derivada deste está perfeitamente comprovada e legitimada. Estando, por isso, provada a propriedade do A. sobre o referido pergaminho, a acção nesta parte tem que proceder. 5.3. A propósito da causa de pedir relacionada com a presunção de posse, temos de entrar no conhecimento dela, como acima salientámos, face à omissão de pronúncia da 1ª instância. O apelante defende que está demonstrada a sua propriedade face à presunção possessória constante do art. 1268º do CC, não invertida pelo R. conforme impõe o art. 350º, nº 1, do CC (conclusões de recurso 24. a 26.). E com ele concordamos. Nos termos do art. 1268º, nº 1, do CC, o possuidor goza da presunção da titularidade do direito. Resulta do art. 1263º, c), do mesmo diploma, que a posse adquire-se por constituto possessório. E do seguinte art. 1264º, nº 1, que se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa. E do nº 2, que se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar. Ora, decorre dos factos provados 1. a 5., 8., 16., 20. e 21., que o vendedor do pergaminho era o possuidor e proprietário do mesmo, tendo com a indicada venda a posse do manuscrito passado para o A., por constituto possessório. E assim goza da presunção de propriedade a seu favor. de inverter o ónus da prova. E ainda que o vendedor não fosse o proprietário o A. não deixava, com a compra e venda e transmissão da posse de beneficiar de tal presunção (art. 350º, nº 1, do CC). Cabia, pois, ao R., o ónus de impugnar tal presunção legal, provando o contrário (art. 350º, nº 2, do CC), o que não fez. Termos em que a pretensão do A. de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o bem móvel - Torah - deve proceder, com fundamento na presunção de propriedade a seu favor, não ilidida pelo R. 5.4. Em suma e conclusão, atento as disposições normativas citadas supra em 5.2. e 5.3. e a fundamentação jurídica explicitada, a pretensão do apelante de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o aludido bem móvel, com fundamento nas duas aludidas causas de pedir, merece acolhimento. 6. Face à procedência de tal pedido, há que decidir sobre a peticionada restituição do pergaminho ao A. Nos termos do art. 1311º, nº 2, do CC, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. Entre eles, encontram-se os casos de comodatário ou do titular de direito de retenção, que foram justamente os invocados pelo R. na sua contestação. Vejamos, então. 6.1. O R. alegou que é comodatário do pergaminho e que este foi emprestado, sem prazo certo, para uso determinado - conservação, análise e estudo, e exposição em eventos de reconhecido valor arqueológico e cultural, o que ainda não se verificou. Resulta do art. 1137º, nº 1 e 2, do CC, que se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação, e se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida. Não há qualquer dúvida que a Torah foi emprestada ao R. Por outro lado, sabemos da matéria apurada que não foi fixado prazo certo para a restituição da coisa. A questão está, pois, em saber se foi estipulado um uso determinado e se o uso já findou. A conservação não tem relevância nenhuma para o uso determinado, visto que é uma das obrigações do comodatário (art. 1135º, a), do CC). A exposição em eventos de reconhecido valor arqueológico é cultural já se deu (cfr. factos provados 8. e 10.), pelo que o uso determinado já terminou, ao contrário do que defende o R. A não ser que este entenda que está subjacente a tal autorização de exibição a autorização perpétua para outras exposições que o R. organize ou em que participe, o que não resulta da matéria apurada, nem também se surpreende minimamente de interpretação do contrato formal de empréstimo (art. 238º, nº 1, do CC), certo que o R. não logrou provar que era essa a vontade real das partes (nº 2 do mesmo preceito), nem igualmente se divisa em qualquer interpretação da autorização dada pelo anterior proprietário/vendedor para a aludida exposição (art. 236º, nº 1, do CC), certo até que o actual proprietário quis reaver o manuscrito logo que terminou a exposição (facto 12.). E mesmo que existisse alguma dúvida (art. 237º do CC), por se tratar de um negócio gratuito prevaleceria o menos gravoso para o disponente, ou seja seria sempre de rejeitar essa perpetuidade, até porque a mesma contraria frontalmente o carácter temporário do contrato de comodato, estabelecido no art. 1129º do CC. Aliás o R. está ciente de que não poderia tomar essa atitude unilateral de retenção do pergaminho para exposição vitalícia porque tentou celebrar um acordo protocolar com o dono do mesmo que, todavia, se frustrou (factos 13., 15. a 17.). Quanto à análise e estudo, o que se demonstrou é que o R. nunca apresentou ao A. qualquer resultado, nem se tendo provado que tenha efectuado uma ou outro (facto 20.). Torna-se, pois, evidente que se a Torah foi emprestada para análise e estudo, tem ambos de ser efectuados. E depois das duas uma. Se foram realizados, então o uso determinado terminou. Se não foram efectivados, por inacção total do R., podemos, assim, de novo cair na perpetuidade do seu uso, entendimento que voltamos a rejeitar. De qualquer maneira, temos por bom o entendimento que o uso determinado de que a lei fala envolve, naturalmente, uma delimitação no tempo. Como se refere no Ac. do STJ, de 16.11.2010, Proc.7232/04.0TCLRS, em www.dgsi., “Ora, como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega “já é feita sob o signo da temporalidade”. Com efeito, em razão dessa nota de temporalidade, a ordem jurídica não tolera um comodato que “deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico que, enquanto subsistir o comodatário, será sempre possível” (ac. STJ, de 29/9/93, CJ/STJ, III, 47). (…) É entendimento corrente, na doutrina e na jurisprudência, que, relativamente a empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado. Deste modo, o uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável. Consequentemente, tem de concluir-se que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tenha direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do local, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º (AA., ob. e loc. cit.; acs. STJ, de 13/5/2003 e 18/12/2003, procs. 03A1323 e 03B3612).” – o sublinhado é nosso. O mesmo se tendo explanado no Ac. do STJ, de 15.12.2011, Proc.3037/05.0TBVLG, no mesmo sítio, “…no Ac. do S.T.J. de 12-6-1996 (Sampaio da Nóvoa) 088392 referiu-se que “no comodato, dois requisitos são necessários para caracterizar o uso determinado do empréstimo de prédio: a) que ele esteja expresso de modo bem claro; b) e, para evitar que em parte a situação se possa confundir com uma atitude de doação, que esse uso seja de duração limitada; neste mesmo sentido, o de o uso ser determinado, veja-se o Ac. do S.T.J. de 26-6-1997 (Fernando Fabião) 97A334 onde se salienta que que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, volume II, 440; Vaz Serra, R.L.J. 114, 21 e 22; acórdão do S.T.J. de 29 de Setembro de 1993, B.M.J. 429, 807; acórdãos da Relação do Porto de 26 de Janeiro de 1984, 6 de Junho de 1991, 11 de Janeiro de 1994, in, respectivamente, C.J. 1984, Tomo 1, 231, 1991, Tomo 3, 246, 1994, Tomo 2, 173). Portanto, o comodatário, neste caso, está obrigado a restituir a coisa logo que lhes seja exigida (artigo 1137 n. 2), extinguindo-se o comodato …” – o sublinhado é nosso. Posição subscrita por L. Menezes Leitão, em D. Obrigações, Vol. III, 5ª Ed., pág. 380, nota 731, que concorda que quando o prazo do comodato é incertus an – até que a análise e estudo seja feita ao manuscrito – corresponderá a um comodato sem prazo, susceptível de o comodante exigir a restituição a todo o tempo da coisa. Por conseguinte, a argumentação jurídica do R. neste campo não procede, não havendo razão para não restituir o manuscrito ao A. 6.2. O R. também alegou que sendo comodatário do pergaminho tem direito de retenção sobre o mesmo, nos termos do art. 754º do CC. Este preceito genérico estatui que o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela. E especificamente o art. 755º, e), do CC, atribui esse direito ao comodatário. Porém, nem todas as despesas feitas pelo detentor/comodatário conferem direito de retenção. Antunes Varela (na Rev. Leg. Jurisp., Ano 119º, págs. 202 e segs.) defende que o legislador, com o disposto na referida e) tem especialmente em vista os créditos do comodatário provenientes da execução do contrato (e não da celebração), que são, por via de regra, os nascidos das despesas com benfeitorias necessárias ou úteis na coisa emprestada. Mas este regime das benfeitorias é afastado se as regras próprias do comodato impuserem e conduzirem a outro resultado (vide A. Varela, CC Anotado, Vol. II, 2ª Ed., nota 3. ao artigo 1138º, que dispõe sobre as benfeitorias do comodatário, pág. 597). Como já acima se referiu são obrigações do comodatário a guarda e conservação das coisa (art. 1135º, a), do CC). No respeitante à guarda ou custódia, o comodatário obriga-se a vigiar a coisa e evitar que ela seja subtraída ou danificada, nada impedindo que ele cumpra este dever recorrendo à actividade ou à colaboração de terceiros (autor citado, nota 2. ao artigo 1135º, pág. 590). Mas relativamente às despesas feitas pelo comodatário para assegurar a guarda da coisa, para além de não se poder falar neste caso em benfeitorias, as mesmas cabem-lhe a ele inteiramente, pois não pode admitir-se que esta obrigação exista sem que exista a obrigação de assumir os respectivos encargos (ibidem, pág. 597). Portanto, o R. não tem direito a receber quaisquer despesas efectuadas com a guarda da coisa, nem consequentemente qualquer direito de retenção. Relativamente às despesas de conservação com a coisa, teremos de concluir que o mesmo acontece. Na verdade, também aqui o comodatário se obriga a praticar os actos necessários à manutenção dela, daí que as inerentes despesas ordinárias devam ser suportadas pelo mesmo (ibidem, pág. 590). Ora, o facto provado 6., não impressiona, pois não revela nenhum carácter de despesa extraordinária, já que, como é normal e expectável, o R. manterá no seu arquivo municipal, nas condições ambientais protegidas identificadas, outras coisas ou objectos (igualmente valiosos) que também conserva e que geram despesas do normal funcionamento desse arquivo, independentemente da presença da Torah. Pelo que, naturalmente, as despesas com o referido pergaminho estão contidas nestas despesas ordinárias de serviço e manutenção do dito arquivo. Adicionalmente temos de referir ainda que, mesmo que inexistisse este regime de excepção em relação às benfeitorias, e seguíssemos apenas o figurino legal delas, mesmo aqui não haveria direito de retenção. O comodatário é equiparado quanto a benfeitorias ao possuidor de má fé. Tem direito a ser indemnizado das necessárias que haja feito (art. 1273º, nº 1, do CC). São benfeitorias necessárias todas as despesas feitas para evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa (art. 216º, nº 1, 2 e 3, 1ª parte, do CC). Entendemos, por se nos afigurar óbvio, que o resultante do facto 6. não se reporta à perda/destruição da coisa. Já seria tentador dizer-se que se reportará a evitar a deterioração da coisa. Mas bem vistas as coisas, nem por este caminho se poderia ir. Basta pensar que o pergaminho não deixou de estar suficientemente conservado no tempo pretérito (durante anos, décadas e séculos…), pois até ao seu achamento ele não foi destruído. Teria, pois, o R. de provar que só no condicionalismo ambiental em que ele hoje se encontra ele não se iria deteriorar. Isto é, que nunca tal ocorreria se por ex. estivesse guardado, numa gaveta, armário ou baú, enrolado num lençol, etc. Prova que o R. não fez. Pelo que, face ao explicitado, se impõe concluir que o R. não goza do arrogado direito de retenção sobre tal manuscrito, não havendo, por conseguinte, qualquer obstáculo legal, à restituição do bem ao A. 7. O A. peticionou a condenação do R. no pagamento dos prejuízos que sofreu com a privação do manuscrito. Porém, do acervo factual, não se prova a existência de qualquer prejuízo. Como assim, este pedido tem de improceder. 8. Quanto à reconvenção, o R. pediu que se condene o A. a pagar os montantes despendidos com a guarda e conservação da coisa, a liquidar em sentença, mais juros a contar da notificação da contestação, e invocou a compensação com o peticionado crédito do A. 8.1. Face ao que foi exposto em 6.2., o R. não tem direito ao que peticiona. 8.2. Uma vez que não se apurou nenhum crédito a favor do A. sobre o R., nem deste sobre aquele, não existe lugar a qualquer compensação (art. 847º do CC). 9. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): i) A omissão de pronúncia, geradora de nulidade da sentença, dá-se quando o tribunal não conhece de questões de que devia podia tomar conhecimento (arts. 615º, nº 1, d), 1ª parte, e 608º, nº 2, 1ª parte, do NCPC); ii) Quando a lei, nos mencionados normativos processuais, se refere a questões está a querer dizer que o conhecimento do juiz deve abarcar todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções suscitadas, o que significa que o juiz só cometerá a indicada nulidade de omissão de pronúncia se não conhecer de causa de pedir invocada pelo A.; iii) Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente; iv) Com a alteração da redacção do art. 490º do anterior CPC, introduzida pelo DL 329-A/95 (disposição similar ao actual art. 574º do NCPC), atenuou-se o rigor formal do ónus de impugnação especificada, sem que tal implique, todavia, que a parte esteja dispensada de tomar posição definida, clara, frontal e concludente sobre as alegações de facto feitas pela parte contrária; v) Não tendo havido impugnação de factos substantivos alegados pelo A. na p.i., os mesmos têm-se por provados, por admissão, nos termos do art. 547º, nº 1 e 2, 1ª parte, do NCPC, pelo que, nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do NCPC, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, do mesmo código, tais factos devem dar-se por provados, devendo, à sombra do art. 662º, nº 1, do mesmo diploma, a decisão proferida sobre a matéria de facto ser alterada pela Relação; vi) O abandono previsto no art. 1318º do CC, como causa da aquisição da propriedade por ocupação, supõe que o dono afastou a coisa da sua disponibilidade natural, sendo necessário ainda que que haja intenção, por parte do proprietário, de demitir de si o direito que tem sobre ela (animus derelinquendi); . vii) Recaindo sobre quem o invoca o respectivo ónus de prova (art. 342º, nº 1, do CC); viii) Provado que alguém “encontrou” uma Torah no entulho, guardou-a na sua casa, exibiu o manuscrito a familiares, clientes, fornecedores e amigos, sem oposição de quem quer que seja e teve a posse de tal manuscrito durante mais de 20 anos, designadamente desde a data em que iniciou a profissão de servente da construção civil, tendo-o emprestado ao R. Município e terminou vendendo o mesmo, fica demonstrado a aquisição originária de tal pergaminho, através do instituto da usucapião, pelo que a aquisição derivada do comprador fica comprovada e legitimada; ix) Face à presunção possessória constante do art. 1268º, nº 1, do CC, a favor do A., com base em constituto possessório, nos termos dos arts. 1263, c) e 1264º do CC, presunção não ilidida pelo R., conforme impõe o art. 350º, nº 1 e 2, do CC, é de julgar procedente o seu pedido de reconhecimento de propriedade; x) É da natureza do contrato de comodato, como seu elemento essencial, a obrigação de restituir a coisa, cuja entrega já é feita sob o signo da temporalidade, razão pela qual a ordem jurídica não tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico; xi) No empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado; xii) Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 1137º do CC; xiii) Para o conceito de uso determinado é irrelevante a conservação da coisa, visto que é uma das obrigações do comodatário (art. 1135º, a), do CC); xiv) Se a exposição da Torah em eventos de valor arqueológico e cultural, por autorização do comodante, já se deu, o uso determinado já terminou; não sendo concebível subjacente a tal autorização uma outra perpétua para outras exposições que o R. Município organize ou em que participe; xv) Quanto ao empréstimo para análise e estudo do manuscrito, pelo comodatário, das duas uma: se foram realizados, então o uso determinado terminou; se não foram efectivados, por inacção total do R., podemos de novo cair na perpetuidade do seu uso, entendimento que é de rejeitar, pois neste último caso cairíamos no uso determinado sem delimitação temporal, referido em x); xvi) As despesas de guarda e conservação da coisa comodatada porque inerentes ao cumprimento das obrigações do comodatário (art. 1135º, nº 1, a), do CC), não conferem direito de retenção a este. IV – Decisão Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida, e julgando-se parcialmente procedente o recurso do A., decide-se: a) Reconhecer o direito de propriedade do A. sobre o manuscrito em pergaminho designado por Torah, identificado no artigo 1º da petição inicial; b) Condenar o R. a restituir ao A., o manuscrito designado por Torah; Bem como se decide: c) Julgar a reconvenção do R. improcedente. * Custas da acção pelo A. e R. na proporção do vencimento/decaimento, e da reconvenção pelo R. * Coimbra, 24.4.2018 Moreira do Carmo ( Relator ) Fonte Ramos Maria João Areias |