Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2360/06.0TALRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: DIREITO DE QUEIXA
EXTINÇÃO
OFENSA A PESSOA COLECTIVA
ORGANISMO OU SERVIÇO
Data do Acordão: 01/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 115º E 187º DO CP
Sumário: 1. Quando numa peça processual são relatados factos ofensivos da honra de outrem, subscrito por advogado, de acordo com as informações prestadas pelo arguido seu cliente, e não tiver sido alegado que o advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos, tratando-se de um caso de comparticipação criminosa.
2. Tendo a acusação sido deduzida apenas contra os clientes e já não contra o advogado, falta uma condição legal de procedibilidade (art.115.º, n.º2 do Código Penal), o que determina a extinção do procedimento criminal.
3. Do n.º1 desta norma penal resulta que existe um prazo legal de 6 meses para o titular da queixa agir criminalmente sob pena de caducidade do seu direito.
4. Do n.º 2 resulta que em matéria penal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime. Pretendeu-se obstar, com este regime, que a perseguição não seja tanto de natureza pessoal, mas seja em razão do crime
5. Os elementos constitutivos do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, são os seguintes:- a afirmação ou propalação de factos inverídicos;- que os factos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço; - que a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço exerça autoridade pública; - que o agente activo não tenha fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos; e - o conhecimento e vontade por este de realização dos elementos objectivos do tipo, com consciência da ilicitude da sua conduta.
6. Para haver comparticipação num crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, entre mandatário judicial e os mandantes, numa peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo que tácito, entre aquele e estes, para afirmar ou propalar factos inverídicos, não tendo o mandatário judicial e os mandantes fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos.
Decisão Texto Integral: Relatório

Pelo 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, sob acusação do Ministério Público, foram submetidos a julgamento, em processo comum e com intervenção do tribunal singular, os arguidos
A..., residente na Rua …, ...., e
V..., residente na Rua …, ....,
imputando-se-lhes a prática de factos pelos quais teriam cometido um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal.

O Município de X... deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos A..., e V..., pedindo a condenação destes no pagamento da quantia de €10.000,00, a título de danos não patrimoniais.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença de 26 de Novembro de 2007, decidiu absolver os arguidos do crime e do pedido de indemnização civil.
Tendo sido interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, este, por acórdão de 18 de Junho de 2008, decidiu ordenar o reenvio do processo à 1.ª instância, nos termos dos artigos 426.º e 426-A, ambos do C.P.P., para novo julgamento, restrito ao apuramento das questões de facto identificadas (fls. 865 a 873).

Tendo-se procedido a procedeu-se a novo julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 27 de Abril de 2010, decidiu julgar improcedente a acusação do Ministério Público, bem como o pedido de indemnização civil, e absolver os arguidos A... e V... do crime de ofensa a pessoa colectiva e do respectivo pedido de indemnização civil.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o assistente Município de X..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1 - Os presentes autos tiveram início com a queixa apresentada pelo Município de X... em virtude das declarações que os Arguidos fizeram constar no requerimento que dirigiram ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leira, estando os Arguidos acusados da prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, p. e p. pelo artigo 187.º, com referência ao artigo 183.º, n.º1, alínea b), ambos do Código Penal;
2 - A Sentença ora em crise padece de vários vícios, pelo que não poderá em caso algum merecer a concordância do Município Recorrente.
3 - Com efeito, a Sentença ora em crise violou o Princípio da Hierarquia dos Tribunais;
4 - De acordo com este princípio, o 1.º Juízo Criminal de Leiria estava obrigado a respeitar e cumprir o Acórdão proferido, não o tendo feito;
5 - Na verdade, da análise da Sentença ora em crise verifica-se que o Sr. Juiz a quo fundamenta esta decisão tendo por base a motivação constante da Sentença revogada, que remete a convicção do Tribunal para a prova produzida no primeiro julgamento realizado;
6 - Tendo o Tribunal da Relação de Coimbra considerado inexistir, na primeira Sentença, factualidade considerada provada suficiente para sustentar a motivação proferida, não podia agora o Sr. Juiz a quo, como fez, simplesmente realizar nova audiência e remeter a nova motivação para aquela que já havia sido considerada insuficiente e que não poderia nunca ter levado em consideração a prova produzida após ter sido proferida (nomeadamente na segunda audiência de julgamento);
7 - Pelo que, a Sentença ora em crise deverá ser revogada e substituída por outra que condene os Arguidos nos termos e com os fundamentos adiante expostos.
8 - Ao contrário do que entendeu o Sr. Juiz a quo, a acusação deduzida pelo Ministério Público nos autos supra identificados não carece de condição legal de procedibilidade;
9 - E assim é pois, conforme decorre da Sentença ora em crise, “não resultam sinais evidentes dos autos de que a advogada subscritora da petição perante o TAF sabia que as imputações que aí descreveu não correspondiam à verdade”;
10 - Pelo que, neste caso, o advogado age no convencimento de que os factos que lhe foram relatados correspondem à verdade, pelo que é de excluir a intenção criminosa do mesmo, sendo que será o cliente (no caso dos autos, os Arguidos) o autor mediato do crime e o advogado um seu instrumento;
11 - Os Arguidos são, portanto, os únicos agentes do crime, sendo certo que foram os próprios Arguidos a admitir ser verdade o constante do escrito que deu início aos presentes autos, e que o teor do mesmo era da responsabilidade deles, Arguidos;
12 - Também por esse motivo a Sentença em crise deverá ser revogada e substituída por outra que condene os Arguidos nos termos e com os fundamentos seguidamente expostos.
13 - Para além dos vícios atrás identificados, a Sentença ora em crise padece também de notórios vícios de erro de julgamento, na medida em que fez a errada interpretação da prova produzida na Audiência de Julgamento realizada em 15 de Abril de 2010, o que motivou que, da matéria delimitada por esse Tribunal da Relação, o Sr. Juiz a quo considerasse provados factos que não se encontram, em caso algum, provados e considerado não provados factos que os depoimentos prestados nesta audiência claramente provam;
14 O constante em 22. dos factos provados não poderia ser considerado provado pois o Tribunal da Relação determinou que este quesito somente poderia ser considerado provado caso os pretensos terceiros fossem identificados, o que não sucedeu;
15 - Nem os Arguidos nem a testemunha M... conseguiram precisar o autor da pretensa proposta apresentada, sendo certo que o depoimento desta testemunha, porque indirecto, não pode ser valorado, de acordo com o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP, sem ser corroborado, em audiência, por quem directamente teria apresentado aos Arguidos a pretensa proposta, o que não sucedeu;
16 - Portanto, deve a Sentença ora em crise ser alterada, devendo o constante de 22. dos factos provados ser incluído nos factos não provados.
17 - O mesmo sucede com o constante em 23. dos factos provados, na medida em que, da análise dos depoimentos prestados na Audiência de Julgamento realizada em 15 de Abril de 2010, bem como dos documentos juntos aos autos, se verifica que a versão apresentada pelos Arguidos não tem qualquer credibilidade, na medida em que pretendem contraditar o teor da escritura pública de alienação do prédio dos autos, por eles, Arguidos, outorgada;
18 - A versão dos Arguidos é a de que não se aperceberam, na reunião em que estiveram presentes, que o Sr. Presidente da Câmara Municipal lhes teria dito que expropriaria o prédio caso não vendessem, tendo-se apercebido deste facto somente quando souberam o valor da venda do Lote.
19 - Nenhuma credibilidade pode merecer o testemunho dos Arguidos;
20 - Acresce que a Sentença em crise, nos factos não provados, reconhece que a Câmara Municipal não aprovou qualquer deliberação no sentido constante de 23.;
20 - Pelo que, deve a Sentença ora em crise ser alterada, devendo o constante de 23. dos factos provados ser incluído nos factos não provados;
2l - Também o constante de 24. dos factos provados, atendendo à matéria probatória produzida, deveria ser considerado não provado;
22 Assim deveria ser pois os próprios Arguidos afirmaram desconhecer se a Câmara Municipal havia deliberado não manter a viabilidade de construção no local em causa;
23 - Para além disso, foi considerado provado, em 2.,19.,20. e 21. dos factos provados, que o pedido de informação prévia apresentado pelos Arguidos em 1999 havia sido deferido, que o Arguido conhecia a aptidão construtiva do prédio que alienou ao Recorrente, que o PDM de X... não sofreu qualquer alteração na área em que se situa o mesmo prédio e que o a testemunha M..., amigo próximo dos Arguidos e responsável técnico pelo projecto apresentado em 1999, sabia que o PDM se mantinha inalterável para o local;
24 - Acresce que, conforme dispõe o artigo 16.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, compete à Câmara Municipal deliberar sobre os pedidos de informação prévia apresentados, tendo a Sentença ora em crise considerado não provado que Câmara Municipal de X... tenha deliberado sobre o assunto;
25 - Assim, também quanto ao constante em 24. dos factos provados há claro equívoco do Sr. Juiz a quo na medida em que não existe qualquer elemento probatório nos autos que corrobore o facto ali descrito, pelo que, também quanto a este facto, deve a Sentença ora em crise ser alterada, devendo o constante de 24. dos factos provados ser incluído nos factos não provados;
26 - Também quanto aos factos não provados a Sentença ora em crise laborou em erro de julgamento;
27 - Na verdade, encontrando-se provado que a Câmara Municipal de X... deferira um pedido de informação prévia para o local em 1999, os Arguidos ao afirmarem que posteriormente lhes fora dito outra coisa em sentido totalmente oposto estão sem qualquer dúvida a tecer considerações de teor contrário, para além de falsas;
28 - E assim é pois, como ficou também provado em 19. e 20., os Arguidos bem sabem que a aptidão construtiva do prédio não se altera desde 1999, pelo que qualquer indeferimento por parte da Câmara Municipal a um pedido de viabilidade dos Arguidos, ou de quem quer que fosse, constituiria um acto viciado, facilmente anulável judicialmente;
29 - Estes factos deviam ter sido considerados como provados, pelo que a Sentença em crise deve ser alterada em conformidade;
30 - Foi ainda considerado não provado, erradamente, que o Arguido tenha exercido funções no âmbito da construção de edificações, na medida em que tanto o Arguido como a testemunha M... confirmaram que o Arguido costumava acompanhar obras cujos materiais eram fornecidos pela empresa para a qual trabalhava;
31 - A Sentença em crise deverá também, por este motivo, ser alterada devendo este facto ser considerado provado;
32 - Também os factos da testemunha M... saber que o PDM não se alterava desde 06.12.1999 e que os arguidos sabiam que o PDM tinha sofrido alterações deveriam ter sido considerado provados
33 - Deveriam ter sido considerado provados pois a Sentença em crise considerou provado que ambos, o Arguido e a testemunha M..., conheciam a aptidão construtiva do prédio aludido nos autos, pelo que teriam necessariamente que saber que o PDM, para aquela zona, (e só para essa que o quesito estabelecido pelo Tribunal da Relação manda responder), não havia sido alterado - cfr. 19., 20. e 21. dos factos provados;
34 - Por se mostrarem contraditórios com os factos provados aludidos em 19., 20. e 21., devem os factos a que agora se alude, considerados na Sentença em crise não provados, ser simplesmente eliminados da Sentença;
35 - A Sentença em crise errou também na motivação constante em D), pois imputa ao Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... afirmações que este nunca produziu na Audiência de Julgamento realizada no dia 15 de Abril de 2010;
36 - Com efeito, é falso que o Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... tenha afirmado que a Câmara Municipal “se mostrou interessada na aquisição do terreno dos arguidos porque se encontrava a estudar um complexo para o local”, assim como é falso que o Sr. Presidente da Câmara Municipal tenha afirmado que havia “sido decidido (...) alterar a finalidade inicialmente prevista, porque era preciso financiar infra-estruturas”;
37 - Por esse motivo, a motivação que sustenta a Sentença em crise encontra-se, também, errada, viciando, por esse motivo, a decisão que agora se impugna;
38 - Atendendo aos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a prova produzida, que impõe decisão diversa da que agora se impugna, dúvidas não restam de que a conduta dos Arguidos é apta a preencher o tipo objectivo do crime p. e p. pelo artigo 187.º do C.P.;
39 - Assim é pois, como defende a doutrina, ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança de uma pessoa colectiva é desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que essa pessoa é tida, ou seja, imputar-lhe um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos do seu bom nome ou da sua credibilidade;
40 - E assim é independentemente do grau de gravidade da conduta perpetrada, na medida em que o tipo de ilícito previsto no artigo 187.º do C.P. é preenchido com quaisquer ofensas ao bom nome e credibilidade, mesmo as tidas por leves;
41 - Ora, afirmando os Arguidos que o Assistente os forçou a vender um bem imóvel dizendo que inviabilizaria qualquer construção nesse prédio, e que o mesmo perderia o seu valor comercial, tais insinuações são por demais aptas a manchar o prestígio e a credibilidade que o Município de X... reconhecidamente goza junto da população;
42 - Atenta a prova produzida em audiência de julgamento, dúvidas não podem restar de que os Arguidos bem sabiam que os factos que fizeram constar não correspondiam à verdade, fazendo-o dolosamente com a intenção de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Assistente e, percebe agora o Assistente, de tais acusações tentar retirar dividendos financeiros à custa do erário público;
43 - Por esse motivo, a decisão ora em crise deverá assim ser revogada e substituída por outra que condene os Arguidos pela prática, em co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo artigo 187.º, com referência ao artigo 183.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal;
44 - Assim como devem os Arguidos ser condenados no pedido cível deduzido pelo Assistente;
Somente assim se fará Justiça.

O Ministério Público na Comarca de Leiria respondeu ao recurso interposto pelo assistente pugnando pela improcedência do recurso.

Os arguidos pugnaram igualmente pela improcedência do recurso.

O Ex.mo Procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1. No dia 15.11.1999, o arguido requereu à Câmara Municipal de X... informação prévia para a construção de um condomínio a edificar no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de X... sob a ficha n.º …., inscrito em nome da arguida, sito em …, , X..., bem assim como quanto aos seus condicionamentos;
2. Tendo o indicado município informado o arguido, através do ofício n.º 7570, de 13.12.1999, que o pedido de informação prévia foi considerado viável por despacho de 06.12.1999;
3. Os arguidos, de comum acordo, requereram, em 21.02.2006, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, a intimação do Município de X... e a Câmara Municipal de X... para a emissão de um conjunto de certidões que descriminaram e fazendo constar: “Com efeito, com o intuito de forçar os requerentes a venderem um imóvel deles ao Município de X... por preço inferior ao quádruplo do que lhes tinha sido proposto por terceiros, a Câmara Municipal de X... disse-lhes que inviabilizaria qualquer construção nesse imóvel destes, perdendo o mesmo o seu valor comercial. Assim, os requerentes tiveram de vender esse prédio ao Município de X..., pelo preço de 229.447,07 Euros, a pagar em 13 prestações mensais, o que foi formalizado pela sobredita escritura lavrada a 12.02.2004 (…) Porém, pelas sobreditas deliberações, o Município de X... anexou esse imóvel a um outro, que adquiriu a terceiros (…) Pretendem os requerentes impugnar judicialmente tais deliberações. Para conhecerem o
teor exacto das mesmas, elaborarem a petição inicial e instaurarem acção judicial respectiva os requerentes necessitam das sobreditas certidões (…)”;
4. Termina o referido escrito: “Nestes termos, deve o presente requerimento ser recebido, seguindo-se os trâmites dos arts. 104º e sgs. do C.P.T.A. e afinal, ser deferido, intimando-se os requeridos para, no prazo que V.Exa fixar, passarem e entregarem aos requerentes as certidões dos elementos identificados no seu art. 1º deste requerimento”;
5. Tal escrito foi assinado por advogada;
6. No referido escrito, os elementos pedidos são de todo o processo de loteamento que corre por essa Câmara sob o nº ..., da acta da reunião dessa Câmara de 7-7-2003, da acta da reunião dessa Câmara de 16-5-2005, da acta de que conste o resultado da Hasta Pública (…), de todo o processo de informação prévia que correu por essa Câmara sob o n.º ..., da escritura lavrada entre o Município de X... e os requerentes a 12-2-2004 e da eventual escritura de venda do lote do loteamento ... ao vendedor da Hasta Pública sobredita”;
7. O Município de X... respondeu ao pedido de intimação pedindo a inutilidade superveniente visto encontrar-se cumprida a pretensão formulada pelo Requerente por escrito datado de 9-3-2006 por ter dirigido o escrito datado de 23-2-2006 com os seguintes dizeres: encarrega-me o Senhor Presidente da Câmara de informar que se encontram à disposição (…) desde 20/02/2006 os seguintes documentos: certidão de parte da acta da reunião de 7-7-2003, certidão da escritura lavrada em 12-2-2004, certidão da venda do lote, fotocopias do resultado da Hasta Pública e certidão da acta da reunião de 16-5-2005 (…)”;
8. Por escrito assinado por advogada e datado de 20-3-2006, foi dirigido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria os seguintes dizeres: Em 23-2-2006 apenas se encontravam passadas e foram entregues aos requerentes cinco certidões requeridas e só por carta expedida pelo Município de X... em 14 do mês seguinte (14-3-2006) foram os requerentes informados de que as restantes certidões se encontravam passadas, juntando um escrito timbrado do Município de X..., datado de 14-3-2006, e assinado por “O Vice Presidente da Câmara Com Competência Delegada” PJ... com os seguintes dizeres: na sequência dos pedidos supra indicados, informa-se V. Exas que as certidões requeridas poderão ser levantadas na Secção de Obras Particulares desta Câmara, dentro do horário de expediente das 9 h. às 16 h. (…);
9. Com data de 11-4-2006, foi proposta acção declarativa sob a forma de processo ordinário em que figuram como AA. os ora arguidos e como R. a ora assistente, terminando o escrito assinado pela advogada Dra. MG... : a) ser reconhecido e declarado que aos autores assiste o direito à modificação do contrato de compra e venda id. nos arts. 40º e 41º desta p.i., com a consequente fixação do respectivo preço, segundo juízos de equidade, em 1 250 000 Euros; b) ser decretada a modificação desse contrato, fixando-se o seu preço em 1.250.000; c) ser a ré condenada a reconhecer a modificação de tal contrato com a consequente fixação do correspondente preço em 1.250.000 Euros; d) ser a ré condenada a pagar aos autores o montante correspondente ao diferencial entre o que já lhes pagou (229 447,07 Euros) e a referida quantia de 1.250.000 Euros; e) (…) f) subsidiariamente, (…) ser declarado que aos autores assiste o direito à resolução do mesmo contrato; g), h), i), j) (…) l) subsidiariamente, (…) ser declarado que aos autores assiste o direito à anulação do contrato em causa; (…)”;
10. Por escritura pública datada de 21.12.2005, o Município de X... declarou vender a ZZZ... S.A. que declarou comprar mediante o preço de um milhão duzentos e oitenta mil euros o prédio urbano descrito sob a ficha n.º ... desanexado do prédio n.º ..., o qual contem descritas três aquisições entre as quais aos aqui arguidos;
11. Consta na ficha n.º ... sob a cota G2 a aquisição aos arguidos do prédio n.º ...;
12. No “Jornal ....” de 26-10-2005, consta o título “PD... em X...” e a letras menores “instalação polémica” e “ A XXXX…. e X... acusa a Câmara Municipal de X... de ilegalidades na autorização da instalação do supermercado PD... em X.... T..., presidente da Câmara de X..., garantiu que irá respeitar a lei e diz que a associação não está a defender os interesses do comércio obidense”;
13. A 03.03.2006, na Gazeta .... sob o título “PCP/X..., a Comissão Concelhia do PCP de X... “dois pesos e duas medidas” consta o seguinte escrito: “ora entretanto com o avanço da obra vai-se descobrindo o processo, a começar pela compra do terreno pela Câmara, por 250 000 Euros (50 000 contos) com a justificação de que o terreno seria para uso público (…) posteriormente a Câmara esquecesse do acordo feito com a anterior proprietária e vende o mesmo terreno ao grupo PD... por quatro vezes mais (…) sendo questionável o negócio, principalmente pomos a tónica na atitude ética e moral desta Câmara em todo este processo”;
14. Por escritura pública datada de 12.02.2004, os arguidos venderam ao Município de X... por 229 447,07 Euros o prédio rústico descrito na C.R.P. de X... sob o nº 1943 e aludido em 1 pago em treze prestações;
15. A Hasta Pública foi publicada em jornal a 08.06.2005, tendo sido realizada a 17.06.2005, aparecendo como único concorrente “PD...- ... S.A.”., tendo sido rematada a esta entidade pelo valor de 1.280.000 Euros o prédio indicado em 10;
16. Consta na descrição registral aludida em 1 a área de 6 240 m2, e na aludida em 10 a área de 3 080, 64 m2;
17. O arguido aufere cerca de €600,00 como reformado, e a arguida cerca de €350,00 como reformada;
18. O arguido é, de formação académica, engenheiro químico industrial, tendo trabalhado, de pretérito, numa empresa de cimentos;
19. O arguido conhecia a aptidão construtiva do prédio que, em conjunto com a arguida, alienou à Câmara Municipal de X...;
20. O Plano Director Municipal (=PDM) do Concelho de X... sofreu alterações, com excepção na área (solo) onde se situava o prédio, acima indicado, vendido pelos arguidos a este Município;
21. M... tinha conhecimento que o PDM havia sofrido alterações;
22. Terceiros, de identidade não apurada, já haviam proposto aos arguidos um preço quatro vezes superior ao que a Câmara de X... acabou por pagar pela aquisição/compra do referido prédio dos arguidos;
23. A Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que se não aceitassem vender o referido prédio pelo preço por si proposto de €229.447,07, lhes inviabilizaria a construção nesse imóvel, perdendo o mesmo o valor comercial e que seriam expropriados;
24. A Câmara Municipal de X... manifestou a intenção de não manter a viabilidade de construção naquele prédio dada antes a título de informação prévia;
25. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
Factos não provados
Não se provou:
- que as afirmações prestadas pelos arguidos no requerimento acima aludido em 3 são de teor contrário à informação que lhes havia sido prestada por escrito pela Câmara Municipal;
- que os arguidos estavam cientes da falsidade das informações, querendo ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que são devidos ao Município de X..., agindo livre e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei;
- que o arguido tenha exercido funções no âmbito da construção de edificações;
- que M... fosse, à data da ocorrência dos factos imputados aos arguidos, a pessoa responsável por fazer o acompanhamento das questões técnicas aos mesmos;
- que M... soubesse que o PDM não se alterava desde 06.12.1999;
- que os arguidos soubessem que o PDM tinha sofrido alterações;
- que as declarações supra referidas no ponto 23 constem de deliberação da Câmara Municipal de X...;
- que a intenção manifestada, supra referida no ponto 25, conste de deliberação da Câmara Municipal de X....
Motivação
Consta da motivação da sentença objecto de recurso, o seguinte:
“A convicção do Tribunal assentou nas declarações dos arguidos, os quais assumiram que o escrito subscrito pela advogada é verdadeiro como seu mas advém do facto de o Sr. Presidente lhes ter mostrado interesse no terreno para polidesportivo e lhes disse que, caso contrário, haveria expropriação, e então como era do interesse da terra acordaram em tal, sentindo-se defraudados quando viram o negócio a ser feito com o “PD...”. Estas declarações foram proferidas de forma séria, espontânea e convincente. Se dúvidas houvessem da credibilidade dos arguidos, as mesmas seriam afastadas pelas próprias palavras de T..., Presidente da Câmara Municipal de X..., o qual negou que tivesse sido para “requalificação urbana”. Questionado a custo (insistentemente), a concretizar a requalificação urbana lá veio dizer que era para piscinas, estacionamentos, áreas verdes, equipamentos desportivos e que foi nessa base que se escriturou. Assinale-se que a testemunha em causa assumiu um discurso vago, e quando lhe era pedido a concretização do afirmado só a custo aparecia um conceito concreto que não carecesse de segunda pergunta. Mais assinalaram os arguidos que souberam do facto pelos meios de comunicação social, o que tem credibilidade já que a testemunha T... veio afirmar que o assunto veio a ser discutido na praça pública a partir da intervenção pública do Partido Popular e da Associação Comercial, e mais tarde do Partido Socialista e da Coligação Democrática Unitária e na campanha eleitoral em Outubro de 2005.”
“Analisei para prova dos factos provados o doc. de fls. 13 (pedido de informação prévia), o doc de fls. 8 (o requerimento dirigido pelos arguidos ao Tribunal Administrativo), o doc. de fls. 161 (resposta do Município ao requerimento), o doc. de fls. 166 (ofício da C.M. de X... a informar da disponibilidade das certidões), o doc. de fls. 169 (requerimento dos arguidos a pedir a extinção da instância), o doc. de fls. 1176 (emitido pela C.M. de X... a informar a disponibilidade das certidões requeridas, facto 2.1.8.), o de fls. 180 (cópia da petição inicial da acção ordinária), a cópia da certidão de registo predial a fls. 244 (descrição do prédio dos arguidos), cópia da escritura entre os arguidos e o Município de X... a fls. 264 a 266, o doc. de fls. 412 a 415 (copias da certidões de registo predial do prédio dos arguido, e o transmitido ao Município, e depois transmitido a “ZZZ…” na audiência denominada de “PD...”), o de fls. 416 (cópia do jornal “jornal ....”, o de 418 (cópia da Gazeta ....” datado de 3-3-2006).”
“Outrossim mostraram os arguidos ser convincentes (porque realizaram declarações com seriedade e espontaneidade) relativamente às suas condições pessoais, e atentei ao CRC de fls. 587 e 588 emitidos a 3-9-2007.”
“A factualidade dada como não provada adveio das seguintes considerações: facto 2.2.1.: a informação dada pela Câmara Municipal é tão-somente reportada ao pedido de viabilidade urbanística realizado pelos arguidos em 1999 (informação prévia), nada tendo a ver com o afirmado no requerimento apresentado no Tribunal Administrativo, daí não serem falsas, pois são algo diferente. É outro discurso. Na verdade, tal reporta-se ao período de negociações que desembocaram na escritura assinada entre os arguidos e o Município, aliás como se pode perceber pela análise da petição inicial da acção proposta.
“Facto 2.2.2.: os arguidos declararam com seriedade e espontaneidade o acima relatado, o que impõe a consideração lógica que têm como verdadeiro o afirmado e daí inexistir uma vontade de ofender a consideração ou confiança no Município. Por outro lado, mesmo por outra via, pode-se motivar a não prova do facto. Em primeiro lugar, o doc. é assinado por advogada, mas ainda que assim não fosse, os comportamentos indiciários são de todo contundentes.
Assim, está assente que os arguidos venderam o terreno ao Município por preço acima assinalado e volvidos quase dois anos uma relevante parte do terreno (basta atentar as áreas acima reproduzidas) é vendido a um valor acima do triplo…Por outro lado, estando um espaço comercial de grande afluência populacional num terreno como o foi o dos arguidos é de dizer que não faltariam propostas para compra privada aos arguidos em valores bem acima ao que os mesmos transmitiram ao Município. Então, pergunta-se por que razão venderam os arguidos ao Município? Trata-se de pessoas de idade avançada, em que ainda como é natural nessa geração o espírito de bem público mantém-se mas também é credível a proposta da expropriação como referiram os arguidos, e assim o afirmado é aquilo que se retira no segmento “tiveram de vender”.”
Esta a convicção formada no espírito do tribunal de 1ª instância aquando do primeiro julgamento efectuado que agora, em face do que abaixo se dirá, se reafirma.
Do segundo julgamento, de âmbito muito mais restrito, para apurar as questões de facto enunciadas pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não resultaram apurados factos que ponham em causa o teor da decisão proferida no primeiro julgamento, no sentido de impor decisão diversa, como abaixo se explicitará.
O arguido, actualmente com 72 anos de idade, explicou a sua formação académica como engenheiro químico industrial, tendo trabalhado numa empresa de cimentos e, desde 1979/80, trabalha em cerâmica artística; explicou que pediu por alturas de 1999 a elaboração de um projecto de construção (de um condomínio fechado) ao gabinete do arquitecto M... e, feito o pedido de viabilidade ao Município de X..., a resposta foi positiva, sabendo, à altura, que o PDM referia que a área em causa era edificável, embora desconheça de quando data o PDM e se este foi, entretanto e em que termos, alterado; mais referiu ter posto o seu terreno à venda em 1999 e lhe “apareceram” cerca de oito a dez interessados e os valores oferecidos falados situaram-se entre os 700.000 e 1.000.000 de euros, candidatos que acabaram por desistir quando, entretanto, foram informados que aí não poderiam construir; esclareceu que a Câmara de X... – numa reunião em que estiveram presentes apenas os arguidos e o Presidente T... - ofereceu a quantia de 229.447,07 pela aquisição do terreno em causa, para fins de apoio de instalações desportivas, o que “achou pouco” e “pediu mais”, o que foi negado, alegando o Presidente que até tinha uma avaliação e lhe estava a oferecer “mais” e, além disso, se não vendesse ao Município, “não podia ali construir ou que o expropriava”, sentindo-se, por isso “encurralado”, achando que, em face disso, “devia vender” o terreno à Câmara, desconhecendo se esta deliberou no sentido de não manter a viabilidade de construção no local em causa, bem como que seriam expropriados, propondo, no entanto, ao Presidente, vender o terreno por 900.000/1.000.000 de euros, o que foi recusado.
A arguida corroborou nas suas linhas gerais as declarações do arguido, seu marido, referindo ainda que chegou a deslocar-se à Câmara para falar com o Presidente, tendo-o encontrado e, falando no assunto da venda do terreno, por aquele foi que não só não podia construir como “escusava de o tentar vender”, sabendo que os interessados iam à Câmara e tomavam conhecimento que a construção estava inviabilizada, de modo que “viu que não valia a pena”, acabando por vender ao município; entretanto teve conhecimento que para o local “ia para lá um supermercado” e não uma estrutura ligada a um polidesportivo como antes lhe havia sido dito pelo Presidente da Câmara.
M... referiu ter efectuado para os arguidos um estudo de arquitectura para um complexo habitacional, em 1999, com enquadramento no PDM, bem como feito um pedido à Câmara de informação prévia, que “aprovou”, razão por que o terreno dos arguidos foi então posto à venda; teve conhecimento da existência de várias propostas para compra do terreno dos arguidos (incluindo uma sua, de uma sociedade de que fazia parte) e que o Município de X... se mostrou interessado para o adquirir para “fazer lá algo público”, vindo depois o arguido a dizer-lhe que “não se pode fazer lá nada” que a Câmara não ia aprovar a informação prévia “porque estava interessada na compra do terreno”; mais referiu que o PDM sofreu revisões, mas não na zona onde se situa o terreno vendido pelos arguidos ao Município de X...; tendo em conta que a Câmara criou dois lotes e os vendeu (sendo afectos um para o “PD...” e outro para um parque de estacionamento, edificável), achou que a Câmara especulou; teve conversas com o arguido e ficou a saber que houve ofertas, p. ex.º, de uma empresa do Porto superior a 400.000 euros.
T..., Presidente da Câmara de X... desde Janeiro de 2002, referiu que o PDM em vigor foi aprovado por Resolução do Conselho de Ministros em 1996 e que se mantém inalterado para a área (solo) onde se situava o terreno dos arguidos, tendo apenas sofrido alterações em planos de pormenor; referiu que a Câmara se mostrou interessada na aquisição do terreno dos arguidos porque se estava a estudar um complexo desportivo para o local; negou que na reunião que teve com os arguidos lhes tenha sido dito que se não vendessem ao Município ali não podiam mais construir e que a proposta dos arguidos era de 53.000 contos, sendo certo que dispunha de uma avaliação de um terreno contíguo ao dos arguidos que situava o valor em 39.000 contos, tendo os arguido, contudo, perguntado se a Câmara “podia dar mais”, respondendo-lhes que sim, se aceitassem que o pagamento fosse feito em 12 prestações, “fazia um esforço”, razão por que o valor “ficou a meio”, em 46.000 contos e depois levou esta proposta a sessão de Câmara, referindo que houve uma aceitação, um acordo dos arguidos quanto a este valor, ficando, mais tarde, “estupefacto” com o escrito acima indicado, uma vez que nunca disse aos arguidos que se não vendessem por aquele preço “seriam expropriados”, negando que alguma vez tenha dito aos arguidos que o terreno era para afectar a um polidesportivo; esclareceu que depois de adquirido por escritura de 2004 o terreno dos arguidos, o anexou a parte de outro imóvel e foi feito um loteamento com a criação de dois lotes que foram colocados em hasta pública, sendo o preço-base de um dos lotes de 1 milhão e 250.000 euros; um lote foi vendido para construção de um espaço comercial, um supermercado (tendo aparecido apenas um concorrente) porque a zona carecia de um, tendo sido decidido, portanto, alterar a finalidade inicialmente prevista, porque era preciso financiar infra-estruturas e a Câmara limitou-se a “fazer uma gestão empresarial dos seus activos”.
CJ..., engenheiro civil (funcionário da CM de X... desde 1977, assessor principal da secção de obras particulares entre 2000 e 2005) referiu que “tem ideia” da aprovação do pedido de informação prévia para o local, com validade de um ano, para onde não houve alteração do PDM; não retém na memória se houve algum interessado que se tenha dirigido à Câmara a colher informações sobre a aptidão do terreno, mas admite que isso tenha sucedido e desconhece se o Presidente “deu” algum despacho a considerar se o terreno em causa não era edificável, tomando conhecimento que o município comprou, em prestações, o referido terreno aos arguidos, por 48.000 contos, considerando esse terreno como estratégico para dar apoio às piscinas, sendo para requalificação urbana.
O teor da motivação da matéria de facto dada na primeira sentença, objecto de recurso, em conjugação com os documentos acima indicados, não sofreu abalo – por incompatibilidade ou diversa percepção da prova – neste segundo julgamento, conquanto que mais restrito, com vista a apurar a matéria indicada pela Relação, harmonizando a decisão final em conformidade com o resultado desse apuramento.
Com efeito, pese embora o teor do depoimento do Presidente da Câmara de X..., T..., tenha sido de sinal contrário, num discurso mais prolixo e menos objectivo, negando ter forçado os arguidos a vender pelo preço que queria, com a consequência de que se não o fizessem impedia-os de ali construir ou os expropriava, o certo é que as declarações dos arguidos, numa linguagem clara, simples e directa, e numa postura em audiência chã e autêntica, mostraram-se globalmente credíveis e corroboradas nas suas linhas gerais, nos termos acima sintetizados, pela testemunha M...; com efeito, os arguidos referiram ter pedido um pedido de informação prévia quanto à possibilidade em construir no seu terreno, ao que o Município respondeu afirmativamente, tendo colocado o prédio à venda e aparecido diversos interessados que lhes ofereceram quantias que chegaram perto do milhão de euros (200.000 contos), acabando por desistir de vender a terceiros por a Câmara, através do seu Presidente, com quem se reuniram a sós, ter manifestado a intenção de adquirir por cerca de 50 mil contos e dizer que se não vendessem, não “conseguiam” mais ali construir e sujeitavam-se a uma expropriação, razão por que os arguidos “encurralados” (como referiu o arguido), “acabaram” por vender o seu prédio ao Município, ainda no pressuposto que seria para afectar a fins públicos, vindo a saber, mais tarde, que foi vendido por uma quantia muito superior a uma cadeia de supermercado (“PD...”), pelo que este tipo de declarações não permite concluir que os termos da petição/requerimento junto do TAF para “Intimação para Passagem de Certidão” sejam falsos (note-se que a petição inicial da acção ordinária intentada pelos arguidos contra o Município de X..., na qualidade de autores, data de 11.04.2006 -vd. fls. 180 -e a queixa criminal efectuada nos presentes autos datar de 18.08.2006: vd. fls. 1, o que significa que já antes de terem sido demandados criminalmente já se encontravam a defender judicialmente os seus direitos).
Estas as razões por que, com a prova suplementar produzida neste segundo julgamento mais restrito, se decidiu manter a matéria de facto provada e não provada na primeira sentença e julgar provada a matéria aditada, acima elencada, e não provada, por ausência de prova segura sobre a sua ocorrência, os factos acima destacados.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente Município de X... as questões a decidir são as seguintes:
- se a sentença agora em recurso violou o princípio da hierarquia dos Tribunais;
- se a acusação deduzida pelo Ministério Público não carece de condição legal de procedibilidade;
- se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provados os factos que constam dos pontos n.ºs 22.º, 23 e 24 da sentença recorrida, pois deviam ter sido dados como não provados e errou ainda ao dar como não provados outros factos dados como não provados e que devem ser eliminados da sentença; e
- se, modificada a matéria de facto, devem os arguidos ser condenados pelo crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal e no respectivo pedido de indemnização civil.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O recorrente Município de X... defende que a sentença agora em recurso, proferida pelo 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, violou o princípio da hierarquia dos Tribunais, previsto nos artigos 27.º, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto e art.427.º do Código de Processo Penal, e desrespeitou o acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008.
Alega, para este efeito, que os Tribunais Judiciais se encontram hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões e que os recursos das decisões proferidas por Tribunais de 1.ª instância se interpõem para o Tribunal da Relação.
O recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação da primeira sentença proferida neste processo, pelo 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria.
O acórdão do Tribunal da Relação, de 18 de Junho de 2008, decidiu que aquela sentença do 2.º Juízo Criminal padecia do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, a que alude o art.410.º, n.º2, al. a) do C.P.P. e, revogando-a, remeteu o processo para novo julgamento.
Da análise da sentença agora em recurso verifica-se que o Ex.mo Juiz a quo fundamenta a decisão com base na motivação da sentença revogada, quer quanto aos factos, remetendo a convicção do Tribunal para as declarações prestadas no primeiro julgamento, quer quanto ao direito, fazendo citações dela.
Não tendo o Ex.mo Juiz a quo respeitado na sentença ora em recurso o acórdão do Tribunal da Relação, de 18 de Junho de 2008, deve ela ser revogada e substituída por outra que condene os arguidos.
Vejamos.
É pacífico que os tribunais judicias se encontram hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões e que, em matéria criminal, a competência é definida na respectiva lei de processo.
Tal resulta expressamente do art.27.º, n.ºs 1 e 3 da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto e, anteriormente à entrada em vigor deste diploma, do art.19.º, n.ºs 1 e 3, da Lei 3/99, de 13 de Janeiro.
O art.427.º do Código de Processo Penal, estabelece, por sua vez, que « Exceptuados os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação.».
O assistente Município de X... não se conformou com a sentença de 26 de Novembro de 2007, proferida neste processo pelo 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria -, que absolveu os arguidos V... e A... do crime imputado pelo Ministério Público e do respectivo pedido de indemnização -, e dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 18 de Junho de 2008, decidiu “ Ordenar o reenvio do processo à 1.ª instância, nos termos do disposto nos art.º 426.º e 426.º-A, ambos do C.P.Penal, para novo julgamento restrito – sem prejuízo de eventual harmonização – para apreciar as seguintes questões (…)”
O reenvio foi determinado por existência de um vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.410.º, n.º2, al. a) do C.P.P..
Em cumprimento do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Junho de 2008, procedeu-se a novo julgamento, no 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria.
No final da audiência, o Tribunal , por sentença de 27 de Abril de 2010, decidiu julgar improcedente a acusação do Ministério Público, bem como o pedido de indemnização civil, e absolveu os arguidos A... e V... do crime de ofensa a pessoa colectiva e do respectivo pedido de indemnização civil.
Da fundamentação da matéria de facto da douta sentença de 27 de Abril de 2010, agora em recurso, consta reproduzida a convicção do Tribunal do primeiro julgamento quanto aos factos então apurados, esclarecendo-se, seguidamente, as razões pelas quais com a prova suplementar produzida « neste segundo julgamento mais restrito, se decidiu manter a matéria de facto provada e não provada na primeira sentença e julgar provada a matéria aditada, acima elencada, e não provada, por ausência de prova segura sobre a sua ocorrência, os factos acima destacados.».
Na fundamentação da matéria de direito menciona-se a sentença de 26 de Novembro de 2007, proferida pelo 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria. Assim, a folhas 1033 escreve-se que « Importa equacionar uma questão prévia, de ordem formal, de resto já avançada na anterior decisão (…)» - e a folhas 1035, que « Nesta esteira, como se aventou na primeira decisão, “o que é ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros? (…)».
Terá a sentença ora em recurso violado o princípio da hierarquia dos Tribunais e desrespeitado o acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008, ao levar em conta, na fundamentação da matéria de facto, depois de realizada nova audiência, a prova produzida no primeiro julgamento, e ao fazer citações de direito que constavam da fundamentação de direito da primeira sentença?
Cremos que não.
O art.426.º, n.º1 do Código de Processo Penal determina que « Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.».
O reenvio do processo pode ser relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.
O reenvio do processo em caso de recurso de decisão do Tribunal de 1.ª instância para o Tribunal da Relação mais não é que a devolução do processo ao Tribunal recorrido para sanar o vício ou vícios a que se alude no art.410.º, n.º2 do Código de Processo Penal.
O reenvio do processo é só sobre o que, “ em recurso”, o tribunal ficou impedido de decidir – cfr. Prof. Damião da Cunha, in “O Caso Julgado Parcial”, Publicações Univ. Católica , pág. 680.
O Tribunal da Relação, no acórdão que conheceu do recurso interposto da primeira sentença, consignou que “ existe lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, a qual, por conseguinte, se afigura não ser suficiente para proferir a referida decisão justa”, indicando factos relevantes sobre os quais o Tribunal a quo deveria ter-se pronunciado, dando-os como provados ou como não provados “ sem prejuízo de eventual harmonização daí resultante”.
O vício da primeira sentença, conhecido aquando do recurso dela interposto pelo acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008, e que dá lugar ao reenvio, resulta de falta de pronúncia sobre factos relevantes que resultaram da discussão da causa.
São os concretos factos indicados no acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008 que devem ser apurados no reenvio e devem ser dados como provados ou não provados, sem prejuízo de harmonização com os já apurados no primeiro julgamento.
Abrangendo o reenvio decretado pelo Tribunal da Relação em 18 de Junho de 2008 apenas questões sobre determinados factos que não se apreciaram, em princípio, os factos enumerados como provados e não provados na primeira sentença devem manter-se na segunda sentença; só assim não será quando em resultado do “novo julgamento” dos factos não apurados no primeiro julgamento, houver que proceder à harmonização da globalidade da matéria de facto, para dela não resultarem contradições.
Apurados os factos em face do novo julgamento, impõe-se a prolação de nova sentença, tendo em conta a matéria apurada no primeiro, que em princípio se mantém, e apurada no segundo julgamento.
Esta interpretação que damos ao acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008 está em conformidade com o art.712.º, n.º 4 , segunda parte do C.P.C., aplicável ao processo penal por força do disposto no art.4.º do C.P.P., que estatui o seguinte:
« Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1.ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições na decisão
A sentença ora em recurso, ao dar resposta, na sequência do novo julgamento, às concretas questões determinadas pelo Tribunal da Relação, e ao reproduzir a convicção do Tribunal do primeiro julgamento quanto aos factos então apurados, esclarecendo as razões pelas quais com a prova suplementar produzida no segundo julgamento decidiu manter a matéria de facto provada e não provada na primeira sentença, respeitou o caso julgado que resulta do acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008 e não viola o princípio da hierarquia dos Tribunais a que alude o recorrente.
Estando em causa na sentença ora em recurso a interpretação e aplicação das mesmas normas que estavam em causa quanto foi proferida a primeira sentença, nada impede o Ex.mo Juiz de, na segunda sentença, ir buscar e citar segmentos da primeira sentença relativamente à interpretação e aplicação de normas de direito.
A celeridade que resulta da adesão a essas citações, integrando-as na decisão ora recorrida, não viola o princípio da hierarquia dos Tribunais, o acórdão do Tribunal da Relação de 18 de Junho de 2008, nem outra qualquer norma indicada pelo recorrente nas conclusões da motivação.
A segunda questão a decidir é se a acusação deduzida pelo Ministério Público, ao contrário do decidido na sentença recorrida, não carece de condição legal de procedibilidade.
A este propósito, consta da sentença recorrida que existe uma questão prévia, de ordem formal, que incumbe equacionar, que resulta, designadamente, da circunstância da petição judicial de “Intimação para Passagem de Certidão”, dirigida ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, onde são veiculadas as afirmações reputadas de inverídicas, ser assinada apenas por mandatária judicial e a acusação não ter sido deduzida contra esta , mas apenas contra os arguidos, seus clientes. Defende-se aí que quando numa peça processual são relatados factos ofensivos da honra de outrem, subscrito por advogado, de acordo com as informações prestadas pelo arguido seu cliente, e não tiver sido alegado que o advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos, tratando-se de um caso de comparticipação criminosa. Tendo a acusação sido deduzida apenas contra os clientes e já não contra o advogado, falta uma condição legal de procedibilidade (art.115.º, n.º2 do Código Penal), o que determina a extinção do procedimento criminal. No caso em apreciação, nada se refere na queixa ou na acusação sobre se o teor do articulado subscrito pela ilustre advogada foi levado ao conhecimento dos ora arguidos, pelo que atenta a autonomia técnica que a um advogado é em geral concedida, é mais provável que o texto da petição tenha sido por si livremente valorado, sem intervenção concreta e até conhecimento dos arguidos. O assistente apenas apresentou queixa contra os arguidos, não demonstrando vontade em instaurar queixa ou procedimento contra a mandatária destes. Tendo já decorrido o prazo legal de 6 meses, para apresentar queixa contra a mandatária dos arguidos caducou o direito de queixa e, consequentemente, extinguiu-se o procedimento criminal.
O recorrente Município de X... defende, por sua vez, que não é correcta aquela afirmação, constante da sentença recorrida, porquanto o advogado age no convencimento de que os factos que lhe foram relatados correspondem à verdade, pelo que é de excluir a intenção criminosa do mesmo, sendo que será o cliente ( no caso dos autos, os arguidos), o autor mediato do crime e o advogado um seu instrumento. Foram os próprios arguidos a admitir ser verdade o constante do escrito que deu início aos presentes autos, e que o teor do mesmo era da responsabilidade deles. Por sua vez, consta da sentença recorrida que “não resultam sinais evidentes dos autos de que a advogada subscritora da petição perante o TAF sabia que as imputações que aí descreveu não correspondiam à verdade”. Os arguidos são, portanto, no entender do recorrente, os únicos agentes do crime.
Compulsando os autos, o Tribunal da Relação verifica que o assistente Município de X... apresentou “Queixa-Crime”, junto do Ministério Público na Comarca de Leiria, contra V... e A..., requerendo a realização de inquérito por estes haverem praticado um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.187.º do C.P., agravado pelo art.183.º, n.º1, al. b), do mesmo Código e um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.365.º do C.P..
Alegou o queixoso na “Queixa-Crime” que foi citado para responder nos autos de intimação para prestação de informações e passagem de certidões requerido pelos denunciados, que correm termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, e que no requerimento inicial desses autos os denunciados afirmam o seguinte: “Com efeito, com o intuito de forçar os requerentes a venderem um imóvel deles ao Município de X... por preço inferior ao quádruplo do que lhes tinha sido proposto por terceiros, a Câmara Municipal de X... disse-lhes que inviabilizaria qualquer construção nesse imóvel destes, perdendo o mesmo o seu valor comercial. Assim, os requerentes tiveram de vender esse prédio ao Município de X..., pelo preço de 229.447,07 Euros, a pagar em 13 prestações mensais, o que foi formalizado pela sobredita escritura lavrada a 12.02.2004”. Tais acusações dos denunciados são falsas e tiveram como única intenção ofender o denunciante e denegrir a sua imagem perante terceiros, bem sabendo que tais afirmações não tinham qualquer fundamento.
Este requerimento encontra-se subscrito por advogada constituída através de procuração forense.
O Ministério Público deduziu acusação contra os denunciados, entretanto constituídos arguidos, pela prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal. Na acusação não se dá relevância ao facto do requerimento apresentado no TAF de Leiria, de intimação ao Município de X... para prestação de informações e passagem de certidões requerido pelos denunciados, ser subscrito por advogada, referindo-se expressamente que os arguidos afirmaram o que consta desse requerimento.
Vejamos.
O art. 115.º do Código Penal, estatuía á data dos factos, designadamente, o seguinte:
« 1. O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.
2. O não exercício tempestivo da queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.».
Do n.º1 desta norma penal resulta que existe um prazo legal de 6 meses para o titular da queixa agir criminalmente sob pena de caducidade do seu direito.
Do n.º 2 resulta que em matéria penal não se pode escolher quem deve ser perseguido no caso de comparticipação; o que está em causa é o crime. Pretendeu-se obstar, com este regime, que a perseguição não seja tanto de natureza pessoal, mas seja em razão do crime. A promoção processual deve abranger todos os que comparticiparam no crime.
A respeito de comparticipação no crime estatui o art.26.º do Código Penal que é punível como autor quem executar o facto, por si ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.
Na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são essenciais uma decisão e uma execução conjuntas.
Os casos de comparticipação só são configuráveis mediante acordo prévio dos comparticipantes. A decisão conjunta, pressupondo um acordo que, sendo necessariamente prévio pode ser tácito, pode bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime.
Já no que diz respeito à execução, não é indispensável que cada um deles intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes ao resultado final, basta que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado Cfr. acórdão do STJ de 22 de Fevereiro de 1995 (BMJ n.º444, pág. 209 ). .
Estando em causa a prática de actos por advogado, importa fazer algumas considerações sobre o mandato.
O mandato é um contrato de prestação de serviços « pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta de outra.» ( art.1157.º do Código Civil).
O Código Civil não regulamente especificamente o mandato conferido a advogado. Como dizem os Prof.s P. Lima e A. Varela a advocacia tem um estatuto e regulamentação próprios, que se sobrepõe ao regime civilístico do mandato Código Civil anotado, 3.ª edição, pág. 705..
O mandato judicial configura-se como um contrato atípico que se rege pelas normas especiais dos artigos 32.º a 45.º do Código de Processo Civil, pelas normas do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelas normas gerais dos artigos 1157.º a 1179.º e 258.º a 269.º do Código Civil.
Dispõe o n.º1 do art.º 262 do Código Civil que a procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.
Quando o cliente celebra com o advogado o contrato de mandato, outorgando-lhe procuração forense, não lhe pede, em nome próprio, que apresente um determinado requerimento, que elabore uma petição ou uma contestação, que apresente uma reclamação perante uma determinada autoridade; pede-lhe que tudo faça, o que for necessário, praticando os actos próprios da sua actividade profissional e com vista à obtenção de um certo resultado.
O mandato forense é, na definição de João Lopes Reis, “o contrato pelo qual um advogado (ou um advogado estagiário, ou um solicitador) se obriga a fazer a gestão jurídica dos interesses cuja defesa lhe é confiada, através da prática, em nome e por conta do mandante, de actos jurídicos próprios da sua profissão in “Representação Forense e Arbitragem”, pág. 43.
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O art.154.º , n.º 2 do Código de Processo Civil estatui que “ não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”. Numa outra perspectiva refere o art.266.º-B, n.º2, do CPC que “nenhuma das partes deve usar , nos seus escritos ou alegações orais , expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra , ou do respeito devido às instituições .”.
O núcleo do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, pelo qual os arguidos foram acusados pelo Ministério Público, é a afirmação ou propalação de factos inverídicos, a que acrescem como elementos típicos, designadamente, não ter o agente fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos, e ainda o conhecimento e vontade de realização do facto anti-jurídico, com consciência da ilicitude.
O advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante, tendo em conta, regra geral, a factualidade narrada pelo cliente .
Para haver comparticipação num crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, entre mandatário judicial e os mandantes, numa peça processual, é necessário que exista um acordo prévio, mesmo que tácito, entre aquele e estes, para afirmar ou propalar factos inverídicos, não tendo o mandatário judicial e os mandantes fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos.
Para a existência de comparticipação é ainda necessário, designadamente, o conhecimento e vontade de realização do facto anti-jurídico, com consciência da ilicitude
Como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14/02/2007, «… só se houver sinais evidentes nos autos de que o mandatário actuou com conhecimento da inveracidade dos factos é que estaremos perante uma situação de comparticipação criminosa.» in proc. n.º 1544/04.0TACBR.C1, in www.dgsi.pt.
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Não subscrevemos, pelo exposto, a afirmação constante da sentença recorrida, de que se numa peça processual, “ não tiver sido alegado que o advogado agiu no convencimento de que os factos que lhe foram relatados pelo cliente correspondem à verdade, a responsabilidade criminal será de imputar a ambos ( trata-se de um caso de comparticipação criminal.”.
No caso em apreciação, a peça processual que está na base da queixa criminal apresentada pelo Município de X... contra os arguidos consiste numa afirmação, que o assistente tem como inverídica, de que a Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que inviabilizaria qualquer construção num imóvel destes, para os forçar a vender o mesmo ao queixoso por baixo preço.
Não há na queixa a mínima referência a que a Ex.ma Advogada, ao transferir para a peça processual aquilo que os arguidos mencionam que o queixoso lhes disse, sabia que afirmava ou propalava factos inverídicos, não tendo fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros esses factos inverídicos.
Se do inquérito realizado resultasse que o crime foi praticado em comparticipação entre os arguidos e a Ex.ma Advogada que subscreveu o requerimento de folhas 13 dos autos, seria de arguir a falta de uma condição legal de procedibilidade, nos termos do art.115.º, n.º2 do Código Penal, por não ter sido deduzida queixa contra a Ex.ma Advogada que subscreveu o requerimento, com a consequente extinção do procedimento criminal.
Mas não foi isso que aconteceu, tendo o Ministério Público deduzido acusação contra os arguidos, sem fazer menção à existência de uma decisão e execução conjunta entre os arguidos e a Ex.ma Advogada, tendo em vista o preenchimentos dos elementos constitutivos do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal.
Aliás, como realça o recorrente, até na sentença recorrida se escreveu que “não resultam sinais evidentes dos autos de que a advogada subscritora da petição perante o TAF sabia que as imputações que aí descreveu não correspondiam à verdade”.
Pelo exposto, não se reconhecendo a existência de uma situação de comparticipação criminal entre os arguidos e a Ex.ma mandatária que subscreveu o requerimento perante o TAF de Leiria, concluímos que o Ministério Público tinha legitimidade para promover a acção penal apenas contra os arguidos e que a acusação deduzida pelo Ministério Público, não carece de condição legal de procedibilidade.
Procede, assim esta questão.
Passemos ao conhecimento da terceira questão.
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .

No entanto, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código, ou seja:

« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou

c) Se tiver havido renovação de prova .».

Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:

« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impor que tal aconteça nas conclusões.
Perante esta margem de indefinição legal e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
Sobre esta problemática importa ainda aqui mencionar o acórdão do STJ , de 4 de Dezembro de 2008, que decidiu que tendo o recorrente especificado os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados e indicado as concretas provas que impunham decisão diversa, referenciando-as aos respectivos suportes técnicos, mas de uma forma genérica em relação a cada uma das provas, pela indicação das voltas onde começavam e acabavam os depoimentos gravados, cumpriu substancialmente o ónus de impugnação que a lei lhe impõe.
O facto de o recorrente não ter localizado com precisão, nos respectivos suportes , os excertos das provas com que foi ilustrando os seus pontos de vista, não constitui fundamento de rejeição liminar do recurso. Antes de rejeitar o recurso, deve o tribunal convidar o recorrente a corrigir as conclusões, referenciando as provas que impunham decisão diversa da recorrida aos precisos locais, nos suportes técnicos, onde se encontravam os excertos de que se serviu para fundamentar os seus pontos de vista. - CJ, n.º 121, pág. 247.
O art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção, que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
No presente caso, o recorrente Município de X... indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e ainda os não provados que considera incorrectamente julgados, bem como as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.
Embora quanto à prova produzida oralmente na audiência, não faça o recorrente nas conclusões da motivação menção aos respectivos suportes técnicos, por referência ao consignado na acta, essa menção é feita na motivação do recurso.
A menção ao CD, por referência ao consignado na acta, gravado no segundo julgamento, respeita integralmente o art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., uma vez que o recorrente especifica as declarações e depoimentos com menção precisa dos minutos e segundos das declarações e depoimentos em causa.
Já relativamente à gravação do primeiro julgamento, o recorrente faz menção ao depoimento da testemunha M... (para impugnação do ponto n.º 22 dos factos dados como provados) com indicação apenas da cassete 3, lado A e, quanto às declarações da arguida (para impugnação do ponto n.º 23 dos factos dados como provados), apenas indica a cassete 1, lado A.
Pese embora se pudesse fazer nos autos um convite ao recorrente Município de X... para vir indicar nas conclusões as referências aos suportes técnicos por referência ao consignado na acta, e melhor precisar a localização nas cassetes de prova por si indicada, o Tribunal da Relação, por uma questão de economia processual e de celeridade, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.
Antes da abordagem directa da agora questão objecto de recurso importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art. 355.º do Código de Processo Penal. È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.» - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova , se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
Antes do mais importa mencionar que o Tribunal da Relação procedeu à audição integral das declarações dos arguidos e das testemunhas T... e M..., prestadas no segundo julgamento e gravadas em CD, ainda, à audição das cassetes n.ºs 1 e 3 gravadas no primeiro julgamento, tendo em conta os lados e as provas indicadas na motivação do recurso.
O assistente/recorrente começa por defender que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova ao dar como provado o facto que consta do ponto n. 22.º da sentença recorrida e que esse facto deve passar a ficar incluído na sentença entre os factos não provados.
Alega que esta matéria não poderia ser considerada provada porque o Tribunal da Relação determinou que ela somente poderia ser considerada provada caso os pretensos terceiros fossem identificados. Ora, nem os arguidos nem a testemunha M... conseguiram precisar o autor da pretensa proposta apresentada e, por outro lado, o depoimento da testemunha M..., porque indirecto, não pode ser valorado, de acordo com o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP, sem ser corroborado, em audiência por quem directamente teria apresentado aos arguidos a pretensa proposta, o que não sucedeu.
A resposta a esta questão do recorrente impõe, desde logo, a interpretação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 18 de Junho de 2008.
Da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Junho de 2008, resulta que a decisão então objecto de recurso e apreciação padecia de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o art.410.º, n.º1, al. a), do C.P.P..
Perante a existência deste vício o Tribunal da Relação ordenou o reenvio do processo à 1.ª instância, “ para apreciar”, entre outras, a seguinte questão: “f) Se terceiros – e, em caso afirmativo, quem – já haviam proposto aos arguidos um preço quatro vezes superior ao que a Câmara Municipal de X... acabou por pagar pela sua aquisição/compra;”.
O Tribunal da Relação, ao decidir que os factos provados não permitiam a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa, e que existia omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes, como “Se terceiros – e, em caso afirmativo, quem – já haviam proposto aos arguidos um preço quatro vezes superior ao que a Câmara Municipal de X... acabou por pagar pela sua aquisição/compra”, ordenou, antes do mais, que se apreciasse , se averiguasse, essa matéria.
Da letra e do espírito do acórdão, resulta que o Tribunal da Relação impôs ao Tribunal a quo que se da prova produzida resultasse “quem” foram os terceiros proponentes, devia dizer-se quem eles eram.
Não se refere ali que, na falta de concreta identificação dos terceiros proponentes, pelos arguidos ou através de outra prova, o Tribunal a quo não poderia dar como provada a matéria que mandou apreciar na al.f) do dispositivo.
Deste modo, uma resposta restritiva àquela matéria, como a que o Tribunal a quo deu no ponto 22 dos factos dados como provados na sentença ora recorrida - “Terceiros, de identidade não apurada, já haviam proposto aos arguidos um preço quatro vezes superior ao que a Câmara de X... acabou por pagar pela aquisição/compra do referido prédio dos arguidos.” – não viola o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Junho de 2008.
Posto isto, vejamos agora se essa matéria de facto não deveria ter sido dada como provada dado que nem os arguidos nem a testemunha M... conseguiram precisar o autor da pretensa proposta apresentada e, por outro lado, o depoimento da testemunha M..., porque indirecto, não pode ser valorado, atento o disposto no art. 355.º, n.º 1, do CPP, por não ter sido corroborado em audiência por quem directamente teria apresentado aos arguidos a pretensa proposta.
O art.355.º, n.º1 do C.P.P., a que alude o recorrente, ao estabelecer que « Não valem em julgamento, nomeadamente, para o efeito de formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.», consagra afloramentos do princípio do contraditório e da imediação da prova, mas não toma posição sobre o depoimento indirecto.
A norma que dispõe sobre o depoimento indirecto é o art.129.º, do C.P.P., aplicável à audiência de julgamento por força do estatuído no art.348.º, n.º 1 , do mesmo Código.
Dos seus termos resulta que « Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.».
No caso em apreciação e a propósito do ponto n.º22 dos factos dados como provados, o Tribunal a quo teve em consideração na fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida, designadamente, o depoimento da testemunha M..., que terá referido que “ teve conhecimento da existência de várias propostas para compra do terreno dos arguidos (incluindo uma sua, de uma sociedade de que fazia parte)…” e que “ teve conversas com o arguido e ficou a saber que houve ofertas, p. ex., de uma empresa do Porto superior a 400.000 euros.”.
Da fundamentação da matéria de facto relativa ao ponto n.º 22 resulta, pois, que a testemunha M... tem como razão de ciência, quer a apresentação por ele próprio de uma proposta aos arguidos para compra do terreno, enquanto “fazia parte” de uma sociedade, quer o que ouviu ao arguido em conversas que teve com ele, que lhe contou ter tido ofertas para compras do mesmo terreno, nomeadamente de uma empresa do Porto superior a 400.000 euros.
Da audição da gravação do CD respeitante ao depoimento da testemunha M..., engenheiro civil, prestado no segundo julgamento, resulta que após o arguido ter colocado uma placa no terreno informando O arguido mencionou que este estava à venda, o que terá ocorrido entre 20001 e 2003, a testemunha soube, através de contacto telefónico pelo arguido, que este recebeu ofertas de compras do terreno. A testemunha não presenciou esses contactos entre o arguido e quem terá feito as proposta de compra do terreno.
Mais referiu a testemunha M... que é ainda sócio de uma empresa, sita na Lourinha, a “ ....”, e que após o arguido ter colocado a placa de venda do terreno, “ nós apresentámos” ao arguido uma proposta de compra, cujo valor concreto já não sabe, mas inferior a € 400 000. Nessa altura o arguido disse-lhe que tinha uma proposta de uma empresa do Porto, cujo nome então disse, e que recorda ser de valor superior a € 400 000, pelo que esta proposta ficou melhor encaminhada.
O arguido confirmou a existência desse contacto com esta testemunha, afirmando que o Eng. M… lhe ofereceu € 500 000, mas era um valor que não queria por ser baixo.
A proposta de compra do terreno pela testemunha, em representação desta sociedade, não consubstancia depoimento indirecto, pois narra uma conversa em que teve intervenção directa com o arguido.
Relativamente ao que ouviu dizer ao arguido, este esteve presente nas audiências de julgamento e respondeu às perguntas que lhe forma efectuadas.
A valoração do depoimento da testemunha M... não viola, deste modo, nem o disposto no art.355.º, n.º1 do C.P.P., invocado pelo recorrente, nem o disposto no art.129.º, n.º1 do mesmo Código sobre depoimento indirecto.
Das declarações do arguido, resulta, tal como consta da fundamentação da sentença, que após ele colocar uma placa de venda no terreno em causa passou a receber propostas de compra, tendo-lhe “aparecido”umas 8 a 10 pessoas, falando-se em valores que se situaram entre os 700.000 e 1000.000 de euros. A testemunha M... é que lhe ofereceu € 500 000.
T..., Presidente da Câmara Municipal de X... e representante do assistente, na reunião que teve com os arguidos, que levou à posterior compra do terreno pelo Município de X..., declarou que os arguidos nessa altura lhe falaram numa proposta de compra de terreno por um senhor do Porto.
Da fundamentação da matéria de facto resulta ainda que a testemunha CJ..., engenheiro civil (funcionário da CM de X... desde 1977, assessor principal da secção de obras particulares entre 2000 e 2005) referiu que não retém na memória se houve algum interessado que se tenha dirigido à Câmara a colher informações sobre a aptidão do terreno, mas admite que isso tenha sucedido.
Conjugando as declarações dos arguidos, do Presidente da Câmara Municipal de X... e depoimentos citados, com o decurso do tempo decorrido desde as alegadas propostas, a privilegiada localização do terreno - que se vê das várias plantas topográficas juntas aos autos -, e o preço de venda mencionado no ponto 10 dos factos dados como provados na sentença, temos como racional e não violador das regras da experiência comum , que o Tribunal a quo, no âmbito da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, tenha dado como provada a matéria que consta do ponto n.º 22 da sentença recorrida.
Assim, deve a mesma manter-se.
O recorrente defende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provados os factos que constam do ponto n.º 23, devendo a matéria constante deste ponto transitar para os factos não provados.
Alega para este efeito que o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão proferido em 18 de Junho de 2008, ordenou o reenvio do processo à 1.ª instância, “ para apreciar”, entre outras, a seguinte questão: “ i) Se a Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que, se não aceitassem o preço de 229.447,07, por si oferecido, pelo referido terreno, seriam expropriados do prédio em questão e se existe ou não alguma deliberação nesse sentido.”.
Da análise da fundamentação da matéria de facto da sentença retira-se que o facto dado como provado no ponto n.º 23 terá resultado somente das declarações prestadas pelos arguidos, ainda que estejam em contradição com as declarações prestadas pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X..., privilegiando as declarações dos arguidos simplesmente por que entende que estes demonstraram uma linguagem mais clara, simples e directa.
Porém, nenhuma credibilidade podem merecer as declarações dos arguidos, caindo pela base a motivação do Tribunal quando atribui aos arguidos uma “postura em audiência chã e autêntica”.
A versão apresentada pelos arguidos, de que o prédio se destinava a apoio das instalações desportivas, é pura ficção pois da escritura pública celebrada entre o recorrente e os arguidos, em 12 de Fevereiro de 2004, consta que o prédio transaccionado se destinava à requalificação de equipamentos da área envolvente ao complexo desportivo e este fim é confirmado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... nas declarações que prestou no segundo julgamento.
Os arguidos quando instados a justificar nada terem dito sobre o assunto durante mais de dois anos, afirmaram, nomeadamente a arguida, que só se aperceberam que tinham sido enganados quando tomaram conhecimento do valor pelo qual o Município recorrente vendeu o lote formado com parte do prédio que lhe foi adquirido, como resulta do primeiro e segundo julgamento. Ou seja, a versão dos arguidos é a de que não se aperceberam, na reunião em que estiveram presentes, que o Sr. Presidente da Câmara Municipal lhes teria dito que expropriaria o prédio caso não vendessem, tendo-se apercebido deste facto somente quando souberam o valor da venda do Lote.
A sentença em crise, nos factos dados como não provados, reconhece que a Câmara Municipal não aprovou qualquer deliberação no sentido constante do ponto n.º 23 dos factos provados e esta apenas se vincula por deliberações tomadas em reunião convocada para o efeito, pelo que o constante do ponto n.º23 deve passar para os factos não provados.
Vejamos.
É essencialmente através da impugnação da credibilidade das declarações dos arguidos que o recorrente pretende alterar a matéria do ponto n.º 23 dos factos dados como provados na sentença recorrida, ou seja, que “A Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que se não aceitassem vender o referido prédio pelo preço por si proposto de €229.447,07, lhes inviabilizaria a construção nesse imóvel, perdendo o mesmo o valor comercial e que seriam expropriados”.
O pressuposto do primeiro argumento invocado pelo recorrente para afectar a credibilidade das declarações dos arguidos não se verifica: da escritura pública celebrada entre o recorrente e os arguidos, em 12 de Fevereiro de 2004, não consta que o prédio transaccionado se destinava à requalificação de equipamentos da área envolvente ao complexo desportivo. Nesse documento autêntico nada se diz sobre o fim a dar ao prédio adquirido pelo Município de X... aos arguidos.
De todo o modo, não vemos como qualificar de pura ficção as declarações do arguido quando mencionou em audiência de julgamento que na reunião que ele e a sua mulher tiveram a sós com o Sr. Presidente da Câmara de X..., este lhes referiu que necessitava do terreno em causa para fins de “apoio a instalações desportivas (…) ou afirmação parecida” ou quando a arguida declarou, por sua vez, que o mesmo Presidente lhes disse que o terreno “era para apoio do polidesportivo”, pois a testemunha T... declarou, no segundo julgamento, que com a compra do terreno em causa o “executivo” quis dar continuidade aos desígnios de requalificação urbana do “executivo anterior” o qual tinha feito compras para fazer “uma área desportiva” e que na altura tinham em mente para o local um “complexo desportivo”.
O Sr. Presidente da Câmara de X..., T..., mencionou no segundo julgamento que “nunca comunicámos exactamente que o terreno era para um polidesportivo.”.
Sobre esta afirmação diremos que das declarações dos arguidos também não resulta que o Sr. Presidente da Câmara lhes disse que a Câmara queria adquirir o prédio para construção nele de um polidesportivo. Os arguidos ficaram convencidos que a Câmara queria adquirir o terreno deles para apoiar instalações desportivas. Se o apoio era a um “complexo desportivo” ou um “polidesportivo” é irrelevante para descredibilizar as declarações dos arguidos.
Também não é correcta a afirmação do recorrente de que os arguidos declararam, nomeadamente a arguida, quer no primeiro, quer no segundo julgamento, de que só se sentiram enganados na venda quando tomaram conhecimento do valor pelo qual o Município recorrente vendeu o lote formado com parte do prédio que lhe foi adquirido e que não se aperceberam, na reunião em que estiveram presentes, que o Sr. Presidente da Câmara Municipal lhes teria dito que expropriaria o prédio caso não vendessem.
Há aqui duas situações diferentes.
Os arguidos sempre disseram que na dita reunião que tiveram a sós com o Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... este lhes disse que se não aceitassem o preço proposto pela Câmara para aquisição do terreno não poderiam ali construir e que expropriaria o terreno por um preço menor. E no sentido de que se sentiram “encurralados” para vender o terreno, porque era para apoio à área desportiva existente , a arguida contou que já anteriormente num terreno de uma herança, não lhe disseram nada e expropriaram-lhe um terreno para uma Escola.
Quando passados cerca de 2 anos soube que o terreno vendido ao Município foi vendido “para um supermercado” , a arguida declarou: “senti-me lesada”.
Esta declaração não descredibiliza as declarações dos arguidos. Qualquer pessoa com formação média, numa situação como a descrita pelos arguidos, em que lhe disseram que não lhe permitiriam construir no terreno e o expropriariam, por ser necessário para fins de natureza pública, de requalificação e apoio a um complexo desportivo, se não o vendessem por um determinado preço, vem depois saber que o mesmo, embora incluindo parte de um outro, foi vendido para um supermercado, por um preço umas 4 vezes superior àquele pelo qual o vendeu à entidade pública, poderia sentir-se enganada e lesada.
A testemunha M... , engenheiro de formação e que desenvolve a sua actividade designadamente em X... declarou mesmo que “eu nunca vi uma situação destas” , e que foi “a maior operação de especulação que presenciei”.
O assistente defende, por fim, que o constante do ponto n.º23 deve passar para os factos não provados porquanto a sentença recorrida nos factos dados como não provados, reconhece que a Câmara Municipal não aprovou qualquer deliberação no sentido constante do ponto n.º 23 dos factos provados e esta apenas se vincula por deliberações tomadas em reunião convocada para o efeito.
Vejamos.
A existência ou não de deliberação da Câmara Municipal, foi mandada apreciar na al.i) do acórdão de reenvio, nos seguintes termos: “Se a Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que, se não aceitassem o preço de 229.447,07, por si oferecido, pelo referido terreno, seriam expropriados do prédio em questão e se existe ou não alguma deliberação nesse sentido.”.
A questão nos termos em que foi mandada abordar exige alguma cautela, pois a Câmara Municipal, órgão representativo do município , é um órgão colegial ( art.s 2.º, n.º2 e 56.º, n.º1, da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
É pacífico que « no órgão colegial só se produz vontade imputável à pessoa colectiva quando todos os indivíduos componentes do colégio se reúnam e deliberem, nos termos da lei ou dos estatutos, apurando a maioria dos votos para sobre cada assunto tomar posição.» Cfr. Prof. Marcelo Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pág. 205. .
Também a Câmara Municipal apenas se vincula quando delibera nos assuntos sujeitos à sua apreciação, devendo ser lavrada acta da reunião ou sessão indicando, designadamente, as deliberações tomadas e o resultado das respectivas deliberações ( cfr. entre outros os artigos 83.º, 84.º e 92.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
Se não existe deliberação da Câmara Municipal sobre um determinado assunto não se pode imputar àquele órgão colegial a decisão.
No caso em apreciação, o Tribunal a quo deu como provado no ponto n.º 23 da sentença recorrida que « A Câmara Municipal de X... disse os arguidos que se não aceitassem vender o referido prédio pelo preço por si proposto de €229.447,07, lhes inviabilizaria a construção nesse imóvel, perdendo o mesmo o valor comercial e que seriam expropriados”.
Porém , o Tribunal a quo deu como não provado que « as declarações supra referidas no ponto n.º 23 constem de deliberação da Câmara Municipal de X....».
Cremos que existe aqui alguma contradição, pois dando-se como não provada a existência de uma deliberação da Câmara Municipal de X..., não se pode dar como provado que a mesma Câmara disse aos arguidos que se não aceitassem vender o referido prédio pelo preço por si proposto de €229.447,07, lhes inviabilizaria a construção nesse imóvel, perdendo o mesmo o valor comercial e que seriam expropriados.
Relativamente ao facto não provado nada tem o Tribunal da Relação a apontar pois nenhuma acta foi junta aos autos que mencione essa deliberação, o Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... não reconhece a existência de tal deliberação e os arguidos desconhecem a sua existência, como resulta da fundamentação da matéria de facto.
Já quanto ao ponto n.º 23 dos factos provados, afigura-se-nos que ele não reflecte totalmente o que se passou e ali é narrado.
T..., Presidente da Câmara Municipal de X..., e como tal representante da Câmara Municipal ( art.68.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro), declarou na segunda audiência, designadamente, que no início de 2003, “nós fizemos uma reunião a convite da Câmara Municipal por haver há muito tempo uma placa no terreno a dizer “vende-se”naquele terreno; queríamos saber da disponibilidade dos proprietários para venderem e saber o tipo de valor que tinham em mente.
T... reconhece que enquanto Presidente da Câmara Municipal de X..., e tendo em vista os interesses desta, convocou os arguidos para a reunião em causa e nela estiveram apenas ele e os arguidos. Nessa reunião não esteve o órgão colegial.
Os arguidos declararam, por sua vez, como consta da fundamentação da matéria de facto da sentença, que tiveram a conversa em causa com o Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... e que este lhes disse que a Câmara não ia permitir que construíssem no dito terreno e o expropriariam se não o vendessem a esta.
Os arguidos entenderam que o afirmado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... na dita reunião a sós, correspondia à posição da Câmara Municipal sobre o assunto da aquisição do terreno destes.
Considerando a posição de T... e a dos arguidos a harmonização do aludido facto não provado - « as declarações supra referidas no ponto n.º 23 constem de deliberação da Câmara Municipal de X....» - com a matéria do ponto n.º 23 dos factos dados como provados, impõe uma mudança de redacção.
Essa mudança de redacção não tem de ser comunicada aos arguidos, nos termos do art.358.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal porquanto resulta de factos alegados pela defesa.
Assim, a matéria que consta do ponto n.º23 dos factos provados da sentença recorrida passa a ter a seguinte redacção:
O Presidente da Câmara Municipal de X... disse aos arguidos que se não aceitassem vender o referido prédio à Câmara Municipal de X... pelo preço por si proposto de € 229.447,07, lhes inviabilizaria a construção nesse imóvel, perdendo o mesmo o valor comercial e que seriam expropriados”.
O recorrente defende, em seguida, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provados os factos que constam do ponto n.º 24 , pois não existe qualquer elemento probatório nos autos que corrobore o facto ali descrito, constando da sentença que os arguidos afirmaram desconhecer se a Câmara Municipal havia deliberado não manter a viabilidade de construção no local em causa e a própria sentença, nos factos não provados, reconhece que a Câmara Municipal não deliberou sobre ao assunto.
Para além disso, foi considerado provado, nos pontos n.ºs 2, 19, 20 e 21 da sentença, que o pedido de informação prévia apresentado pelos Arguidos em 1999 havia sido deferido, que o Arguido conhecia a aptidão construtiva do prédio que alienou ao Recorrente, que o PDM de X... não sofreu qualquer alteração na área em que se situa o mesmo prédio e que a testemunha M..., amigo próximo dos arguidos e responsável técnico pelo projecto apresentado em 1999, sabia que o PDM se mantinha inalterável para o local.
Vejamos.
Do ponto n.º 24 dos factos dados como provados na sentença consta que “A Câmara Municipal de X... manifestou a intenção de não manter a viabilidade de construção naquele prédio dada antes a título de informação prévia”.
Já dissemos que não se provou a existência de deliberação no sentido da Câmara Municipal de X..., ter manifestado a intenção de não manter a viabilidade de construção naquele prédio dada antes a título de informação prévia.
O que resulta da defesa dos arguidos é que o Presidente da Câmara Municipal de X... lhes manifestou a intenção da Câmara de não manter a viabilidade de construção naquele prédio dada antes a título de informação prévia.
Deste modo, a manter-se a matéria de facto constante do ponto n.º 24 dos factos dados como provados na sentença, ele terá de reflectir esse sentido, que resulta das declarações dos arguidos.
E cremos que a matéria em causa, com esta alteração, deve manter-se nos factos provados, pois a tal não se opõe, desde logo, o que consta nos pontos n.ºs 2, 19, 20 e 21 dos factos dados como provados na sentença, ou seja, respectivamente, que o pedido de informação prévia apresentado pelos arguidos em 1999 havia sido deferido; que o arguido conhecia a aptidão construtiva do prédio que alienou ao recorrente; que o PDM de X... não sofreu qualquer alteração na área em que se situa o mesmo prédio; e que a testemunha M... tinha conhecimento que o PDM havia sofrido alterações.
Para além de o conteúdo da informação prévia aprovada por despacho de 6-12-11999, apenas ter vinculado o Município de X... sobre um eventual pedido de licenciamento ou autorização da operação urbanística a que respeita, durante um ano, nos termos do art.17.º, n.º1 do DL n.º 555/99, de 16 de Dezembro, resulta das regras da experiência comum que sempre o recorrente poderia invocar a não manutenção da viabilidade de construção por pretender afectar o terreno a fins públicos, bem como solicitar a sua expropriação.
A maior ou menor veracidade da informação dada pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... aos arguidos sobre o que a Câmara pretendia do dito terreno, não obsta a que não possa ser verdade o que a este propósito declararam os arguidos relativamente ao que se passou na dia reunião com aquele e que convenceram o Tribunal a quo, em dois julgamentos, no âmbito da imediação e oralidade ouviram as suas declarações.
Em face do exposto e tendo em consideração , em especial as declarações dos arguidos, o ponto n.º 24 dos factos dados como provados passa a ter s seguinte redacção:
« O Presidente da Câmara Municipal de X... manifestou a intenção da Câmara Municipal de X... não manter a viabilidade de construção naquele prédio dada antes a título de informação prévia».
O recorrente defende que também quanto aos factos não provados o Tribunal a quo laborou em erro de julgamento.
Assim, entende não deveria ter sido dado como não provado que «as afirmações prestadas pelos arguidos no requerimento acima aludido em 3 são de teor contrário à informação que lhes havia sido prestada por escrito pela Câmara Municipal;» e que «os arguidos estavam cientes da falsidade das informações, querendo ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que são devidos ao Município de X..., agindo livre e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei».
Encontrando-se provado que a Câmara Municipal de X... deferira um pedido de informação prévia para o local em 1999, os arguidos, ao afirmarem que posteriormente lhes fora dito outra coisa em sentido totalmente oposto, estão a tecer considerações de teor contrário, para além de falsas. E assim é pois, como ficou também provado em 19. e 20., os arguidos bem sabem que a aptidão construtiva do prédio não se altera desde 1999, pelo que qualquer indeferimento por parte da Câmara Municipal a um pedido de viabilidade dos arguidos, ou de quem quer que fosse, constituiria um acto viciado, facilmente anulável judicialmente.
Vejamos.
As afirmações constantes do requerimento dirigido ao TAF de Leiria, mencionado no ponto n.º 3 dos factos dados como provados, de intimação ao recorrente para emissão de um conjunto de certidões, não fazem a mínima referência ao pedido de informação prévia para o local em 1999, sendo respeitantes à reunião que os arguidos tiveram com o Sr. Presidente da Câmara.
A afirmação do recorrente de que os arguidos sabiam que qualquer indeferimento por parte da Câmara Municipal a um pedido de viabilidade de construção dos arguidos, ou de quem quer que fosse, constituiria um acto viciado, facilmente anulável judicialmente, parece esquecer que os arguidos pretendiam vender o terreno a terceiros e que os arguidos declararam que alguns dos pretendentes à compra do terreno desistiram do negócio depois de se terem deslocado à Câmara Municipal.
Além do litígio judicial latente, que os arguidos disseram que não queriam – e que certamente os eventuais compradores dispensavam –, existia ainda a possibilidade de expropriação que, nas declarações dos arguidos, foi avançada pelo Sr. Presidente da Câmara.
Assim, não tem qualquer razão de ser a pretensão do recorrente de que se dê como provado que « as afirmações prestadas pelos arguidos no requerimento acima aludido em 3 são de teor contrário à informação que lhes havia sido prestada por escrito pela Câmara Municipal».
Tendo-se dado como provado o que consta dos pontos n.º 23 e 24 muito menos se poderia considerar provado que « os arguidos estavam cientes da falsidade das informações, querendo ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança que são devidos ao Município de X..., agindo livre e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei».
O recorrente defende que o Tribunal a quo errou ainda ao considerar como não provado que « o arguido tenha exercido funções no âmbito da construção de edificações», pois consta da sentença como provado, que o arguido é engenheiro químico de formação “ tendo trabalhado, de pretérito, numa empresa de cimentos” e tanto o arguido, como a testemunha M... confirmaram que aquele costumava acompanhar obras cujos materiais eram fornecidos pela empresa para a qual trabalhava. Assim, aquele facto devia ter sido considerado como provado.
A este propósito, o arguido declarou no segundo julgamento que tem 72 anos e no final da sua carreira, pelos 67 anos, fazia peças de cerâmica artística e utilitária, por conta própria.
Anteriormente exerceu funções em indústria, em cimentos, em argila expandida e em cerâmica.
Tendo-lhe sido perguntado se exerceu funções “no âmbito da construção de edificações?” respondeu que “não”, que as habilitações não lho permitiam, que apenas “segui” as construções que se fizeram nas empresas em que trabalhou “verificando se os locais eram aptos a receber máquinas”.
Não existe, deste modo, razão para alterar este facto dado como não provado.
Por fim, entende o recorrente que o Tribunal a quo errou ainda ao considerar entre os factos não provados « que M... soubesse que o PDM não se alterava desde 06.12.1999» e « que os arguidos soubessem que o PDM tinha sofrido alterações», pois mostrando-se contraditórios com os factos provados aludidos nos pontos n.º 19, 20 e 21 da sentença, devem ser eliminados da sentença.
Também aqui cremos que a pretensão não é de deferir.
Os factos alegados pela acusação, pela defesa ou que resultam da audiência de julgamento, há que harmonizá-los e colocá-los no devido lugar, entre os provados ou os não provados e não pura e simplesmente eliminar os que são desfavoráveis ao sujeito processual ou estejam em contradição com outros.
Ao factos dados como provados acima mencionados não são contraditórios relativamente ao ponto n.º 19 dos factos dados como provados, pois do facto do arguido conhecer a aptidão construtiva do prédio que, em conjunto com a arguida, alienou à Câmara Municipal de X..., não resulta que a testemunha M... tivesse de saber que o PDM não se alterava desde 06.12.1999.
Também não é contraditório dar-se como provado que a testemunha M... tinha conhecimento que o PDM havia sofrido alterações e dar-se como não provado que o M... soubesse que o PDM não se alterava desde 06.12.1999.
Dar-se como provado que os arguidos sabem que o seu terreno tem aptidão construtiva ( ponto 19) – pois situa-se numa área urbana e até já recebera um deferimento nesse sentido em 6-12-1999 – não conflitua com dar como não provado que os arguidos soubessem que o PDM tinha sofrido alterações. Pode dar-se como provado aquele facto e não provado este último, sem qualquer contradição.
A finalizar a impugnação da matéria de facto defende o recorrente que existem erros na motivação da sentença, pois, ao contrário do que ai consta, o Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... na audiência de julgamento realizada no dia 15 de Abril de 2010 não afirmou que a Câmara Municipal “se mostrou interessada na aquisição do terreno dos arguidos porque se encontrava a estudar um complexo para o local”, assim e que havia “sido decidido (...) alterar a finalidade inicialmente prevista, porque era preciso financiar infra-estruturas”.
Da audição das declarações do Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... constante do CD resulta que este disse, efectivamente, que na altura em que a Câmara se mostrou interessada na aquisição do terreno que os arguidos tinham à venda a Câmara estudava dar continuidade ao complexo desportivo que o anterior executivo iniciara.
A última parte referida pelo recorrente sobre a motivação da matéria de facto também se pode retirar das declarações do Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... uma vez que este mencionou que “ falei nessas necessidades de financiamento de todas as infra-estruturas que eram precisas ali desenvolver, as piscinas que estavam já em construção, etc, etc. Portanto, ãããã…nunca lhes foi dito, nós usamos muito na gíria, quer dizer, não era um terreno….
Quando dois anos mais tarde surgiu essa possibilidade, nós achámos que se justificava por aquilo que disse.”.
Pelo exposto, com excepção das alterações ora introduzidas nos pontos n.ºs 23 e 24 dos factos provados, o Tribunal da Relação considera fixada a matéria de facto nos termos que constam da sentença recorrida.
A última questão a decidir é se devem os arguidos ser condenados pelo crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal e no respectivo pedido de indemnização civil.
Os elementos constitutivos do crime de ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço, p. e p. pelo art.º 187.º, n.º 1 do Código Penal, são os seguintes:
- a afirmação ou propalação de factos inverídicos;
- que os factos sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço;
- que a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço exerça autoridade pública;
- que o agente activo não tenha fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos; e
- o conhecimento e vontade por este de realização dos elementos objectivos do tipo, com consciência da ilicitude da sua conduta.
Na Comissão de Revisão do Código Penal, o Prof. Figueiredo Dias afirmou que “o surgir deste artigo não teve por base a ideia errada de que os artigos anteriores não cobrem as pessoas colectivas, não possíveis de titular o bem jurídico protegido pela difamação ou injúria.
O objectivo deste artigo é diferente: é criminalizar acções ( os rumores), não atentatórios da honra, mas sim do crédito, do prestígio ou da confiança de uma determinada pessoa colectiva, valores que não se incluem, em rigor, no bem jurídico protegido pela difamação ou pela injúria.” “Código Penal, Actas e Projecto da Comissão de Revisaõ” , Ministério da Justiça, 1993, pág. 279. .
No caso em apreciação, embora os factos narrados no requerimento referido no ponto n.º 3 dos factos provados, sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio e a confiança do Município de X..., que é uma pessoa colectiva de direito público que exerce autoridade pública, não se provou que as afirmações dela constantes, não correspondem ao que lhes foi dito pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X..., enquanto representante da Câmara, que por sua vez é um dos órgãos representativos do Município de X....
Os arguidos, perante o mencionado pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de X... , que resulta dos pontos n.ºs 23 e 24 dos factos dados como provados, tinham fundamento para, em boa fé, reproduzir o que consta do requerimento apresentado no TAF de Leiria.
Para além do não preenchimento destes elementos objectivos do tipo, não resultou também provado o seu elemento subjectivo, isto é, o conhecimento e vontade dos arguidos afirmarem ou propalarem factos inverídicos, não tendo fundamento para, em boa fé, reputar verdadeiros os factos inverídicos, com consciência da ilicitude da sua conduta.
Aliás, na ponderação de interesses entre o direito ao acesso aos tribunais e o direito ao bom nome ( à credibilidade, ao prestígio ou à confiança) de uma pessoa colectiva que exerce autoridade pública, cremos que deve dar-se prevalência àquele, a não ser quando se prove que o arguido agiu com consciência da falsidade das imputações constantes da peça processual e as imputações sejam desnecessárias e/ou desproporcionadas.
No caso, para além de não se ter feito aquela prova, os factos narrados no requerimento de 21 de Fevereiro de 2006, mencionado no ponto n.º3 dos factos dados como provados, não são desnecessários, nem desproporcionados, servindo para os arguidos justificarem ao TAF de Leiria porque pretendiam um conjunto de certidões do ora assistente, e são ainda a causa de pedir da acção declarativa sob a forma ordinária que os arguidos propuseram em 11 de Abril de 2006 contra o ora assistente, mencionada no ponto n.º 9 dos factos dados como provados.
Assim, sempre os factos narrados pelos arguidos no requerimento de 21 de Fevereiro de 2006 estariam justificados nos termos do art.31.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.
Pelo exposto, entendemos, que a decisão do Tribunal recorrido de absolvição dos arguidos, quer do crime, quer do pedido de indemnização civil, não merece censura, sendo de manter.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo Município de X... e manter a douta sentença recorrida de absolvição dos arguidos, quer do crime, quer do pedido de indemnização civil.
Custas pelo recorrente , fixando em 9 Ucs a taxa de justiça.

*
ORLANDO GONÇALVES (RELATOR)
ALICE SANTOS