Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
160/09.5GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Data do Acordão: 02/24/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 286º,287º E 308º DO CPP, 203º E 204º DO CP
Sumário: 1.De acordo com o disposto no artigo 308º do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de medida de segurança, o juiz por despacho pronuncia o arguido pelos factos respectivos
2 O Juiz deve pronunciar quando após uma ponderada análise dos elementos dos autos forma a convicção de que é mais provável a condenação do arguido que a absolvição
3.No caso, quer do depoimento da testemunha P., quer da análise do videograma colhido no local onde os factos ocorreram, resulta existirem elementos nos autos que permitem concluir pela suficientemente indiciada autoria dos referidos factos pelo ora arguido, juntamente com outro não identificado.
Decisão Texto Integral: pág. 17
No processo supra identificado foi proferido despacho no qual se decidiu não pronunciar o arguido J. determinando-se o arquivamento dos autos.
Inconformado, o Magistrado do Mº Pº, apresenta recurso para esta Relação.
Na sua motivação, apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso.
1. Nos presentes autos foi deduzida acusação contra o arguido J, sendo-lhe imputada a autoria do crime de furto qualificado.
2. Requereu o arguido a instrução, sendo proferido despacho de não pronúncia, com base na inexistência de indícios suficientes da prática do crime pelo mesmo.
3. Contudo, quer do depoimento da testemunha P., quer da análise do videograma colhido no local onde os factos ocorreram, resulta existirem elementos nos autos que permitem concluir pela autoria dos mesmos pelo ora arguido, juntamente com outro não identificado.
4. Desde logo porque, como resulta de folhas 39 dos autos, é perfeitamente identificável a pessoa que conta da fotografia.
5. Por outro lado, o depoimento da testemunha P. é claro no que concerne à identificação do arguido como sendo um dos autores dos factos em análise nos presentes autos.
6. Resulta, assim, tendo em conta o disposto nos artigos 308° e 283°, do Código de Processo Penal, existirem nos autos indícios suficientes da prática dos factos pelo arguido, razão pela qual deveria ter sido proferido despacho de pronúncia.
7. Ao ser proferido despacho de não pronúncia, foi violado o disposto nos artigo 308° nº 1 e 283° nº 2, Código de Processo Penal.
Deve revogar-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por despacho de pronúncia.
Foi apresentada resposta pelo arguido, que conclui:
I. De acordo com os factos descritos na acusação, o referido crime terá sido cometido pelo arguido, acompanhado de outro indivíduo, alegadamente através do desferimento de um golpe no vidro da porta de acesso ao interior do posto de abastecimento de combustíveis da BP e no interior deste ter-se-á apropriado de maços de tabaco e dinheiro. A citada testemunha implicou o arguido nos autos a partir do visionamento de fls. 38 a 40.
II. Do Auto de notícia de fls. 2 e 3 consta que o foi apreendido um CD com imagens de vídeo vigilância do furto e que, pela visualização das imagens concluiu que os suspeitos seriam duas pessoas do sexo masculino, um deles mais novo (...). Ora, a verdade é que logo em 13.02.2009 a referida testemunha visualizou as imagens e não identificou qualquer suspeito; nem indiciou qualquer suspeita sobre a sua identidade. Contudo, atendendo ao teor do aditamento ao auto (fls. 14 e 15), decorre que um dos autores seria o ora recorrente já referenciado pelo mesmo tipo de crimes e que o identificou através da fisionomia facial, perfeitamente perceptível. Tudo o que afirma posteriormente podia a citada testemunha ter afirmado no auto de notícia, pois diz conhecer o recorrido e que mesmo estando com um pano a tapar metade da face, consegui reconhecê-lo através da sua fisionomia facial. Mas a verdade é que no momento inicial não o identificou, apesar de conhecer já o recorrido, ter apreendido logo o CD e ter visualizado, de imediato, as imagens (vide artigos 4º e 5º do auto a fls. 2). De facto, a citada testemunha não é peremptória na identificação do arguido, devendo, no entender do recorrido, concluir-se pela existência de dúvida razoável.
III. Deste modo, bem andou a douto Despacho ora recorrido ao considerar que: "dos autos não consta que o referido militar da GNR P. procedeu ao visionamento das fotografias logo aquando da elaboração do primeiro dos autos (fls. 3), nada tendo nessa altura referido quanto a qualquer suspeito dos factos. Daqui se retiraria que o suspeito não era reconhecível pelo simples visionamento da fotografia. Ouvido em instrução o referido militar da GNR não foi capaz de esclarecer o modo como chegou à identificação do arguido, dizendo que o arguido era conhecido dele pela prática de outros delitos mas caindo em evidentes contradições quanto ao modo e ao momento em que reconheceu o arguido (afirmando agora que o fez logo que procedeu ao visionamento da foto constante dos autos, ao contrário do que consta dos dois autos por si assinados que estão no processo)".
IV. Acresce que, em aditamento ao auto de notícia, veio o Órgão de Policia Criminal (ou seja, a testemunha P) afirmar ter visionado as filmagens e que suspeitou que nelas estaria o "PX..", que se cruzou com este e que se certificou que o mesmo é canhoto. Todavia, nem refere como procedeu a tal certificação. Tendo, sem qualquer fundamento, concluído que este havia utilizado a mão esquerda para partir o vidro da porta - cfr. Aditamento ao auto de notícia. Acrescentou também que o identificou através da fisionomia facial das filmagens. Ora, o participante apenas diz reconhecer o suspeito porque o mesmo é alegadamente esquerdino e porque se encontra indiciado por outros crimes - cfr. fls. 14 e 15 dos autos. Ora, o valor probatório de tal reconhecimento fotográfico é, face ao preceituado no artigo 147º do CPP, nulo.
V. Da análise do videograma colhido no local onde os factos ocorreram não é possível concluir pela autoria dos mesmos pelo recorrido. Não sendo, contrariamente ao entendimento do Ministério Público, perfeitamente identificável a pessoa que consta da fotografia, na medida em que se assim fosse logo no auto de notícia, ou seja, em 13.02.2009 e aquando do acto de apreensão das imagens, a testemunha, lograria proceder a tal identificação - o que não aconteceu.
VI. Efectivamente, como bem reconheceu o Douto Despacho: «a partir das fotos constantes de fls. 38 a 40 apensas consta dos autos que o referido militar reconheceu o arguido. De resto, nenhuma outra testemunha que tivesse deposto disse ter reconhecido o arguido.»
VII. Em face:
- Das declarações pouco clara, correctas e não duvidosas da única testemunha que declarou ter reconhecido o arguido;
- Da ausência de nitidez da fotografia junta aos autos quanto às feições do rosto do indivíduo nela captado;
- Da ausência de quaisquer outros meios de prova;
- Da negação por parte do arguido da sua intervenção
Não pode senão concluir-se, tal como no douto Despacho de não pronúncia, que os indícios recolhidos nos autos não são suficientes e conduziriam muito provavelmente a uma absolvição em caso de julgamento.
VIII. Há, portanto, que considerar os factos que se encontram descritos no douto Despacho de acusação e analisar os elementos de prova recolhidos no inquérito e submetê-los "a uma análise crítica", uma vez que, nos termos do art. 308°nº 1, do Código de Processo Penal, é exigida, para efeitos de pronúncia, a existência de indícios suficientes da prática do crime, sinais de que o crime foi cometido pelo arguido, juízo de probabilidade razoável de aplicação de uma pena. «Os indícios são suficientes quando permitem a formação de um juízo de probabilidade sobre a culpabilidade do arguido, com a produção da convicção de que ele poderá vir a ser condenado.» - Acórdão da Relação do Porto, de 13 de Novembro de 1974, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, n. ° 241, p. 347.
IX. Ora, não existe nos autos nenhum facto ou testemunho (visto que as testemunhas não presenciaram os factos) que possa sequer indiciar que o arguido tenha praticado algum acto lesivo do património da ofendida. Nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de inquérito soube afirmar com total certeza e clareza que o arguido se apoderou dos montantes e dos bens em causa. Pelo que também por este facto nunca poderia ter sido deduzida acusação contra o arguido pelos factos que lhe são imputados, porquanto, reafirme-se, quer a prova documental (visto que das fotografias juntas aos autos não se pode concluir, com a mínima margem de segurança, que nelas se encontre o arguido), quer a prova testemunhal, são insuficientes para se formular um juízo acusatório de factos que abstractamente integrem a prática do crime por que o arguido vem acusado.
X. Assim sendo, não é possível ter por verificado, face aos factos constantes da acusação, o tipo objectivo daquele crime, que, por isso, se não pode imputar ao arguido, tudo levando a concluir que os indícios recolhidos são manifestamente insuficientes para sustentar a dedução de uma acusação ou sujeitar o arguido a um julgamento.
XI. Pelo que, se pede seja mantido o despacho de não pronúncia.
DEVE O RECURSO INTERPOSTO SER JULGADO IMPROCEDENTE.
Nesta Relação, o Ex.mª P.G.A., emite parecer no sentido da procedência do recurso. Entendendo que:
“Dos elementos probatórios recolhidos, quer em prova documental, quer em prova testemunhal, designadamente do depoimento da testemunha P, o participante, que expressamente referiu, não ter dúvidas da identificação do arguido através do visionamento do sistema de videograma e depois do confronto com o mesmo em Águeda, e concluído que a actuação do arguido se desenvolveu em co-autoria com outro indivíduo que não foi possível identificar, prova esta recolhida em sede de Instrução, aliás como o refere a argumentação do recorrente MºPº, elementos que conjugados e relacionados nos parece que permitem formar um juízo de indiciação levado com seriedade e rigor à imputação delitiva ao arguido”.
Foi cumprido o art. 417 do CPP.
Foi apresentada resposta pelo arguido concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:
***
É do seguinte teor o despacho recorrido:
“III. Fundamentação:
A) Considerações gerais sobre a instrução:
Nos termos do artigo 286° do CPP a instrução visa, designadamente, a comprovação judicial da decisão final do inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, mediante a verificação (ou não verificação) de indícios suficientes.
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art. 283°, n.º 1 ex vi do art. 308°, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Penal) - Cfr. também José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal - Do Juiz e da lnstrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss . Dito de outro modo, por «indícios suficientes» para efeitos da decisão instrutória, deve entender-se a possibilidade razoável de que o arguido tenha praticado os factos que lhe são imputados e de que lhe será aplicada uma pena ou medida de segurança, devendo o juiz, nas palavras de Germano Marques da Silva, (Curso de Processo Penal III, 2000, p.179), pronunciar o arguido apenas e só "quando pelos elementos constantes dos autos forme a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido".
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende, assim, da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e/ou da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308°, n.º 1 do Cód. Proc. Penal).
A concretização do que sejam "indícios suficientes" assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: "A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica - Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 237. 3 Do Processo Penal..., pág. 347.
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva (Do Processo Penal..., pág. 347), o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios "enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime". É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308° do Cód. Proc. Penal.
De todo o modo, nesta fase preliminar do processo, não se visa "alcançar a demonstração da realidade dos factos", -João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, citado por Germano Marques da Silva, op. e loc. cit.
Como conclui ainda Germano Marques da Silva –op. e loc. cit., "As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento "(sublinhado nosso).
Assim, de acordo com o art. 308 do CPP se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, haverá decisão de pronúncia pelos respectivos factos, no caso contrário, haverá despacho de não pronúncia.
O objecto da instrução está delimitado pelo despacho de acusação proferida nos autos ou pelo RAI, sem prejuízo do disposto no artigo 303 do CPP
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B) Os factos resultantes do inquérito:
No final do inquérito foram apurados indícios dos factos constantes da acusação de fls. 80 e segs. que aqui se dão por reproduzidos.
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C) Análise crítica do despacho final proferido em inquérito e resultado das diligências realizadas na Instrução quanto aos factos imputados:
Após os actos de instrução deve concluir-se que não existem nos autos indícios suficientes de que tenha sido o arguido a praticar os factos descritos na acusação, resultando indícios suficientes dos restantes factos.
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D) Motivação e análise crítica (quanto ao referido nas alíneas anteriores):
Da prova recolhida em inquérito apenas as declarações do militar da GNR P. implicam o arguido nos factos em investigação. De facto, a partir das fotos constantes de fls.38 a 40 apenas consta dos autos que o referido militar reconheceu o arguido. De resto, nenhuma outra pessoa que tivesse deposto disse ter reconhecido o arguido.
O arguido negou a sua participação.
A fotografia não permite identificar o indivíduo nela retratado sem margem para dúvida razoável.
Dos autos consta que o referido militar da GNR P. procedeu ao visionamento das fotografias logo aquando da elaboração do primeiro dos autos (fls.3), nada tendo nessa altura referido quanto a qualquer suspeito dos factos. Daqui se retiraria que o suspeito não era reconhecível pelo simples visionamento da fotografia.
Ouvido em instrução o referido militar da GNR não foi capaz de esclarecer o modo como chegou à identificação do arguido, dizendo que o arguido era conhecido dele pela prática de outros delitos mas caindo em evidentes contradições quanto ao modo e ao momento em que reconheceu o arguido (afirmando agora que o fez logo que procedeu ao visionamento da foto constante dos autos, ao contrário do que consta dos dois autos por si assinados que estão no processo).
E) Ponderação global dos Indícios, por referência ao crime imputado:
O artigo 203 do CP encontra-se sistematicamente inserida no Capítulo II do Título II do Código Penal e, através dela, procurou o legislador conferir tutela penal suficiente e adequada ao património em geral e à propriedade em particular, enquanto segmentos indispensáveis à génese e conservação de qualquer comunidade existencial.
O "ter" que o património, em última instância, representa vale, assim, como bem jurídico penalmente relevante, não tanto por ser um elemento essencial capaz de afirmar um livre e harmónico desenvolvimento da pessoa humana, mas sim, e decisivamente, por corresponder a um momento imprescindível na organização da vida comunitária e, consequentemente, na preservação de quaisquer expectativas de convivência social (cfr. Faria Costa, Direito Penal Especial, Lições do 5º ano do curso de 1994-95, Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, pg. 38).
Neste sentido, e para o efeito de identificar rigorosamente o bem jurídico protegido na sua específica intencionalidade, haverá que entender o património num sentido estritamente jurídico, fazendo-o coincidir com um complexo de relações jurídicas encabeçadas por um determinado sujeito, tendo por objecto coisas dotadas de determinada capacidade instrumental, ou seja, com aptidão suficiente para a satisfação de necessidades humanas, materiais ou espirituais. É, pois, do património entendido neste sentido que a propriedade, imediatamente tutelada pela norma acima referida, constitui directa e necessária expressão.
Objecto de ponderação é, de todo o modo, não apenas o interesse individual de cada titular com vista à manutenção dos poderes de gozo, fruição e guarda, mas ainda, e necessariamente, o interesse público relativo à inviolabilidade do direito respectivo e, consequentemente, à perseguição dos actos de esbulho.
Para que determinada conduta possa ser subsumida à materialidade objectiva do tipo incriminador é necessário que pelo agente seja subtraída coisa móvel alheia, contra ou sem a vontade de quem estava em condições de poder retirar utilidades dela.
A subtracção há-de, pois, consistir na retirada da coisa do poder de disposição, real ou potencial, de quem dela usufruía, e no respectivo e subsequente ingresso na esfera de disponibilidade do agente ou de um terceiro, ainda que de forma precária ou passageira ou mesmo que em estado de desassossego ou intranquilidade.
Da noção de subtracção que acaba de ser exposta - e não obstante lhe corresponder, em regra, uma acção tendencialmente unitária - resulta possível a identificação de dois momentos sucessivos e complementares, consistindo o primeiro na violação do poder de facto exercido pelo detentor, e coincidindo o segundo com a instituição de uma nova relação entre a coisa e o agente da subtracção ou o terceiro a quem ela venha a ser entregue por qualquer título.
Supondo a consumação do crime de furto a efectivação da subtracção - e com ela coincidindo temporalmente -, o tipo legal respectivo só se achará completamente realizado no momento em que, frustrando-se a posse ou a vigilância do detentor, vem a coisa a dar entrada na disponibilidade ou esfera de utilidades do agente, ainda que por um curto espaço de tempo ou mesmo que de forma não inteiramente tranquila.
Imprescindível é, porém, que o agente da infracção tenha chegado a adquirir um domínio pleno e autónomo sobre a coisa, tornando plausível a possibilidade de vir dela a retirar as correspondentes utilidades.
Do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico protegido, o crime de furto é, pois, um delito simétrico: à diminuição das utilidades do património da vítima corresponde um aumento de utilidades do património do agente.
Analisando-se, pois, o tipo de ilícito objectivo na prática de um acto de subtracção, o crime de furto há-de incidir sobre coisa móvel, entendida como substância ou porção do mundo externo, fisicamente apreensível, dotada de autónoma corporeidade e susceptível de ser possuída ou controlada.
Para além de móvel, a coisa subtraída tem que ser alheia, no sentido de se encontrar ligada, por uma relação de interesse, a pessoa diferente do agente (cfr. Faria Costa, ob. cit., pg.41 e ss.).
O objecto em causa deverá ainda ter um valor juridicamente relevante, seja pela utilidade que representa para o seu dono, seja pela estima ou afeição que nele suscita.
Para que a conduta em causa possa ser reconduzida à previsão típica da norma incriminadora é necessário, por último, que o agente tenha actuado com uma ilegítima intenção de apropriação: o agente sabe que a coisa pertence a outrem, tem consciência de que não detém qualquer direito ou título para a possuir e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo.
Analisado neste seu momento subjectivo, o tipo de ilícito suporá, assim, naquele que actua, a intencional vontade de se comportar, relativamente a coisa móvel que sabe não ser sua, como respectivo proprietário, manifestando, consequentemente, uma intenção de desapropriar terceiro, animada pelo propósito de vir a integrar a coisa no seu património.
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Quanto à qualificativa prevista na alínea e) do nº 2 do artigo 204 que está em causa nos autos, esta pressupõe que os agentes tenham «penetrado em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas» entendidas tais actividades como definido no artigo 202 d), e) e f) do CPenal.
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2. Subsunção dos factos aos referidos elementos do tipo legal do crime em causa:
Em face das declarações muito pouco claras da única testemunha que declarou ter reconhecido o arguido como sendo o indivíduo captado nas fotos; da pouca nitidez da foto junta aos autos quanto às feições do rosto do indivíduo nela captado; da ausência de quaisquer outros elementos de prova que impliquem o arguido nos factos e à negação por parte do arguido da sua intervenção, não pode senão concluir-se que os indícios existentes nos autos não são suficientes e conduziriam muito provavelmente a uma absolvição em caso de julgamento, ao menos, em obediência ao princípio da presunção da inocência.
A consequência é, sem necessidade de mais considerações, a não pronúncia do arguido por falta de indícios suficientes dos factos que lhe são imputados o que torna improvável a sua condenação em julgamento.
IV. Decisão:
Face ao exposto, decide-se proferir DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA;
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Conhecendo:
Questão suscitada:
- Existência de indícios da prática do crime.
Vejamos:
O despacho recorrido encontra-se bem elaborado e fundamentado na parte teórica acerca do objectivo da instrução e decisão instrutória, não merecendo, nessa parte, qualquer reparo.
Porém, temos que na aplicação dos princípios enunciados ao caso concreto não foi bem conseguida.
O art. 308 do CPP manda pronunciar o arguido pelos factos respectivos, quando se tiverem recolhido indícios suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, ou seja, o juiz deve pronunciar quando se verificarem os elementos objectivos e subjectivos de um determinado tipo de crime, e nesse caso sim, deve enumerar os factos indiciados que preenchem esses requisitos.
Na instrução ou são recolhidos indícios suficientes, ou seja, factos que demonstrassem a existência do elemento objectivo e subjectivo do crime e há despacho de pronuncia, ou não se apuram esses factos e o despacho será de não pronuncia.
Existência/inexistência de indícios suficientes:
Sendo "a instrução formada pelo conjunto dos actos de instrução - art. 289° n° 1- com vista "à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito " - art. 286°- logo que "encerrado o debate, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia " - art. 307° n. ° 1, todos do CPP.
Aquele será proferido se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança - art. 308° n° 1 C. P. Penal.
No caso vertente está em causa não a recolha de indícios, mas a recolha de elementos que afastem os indícios apurados no inquérito e que sustentaram a acusação.
E, no caso presente temos o depoimento da testemunha P, em inquérito, essencial para a dedução da acusação pelo Mº Pº, e o depoimento da mesma testemunha, em instrução, essencial para o despacho de não pronuncia.
O que se fez na decisão instrutória seria semelhante a fazer um julgamento apenas com a audição desta testemunha, tendo concluído, após, que: “Ouvido em instrução o referido militar da GNR não foi capaz de esclarecer o modo como chegou à identificação do arguido, dizendo que o arguido era conhecido dele pela prática de outros delitos mas caindo em evidentes contradições quanto ao modo e ao momento em que reconheceu o arguido (afirmando agora que o fez logo que procedeu ao visionamento da foto constante dos autos, ao contrário do que consta dos dois autos por si assinados que estão no processo)”.
Também se refere no despacho de não pronuncia que esta testemunha nada referiu quanto a qualquer suspeito dos factos quando visionou as fotografias pela primeira vez (auto de fls. 3), o que é verdade e do auto consta.
Esse auto está datado de 19 de Fevereiro, mas logo a 19 do mesmo mês, em aditamento ao auto de noticia, refere que “o participante não tem dúvidas relativamente à identidade do suspeito que efectuou o furto, identificando o mesmo através da fisionomia facial”.
O mesmo participante refere no aditamento que logo que visionou as filmagens suspeitou, suspeita que depois veio a confirmar, “tendo na altura suspeitado que um dos autores seria o já referenciado pelo mesmo tipo de crimes “Px””. Sendo que anexa cópia de fotografia retirada das filmagens na qual a testemunha diz identificar o arguido.
Em depoimento prestado no âmbito da instrução (audição do cd), a testemunha refere que suspeitou do arguido e o identificou “não teve a menor dúvida”, logo que visionou as filmagens e a fotografia que junta, esclarecendo que não teria visto as imagens quando elaborou o auto de notícia inicial (sem esclarecimento cabal do motivo porque aí mencionou que tinha visionado). Situação que poderá ser esclarecida em julgamento
Mas a fotografia que junta (fotocópia) dá a entender que é possível reconhecer quem dela consta, e se for junta aos autos, não fotocópia mas fotografia mesmo e ampliada, será perfeitamente perceptível a imagem e nítida para quem conhecer a pessoa que consta da mesma e eventualmente relacioná-la com o arguido. Essa cópia de fotografia está ampliada em relação à fotografia de fls. 39 (em cima à direita), e apesar de cópia é bem mais fácil ver e eventualmente reconhecer o indivíduo que dela consta.
Pelo que há indícios.
E, não é de concluir como no despacho recorrido que “daqui se retiraria que o suspeito não era reconhecível pelo simples visionamento da fotografia”.
Antes é de concluir como o faz a Exmª PGA no seu parecer: “Dos elementos probatórios recolhidos, quer em prova documental, quer em prova testemunhal, designadamente do depoimento da testemunha P, o participante, que expressamente referiu, não ter dúvidas da identificação do arguido através do visionamento do sistema de videograma e depois do confronto com o mesmo em Águeda, e concluído que a actuação do arguido se desenvolveu em co-autoria com outro indivíduo que não foi possível identificar, prova esta recolhida em sede de Instrução, aliás como o refere a argumentação do recorrente MºPº, elementos que conjugados e relacionados nos parece que permitem formar um juízo de indiciação levado com seriedade e rigor à imputação delitiva ao arguido”.
E, só não se visionaram as imagens, mesmo através de ampliação, porque o cd referente a tais imagens se encontra em branco (sem qualquer ficheiro).
A lei define o que deve entender-se por tal noção (indícios), considerando a sua verificação, em consonância, aliás, com o citado art. 308º sempre que deles-(indícios)- resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança - art. 283° n° 2 CPP.
Luís Osório no seu Comentário ao Código de Processo Penal Português, IV, pág. 411 refere que "devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado".
E, Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, I, 133 escreve: tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento e, por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.
Assim que a acusação não deva ser proferida de forma apressada, precipitada, quiçá leviana, atentando-se que sujeitar alguém a julgamento pode acarretar, para além do normal incómodo, um vexame e até um estigma de ignomínia, porventura injustificável e que dificilmente se arreda da mente dos outros.
Considerações e argumentos estes que se encontram vertidos de forma clara, precisa e lúcida no Ac. Rel. Porto. de 20/10/93 in Col. Jurisp. Tomo IV, pág. 261: no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que, entre nós, se revestem de dignidade constitucional - (art. 3° daquela Declaração e art. 27° da Constituição da República Portuguesa).
E, por tal razão, prossegue o dito Aresto "que quer a Doutrina quer a Jurisprudência UPL.Pvêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, ou os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição".
Passando ao caso dos autos, em dissintonia com o decidido no despacho recorrido, temos como suficientes os indícios recolhidos para haver uma submissão a julgamento.
O próprio despacho recorrido admite a existência de indícios ao referir-se às “declarações muito pouco claras da única testemunha que declarou ter reconhecido o arguido como sendo o indivíduo captado nas fotos”. Mas apurar se as declarações são claras ou não, convincentes ou não, será tarefa do julgador.
Basta apurarem-se indícios fortes da prática do crime, e esses apuraram-se.
As dúvidas a existirem apuram-se ou dissipam-se em julgamento, e aí se decide, pelo preenchimento dos elementos do crime e consequente condenação, ou o não preenchimento e absolvição.
Essas dúvidas consubstanciam a existência dos indícios. Para a pronúncia não são necessárias certezas.
Tudo isso se apurará em audiência de julgamento.
Assim, que o despacho recorrido deva ser substituído por outro que julgue indiciados os factos da acusação, pronuncie o arguido e ordene os subsequentes trâmites processuais.
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Decisão:
Pelo que exposto ficou, acordam em julgar procedente o recurso interposto pelo Magistrado do Mº Pº, e em consequência:
a)- Revoga-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que julgue indiciados os factos da acusação, pronuncie o arguido e ordene os subsequentes trâmites processuais.
Sem custas.
Coimbra,
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