Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
212/23.9T8CNF-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
PROVA PERICIAL
SUPRIMENTOS
LUCROS
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE CINFÃES DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 476.º, 941.º, 944.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 243.º, N.º 1, DO CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
Sumário: I – A ação de prestação de contas visa apurar o saldo existente entre receitas e despesas, pelo que no seu objeto apenas podem ser consideradas as receitas e as despesas relacionadas com a administração de bens alheios.
II – Assim, tudo o que não constituir receita ou despesa não pode ser apreciado no âmbito de uma ação de prestação de contas.

III – Quanto a suprimentos a favor de sociedade de que o requerido é sócio, tal questão não pode ser apreciada, por, mesmo a existirem, não constituírem os mesmos uma receita ou uma despesa, mas um crédito do respetivo sócio para com a sociedade.

IV – Já os lucros, traduzindo-se numa receita, podem ser objeto da prestação de contas, âmbito em que é admissível a produção de prova pericial requerida.

Decisão Texto Integral:

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

            AA, veio instaurar a acção de prestação de contas, de que os presentes autos constituem apenso, contra BB, na qualidade de seu ex-marido, ambos já identificados nos autos, com o fundamento em que este administrou bens comuns do ex-casal, mesmo após decretado o divórcio entre ambos, entre outros, recebendo as respectivas receitas, sem que lhe tenha entregue qualquer quantia, delas usufruindo em exclusivo, nomeadamente rendas de prédios comuns, dados de arrendamento; suprimentos que o requerido fez a favor da sociedade “A..., L.da”, de foi sócio, entre 2007 e 2014, sem que a autora conheça tais valores; bem como metade dos lucros que o requerido terá recebido, nas mesmas datas, de que, igualmente, desconhece os valores.

Logo na p.i., quanto a tais suprimentos e lucros, requereu o seguinte:

“c) Que seja notificada a sociedade A... Lda., NIPC ...84, com sede em ... ..., para apresentar elementos que comprovem a existência de suprimentos e qual o seu montante, do interessado BB, no período compreendido entre o ano de 2007 e o ano de 2014, inclusive;

d) Que seja notificada a sociedade A... Lda., NIPC ...84, com sede em ... ..., para apresentar elementos que comprovem a existência de lucros e qual o seu montante, do interessado BB, no período compreendido entre o ano de 2007 e o ano de 2014, inclusive;

e) Que seja notificada a sociedade A... Lda., NIPC ...84, com sede em ... ..., para apresentar o livro de actas da sociedade;

f) Que seja notificada a sociedade A... Lda., NIPC ...84, com sede em ... ..., para apresentar a certidão de prestação de contas no período compreendido entre o ano de 2007 e o ano de 2014, inclusive;

g) Se digne ordenar a produção de prova pericial, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 467.º do CPC, tendo como objecto as contas, no período compreendido entre os anos 2007 e 2014, da firma A... Lda., NIPC ...84, pelo que se juntam os respectivos quesitos para serem respondidos pelos peritos.”.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz a quo, foi tal pretensão indeferida, cf. despacho aqui junto de fl.s 2 v.º, a 3, que se passa a reproduzir:

(…)

Do pedido de prestação de contas relativamente à Sociedade por quotas A... Lda.

A autora veio, ainda, alegar que tem direito a metade do valor dos suprimentos existentes na sociedade por quotas A... Lda., com o NIPC ...84, em que o réu foi sócio, no período entre 2007 e 2014.

Cumpre apreciar.

Sendo um dos cônjuges titular de uma quota numa sociedade comercial constituída na pendência do matrimónio, tal quota constitui um bem comum do casal, mas apenas quanto à sua dimensão patrimonial, não abrangendo a qualidade de sócio com todo o correspondente

complexo de direitos e deveres, quando foi o cônjuge quem celebrou o contrato de sociedade ou quem interveio no ato jurídico através do qual tal bem foi integrado no património comum do casal - neste sentido, entre outros Acórdãos do STJ de 31.3.1998, e de 13.12.2000 (relator Salvador da Costa), Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 1004-2008, e da RG de 5.11-2015, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

Quanto ao valor concreto da quota social, ou meação da mesma, tal terá de ser apreciado em sede de inventário e não no âmbito de uma ação de prestações de contas.

Apenas ocorre a prestação de contas de bens comuns cuja administração seja feita a título singular pelo ex-cônjuge e não dos bens que se inserem na dinâmica de uma sociedade comercial e cujos proveitos e despesas advém do exercício relacionado com esta, como é o caso.

Assim, nesta parte, improcede o pedido da autora.

*

Cabe, agora, designar data para a produção de prova, ao abrigo de artigo 942.º, n. º3, do Código de Processo Civil.

*

Prova pericial

Atendendo ao que acima foi exposto quanto ao pedido de prestação de contas relativamente à sociedade, indefiro a requerida prova pericial.”.

Conforme despacho, aqui junto, por cópia, de fl. 62 a 65, proferido nos autos de inventário subsequente a divórcio, que corre termos no Tribunal recorrido com o n.º 38/21...., no qual, a aí cabeça de casal e aqui autora, AA, havia relacionado, sob as verbas n.º 8 e 9, respectivamente, os suprimentos e lucros, acima referidos, sobre que incidiu reclamação, considerou-se que após 25 de Maio de 2007 e até 2014, por não se tratar de bens comuns, não podiam ser objecto de partilha e no período de 1 de Janeiro e 25 de Maio de 2007, foram as partes remetidas para os meios comuns.

           Inconformada com a decisão primeiramente referida – a que, neste autos, indeferiu a requerida prova pericial – dela, interpôs a requerente, AA, o presente recurso, o qual foi recebido como de apelação, em separado, com subida imediato e efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 9), apresentando as seguintes conclusões:

1. O Tribunal a quo não deveria ter indeferido o pedido formulado pela Recorrente a qual solicitava diligências probatórias, tendo em vista aferir o valor dos suprimentos e do valor dos lucros que a Autora e Réu detêm na sociedade por quotas A... Lda., com o NIPC ...84, em que o Réu foi sócio, no período entre 2007 e 2014, cujo valor não foi possível apurar e que o Réu tem o dever de prestar.

2. O pretendido pela Recorrente não é aferir qual o valor concreto da quota social mas saber quais os suprimentos que o Réu têm na referida sociedade assim como os lucros auferidos pelo Réu no período entre 2007 e 2014, pois metade do montante apurado pertence à Autora.

3. O Réu na qualidade de titular de uma quota na sociedade A..., Lda. deveria informar a Recorrente se foram distribuídos lucros ou se existiam suprimentos na referida sociedade.

4. Tendo em consideração que a quota ainda não se encontrava partilhada, a existir suprimentos na sociedade A..., Lda. tais empréstimos, são também pertença da Recorrente na proporção de metade.

5. O Réu como sócio maioritário, era obrigado, em defesa da sua participação social e da sua ex-mulher, a exigir da sociedade a repartição dos lucros.

6. A Recorrente nunca recebeu qualquer quantia, no período entre 2007 e 2014, do seu ex-marido referente aos ganhos da sociedade, sendo certo que a aludida sociedade nunca teve prejuízos.

7. A Recorrente não pretende intrometer-se na dinâmica da sociedade A..., Lda. nomeadamente nos proveitos ou despesas que advêm do exercício relacionado com aquela.

8. A Recorrente pede ao Tribunal que se substitua ao Réu, considerando que este quer fazer seus os lucros obtidos e/ou suprimentos que por direito também são daquela, e ordene uma perícia que tenha por fim aferir os direitos da requerente conforme peticionado.

9. A não produção de prova no processo de prestação de contas (considerando que no processo de inventário as partes foram remetidas para os meios comuns), torna inviável uma justa pretensão da Autora, aqui Recorrente, fechando todas as portas para uma aferição correta do seu património.

10. Efectivamente, a Recorrente (ex-cônjuge) detém um interesse patrimonial na quota e não pode ser deixada numa situação de completa vulnerabilidade jurídica perante actos lesivos do seu património, só porque o exercício dos direitos de participação na vida societária estão conferidos legalmente ao seu ex-cônjuge.

11. Na verdade, a Recorrente é titular de direitos sobre a quota comum, direitos que merecem tutela jurídica.

12. Deveria o Tribunal a quo ordenar o pedido pela Recorrente/Autora nas alíneas c) a g) da petição inicial.

13. Ao interpretar de forma errada a pretensão da Recorrente/Autora, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, consubstanciando uma nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

14. Acresce que a Recorrente não pode valer a sua pretensão dentro do Processo de Inventário e também, face ao despacho proferido, o não pode na acção de Prestação de Contas.

15. Considerando a posição de ambos os Tribunais deverá ser este conflito negativo de competência dirimido pelo Tribunal recorrido.

Termos em que deve o presente recurso ser admitido, revogado o douto despacho recorrido, sendo substituído por outro que dê deferimento ao pretendido pela Recorrente, fazendo-se assim JUSTIÇA

           

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

           Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é de saber se deve ou não, ser admitida a prova pericial requerida pela recorrente, para prova do por si alegado quanto aos suprimentos e lucros, acima referidos.

           A factualidade a ter em conta é a que consta do relatório que antecede.

           Se deve ou não, ser admitida a prova pericial requerida pela recorrente, para prova do por si alegado quanto aos suprimentos e lucros, acima referidos.

           Como resulta do relatório que antecede, na acção de prestação de contas, pretende a autora que o réu as preste relativamente aos suprimentos que, alegadamente, terá feito na supra identificada sociedade, de que foi sócio e, ainda, relativamente aos lucros que terá quinhoado no período em causa, que a autora desconhece se foram ou não recebidos pelo réu e, a tê-los recebido, em que quantia.

           Na decisão recorrida, considerando-se que o facto de a quota na sociedade constituir um bem comum, tal qualidade apenas se reflecte na sua dimensão patrimonial e não no conjunto de direitos e deveres societários, que apenas se refletem na esfera do sócio; para além de que o valor da quota teria de ser apreciado no inventário, pelo que se decidiu pela improcedência do pedido em causa.

           Por outro lado, como acima já referido, no processo de inventário, também, não se conheceu destas questões.

            De acordo com o disposto no artigo 941º, do CPC:

           “A ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

            Contas, estas que, cf. se dispõe no seu artigo 944.º, n.º 1, devem ser apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especifica a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo.

           Ou seja, no âmbito de uma acção de prestação de contas está em causa apurar o saldo existente entre receitas e despesas, o que equivale a concluir que no objecto de uma acção de prestação de contas, apenas se podem ter em linha de conta as receitas e as despesas relacionadas com a administração de bens alheios.

           Dito de outro modo, tudo o que entre as partes interessadas no apuramento das contas e respectivo saldo não constituir receita ou despesa, não pode ser apreciado no âmbito de uma acção de prestação de contas.

           Serve isto para dizer que, relativamente aos invocados suprimentos que o requerido possa ter feito a favor da sociedade de que é sócio, tal questão não pode ser aqui apreciada, precisamente, porque, mesmo a existirem, não constituem nem uma receita nem uma despesa. Ao invés e como resulta do disposto no artigo 243.º, n.º 1, do CSC, traduzem-se num crédito do sócio que o faz para com a sociedade, constituindo, na sua modalidade mais comum um “mútuo-suprimento” – cf. Alexandre Mota Pinto CSC Em Comentário, Vol. III, 2.ª Edição, Almedina, pág.s 652/4.

           Ora, sendo, como é, o suprimento um crédito do autor do suprimento para com a sociedade, não é nem uma receita nem uma despesa e por conseguinte, não pode esta questão ser analisada no âmbito de uma acção de prestação de contas.

           Daqui não resulta que, se e quando a autora comprovar que as quantias mutuadas já foram ou forem restituídas ao ora réu e provando que a quantia mutuada constituía bem comum, aquela não tenha direito a haver a sua parte, mas apenas que tal apreciação não pode ser feita nos presentes autos, por se tratar de um crédito e não de uma receita ou despesa.

            Assim, quanto aos suprimentos, por não estarem abrangidos pelo objecto da presente acção, não é de admitir a requerida prova pericial, por absolutamente estranha ao objecto da lide, o que a tornaria impertinente e irrelevante, o que sempre acarretaria o seu indeferimento, cf. artigo 476.º, do CPC.

Pelo que, nesta parte, embora com diferente fundamentação jurídica, se mantém a decisão recorrida.

           

            Já relativamente aos alegados eventuais lucros, o caso muda de figura.               

            Efectivamente, os lucros traduzem-se numa receita e como tal, nos termos expostos, podem ser objecto da prestação de contas.

           Atento, ainda, que no processo de inventário, quanto a tal questão, as partes foram remetidas para os meios comuns, mais se acentua a justeza desta decisão, sob pena de a autora, quanto a tal, ficar impedida de ver reconhecido o seu direito a haver a sua quota-parte nos eventuais lucros.

           Concluindo, dado que os lucros constituem uma receita de um bem comum, tem a autora direito a exigir do réu, que disso lhe preste contas, em conformidade com o disposto no artigo 941.º, do CPC.

           Concomitantemente, deve ser admitida a requerida prova pericial, na parte respeitante aos lucros; ou seja, quanto aos quesitos 3 a 7, indicados pela autora na parte final da petição inicial da acção de prestação de contas.

           Do mesmo modo e pelas mesmas razões, é de deferir o pedido de notificação da sociedade “A..., L.da”, nos termos requeridos nas alíneas c) a f), do pedido de provas a produzir, na parte final da mesma petição.

Nestes termos se decide:

Julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, revogando-se a decisão recorrida, na parte em que não admitiu a prova pericial requerida pela autora, no que respeita aos alegados lucros; que se substitui por outra que a admite, nos expressos termos acima referidos e; mantendo-a, embora com diferente fundamentação jurídica, quanto ao demais.

Custas, a fixar a final.

Coimbra, 09 de Janeiro de 2024.