Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/21.0GHCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO NOVAIS
Descritores: INSTRUÇÃO REQUERIDA PELO ARGUIDO
ADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 61º, N.º 1 AL., D), E 287º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: O requerimento de abertura de instrução, ainda que descreva factos não considerados no inquérito, não invocados nessa fase pelo arguido, e ainda que o arguido se tenha remetido ao silêncio no decurso do inquérito (pretendendo agora ser ouvido), não deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.
Decisão Texto Integral: ***

Acórdão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



Proc. nº 9/21.0GHCBR.C1


  I - Relatório
  1.1. O arguido AA veio interpor recurso da decisão proferida pelo Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial de Castelo Branco, a qual que declarou verificada a inadmissibilidade legal da instrução e em consequência rejeitou o requerimento de abertura de instrução por aquele apresentado.
 
  1.2. No recurso em apreciação, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:
 1. O Tribunal a quo determinou a rejeição da instrução com fundamento em inadmissibilidade legal do Requerimento de Abertura de Instrução (“R.A.I”) apresentado pelo Arguido, nos termos do artigo 287.º, n.º 3 do CPP, decisão essa que é totalmente merecedora de censura e objeto do presente recurso.
  2. Desde logo, o Arguido apresenta claramente a sua discordância relativa aos factos e questões de direito invocadas pelo Ministério Público que culminaram na decisão de acusar, em conformidade com o artigo 282.º, n.º 2 do CPP.
  3. Em sede de acusação, o Ministério Público nada mais fez do que proceder a uma descrição exaustiva dos factos que tenderiam a demonstrar a verificação dos elementos objetivos do tipo de crime em apreço, não tendo tão pouco apresentado factos concretamente relativos à demonstração da atuação do Arguido com dolo, tendo apenas usado o chavão “quis e conseguiu” como forma de confirmação de verificação do elemento.
  4. No R.A.I. apresentado, o Arguido vem manifestar e fundamentar a sua discordância relativamente à apreciação da matéria factual apresentada pelo Ministério Público em sede de acusação, bem como das ilações retiradas desses mesmos factos no que toca às questões de direito.   
  5. Após demonstração evidente no R.A.I. da ausência de dolo do Arguido, veio também o Tribunal a quo indicar que a existência de dolo deve ser reservada para a fase processual do julgamento, uma vez que, por motivos de celeridade e economia processual, o R.A.I. não serviria para abordar estas matérias.
  6. Pois atendendo ao caso concreto, e não estando evidentemente verificado o elemento subjetivo que, tanto como os objetivos, permitem a imputação do crime ao Arguido, nem tendo os factos que permitissem essa conclusão sido objeto de apreciação, não se compreende a rejeição do R.A.I. nestes termos que, conforme suprarreferido e apoiado pela doutrina, deve tender a não ser rejeitado.
  7. Na medida em que se afigurava importante perceber este contexto, não se concede que não tenha sido aberta instrução para apuramento destes factos, e que a matéria alegada no R.A.I. tenha de vir a ser novamente objeto de análise, contrariando os princípios que foram invocados como base da rejeição.
  8. Finalmente, só é possível concluir que se encontram verificados todos os requisitos de admissibilidade do RAI exigidos pelo artigo 287.º, n.º 2 do CPP.
  Concluiu, a final, requerendo que seja o recurso ora em análise julgado procedente e, em consequência, seja reconhecida a admissibilidade do RAI apresentado e determinada a não pronúncia do Arguido pela prática do crime que lhe vem imputado.
 
1.3. Notificado do recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo veio responder, nos seguintes termos:      
Na verdade, perante a fundamentação expendida pela Mm.ª Juiz a quo na decisão supra vertida, pouco haverá a acrescentar, ficando para nós claro que não beneficia o arguido de qualquer margem de razão.
Na verdade, como bem considerou a decisão recorrida, o RAI apresentado pelo arguido nada assinala para além de mera discordância no que concerne à verificação do elemento subjectivo do crime. Tal argumentação corresponde, ressalvado o devido respeito, a uma contestação, não sendo apta a por em causa o acerto jurídico da decisão de acusar.
Nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Na verdade, o arguido não coloca em causa o acervo probatório recolhido que serve de base à acusação nem a descrição factual que a compõe em decorrência dessa mesma recolha. O que se constata, do requerimento, é a mera negação da actuação dolosa que lhe vem imputada e, bem assim, o aditamento de circunstâncias factuais – que já podia ter dado a conhecer em sede de inquérito – para sustentar tal negação.
Veja-se que, em inquérito, não obstante o arguido tenha tido a oportunidade de apresentar a sua versão dos factos – nomeadamente aquela que ora trouxe, ou outra – nada disse, remetendo-se ao silêncio, não aportando aos autos quaisquer contra-indícios ou circunstâncias que demandassem interpretação jurídica diversa dos que haviam já sido recolhidos. Onde está, então, o desacerto da decisão de acusar?
Julgar-se admissível a instrução no caso concreto será como entender que tal fase processual estará sempre ao dispor de qualquer arguido que, remetendo-se ao silêncio em fase de inquérito pretenda, posteriormente à prolação do despacho de acusação, apresentar uma simples negação do sucedido, alicerçada – ou não – em circunstâncias que não quis invocar na fase investigatória. Tal reacção equivale a contestar, e deverá suceder em fase de julgamento”.

 

  1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, argumentando que (…) O arguido foi claro na indicação dos motivos em que assenta o seu RAI: o elemento subjetivo do tipo por que foi acusado não está suficientemente indiciado nem pode inferir-se dos factos recolhidos e trazidos ao processo pelo Ministério Público.

Como resulta dos precitos da lei penal adjetiva atrás citados, a instrução tem por finalidade a verificação judicial do bem fundado da decisão final proferida pelo Ministério Público no inquérito. Esta verificação far-se-á com base na prova recolhida nos autos, eventualmente acrescida de outros elementos probatórios entretanto fornecidos por quem tenha requerido a instrução.

A atividade conferida, pelo legislador, ao juiz de instrução é, assim, neste contexto, o de apreciar e valorar a prova dos autos e pronunciar-se sobre o acerto da decisão final do Ministério Público.

“E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema.

Aliás, consta, por exemplo, da exposição de motivos da Lei n.º 59/98, de 25/08 (que procedeu à revisão do CPP), que “na estrutura do Código, a instrução constitui o momento processual próprio para submeter a decisão final do Ministério Público no inquérito a controlo judicial, ou seja, para apreciação da prova indiciária por um juiz.” – cfr. Projeto de Revisão do Código de Processo Penal, Boletim do Ministério da justiça, 1998, pág. 25.

Tão-só isto: apreciação da prova indiciária por um juiz, ou seja, direito à não conformação com a decisão unilateral do detentor da ação penal, direito (garantia) à intervenção jurisdicional para comprovar tal decisão.

E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”1

Também Souto de Moura ensinou que “O requerimento da instrução é facultativo e é além disso condicionado. Em primeiro lugar, o n.º 2 do art.º 287.º [atual n.º 3 do preceito] estabelece as condições de admissibilidade do requerimento que são assim as condições da ocorrência da instrução. Mas porque a instrução se propõe contrariar a decisão com que terminou o inquérito, a pretensão do requerente será sempre a neutralização duma acusação, ou dum despacho de arquivamento, consoante os casos. Ora o mérito dessa pretensão dependerá da respetiva fundamentação, e por isso é que o n.º 3 do art.º 287.º [atual n.º 2] nos indica qual o conteúdo que o requerimento deve ter. Diga-se no entanto, que para além de não ser passível de vícios de forma porque não sujeito a formalidades especiais, o requerimento sem o conteúdo que o n.º 2 do art.º 287.º diz que deve ter, nem por isso deixará de ser aceite. Mais, em lado algum se considera nulo um requerimento que se dispense de carrear razões de discordância. Manifestamente, “um certo conteúdo” não foi arvorado em condição de admissibilidade do requerimento. O que já não ocorrerá em matéria de admissibilidade de recurso (cfr. art.º 412.º do NCPP).

(…)

O n.º 2 do art.º 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta diretamente da finalidade assinalada à instrução: obter o controle judicial da opção do M.º P.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com caráter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvair-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados.

(…)

E se o arguido requerer a instrução sem mencionar quaisquer factos sobre os quais pretende que essa instrução recaia? (…) parece-nos que neste caso nem por isso a instrução será inadmissível. Sempre que for possível extrair do requerimento uma discordância que se reporte à acusação, mesmo que considerada no seu conjunto, então estaria preenchido o pressuposto da legitimidade do arguido. O JIC disporia neste caso, apesar de tudo, dum campo delimitado de factos de que partir, e que seriam os factos da acusação.”2

2 Souto de Moura, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág. 118,119 e121, citado no Acórdão 1 Ac. Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.05.2023.

O requerimento que o arguido, ora recorrente, apresentou contém uma clara discordância com a decisão do Ministério Público de o acusar e de requerer o seu julgamento.

Não ignoramos que, em inquérito, o recorrente se remeteu ao silêncio para agora requerer, como única prova a produzir, o seu interrogatório. Parece ser uma atitude gerada, exclusivamente, por critérios de estratégia processual não inteiramente jurídica, o que pode ser censurável, mas este facto não deve ser, em nosso entender, impeditivo da instrução. Aliás, o arguido pode intervir em qualquer altura do processo, ainda que não tenha querido fazê-lo em momentos anteriores, conforme resulta claramente do conjunto de direitos que lhe confere o artigo 61º do CPP.

O que importa aqui é que o RAI apresentado pelo recorrente expressa sem ambiguidades a sua discordância no que respeita à apreciação dos indícios levada a cabo pelo Ministério Público, e que – ao fundarem a verificação do elemento subjetivo do tipo aqui em apreço – determinaram a decisão de acusar.

Entende, o recorrente, que a decisão do Ministério Público não assenta em factos concretos, verificáveis, mas em meras ilações, pelo que o processo deverá ser arquivado. Para obter tal resultado, usa o único caminho processualmente adequado: requer a intervenção judicial para que comprove ou – como espera – refute aquela decisão.

“O pressuposto necessário para que o arguido possa requerer a abertura da instrução é que tenha sido objecto de uma acusação, vd. o artigo 287.º, n.º 1, al. a).

E por ter sido acusado e entender que não deve ser submetido a julgamento, o arguido irá suscitar a intervenção de um terceiro, o juiz de instrução, o que fará mediante a apresentação de um requerimento onde se contenham as suas razões de discordância, com o objectivo de, digamo-lo de forma marcadamente enxuta, demonstrar o desacerto da decisão de acusar naquele concreto processo, à luz e por força dos elementos que nele, e nesse momento, então existiam.”3

Naturalmente que não está aqui em causa qualquer uma tomada de posição, da nossa parte, sobre o bem fundado da argumentação do recorrente.

O que aqui importa exprimir, em linha com o que se acaba de dizer, é nosso entendimento que o requerimento indeferido contém todos os elementos que, nos termos da Lei, determinam a abertura da instrução.


***

 II - Fundamentação de Facto

 A - Transcrição parcial da decisão sob recurso)

 Por despacho com a referência 35991219 o Ministério Público deduziu acusação contra BB, imputando-lhe a prática em autoria material e na forma consumada, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, nº 1, alíneas c) e e), da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro, com referência aos artigos 2.º, nº 1, alíneas s), ar) e aj), nº 2, alínea c), nº 3, alíneas j), p) e ac) e 3.º, nºs 1 e 6, alínea c), do mesmo diploma legal.

 Notificado, veio o arguido requerer a abertura de instrução invocando, em suma, que não praticou os factos descritos, particularmente, os subjacentes aos factos integradores do elemento subjectivo do tipo de crime, apresentando agora a sua versão dos factos.

 Com efeito, invoca agora nesta fase que, pese embora se tivesse deslocado à PSP para regularizar a detenção da arma, lhe teria sido transmitido que a identificação da arma deveria constar de uma “relação de bens”, no âmbito de uma partilha, a qual não tem conseguido resolver devido à “relação conflituosa” que mantém com a sua irmã, que se recusa a prestar tal declaração.

 II- Cumpre apreciar:

 Estabelece o art. 287.º do Código de Processo Penal que:

 “1. A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:

 a) pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou

 b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.

 2. O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.

 3. O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (…).”

 In casu, uma vez que houve acusação, a abertura da instrução apenas pode ser requerida, nos termos da al. a) do art.º 287º, pelo arguido, como foi.

 Porém, afigura-se que o Requerimento de Abertura de Instrução, terá, ainda assim, que ser rejeitado.

 Vejamos:

 A instrução é uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas.

 Conforme refere o art. 286.º do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito.

 O âmbito desta discussão é, assim, limitado pelo objectivo que a lei estabelece para esta discussão.

 Na fase de instrução está em causa a comprovação da objectiva legalidade da acusação, pela verificação da reunião de material probatório demonstrativo da existência de crime e do seu autor e pela formulação do juízo de prognose de forte probabilidade de condenação do arguido suspeito.

 Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão e acusar, se a acusação é a decorrência lógica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.

 Assim, o arguido terá que, para provar que a decisão de acusar foi errada, pôr em causa o juízo indiciário. Não basta, nesta fase, contestar a acusação, ainda que de forma motivada, sendo necessário atacar os elementos factuais recolhidos no inquérito que fundaram a acusação, ou atacar a validade de tais meios de prova ou a análise que o Ministério Público ou o assistente fizeram de tais meios de prova.

 O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.

 Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/01/2014, relatora Maria do Carmo Silva Dias, in www.dgsi.pt., (embora em transcrição da decisão recorrida): “não valem como repositórios de razões de discordância aqueles requerimentos oferecidos pelo arguido cujo conteúdo consista ou se limite:

— A apresentar uma mera versão ou contraversão factual — ainda que espelho de uma intenção verosímil — totalmente alheada do inquérito, do que neste se passou e da decisão com que o mesmo findou (contestação motivada);

— A repetir ou a completar o inquérito;

— A negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação);

— A invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução (aliás, em flagrante violação do principio da lealdade sempre e quando: se garantiu ao arguido a sua audição e este nada disse nesse momento ou posteriormente (i); ou sempre que a existência ou possibilidade de constatação de tal factualidade ”‘nova” fosse notória a todas as luzes para qualquer decisor no momento do encerramento do inquérito, ou seja, que com ela pudesse e devesse contar (ii);

— A pretender antecipar a fase do julgamento isto é, a pretender realizar na instrução tudo o que é típico (próprio) do julgamento, transformando-a num simulacro de julgamento;

— A pretender substituir a ideia matriz da comprovação preordenada à submissão ou não a julgamento do arguido por toda uma outra ideia que se concretize em apreciar se o arguido deve ou não ser condenado pelo crime que lhe é imputado.

 O objecto da comprovação tem que ser concreta e especificadamente enunciado ou definido no/pelo requerimento do sujeito processual nela interessado, por força da conjugação do n.° 2 do artigo 287.° com o n.° 4 do artigo 288.° ambos do CPP.

 Assim, sem inquérito ou sem exposição de razões de discordância com a natureza e recortes definidos obstaculiza-se a concretização da actividade de comprovação judicial da decisão em acusar.”

 Ora, no caso em análise o arguido limitou-se a apresentar uma contraversão dos factos constantes da acusação e que resultam do inquérito, trazendo, agora, aos autos, factos novos quando no inquérito se remeteu ao silêncio não tendo apresentado qualquer versão dos mesmos ou qualquer elemento de prova.

 Tal equivale a mera contestação nada havendo a comprovar nos termos que referimos. O que pretende o arguido que se comprove? A prova indiciária constante dos autos deveria ter levado o Ministério Público a conclusão diversa da de acusação? As testemunhas inquiridas no inquérito não têm credibilidade? Porquê? Por que razão não deveria ter sido acusado?

 Um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução. Servirá as finalidades do julgamento: o arguido nega a verificação de ter incorrido com dolo, haverá que se fazer prova dos factos descritos na acusação em julgamento.

 Porém, as finalidades da instrução são bem diversas das do julgamento, e o requerimento apresentado não permite a comprovação judicial da decisão de acusar, contrariando as finalidades desta fase facultativa e de objecto (de)limitado.

 Recorre-se mais uma vez à decisão recorrido e objecto do referido acórdão da Relação do Porto de 29/01/2014, que a manteve, e com a qual se concorda: “Assim, se o RAI apresentado pelo arguido não tem aptidão para fundar e firmar as finalidades da instrução, deve ser rejeitado, pois que, o mesmo é dizer, com e em tais condições não pode haver lugar à instrução e esta é legalmente inadmissível (…) Assim se respeitará, de um lado, a natureza da fase de instrução, de outro, a celeridade processual, de outro ainda, a proibição da prática de actos inúteis e, por último, acentuar-se-á o princípio da auto responsabilização do sujeito processual arguido”.

 Assim, e pelos fundamentos expostos, não tendo sido postos em causa os factos pelos quais o Ministério Público deduziu acusação, entende-se que o requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido é legalmente inadmissível –art. 287.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Código de Processo Penal.

 Pelo exposto, declaro verificada a inadmissibilidade legal da instrução, rejeitando o requerimento com a referência 3347248 dos autos (art. 286.º, 287.º, n.º 1 e n.º 3 do Código de Processo Penal).

 

 B) Requerimento de abertura de instrução:

1. O Arguido não se conforma com o referido despacho, uma vez que entende que o elemento subjetivo do tipo de crime no qual se funda o despacho acusatório não se encontra verificado.

2. Efetivamente, o arguido adquiriu do seu pai, por motivo de sucessão, a espingarda de calibre 9 mm, melhor descrita no despacho acusatório.

3 - Após ter adquirido a arma e na expectativa de regularizar a sua detenção, o arguido dirigiu-se a PSP na rua ....

4. Na supra-referida esquadra foi lhe indicado que para que pudesse licitamente deter a arma, seria necessário que apresentasse (i) licença de uso e porte, e que (ii) aditasse as armas à relação de bens.

5 - Paralelamente, os agentes disponibilizaram a documentação que ora se junta no Doc 1, que, à semelhança dos seguem, se dá por integralmente produzido.

6 - A arma que o arguido adquiriu não consta da relação de bens.

7 - De modo a proceder em conformidade, seria necessário que a arma fosse averbada à relação de bens.

8 - Também de acordo com as informações recebidas, o arguido deveria obter a declaração dos outros herdeiros, seus irmãos, no sentido de prescindirem de parte da herança - in casu da arma, a favor do arguido.

9 - Contudo, e como já foi previamente reconhecido pelo Ministério público, o arguido mantém uma relação conflituosa com sua irmã CC.

10. O que decorre do fato de a mesma ter perturbações notórias a nível psicológico, encontrando-se atualmente internada compulsivamente.

11. Ora, o arguido requereu por diversas vezes a sua irmã à super referida declaração.

12. Contudo, a irmã do arguido recusou-se a colaborar.

13. Em vez disso, como se mostra pelo DOC 2, que se junta, a irmã do arguido, entendia que a arma em apreço lhe devia ser entregue, recusando-se terminantemente a colaborar com o arguido.

14. Desta forma, contrariamente ao que sustenta o despacho de acusação, que indica que o arguido (…) “quis e conseguiu tê-las (arma e munição) na sua posse” (…) , como se demonstra pela mesma correspondência, que se junta no doc 3, o arguido até manifestou junto da sua irmã, a pretensão de lhe entregar a arma e, bem assim, vontade de regularização desta questão.

15. Por conseguinte, o arguido evitou esforços no sentido de acordar com a sua irmã os termos para que procedessem a tradição da arma, nomeadamente no que respeita ao tempo e lugar da entrega., aliviando se da obrigação inerente à detenção da arma.

16. Não obstante, a irmã do arguido não só não prestou a declaração, como também não respondeu à insistência do arguido em acordar os detalhes relativos à entrega da arma, conforme Doc 4, que se junta.

17. O arguido pretendia somente regularizar a detenção da arma numa primeira instância, ora através do aditamento a relação de bens e partilha em seu favor, ou, perante a recusa de sua irmã, através da tradição da mesma.

18. Contudo, a irmã do arguido, recusando-se a prestar a declaração e não dando resposta às sucessivas tentativas do arguido de proceder à entrega da arma, criou um impasse no que toca a regularização da detenção.

19. Afinal, a inoportunidade do arguido, no que toca a regularização da detenção da arma prendeu-se, tanto com a oposição da sua irmã, tanto no que toca a prestação da declaração, como quanto ao recebimento da arma.

20. Por este motivo e tendo em consideração as diligências e esforços envidados pelo arguido no que toca à regularização da detenção da arma, não será sustentável a tese de que o arguido terá agido com dolo no que toca a respectiva detenção.

21. A este respeito, note-se que o Ministério Público fundamenta a existência de dolo do arguido, na prática deste fato, proferindo que o arguido terá agido (...) de forma livre, deliberada e consciente (...).

22, Contudo, veja-se que nos termos do art. 16º do Código Penal, estamos perante um erro sobre as circunstâncias do fato referentes ao tipo de crime que lhe é imputado.

23. A este respeito entenda-se que é um erro intelectual que se situa no plano do puro conhecimento. Traduz um defeito do conhecimento acerca dos elementos da hipótese constante do tipo. Reporta-se a uma situação em que o agente não pretende praticar um crime, mas sim um acto lícito, mas atua negligentemente. Faltando, o elemento intelectual não existe. Então o agente será punido para tipo de negligência.

24. No caso em apreço, o arguido, pese, embora tivesse conhecimento que teria de regularizar a detenção das armas, desde logo, através do aditamento a relação de bens e da aquisição da licença de uso de porte de armas, não terá representado que a mera detenção da arma, enquanto regularizava a sua detenção constituiria em si, o tipo de crime descrito.

25. Note-se que tal falta de conhecimento, ainda que sob a pena de ser considerada censurável, demonstra tão somente um descuido do agente, que não se poderá traduzir em nada mais do que a violação de um dever objetivo de cuidado.

26. Para além disso, em momento algum se poderá sustentar que a conduta do arguido terá sido contrária aos interesses que o ordenamento jurídico Visa, salvaguardar em concreto com a comissão relativa à extensão. Ilegal de armas.

27. Mais ainda, como foi supra referido, o arguido tão pouco fazia questão de de ter as armas se isso resolvesse o entrave nesta realização.

28. Ora, no caso em apreço, o facto de o arguido manifestou disponibilidade para perceber a tradição demonstrou que não tinha vontade absoluta de ter a arma.

29. Deste modo, dúvidas não restam que o elemento subjetivo do tipo não se encontra verificado pelo que não se tem, que o fato realizado pelo arguido tenha preenchido do tipo de crime que ora lhe entrar em sede de acusação.

Nestes termos, e nos mais do direito aplicável, deve o presente requerimento de abertura de instrução ser admitido, e subsequentemente, deverá:

Ser proferido, despacho de não pronúncia, quanto ao aqui arguido, requerente.

 III - Fundamentação de Direito

 Apreciando e decidindo

 a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

 b) A questão a apreciar nestes autos prende-se essencialmente em saber se é admissível a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal por o arguido se ter remetido durante ao inquérito ao silêncio e por o mesmo requerimento de abertura de instrução, na perspectiva do tribunal a quo, configurar uma mera negação/contestação da acusação.

 c) A nossa lei processual penal, descreve a instrução como uma fase judicial facultativa, através da qual se opera o controlo judicial da posição assumida pelo Ministério Público no final do inquérito, ou seja, a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, nos termos do artigo 286.º, n.º 1 e 2, do C.P.P.

 Nos termos do art.º 287º nºs 1 e 2 do C.P.P., a abertura da instrução pode ser requerida no prazo de vinte dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento, não estando o requerimento sujeito a formalidades especiais, mas devendo conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que se justifique, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do art.º 283º do mesmo diploma.

 d) No preâmbulo do C.P.P. de 1987 o legislador explicitou os as finalidades que pretendeu atingir com a instrução. Assim, pode ler-se em III, 7, b) desse preâmbulo, que (…) o Código optou decididamente por converter o inquérito, realizado sob a titularidade e a direcção do Ministério Público, na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação. Por seu turno, a instrução, de carácter contraditório e dotada de uma fase de debate oral - o que implicou o abandono da distinção entre instrução preparatória e contraditória -, apenas terá lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação. Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. (…)

 A instrução visa assim a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento; estabelecendo-se no C.P.P. um novo modelo de cariz acusatório, no qual o Ministério Público dirige exclusivamente o inquérito, pretende-se facultar a possibilidade de sujeitar a comprovação - por parte de um terceiro imparcial (o juiz de instrução) - a decisão de submeter determinada pessoa a um julgamento penal.

 Daqui resulta, como se considerou no Ac. do TRL de 11-5-2023 , processo n.º 6/22.9GDCTX-C.L1-9 “que não foram razões de fundo, ou de ordem conceitual ou resultante da aplicação de princípios que determinavam esta feição facultativa da fase da instrução; eram razões de ordem pragmática, de eficiência ou de eficácia, apostando-se assim na sua menor ocorrência por ter de ser requerida para ter lugar, e, simultaneamente, dizemos nós, dar cumprimento, pelo menos parcial ao comando constitucional de que toda a instrução é da competência de um juiz . E parece que essas razões de eficiência e eficácia se têm estendido ultimamente ao progressivo alargamento das causas de rejeição dos requerimentos de abertura desta fase processual, não obstante o teor das normas legais acima citadas.

 e) Esta faculdade atribuída ao arguido no sentido de tentar obstar a que seja submetido a julgamento, insere-se no direito de defesa estatuído no art 32º da CRP. E desde que a fase de instrução permita, em abstracto, obter aquela finalidade, não parece ser possível restringir esse direito

 Face ao teor das disposições legais citadas, será, assim, admissível o requerimento de abertura de instrução quando, por uma distinta leitura dos factos, o arguido pretenda a comprovação de que os factos muito embora verdadeiros ocorreram noutras circunstâncias, que proceda à simples negação de que eles tivessem sequer sucedido ou que os reconhece, mas acrescenta outros que, a indiciarem-se, convocariam uma causa de justificação ou de exculpação ( Pedro Soares de Albergaria, in “ Comentário Judiciário do Código de Processo Penal “, Tomo III, Almedina, pág. 1200).

 f) Não obstante, tem sido defendido por parte da nossa doutrina e jurisprudência que o conceito de inadmissibilidade legal referido no art 287º n.º 3 deve merecer uma interpretação mais alargada, no sentido de abarcar outras realidades.

 É a tese defendida pelo tribunal a quo.

 Ainda que para o efeito a decisão recorrida cite o Ac. do TRP de 29/01/2014, o estudo original de onde terá sido retirada a doutrina ali defendida, será o artigo disponível na Revista, julgar on-line (n.º 19, de 2013) da autoria de Pedro Daniel dos Anjos Frias, com o sugestivo título “Com o sol e a peneira”: um olhar destapado sobre o conceito de inadmissibilidade legal da instrução”.

 Como se explicita logo no sumário inicial, pretende defender-se nesse artigo que “sob o horizonte teleológico das finalidades legais da instrução, determinar se existem, ou não, exigências de conteúdo que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo sujeito processual arguido deve, à partida, observar e quais são elas, concluindo-se positivamente”. No fundo defende este autor que para além das razões formais que a lei expressamente concede que devem constituir motivo para a rejeição da instrução, se deve densificar materialmente o conceito de inadmissibilidade legal de acordo com as finalidades legais da instrução. E assim, recordando que (…) a instrução tem por fim apenas a comprovação judicial da decisão de acusar alarga o conceito de inadmissibilidade legal a situações que que o requerimento de instrução não pode servir para outra finalidade que não esta, a que a lei lhe determina. (…) E assim recusa que a instrução possa servir, para o que agora interessa, para “apresentar uma mera versão ou contraversão factual totalmente alheada do inquérito”, ou para “ negar os factos vertidos na acusação pública, como a sua autoria, participação, etc. (simples contestação) ou ainda para “invocar factualidade nova trazida para dentro do processo apenas por meio do requerimento para a instrução”.

 g) É com base nesta doutrina que o tribunal a quo defende que “o arguido limitou-se a apresentar uma contraversão dos factos constantes da acusação e que resultam do inquérito, trazendo, agora, aos autos, factos novos quando no inquérito se remeteu ao silêncio não tendo apresentado qualquer versão dos mesmos ou qualquer elemento de prova. Tal equivale a mera contestação nada havendo a comprovar nos termos que referimos”.

 h) Não nos parece que se possa rejeitar o requerimento de instrução por inadmissibilidade legal com aquele fundamento.

 Por um lado, porque o art 287º do C.P.P. aponta para uma interpretação restritiva do preceito em causa, ao estatuir que o requerimento só pode ser rejeitado com base nas situações ali tipificadas.

 Depois, porque, como vimos acima, o legislador ao introduzir a fase instrução com a configuração actual, não pretendeu restringir os fundamentos admissíveis para a sua realização, mas somente torna-la facultativa, de forma a evitar a proliferação inútil de actos processuais quando as partes interessadas (o arguido e o assistente) não vejam interesse na realização da referida fase processual.

 É certo que o arguido, ao remeter-se ao silêncio durante o inquérito, e pretendendo agora no decurso da instrução ser ouvido, numa óbvia estratégia processual, adopta uma conduta criticável do ponto de vista da lealdade e da boa-fé processual. E também que o primeiro momento de defesa que a lei processual penal faculta ao arguido não é a abertura da instrução, mas sim logo no inquérito, quando é interrogado nessa qualidade, momento em que poderia ter deduzido as razões de facto e de direito das quais resultaria o arquivamento do inquérito – cfr. artigo 272.º, n.º 1 do C.P.P.

 Mas o direito ao silêncio do arguido tem consagração expressa na nossa lei no art 61º n.º 1 al. d) do C.P.P.(o qual se insere igualmente nas garantias de defesa, mais especificamente na questão da possibilidade de auto-incriminação), e tal como é comumente aceite que o arguido se possa remeter ao silêncio no início do julgamento, assistindo mudo e quedo a toda a produção da prova para apenas decidir prestar declarações em momento posterior, também não vemos porque razão esse direito ao silêncio não possa ser exercido em condições semelhantes durante o inquérito e a instrução.

 O tribunal a quo defende que “um requerimento de abertura de instrução nos termos em que foi apresentado pelo arguido não serve as finalidades da instrução”, mas não concordamos com essa asserção; como vimos a finalidade visada pela instrução é suscitar a intervenção de um terceiro (o JIC) de modo a tentar evitar a submissão do arguido a julgamento.

 No caso, o arguido no seu requerimento de abertura de instrução descreve os factos e o direito dos quais resultará – na sua perspectiva – que não deve ser submetido a julgamento.

 Ligando-se como vimos – o direito a requerer a instrução umbilicalmente ao direito de defesa consagrado constitucionalmente no art 32º da CRP, no confronto entre este direito e a eventual violação daqueles princípios da boa-fé e da lealdade processual, não nos parece possível defender que o referido direito à defesa mediante a abertura de instrução deva ser de algum modo restringido, impedindo a utilização da referida estratégia processual.

 i) São várias a vozes que clamam pelo fim da fase de instrução, ou pelo menos a alteração do seu regime, de forma a obviar a abusos na utilização desta fase processual, evitando a morosidade dos processos – cfr. quanto a este tema, António Bernardo Colaço, A fase de instrução criminal em crise, Revista do Ministério Público 164 : Outubro/Dezembro 2020 ou Nuno Brandão, A Nova Face da Instrução Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2 e 3/2008, p. 227-255.

 O certo é que enquanto se mantiver o modelo actual, o propósito inicial do legislador no sentido de permitir de forma ampla o exercício do direito a requerer a abertura da instrução mantém-se. Como escreveu Souto Moura, (Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pág. 118,119), (…) o n.º 2 do art.º 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta diretamente da finalidade assinalada à instrução: obter o controle judicial da opção do M.º P.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com caráter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvair-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados”. Ou ainda, como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada. 3.ª edição revista. Coimbra Editora. 1993. p. 206), (…) “Mantendo-se em vigor a mesma redação constante do anterior n.º 2 do artigo 287.º do CPP (atual artigo 287.º, n.º 3 do CPP) e do artigo 32.º da CRP é constitucionalmente conferido o direito ao arguido da realização dos atos instrutórios de acordo com o princípio da máxima garantia da defesa daquele”.

 Em suma, o requerimento de abertura de instrução ainda que descreva factos não considerados no inquérito, não invocados nessa fase pelo arguido, e ainda que o arguido se tenha remetido ao silêncio no decurso do inquérito (pretendendo agora ser ouvido) não deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal – em sentido semelhante, cfr. Ac. do TRL de 11-05-2023, proc. n.º 6/22.9GDCTX-C.L1-9, Ac do TRP de 25-6-2014, proc. n.º 30/13.2PCPRT-A.P1, Ac. do TRP de 04/02/2015, proc. nº. 681/13.5PBMAI.P1, Ac. do TRP de 25/06/2014, proc. n.º 30/13.2PCPRT-A.P1, Ac do TRG de 20-2-2017, proc. n.º 7/06.4GABTC.G1, Ac. do TRL de 6-6-2032, processo n.º 2/20.2PBPDL-A.L1-5.

 IV - Dispositivo

 Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso interposto por AA, revogando-se o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal que rejeitou o requerimento de abertura de instrução com fundamento em inadmissibilidade legal, devendo ser proferido outro despacho que o admita.

 Sem custas.


Coimbra, 10 de Abril de 2024


João Novais

 Isabel Valongo

 Cristina Branco