Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
859/13.1TBSCD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMIDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
TÍTULO DE CRÉDITO
EXEQUIBILIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 09/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JUÍZO EXECUÇÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ALÍNEA B), DO N.º 1 DO ARTIGO 595.º, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Qualquer que seja a forma que revista a assunção de dívida, a intervenção do credor é sempre necessária. Num caso, ratificando o contrato estabelecido entre o antigo e o novo devedor; noutro, intervindo ele próprio como parte no contrato de transmissão.

2. Quando a execução tiver por base títulos de crédito, na veste de meros quirógrafos, se o executado se opuser à execução com a alegação de que não existe a relação subjacente alegada, fica impugnada a exequibilidade dos títulos, cabendo ao exequente o ónus de provar tal exequibilidade, ou seja, o ónus de provar os factos constitutivos da relação subjacente.

3. A emissão de um cheque para pagamento de uma dívida alheia não revela só por si, com toda a probabilidade, que o emitente do cheque quis assumir, perante o credor, a dívida do antigo devedor.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A..., residente na rua (...) , Santa Comba Dão, instaurou execução contra B..., residente na rua (...) , Santa Comba Dão, para pagamento da quantia de 10 584,27 euros.

A execução tem por base 12 cheques.

Além de apresentar os cheques como títulos, o exequente alegou que os pais do executado tinham uma dívida para com ele e que o executado para evitar que se executasse o património dos seus pais assumiu o pagamento da dívida e entregou-lhes 23 cheques pré-datados de 800 euros cada um, 13 dos quais foram pagos. Os restantes, que servem de base à execução, não foram apresentados a pagamento em virtude de a respectiva conta bancária sacada carecer de fundos para o respectivo pagamento.

O executado opôs-se à execução por meio de embargos, com a alegação, em síntese, de que nunca entregou quaisquer cheques aos exequentes (que desconhecia até ser citado que os cheques estavam na posse dos exequentes); que desconhecia quaisquer dívidas dos seus pais ao exequente; que nunca se comprometeu ou assumiu perante o exequente a pagar-lhe quaisquer valores da responsabilidade dos pais dele, executado. No final, pediu se julgassem procedentes os embargos e que, em consequência, se julgasse extinta a execução.

O exequente contestou, pedindo se julgasse improcedente a oposição, com a alegação, em síntese, de que a obrigação subjacente aos cheques era dos pais do executado, conforme documento junto com o requerimento executivo e que a dívida foi assumida pelo executado para evitar que o património dos pais fosse executado.

Em 4 de Agosto de 2014 faleceu o executado. Foi habilitada como sua sucessora, para com ela prosseguir a acção, C... .

Após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando improcedentes os embargos, determinou a continuação da acção executiva.

O embargante não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse e substituísse a sentença por decisão que o absolvesse.

Os fundamentos do recurso consistiram, em síntese:
1. Na impugnação da decisão de julgar provado que os cheques foram assinados pelos executados e entregues aos exequentes, pelo menos com o conhecimento do executado, para pagamento de uma dívida que os pais deste, D... e marido B... , tinham para com aqueles, assumindo o executado o pagamento desta dívida, para o que foram entregues aos exequentes 25 cheques pré-datados de 800,00 euros cada, dos quais treze foram pagos;
2. Na alegação de que a sentença violou o disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, e no artigo 1.º, n.º 2, da Lei Uniforme sobre o Cheque.

A exequente respondeu. Alegou, em síntese, que a decisão relativa à matéria de facto não merecia qualquer crítica; que a assunção de dívida podia operar-se tacitamente e que o apelante assumiu a dívida dos seus pais.


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Como se vê pela exposição efectuada, o recurso suscita questões de facto e de direito.

Considerando o princípio de que as questões suscitadas pelas partes devem ser resolvidas pela ordem imposta pela sua precedência lógica – princípio enunciado no n.º 1 do artigo 608.º do CPC a propósito da ordem do conhecimento, na sentença, das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, mas que é aplicável à ordem do conhecimento das restantes questões -, dando aplicação a este princípio, impõe-se conhecer, em primeiro lugar, da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

É o que se fará de seguida.

Está em causa a decisão de julgar provado que “os cheques – os cheques são os que serviram de base à execução, cujas cópias constam de fls. 137 a 139 - foram assinados pelo executado e entregues aos exequentes, pelo menos com o conhecimento do executado, para pagamento de uma dívida que os pais deste, D... e marido B... , tinham para com aqueles, assumindo o executado o pagamento desta dívida, para o que foram entregues aos exequentes 25 cheques pré-datados de 800,00 euros cada, dos quais treze foram pagos”.

O tribunal a quo julgou provada esta matéria com base, em resumo, nos cheques juntos ao processo de execução, no facto do executado não ter impugnado a assinatura dos cheques, e com base nos depoimentos prestados pelas testemunhas indicadas pelos exequentes, E... e F... .

O recorrente pede se julgue não provado que ele, recorrente, assumiu a dívida dos pais, e que conhecia o fim a que se destinavam os cheques.

Segundo ele, o que se pode retirar de toda a prova produzida – que transcreveu e apreciou - é que só em Agosto de 2013 é que teve conhecimento de que o seu pai entregou os cheques ao exequente e que os mesmos foram emitidos e entregues pelo executado aos pais dele, executado, para pagar as obras na casa dele (executado) e das irmãs em Vila Nova de Mil Fontes.

Reapreciada a prova produzida, testemunhal e documental, e tendo em conta as posições as partes expressas no requerimento executivo e nos articulados, é de reconhecer em parte razão ao recorrente. Vejamos.

O recorrente não põe em causa no presente recurso – como já não punha nos embargos opostos à execução - que foi ele quem assinou os cheques que servem de base à execução. Como não põe em causa que os cheques foram entregues pelo seu pai ao primitivo exequente.

Sustenta, no entanto, que assinou-os e entregou-os ao pai, não para que este os entregasse posteriormente ao exequente para lhe pagar a alegada dívida dos pais, mas para pagar o preço de obras realizadas em casa dele e das irmãs em Vila Nova de Mil Fontes. Invocou, para tanto, o depoimento da sua própria irmã, a testemunha G... , e o de H... .

Reapreciados estes dois depoimentos, importa dizer o seguinte.

É exacto que a testemunha G... , instada a dizer se tinha conhecimento se o irmão (executado, ora recorrente) alguma vez tinha entregado cheques dele ao pai, respondeu que eles estavam a fazer obras numa casa no Alentejo e ele, executado, deixou uns cheques para pagar umas obras.

Mesmo que se desse crédito ao que disse a testemunha – e há razões para opor reservas ao que disse, se tivermos em conta que, sendo irmã do executado, quererá que o conflito seja visto numa perspectiva que lhe seja favorável-, o que daí resultava era uma realidade imprecisa. Com efeito, do que ela disse não se fica a saber se os cheques a que aludiu são os que servem de base à execução, pois não fez a indicação de qualquer facto ou circunstâncias que permitisse relacionar tais cheques com os que servem de base à execução. Realidade que, por ser imprecisa, não se pode dizer que seja contraditória com o que a exequente alegou.

A verdade é que o depoimento de H... lançou fundadas dúvidas sobre a veracidade da alegação do recorrente, segundo a qual a finalidade dos cheques que assinou e entregou ao pai era a de pagar as obras numa casa dele e das irmãs em Vila Nova de Mil Fontes. É que a referida testemunha – que afirmou ter feito uma obra de caixilharia em Vila Nova de Mil Fontes - afirmou que a obra pertencia a uma sociedade do pai do executado e que, além disso, o pai do executado, sob a alegação de que a obra tinha defeitos, não lhe pagou voluntariamente o preço; que só o fez depois de accionado judicialmente.

 Não há, assim, indícios credíveis de que os cheques que servem de base à execução foram entregues pelo executado, ao seu pai, para pagar obras em casa dele (executado) em Vila Nova de Mil Fontes.

Os indícios que existem apontam no sentido de que os cheques foram entregues ao exequente pelo pai do executado para reembolsar parte de um empréstimo de dinheiro que aquele havia concedido a este.

Em primeiro lugar, estes indícios colhem-se no documento junto com o requerimento executivo - cuja cópia consta de fls. 140.

O documento contém duas assinaturas, uma imperceptível e outra atribuída D... . Uma vez que o recorrente não impugnou tais assinaturas, como sendo de seus pais, é de considerar que a autoria do documento lhes pertence. Em tal documento os pais do executado fizeram a seguinte declaração: “recebemos 17 500 € de A... a título de Empréstimo a quantia de dezassete mil e quinhentos euros. Cancela, 24 de Março de 2004”.

Apesar de o documento não fazer prova do facto compreendido na declaração (o recebimento, por empréstimo, da quantia de 17 500 euros), não é normal, à luz das regras da experiência comum, que os pais do executado tivessem declarado o que declararam sem efectivamente terem recebido por empréstimo a mencionada quantia. O que é normal é ser verdadeiro o facto compreendido na sua declaração.  

Em segundo lugar, a testemunha F... , prima do exequente e da mulher, referiu que os seus primos confidenciaram-lhe que tinham emprestado dinheiro aos pais do executado. Apesar da relação familiar entre a testemunha e o exequente e a mulher e de ser patente, nalguns passos do seu depoimento, a parcialidade do depoimento, este tribunal não tem razões para pôr em causa que o exequente e a mulher lhe confidenciaram que haviam emprestado dinheiro aos pais do executado.

Em segundo lugar, os indícios colhem-se no depoimento de G... (irmã do executado), quando na altura em que lhe foram exibidos os cheques, ter dito que a letra era do pai, ou seja, foi o pai do executado quem preencheu os cheques, nomeadamente com a indicação do nome do tomador, o exequente A... .

Há, assim, indícios credíveis de que os pais do executado pediram 17 500 euros emprestados ao exequente ( A... ) e que, para reembolsar parte desse empréstimo, foi o pai do executado – e não o executado como alegou o exequente no requerimento inicial – quem entregou (ao exequente) os cheques que servem de base à execução.

Do que não há indícios é de que o executado tenha estabelecido algum acordo com o pai ou com o exequente no sentido de proceder ao reembolso do empréstimo, substituindo o pai no cumprimento de tal obrigação ou vinculando-se também ele (além do pai) a restituir o dinheiro emprestado. Vejamos.

Segundo disse F... , os cheques foram emitidos pelo executado porque o pai dele já os não podia passar. Nesta versão – que é a de uma testemunha oferecida pelo exequente - a emissão dos cheques pelo executado não tinha relação com qualquer acordo de assunção do reembolso do empréstimo.

Por outro lado, a testemunha F... narrou um episódio – ocorrido no Verão de 2013 e passado entre ela, o exequente e a mulher e o executado - que aponta em sentido contrário à alegação de que o executado assumiu o reembolso do empréstimo. Vejamos.

A testemunha contou que, no Verão, estando com o exequente e a mulher, viram o executado. A exequente abordou-o e perguntou-lhe “Ó Vitinho, tu sabes que a tua mãe me deve dinheiro”, ao que o executado respondeu: “sei”. Mas sabes mesmo? Repetiu a exequente. “Sei”, repetiu o executado. Perante esta resposta – ainda segundo a testemunha - a exequente disse ao executado para ir para Vila Nova de Mil Fontes, onde a mãe estava a passar férias, e para lhe dizer que ela, exequente precisava de dinheiro. Como resposta, o executado disse que ia ter com a mãe e que depois lhe dizia alguma coisa.

Segundo a testemunha, na mesma ocasião, ela, testemunha, perguntou-lhe se ele sabia que os cheques eram dele, tendo o executado respondido que sabia.

Se o encontro com o executado se passou como a testemunha o contou, o que resulta dele é que o exequente e a mulher não tinham a certeza, na altura, que o executado tivesse conhecimento da dívida dos pais, nem a certeza que ele soubesse que os cheques entregues para reembolso da dívida tivessem sido assinados por ele. Se tivessem tal certeza, não faria sentido insistirem em perguntar-lhe se ele sabia que a mãe (o pai do executado já tinha falecido) lhes devia dinheiro; como não faria sentido que a testemunha tivesse perguntado ao executado se ele sabia que os “cheques” eram dele.

E resulta dele que o exequente e a mulher não se dirigiram ao executado como se existisse um acordo entre os três no sentido de este (executado) reembolsar tal empréstimo. Se existisse, não faria sentido que a exequente lhe tivesse dito para ir falar com a mãe para lhe dizer que eles (exequentes) precisavam do dinheiro. Se existisse algum acordo em tal sentido, o que faria sentido é que perguntassem ao executado quando é que ele pagava pois precisavam do dinheiro.

Por sua vez, o executado também não se comportou no episódio relatado pela testemunha como alguém comprometido com o pagamento do empréstimo, pois limitou-se a dizer, segundo o relato da testemunha, que ia falar com a mãe. A verdade é que – ainda segundo o que contou a testemunha – o executado não lhes deu qualquer resposta, como prometera, tendo regressado a França sem falar com o exequente e a mulher.

Quanto à questão de saber se o executado sabia que os cheques iriam ser entregues pelo pai para reembolsar o empréstimo, é de presumir que soubesse, pois o que é normal, à luz das regras da experiência comum, é que o pai do executado lhe desse conhecimento do destino que ia dar aos cheques que o executado estava a assinar.

Quanto ao número de cheques entregues não há indícios consistentes de que tenham sido 23. Poder-se-ia chegar ao número de cheques entregues através do número de cheques já pagos. Sucede que não há prova credível deste número, constituída, por exemplo, pelo extracto da conta sacada ou por informação bancária de onde resultasse o desconto dos cheques e o beneficiário desse desconto.

Quanto à alegação de que os cheques não foram entregues na instituição sacada porque a respectiva conta bancaria sacada não tinha fundos para o seu pagamento, o mais que se pode dizer com base no exame dos cheques é que os mesmos não foram apresentados a pagamento.

Não se ignora que a testemunha F... declarou que ela, o exequente e a mulher do exequente foram a Viseu, “ao banco dos cheques” e que aí lhe disseram “escusa de meter porque não tem saldo”.

Consideramos, no entanto, este depoimento insuficiente para demonstrar que os cheques que servem de base à execução não foram apresentados a pagamento no banco sacado porque a conta sacada não tinha fundos para o seu pagamento. A prova apropriada para demonstrar que uma conta bancária não tem fundos para pagar cheques é constituída por informação bancária.

Pelo exposto altera-se a decisão relativa à matéria de facto no seguinte sentido:
1. Em relação à alínea B) da decisão relativa aos factos provados, julga-se provado apenas que “os cheques foram assinados pelo executado e foram entregues ao primitivo exequente pelo pai do executado para reembolso de parte de um empréstimo de 17 500 euros que A... concedeu aos pais do executado”;
2. Em relação à alínea C) da decisão relativa aos factos provados, julga-se provado apenas que “os cheques [referimo-nos sempre aos cheques que servem de base à execução] não foram apresentados a pagamento na instituição sacada”;
3. Julga-se não provada a alegação feita no requerimento executivo de que os cheques que servem de base à execução foram entregues ao exequente pelo executado;
4. Julga-se não provada a alegação, também feita no requerimento executivo, de que os cheques que servem de base à execução não foram entregues na respectiva instituição bancária para pagamento porque a respectiva conta bancária de onde foram sacados carecia de fundos suficientes para o seu pagamento;
5. Julga-se não provada a alegação feita nos embargos de que os cheques que servem de base à execução foram entregues, ao pai do executado, assinados, mas não preenchidos, para que o seu pai pagasse as despesas de recuperação de uma casa que o executado tinha em Vila Nova de Mil Fontes.


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Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos:

1. Os exequentes são legítimos são legítimos portadores de 12 cheques pós-datados, no valor de 800,00 € (oitocentos euros) cada, todos sacados sobre a conta do Banco Santander Totta, com o n.º 12972840020, titulada pelo executado B... , concretamente, cheques n.º 7500000325, 7500000326, 7500000327, 7500000328, 7500000329, 7500000330, 7500000331, 7500000332, 7500000333, 7500000334, 7500000335, 7500000336.

2. Os cheques foram assinados pelo executado e foram entregues ao primitivo exequente pelo pai do executado para reembolso de parte de um empréstimo de 17 500 euros que A... concedeu ao pai do executado.
3. Os cheques não foram apresentados a pagamento na instituição sacada.
Julga-se não provado:
a) Que os cheques que servem de base à execução foram entregues ao exequente pelo executado;
b) Que os cheques que servem de base à execução não foram entregues na respectiva instituição bancária para pagamento porque a respectiva conta bancária de onde foram sacados carecia de fundos suficientes para o seu pagamento;
c) Que os cheques que servem de base à execução foram entregues, ao pai do executado, assinados, mas não preenchidos, para que o seu pai pagasse as despesas de recuperação de uma casa que o executado tinha em Vila Nova de Mil Fontes


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Descritos os factos passemos à apreciação das restantes questões.

Em sede de direito, a recorrente imputa à sentença a violação do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil e do artigo 1.º, n. 2, da LUC.

Em causa está a decisão de considerar que a emissão dos cheques pelo executado e a sua entrega aos exequentes para pagamento da referida dívida, conhecendo o executado o fim a que se destinavam tais cheques, traduzia uma declaração negocial tácita de sentido unívoco: o executado quis assumir perante os exequentes a dívida contraída pelos seus pais. Decisão que citou em seu abono o acórdão deste tribunal da Relação proferido em 16.04.2013 no processo 3969/09.6TBLRA-A.C1, publicado em www.dgsi.pt.

O recorrente contesta a decisão com a seguinte argumentação:
1. Que não se provou a existência de qualquer contrato entre os antigos devedores e o executado, nem se provou que os credores tenham ratificado qualquer contrato entre os devedores e o executado;
2. Que também não se provou que tenha existido qualquer contrato directo entre o executado e os exequentes;
3. Que a assunção de dívida não podia ser presunção ou por emissão de cheques já que um cheque assinado pelo executado e preenchido pelo seu pai não vale como declaração negocial para efeitos do artigo 595.º do Código Civil;
4. Que um contrato só existe quando há uma manifestação de vontade clara de uma parte à outra, neste caso, de se obrigar a pagar uma dívida de um terceiro, declaração que a parte receptora tem de receber e aceitar;
5. Que no caso em apreço verificou-se apenas a entrega aos exequentes pelo falecido pai do executado de cheques assinados pelo executado, mas preenchidos pelo seu pai;
6. Que os cheques foram entregues pelo executado ao pai para pagar obras da casa de Vila Nova de Mil Fontes e não a dívida dos exequentes;
7. Que o cheque é um mero meio de pagamento, é um mandato puro e simples de pagar uma determinada quantia dada a uma instituição bancária pelo respectivo sacador e nada mais;
8. Que tal mandato é dirigido ao banco sacado e não ao seu beneficiário, que neste caso eram os exequentes, que por isso não podiam aceitar tacitamente tal ordem de pagamento por não lhes ter sido dirigida, apenas podiam exercer o direito de saque, o que nunca fizeram.

Embora por razões não totalmente coincidentes com as do recorrente, é de julgar procedente o recurso.

A questão essencial de direito suscitada pelo recurso é de saber se a decisão recorrida, ao julgar que o executado assumiu tacitamente perante o exequente a dívida que os pais dele haviam contraído perante este (dívida proveniente de mútuo) violou o artigo 595.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil e o artigo 1.º, n.º 2 da Lei Uniforme sobre o Cheque.  

A assunção de dívida está prevista no artigo 595º, do Código Civil nos seguintes termos:

A transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se:

a) Por contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor;

b) Por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.

Nos dizeres de Pires de Lima e A. Varela, em Código Civil Anotado, Volume I, 2ª edição revista e actualizada, páginas 534, “… a assunção de dívida é a operação pela qual um terceiro (assuntor) se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem. A assunção opera uma mudança na pessoa do devedor, mas sem que haja alteração do conteúdo nem da identidade da obrigação.

Qualquer que seja a forma que revista esta operação, a intervenção do credor é sempre necessária. Num caso, ratificando o contrato estabelecido entre o antigo e o novo devedor; noutro, intervindo ele próprio como parte no contrato de transmissão.

Segundo o n.º 2 do artigo acima citado, a transmissão só exonera o antigo devedor havendo declaração expressa do credor, de contrário, o antigo devedor responde solidariamente com o novo obrigado. Isto é, a assunção da dívida pode libertar o antigo devedor da realização da prestação devida, caso em que se está perante uma assunção liberatória ou privativa da dívida; se o antigo devedor continuar vinculado à prestação, fala-se de uma assunção cumulativa ou co-assunção da dívida (cfr. neste sentido Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª Edição revista e actualizada, Almedina, 828).

Para o caso interessa-nos a hipótese prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 595.º, do Código Civil, pois foi ela que a sentença entendeu verificar-se no caso, como resulta do facto de ter afirmado que o executado quis assumir perante os exequentes a dívida contraída pelos pais e do facto de ter citado, em abono do que decidiu, o acórdão proferido pelo tribunal de Relação de Coimbra que se pronunciou sobre um caso de assunção de dívida prevista em tal preceito.

Assim, segundo a sentença, a dívida dos pais do executado – recorde-se, dívida proveniente de um empréstimo de dinheiro do exequente aos pais do executado – transmitiu-se para o executado por contrato entre ele e o exequente.

Importa dizer que a questão da assunção da dívida era relevante para a decisão da causa, atendendo aos títulos que serviam de base à execução, ao disposto na alínea c), do n.º 1 do artigo 703.º do CPC e ao que o exequente alegara no requerimento inicial.

Os títulos que serviam de base à execução eram cheques. Mas eram cheques que não conferiam ao portador (exequente) o direito de reclamar contra o sacador (executado) a importância inscrita neles, tal como prevê o artigo 45.º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUC). E não conferia tal direito porque, nos termos do artigo 40.º da mesma lei, o portador pode exercer os seus direitos de acção contra, entre outros, o sacador, se o cheque, apresentado a pagamento em tempo útil [oito dias a contar do dia indicado no cheque como data de emissão – parágrafos 1.º e 4.º do artigo 29.º, da LUCH) não for pago e se a recusa de pagamento for verificada por alguma das formas previstas nos n.ºs 1, 2 e 3 do citado preceito, quando, no caso, os cheques não foram sequer apresentados a pagamento.

Uma vez que não conferiam o direito de acção cambiária contra o executado, os cheques podiam, no entanto, servir de base à execução desde que os factos constitutivos da relação subjacente constassem do próprio documento ou fosse, alegados no requerimento executivo [alínea c) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC].

Por relação subjacente deve entender-se, socorrendo-nos das palavras de Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Volume III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra 1975, páginas 7 e 8, como a relação jurídica anterior, de forma que sem esta relação não se explica a criação do título. Socorrendo-nos de um exemplo dado pelo citado autor, “quem emite uma letra de câmbio e a transmite a outrem, dando-lhe o direito de exigir determinada quantia em dinheiro, fá-lo por lhe ser devedor da mesma quantia em virtude dum contrato de mútuo, de compra e venda, etc. (relação fundamental).

Como os cheques não contêm a indicação da relação subjacente, a sua exequibilidade, na veste de meros quirógrafos [documentos particulares assinados pelo devedor], estava dependente da alegação, pelo exequente, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente à emissão e entrega dos cheques. Isto é, estava subordinada à condição de alegação de factos de onde resultasse que o executado estava obrigado a pagar ao exequente a quantia que fora inscrita no título. Sem tal alegação, tais títulos não podiam servir de base à execução.

Nesta sede, o exequente alegou que os cheques foram-lhe entregues para o pagamento de uma dívida que os pais do executado tinham para com ele, exequente; que o executado assumiu o pagamento da dívida e entregou-lhe vários cheques, entre os quais os que serviam de base à execução.

Sobre esta alegação não pode deixar de observar-se que foi feita em termos meramente conclusivos, ao arrepio do que prescreve a alínea c), do n.º 1 do artigo 703.º do CPC, que exige do exequente a alegação de factos constitutivos da relação subjacente dos títulos de crédito. Estando em causa uma relação subjacente complexa, que integrava a dívida dos pais do executado e a assunção da dívida pelo executado, o cumprimento da norma acima referida impugna a especificação da fonte da dívida bem como da forma através da qual se deu a alegada transmissão da dívida para o executado, especificações que não constam da alegação do exequente.

Uma vez que o executado se opôs à execução com a alegação de que não existia a relação fundamental alegada (ainda que em termos conclusivos, repete-se), ficou impugnada a exequibilidade do título [fundamento de oposição previsto na 2.ª parte da alínea a), do artigo 729.º do CPC, aplicável à presente execução por remissão do artigo 731.º].

Passou a caber ao exequente o ónus de provar a exequibilidade dos títulos, ou seja, o ónus de provar os factos constitutivos da relação subjacente aos cheques, ónus que implicava a prova dos factos constitutivos da dívida dos pais do executado e a prova dos factos constitutivos da transmissão dessa dívida para o executado.

No presente recurso está em causa apenas o ónus da prova dos factos constitutivos da transmissão da dívida para o executado. Concretamente está em causa saber se tem amparo nos factos e na lei a decisão de considerar que “a emissão dos cheques e a sua entrega aos exequentes para pagamento da referida dívida, conhecendo o executado o fim a que se destinavam traduz uma declaração tácita de sentido inequívoco: o executado quis assumir perante os exequentes a dívida contraída pelos pais”.

A resposta à questão suscitada remete-nos para a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 217.º do Código Civil, a declaração negocial é tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam.

Socorrendo-nos da lição de Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Gera do Direito Civil, 4.ª Edição, Coimbra Editora, página 422, a declaração “… é tácita quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um auto-regulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral (…).

No centro da declaração tácita estão os chamados factos concludentes. Como observam os autores acabados de citar (página 423), “a declaração tácita pode ter como facto concludente uma declaração expressa, exteriorizando directamente outro conteúdo negocial”.   

Como é bom de ver, só relevam, para efeitos de declaração tácita, os factos que sejam da autoria daquele a quem se imputa a declaração.

Tendo presente esta consideração, é de afirmar que não releva, no caso, como facto concludente, o acto de entrega dos cheques ao exequente, pois sabe-se que não foi o executado quem os entregou; foi o pai do executado quem procedeu à entrega. A relação do executado com os cheques fica-se pela assinatura deles (não os preencheu), pela entrega deles ao seu pai e pelo conhecimento de que os cheques iriam ser entregues ao exequente para reembolso parcial do empréstimo.

Assim, é em relação a estes factos que se deve colocar a questão de saber se eles revelam, com toda a probabilidade, a vontade assumir, perante o exequente, a dívida dos pais dele (executado).

Questão cuja resposta passa pela interpretação dos factos de acordo com as regras de interpretação constantes do artigo 236.º do Código Civil.

 E nesta interpretação, o “revelar com toda a probabilidade” a que se refere o artigo 217.º não se afere por critérios de certeza absoluta.

Socorrendo-nos da lição de Manuel de Andrade [Teoria Geral da Relação Jurídica, Volume II, 4.ª Reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra – 1974, página 132], “… a chamada univocidade dos facta concludentia, na declaração tácita” aferia-se “… por um critério prático, empírico e não por um critério lógico. Existirá ela sempre que, conforme os usos da vida, haja quanto aos factos de que se trata toda a probabilidade de terem sido praticados com dada significação negocial (aquele grau de probabilidade que basta na prática para as pessoas sensatas tomarem as suas decisões) – ainda que porventura não esteja absolutamente precludida a possibilidade de outra significação”.    

No mesmo sentido vai a lição de Paulo Mota Pinto [Declaração Tácita e Comportamento Concludente no Negócio Jurídico, Almedina, página 773 e 774] ao escrever: “… a ilação não tem normalmente de ser necessária e absolutamente inequívoca – não só o direito se tem sempre de contentar, logo na verificação dos factos, com grandezas relativas, como o importante é um elevado grau de probabilidade de uma dada declaração, obtido a partir de uma inferência segundo uma lógica de interacção de acordo com as regras ou usos da vida”.

Tendo presentes estas considerações, este tribunal entende que há factos que lançam sérias dúvidas sobre o ser muito provável que a assinatura dos cheques, com o conhecimento do destino que lhes iria ser dado, tenha significado que o executado quis assumir a dívida do pai perante o exequente e entende ainda que, vista à luz dos usos da vida, também não há uma grande probabilidade de ter sido esse o segundo significado da assinatura dos cheques. Diz-se segundo significado porque a assinatura dos cheques tem um primeiro sentido, que resulta do artigo 1.º, n.º 2, da Lei Uniforme sobre Cheques, trata-se de uma ordem de pagamento ao banco sacado.

Quanto aos factos que lançam dúvidas, destacamos, em primeiro lugar, o que foi referido pelo próprio exequente no requerimento inicial: os cheques foram entregues para evitar que o património dos pais do executado fosse atingido.

Em segundo lugar, destacamos o facto (mencionado pela testemunha F... e que este tribunal assinalou na fundamentação da decisão de facto) de os cheques terem sido assinados pelo executado porque o seu pai estava inibido de os emitir.

Em terceiro lugar, mencionamos o facto de ter sido o pai do executado quem preencheu os cheques com a indicação dos montantes a pagar e do beneficiário foi o pai do executado, o que aponta no sentido de que quem realmente movimentava a conta era este último e não o executado.    

À luz dos usos da vida, a emissão de um cheque para pagamento de uma dívida alheia pode ser efectuada com o propósito de praticar uma liberalidade (parte final do n.º 1 do artigo 940.º do Código Civil) ou para realizar outros interesses do emitente do cheque. O n.º 1 do artigo 767.º do Código Civil permite que a prestação possa ser feita por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação, sem que daí retire qualquer ilação quanto à assunção da dívida.

Em resumo: os factos em causa não revelam com toda a probabilidade que o executado quis assumir perante o exequente a dívida dos pais dele.

Ao decidir em sentido contrário, a decisão recorrida violou a 2.ª parte do n.º 1 do artigo 217.º e a alínea b), do n.º 1 do artigo 595.º, ambos do Código Civil       

A verdade é que, mesmo que revelassem tal vontade, como decidiu a sentença sob recurso, a declaração que deles se deduzia era insuficiente para transmitir a dívida nos termos previstos na alínea b), do n.º 1 do artigo 595.º do Código Civil. É que, nos termos desta norma, a dívida transmite-se por contrato entre o novo devedor e o credor, o que exige o concurso de duas declarações de vontade, uma do novo devedor, outra do credor, ao passo que os factos destacados pela sentença permitem deduzir apenas uma declaração, no caso, a do executado. O mais que os factos podiam revelar era uma “proposta de assunção da dívida”.

Observe-se, por fim, que se a assinatura dos cheques configurasse uma declaração de assunção de dívida por parte do executado, então esta assunção de divida não seria a relação subjacente ou fundamental à emissão dos cheques.

É que a relação subjacente aos títulos de crédito é, por natureza, uma relação jurídica prévia, anterior à criação de tais títulos que, nas palavras de Ferrer Correia, no local supra citado “tem normalmente o mesmo conteúdo económico de um dos direitos que decorrem dessa relação jurídica. O título de crédito em confronto com a relação fundamental apresenta-se como uma feição unilateral: refere-se exclusivamente aos direitos de uma só das partes”.

Se configurássemos a assinatura dos cheques como uma declaração de assunção de dívida, então a conclusão a retirar seria a de que assunção era o resultado, a consequência, e não o pressuposto da assinatura. Para que a assunção de dívida figurasse como relação subjacente ou fundamental seria necessária que ela estivesse constituída antes da assinatura dos cheques e que fosse ela que explicasse a assinatura. No caso, dando à assinatura dos cheques a configuração que lhe foi dada pela decisão recorrida, não era a assunção de dívida que explicava a emissão dos cheques; os cheques é que explicavam (revelavam) a assunção da dívida.

Pelo exposto, não tendo o exequente provado que, subjacente à emissão dos cheques, esteve a assunção, por parte do executado, da dívida dos seus pais, proveniente do empréstimo de dinheiro feito pelo exequente, não está demonstrado que o exequente é credor do executado pela quantia reclamada na execução. Falta, assim, um requisito de exequibilidade dos cheques, enquanto meros quirógrafos.

A consequência da falta deste requisito de exequibilidade é a procedência dos embargos, por aplicação do artigo 414.º do CPC, na parte em que dispõe que a dúvida sobre a realidade de um facto (no caso, a dúvida sobre a assunção da divida) resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita (ao exequente).  


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença e substitui-se a mesma por decisão a julgar procedentes os embargos e a julgar extinta a execução (artigo 732.º, n.º 4, do CPC).

Condena-se a recorrida nas custas do recurso (artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC).