Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
51/14.8TBAGN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO DE RISCO
FALSAS DECLARAÇÕES
QUESTIONÁRIO
ANULABILIDADE
NEXO CAUSAL
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - ARGANIL - INST. LOCAL - SEC. COMP. GEN. - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.429 C COMERCIAL, 762 CC
Sumário: 1. As falsas declarações prestadas no âmbito de um contrato de seguro, por parte do segurado, determinam, nos termos do art.º 429º do Código Comercial, a sua anulabilidade, desde que a inexactidão influa na existência e condições do contrato, de sorte que o segurador ou não contrataria, ou teria contratado em diversas condições.

2. O questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado através do qual lhe indica as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco.

3. Ainda que não provado que o segurado preencheu pelo seu próprio punho o dito questionário, a assinatura (do documento) tem de significar e fazer presumir o conhecimento e a aprovação do seu conteúdo e a assunção da paternidade do documento pelo assinante/subscritor.

4. É irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: o que pesa na apreciação da Seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas.

Decisão Texto Integral:           






 
            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. G (…) instaurou a presente acção com processo comum contra O (…) Seguros de Vida, S. A., alegando e pedindo o reconhecimento de que o contrato de Seguro de Vida Crédito Habitação, titulado pela apólice n.º (...) celebrado pela A. e seu falecido marido com o M (...) , em nome e representação da O (...) Vida com proposta de adesão de 15.02.2008 e assinatura do falecido em 24.3.2008, se mantinha válido e eficaz à data do falecimento; a doença maligna que veio a revelar-se no segurado marido da A., à data da assinatura e entrada em vigor do contrato de seguro, não tinha um diagnóstico inequívoco ou com suficiente grau de evidência revelado em data anterior à celebração daquele; a A., o falecido marido e demais família, desconheciam em absoluto qualquer doença do foro oncológico do falecido, só dela tomando conhecimento efectivo no mês de Abril de 2008; a Ré seguradora é responsável pelo pagamento não só do valor do capital em dívida ao Banco credor, na data do falecimento, mas também por todos os encargos que resultarem da falta de pagamento tempestivo desse valor; e, por força do atrás reconhecido, deve condenar-se a Ré a pagar à A. a quantia relativa ao capital em dívida, à data do falecimento do segurado falecido F (…) (04.6.2008), no montante de € 33 867.22, bem como todos os juros moratórios, juros relativos à cláusula penal e demais encargos reclamados na execução pendente no Tribunal de Arganil, em que é exequente Banco C (...) , S. A., no valor estimativo de € 45 000.

            A Ré contestou, aceitando parcialmente alguns factos constantes da petição inicial (p. i.), defendendo-se por excepção (aduzindo, nomeadamente, que a A. e o falecido marido responderam negativamente a todas as perguntas do questionário médico, e, considerada a prova documental junta aos autos, conclui-se que o proponente, aquando da proposta de adesão, não respondeu com verdade ao questionário médico e não comunicou factos que já eram do seu conhecimento e seriam determinantes para a Ré analisar o risco e decidir sobre o prémio de seguro ou sobre a aceitação ou não da adesão, donde decorre a nulidade da adesão ao contrato de seguro, exonerando a Ré da obrigação de pagamento de qualquer indemnização) e por impugnação, vindo a concluir pela improcedência da acção.

            A A. requereu a intervenção principal de Banco C (...) , S. A., como sua associada, que foi admitida, tendo a interveniente junto aos autos procuração forense.

            Foi proferido despacho saneador e delimitado o objecto do litígio.

                Realizada a audiência de julgamento, o tribunal, por sentença de 09.12.2015, julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.

            Inconformada, a A. interpôs a presente apelação, formulando as seguintes conclusões:

            (…)

            A Ré respondeu à alegação concluindo pela improcedência do recurso.     Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) erro na apreciação da prova/modificação da decisão de facto; b) decisão de mérito.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            1. A A. era casada, no regime de comunhão de adquiridos, com F (…) que veio a falecer em 04.6.2008.

            2. Ambos os cônjuges haviam contraído junto do Banco X (...) , que faz parte integrante do M (...) , um empréstimo para habitação, garantido por hipoteca e fiança, no dia 09.7.1993.

            3. O financiamento solicitado e concedido foi de quinze milhões de escudos, de que a A. e marido se confessaram devedores ao referido Banco.

            4. O empréstimo, de acordo com o documento complementar, foi concedido pelo prazo de 25 anos.

            5. Os mutuários obrigaram-se, nos termos das cláusulas 9ª e 10ª do documento junto com a p. i. sob o n.º 2, a efectuar e a manter um seguro a favor do Banco mutuante, de renda certa e amortizações, que garantisse em caso de morte ou invalidez permanente, uma renda igual às prestações em dívida, e por um período igual ao da respectiva amortização.

            6. No caso do não cumprimento da obrigação de seguro, ou na falta de pagamento do respectivo prémio, e ainda nos termos do citado documento, o Banco poderia utilizar qualquer das faculdades previstas no art.º 702º do CC.

            7. Em 14.02.1997, foi feito um aditamento à primeira escritura de Mútuo, hipoteca e Fiança, através da qual se fixou o total em dívida em 8 500 000$00, tendo sido ampliado o prazo da vigência do empréstimo de 25 para 30 anos, e reduzida a taxa de juro, mantendo-se em vigor as demais condições estipuladas.

            8. Em 15.02.2008, a A. preencheu e subscreveu uma proposta de adesão em seu nome e do seu marido, que nessa data se encontrava em Angola a cumprir um contrato de trabalho, com opção “Vida Risco”, com cobertura de morte e invalidez total, sendo o capital a segurar de € 34 100, pelo prazo de 19 anos.

            9. A proposta foi assinada em 15.02.2008, estabelecendo-se, como data de início 24.3.2008, porquanto o Segundo Proponente estava previsto vir a Portugal, para renovar o “visto” para poder continuar a trabalhar em Angola, na segunda quinzena de Março.

            10. Foi feita a conferência nesse mesmo dia 15.02.2008 pelos representantes do Banco C (...) , tomador do seguro, na proposta de Adesão, que está assinada pela A. e representante do Banco C (...) .

            11. A declaração, data e assinatura da aceitação da proposta foi assinada pela 2ª pessoa segura - falecido F (…) - em 24.3.2008.

            12. À data da subscrição da proposta de adesão, a A. e o marido desconheciam qualquer doença da parte deste.

            13. O falecido veio a Portugal no início da segunda semana do mês de Março para renovar o “visto” no seu passaporte, para poder continuar a trabalhar em Angola, condição necessária para legalização completa da sua permanência naquele país.

            14. Uns dias após ter chegado a Portugal, concretamente em 11.3.2008, sentiu-se mal e acabou por ser internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

            15. No relatório clínico de 31.3.2008, de que a A. e família só vieram a ter conhecimento mais tarde, constava no diagnóstico uma Neoplasia Sólida pouco diferenciada, com caracterização imunohistoquímica inconclusiva, constando desse relatório um comentário referindo que sob o ponto de vista morfológico, o diagnóstico seria de carcinoma pouco diferenciado, no entanto não se obteve positividade para vários CKS incluindo a panqueretina MVF 116, tudo como melhor consta dos documentos juntos com a p. i. sob os n.ºs 6 e 7[1].

            16. A A. e família só foram informadas dos resultados de tais exames já na parte final do mês de Abril de 2008, mormente, só tiveram conhecimento do estudo complementar, que revelou uma neoplasia maligna sólida pouco diferenciada, cuja localização primária se desconhecia, em 24.4.2008.

            17. Apenas nessa data o diagnóstico clínico passou a ser muito reservado e do conhecimento da A. e restante família, não tendo sido dado conhecimento ao próprio doente.

            18. Com data de 18.6.2008, a A. enviou uma carta em que anexava certidão de óbito daquele, ao M(...) Casa do Sal, em Coimbra, com vista ao accionamento do seguro de vida referente ao contrato de seguro celebrado e com a apólice 71166577, referente ao empréstimo n.º 191413023, como melhor consta do documento junto com a p. i. sob o n.º 8.

            19. A Ré - do grupo segurador do M(...) Fortis, corrigindo o n.º da apólice que era o n.º (...) - cert. n.º 71166577, respondeu à A., acusando a recepção do documento e solicitando o relatório do médico assistente onde conste a data do conhecimento do diagnóstico do carcinoma do pâncreas, conforme melhor consta do documento junto com a p. i. sob o n.º 9.

            20. Em 23.4.2009 a A. solicitou o encerramento do processo com o pagamento da quantia em dívida, ao M(...) , à data do óbito.

            21. O representante da A. solicitou em 14.7.2009, à Ré, informação sobre o estado do processo.

            22. A 17.02.2010, a Ré enviou à A. a comunicação escrita junta com a p. i. como documento n.º 13.

            23. Em 09.3.2010, a A. respondeu à Ré através da comunicação escrita junta com a p. i. como documento n.º 14.

            24. Em 15.9.2010, o representante da A. enviou à Ré a comunicação escrita junta com a p. i. como documento n.º 15.

            25. Em 26.10.2010, a Ré respondeu ao representante da A. através da comunicação escrita junta com a p. i. como documento n.º 16.

            26. O mandatário da A. respondeu à missiva de 26.10.2010, através da comunicação escrita datada de 26.01.2011, junta com a p. i. como documento n.º 17.

            27. A A. não pagou qualquer prestação a partir do mês seguinte à morte do seu marido.

            28. Em consequência da falta de pagamento das prestações, a interveniente Banco C (...) , S. A., fez distribuir contra a A. a execução n.º 8/2012.3 TBAGN.

            29. A Ré recebeu a proposta de adesão referida em II. 1. 8 a 11, nos seus serviços a 25.3.2008, através do mediador do contrato.

            30. Tendo por base a referida proposta de adesão e as declarações aí prestadas pelos proponentes a Ré aceitou a adesão dos proponentes/pessoas seguras ao contrato de seguro Vida/Grupo em 25.3.2008.

            31. E remeteu o certificado individual de seguro n.º 71166577 para a morada da A. e do falecido marido, morada indicada na proposta de adesão.

            32. Trata-se de um acordo denominado de seguro Vida/Grupo associado ao crédito habitação (empréstimo n.º 191413023), em que é tomador do seguro e beneficiário irrevogável a interveniente Banco C (...) , S. A., titulado pela apólice grupo n.º (...) e pelo dito certificado individual de seguro.

            33. Com data de início em 25.3.2008, e um capital seguro de € 34 100, com as coberturas de morte ou invalidez total ou permanente.

            34. No que se refere à proposta de adesão, os proponentes, a A. e o falecido marido, responderam negativamente a todas as perguntas do questionário médico como se pode constatar da proposta de adesão.

            35. Entre outras respostas (que melhor consta do teor da proposta de adesão) o falecido marido da A. respondeu ao questionário médico que:

            - Não o tinham aconselhado a consultar médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica;

            - Não estava de baixa por doença ou acidente;

            - Não teve doença que o tenha obrigado a interromper a sua actividade laboral durante mais de 15 dias consecutivos nos últimos 5 anos;

             - Não teve alguma alteração física ou funcional;

            - Não teve algum acidente grave;

            - Não foi submetido a alguma intervenção cirúrgica.

            36. Na proposta de adesão em causa e para efeitos de adesão/celebração do contrato de seguro vida ambos os proponentes/pessoas seguras subscreveram as seguintes declarações:

            “São exactas e completas as declarações prestadas e que tomei conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato, tendo sido entregues as respectivas Condições Gerais e Especiais, para delas tomar integral conhecimento e prestados todos os esclarecimentos sobre as mesmas condições, nomeadamente sobre as garantias e exclusões com as quais estou de acordo.”

            “O Questionário Médico faz parte integrante do Seguro de Vida. As declarações inexactas ou reticentes ou a omissão de factos, tornam o pedido de adesão nulo e sem qualquer efeito, e libertam a O (...) S. A. do pagamento de qualquer indemnização.”

            37. A Ré, tendo por base o teor da proposta de adesão ao seguro de grupo e as informações/declarações aí vertidas, nomeadamente as respostas dos proponentes ao questionário médico, analisou o risco e aceitou a proposta de adesão, sem necessidade de exames médicos, tendo em conta os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.

            38. A aceitação da proposta de adesão por parte da Ré seguradora teve como pressuposto que a A. e o falecido marido responderam com verdade ao questionário médico, prestaram declarações verdadeiras e que tais declarações não padeciam de incorrecções ou omissões.

            39. Todo o processo prévio de preparação da proposta de adesão, nomeadamente análise e explicação das condições, duração do contrato, simulação do prémio de seguro, modo de pagamento do prémio de seguro, periodicidade do pagamento, preenchimento e subscrição da proposta de adesão decorreu junto do mediador e tomador do seguro, o Banco C (...) S. A. (sucursal Banco C (...) de Coimbra/Casa do Sal).

            40. Processo esse que culminou com a assinatura da proposta de adesão pelos proponentes em 24.3.2008, após o regresso a Portugal do falecido marido da A., data em que as assinaturas foram conferidas e validadas, para posterior envio da proposta de adesão para a Ré, o que ocorreu em 25.3.2008.

            41. A Ré só teve conhecimento da proposta de adesão em causa em 25.3.2008, data em que recebeu a proposta de adesão nos seus serviços (proposta datada de 24.3.2008), tendo sido em 25.3.2008, que a proposta foi aceite e o contrato iniciou os seus efeitos.

            42. O tempo aproximado entre o início da doença (carcinoma pancreático metastizado) e a morte (04.6.2008) foi de mais ou menos três meses, conforme melhor consta do documento junto com a contestação sob o n.º 4, em especial fls. 114 dos autos.

            43. O proponente F (…) aquando da subscrição da proposta de adesão, em 24.3.2008, omitiu deliberadamente no questionário médico a informação de que em 11.3.2008, sentiu-se mal e acabou por ser internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde realizou diversos exames clínicos.

            44. O conhecimento de tal facto relacionado com a saúde do falecido F (...) seria determinante para a Ré analisar o risco e decidir sobre o prémio de seguro ou sobre a aceitação ou não da adesão.

            45. A Ré remeteu à A., em 14.6.2010, a carta registada com aviso de recepção, dando conta da decisão de proceder à anulação do contrato de seguro, tudo conforme melhor consta do documento junto com a contestação sob o n.º 13, fls. 139 a 141 dos autos.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A A./recorrente insurge-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando parte da prova pessoal e documental produzida nos autos e em audiência de julgamento.

            Porém, contrariamente ao que a lei claramente prevê, não diz quais as concretas respostas a dar aos diversos pontos de facto que considera “incorrectamente julgados” e que “deveriam merecer decisão diversa daquela que ora se recorre” - estando em causa, aparentemente, a factualidade provada dita em II. 1. 8 a 12, 22 a 26, 34 a 38 e 43, supra, não sabemos qual a decisão que, no entender da A., deve ser proferida (sobre a mesma), ou, então, quando muito, pugna-se, apenas, pelo acrescentamento de alguns excertos das missivas trocadas entre as partes, o que, como se verá, se atendível, pouco ou nada releva no contexto da demais matéria dada como provada (essencial para o desfecho da lide).

            Na verdade, a A./recorrente pugna por diferentes “respostas”, diz que existe “contradição” entre algumas respostas e que se deverá atender ao conteúdo de determinados documentos juntos aos autos (conjugados, ou não, com dois dos testemunhos produzidos em audiência de julgamento) mas não foi capaz de indicar as concretas respostas a dar.

            Pesem embora as dificuldades derivadas daquela forma de impugnação, também se verá, de seguida, que a aventada alteração da matéria de facto não encontra o menor suporte nos elementos objectivos (maxime, na prova documental) juntos aos autos e que apenas podiam ser complementados ou melhor explicitados pelos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento, nomeadamente, e sobretudo, pelas testemunhas agora indicadas.

            3. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640º, n.º 1, do Código de Processo Civil/CPC).

Tais requisitos da impugnação da decisão de facto justificam-se pela simples razão de que importa alegar o porquê da discordância, devendo o recorrente concretizar as suas divergências.

Trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário atendendo, por um lado, a que ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância [pelo que deverá indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos – cf. o n.º 2 do art.º 640º, do CPC] e qual a concreta divergência detectada [e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas], e, por outro lado, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar, assim se garantindo o efectivo cumprimento do princípio do contraditório [art.ºs 638º, n.º 5 e 640º, n.º 2, alínea b), do CPC], obviando-se à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.[2]

A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto deve verificar-se quando, nomeadamente, falta a indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda e/ou a posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, tratando-se de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. [3]

            4. Como se referiu, a apelante não mencionou, na “fundamentação/corpo” da alegação de recurso ou nas respectivas “conclusões”, se a matéria de facto que considera incorrectamente julgada devia ser tida como não provada ou parcialmente provada e de que forma (v. g., suprimindo determinados segmentos ou aditando determinada factualidade), podendo-se apenas dizer que pugna pela inclusão ou a consideração do teor de determinados documentos juntos aos autos (principalmente, a correspondência trocada entre as partes).

            Salvo o devido respeito por entendimento contrário, ante o descrito regime jurídico, verifica-se, assim, grave desrespeito das exigências claramente estabelecidas na lei sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

            Porém, dada a peculiaridade da situação em análise e a essencialidade da dita prova documental, entendemos, não obstante aquela inadequada observância dos “ónus” previstos no art.º 640º do CPC, que não será de rejeitar o recurso da decisão relativa à matéria de facto.

            5. Esta Relação procedeu à audição dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, conjugando-os com a prova documental.

            Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[4], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que verifique, designadamente, se os depoimentos e os documentos foram apreciados e valorados de forma razoável e adequada.

            6. O juiz poderá lançar mão do instrumento probatório das presunções judiciais, de facto, hominis ou simples, enquanto meios lógicos ou mentais da descoberta de factos entregues “às luzes e à prudência do magistrado” - valendo-se de certo facto e de regras de experiência, o juiz conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto, é consequência típica de outro -, presunções que, condicionadas a uma utilização prudente e sensata, não deixam de constituir um instrumento precioso a empregar, quando necessário e tal for legalmente admitido na formação da convicção que antecede a resposta à matéria de facto (art.ºs 349º e 351º, do CC), o que se torna premente quando se trata de proferir decisão em que os factos se tornam dificilmente atingíveis através de meios de prova directa[5].

            7. Ademais, a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[6], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

            8. Partindo da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e tendo em atenção o objecto do recurso, destacamos os seguintes excertos [para melhor compreensão introduzem-se algumas referências entre parêntesis rectos]:

            «(…) Igualmente importante o acervo documental junto pelas partes nos respectivos articulados que de forma conjugada ajudaram o Tribunal a completar e contextualizar a sucessão cronológica dos factos, desde o momento anterior à subscrição do contrato de seguro até ao falecimento de F (...) , incluindo a (…) correspondência posterior trocada entre a autora e a ré Seguradora (…).

            Quanto à essencialidade e importância para a Ré seguradora, no que tange à avaliação do risco[7] e consequente aceitação ou não da proposta da adesão, da omissão da informação por parte do falecido no que concerne ao seu internamento hospitalar, em momento temporal imediatamente anterior à subscrição da proposta de adesão, os depoimentos também eles, consistentes e assertivos, das testemunhas M(...) , profissional de seguros da ré Seguradora, na área da gestão de sinistros e Dr. A(...) , médico de medicina familiar e geral e que trabalha para a Ré Seguradora desde 2000, em regime de avença, que denotaram ter conhecimento directo e pessoal sobre os factos que foram inquiridos [Referindo, a 1ª, nomeadamente: é com base nas declarações da pessoa segura constantes da “proposta de adesão” que se decide a “aceitação do risco”; “as respostas foram todas negativas e a proposta foi aceite sem reserva”; inexistindo respostas afirmativas ao questionário médico, e até determinado montante seguro (e, no caso vertente, o montante do “capital seguro” era inferior), não intervém o Departamento Médico, pois “não há nada do ponto de vista médico para analisar”; por essa razão e considerada ainda a idade do proponente, não se efectuaram os “exames (médicos) protocolados pelas Companhias de Seguro”; perante alguma resposta positiva/afirmativa ao dito questionário, a situação é submetida a análise do Departamento Médico. Afirmou a 2ª, designadamente: não interveio na análise da proposta de seguro dos autos devido às respostas negativas ao questionário médico e ao capital seguro; averiguou-se, mais tarde, que as respostas não correspondiam à verdade, sendo que, designadamente, o F (...) foi internado de 11 a 19.3.2008 e ficou com “internamento futuro a 24” - dia em que veio a subscrever a proposta de seguro - para realizar mais estudos/exames visando determinar a causa da “patologia”; se informado do passado clínico do proponente, o Departamento Clínico da Ré teria recusado a proposta de seguro], havendo ainda a registar o contributo da referida testemunha (…) quanto à matéria procedimental relativa à elaboração e preparação da proposta de adesão, por parte do mediador, sua recepção e aceitação por parte da ré Seguradora.

            Aqui chegados, importa dizer, em jeito de síntese útil, que o núcleo essencial do litígio (…), pese embora o desconhecimento do falecido no momento da subscrição da proposta de adesão quanto à existência de doença oncológica pré-existente, é, antes de mais, e por apego às regras da experiência comum e do que é a normalidade social prevalente, a atitude do falecido segurado para com as perguntas, de carácter simples e imediato, sobre o seu estado de saúde e que não exigiam, para um cidadão médio, explicações ou esclarecimentos de maior, no que toca à situação anterior de internamento, omitindo de forma deliberada tal facto, sendo que era do seu conhecimento pessoal. A exuberante e abundante prova documental - cujo teor não foi impugnado pelas partes - relativa ao primeiro internamento e aos exames a que foi submetido nesse período [cf., designadamente, os documentos de fls. 224, 252 e 283] - repete-se, em momento temporal imediatamente anterior à data da subscrição da proposta de adesão - comprova precisamente aquela conclusão, esvaziando de conteúdo útil a circunstância de à data da subscrição da proposta de adesão o falecido ignorar a pré-existência de doença oncológica. Aliás, há que referir que o risco associado ao contrato de seguro é delimitado por eventos futuros - não pré-existentes - e imprevisíveis, donde impendia sobre o falecido a obrigação de informar com verdade a ré seguradora de todos os factos relativos ao seu estado de saúde que pudessem influir na avaliação do risco ou na determinação, em caso de aceitação, na correta determinação do prémio de seguro, decorrência da princípio da boa-fé e do que é “normal acontecer” neste tipo de contratos. Na verdade, diz-nos a experiência comum que a circunstância de alguém ter estado internado indicia ou pode indiciar de forma consistente que a pessoa teve em certo momento da sua vida problemas com o seu estado de saúde [e, na situação dos autos, além do internamento de 11.3.2008, o proponente F (...) demandara os serviços de urgência hospitalar em Abril de 2001 e Maio de 2007 e fora internado e intervencionado no Centro de Oncologia de Coimbra em Junho de 1996 - cf., designadamente, os documentos de fls. 189, 193 e 341], considerando que, no caso concreto, estamos perante um contrato de seguro cujo objecto é a cobertura de risco associado à saúde de uma pessoa, é imperioso concluir que a omissão daquela informação - através de resposta negativa, como foi o caso - influi ou pode influir na aceitação ou não da proposta de adesão

            9. Perante tais depoimentos e a prova documental junta aos autos, afigura-se inteiramente correcto o decidido e a respectiva fundamentação.

            E, complementando e concretizando, dir-se-á ainda:

            A - Não vemos a menor razão para introduzir qualquer modificação à matéria dita em II. 1. 8 a 12 e 22 a 26, supra.

            Por exemplo:

            - A factualidade incluída em II. 1. 11 é reafirmada e, até, melhor concretizada, principalmente, em II. 1. 40 e 41, supra[8];

            - No tocante à forma e ao tempo do preenchimento do denominado “Questionário Médico”, era e é bastante o que se fez constar em II. 1. 8 a 10, supra, o que, como melhor se explicitará infra, não isentava os outorgantes/”pessoas seguras” de, aquando da subscrição da “proposta de adesão”, ocorrida em 24.3.2008 (fls. 40 e seguinte), da verificação e (eventual) alteração do que a seu respeito se tivesse feito constar da resposta ao “Questionário Médico”, problemática, de resto, levada à matéria dita em II. 1. 43, supra (também impugnada na apelação);

            - Nos pontos 22 a 26 da matéria de facto indica-se parte da correspondência trocada entre as partes no ano de 2010, não se vendo o menor interesse em introduzir quaisquer alterações ao aí mencionado, e, se é certo que a A./recorrente acaba por realçar o teor da missiva reproduzida a fls. 139 e seguinte, a ela se alude em II. 1. 45, supra, não tendo pois razão quando afirma que “o Tribunal omitiu a comunicação da Ré de 14.6.2010, enviada à Autora”, sendo que o teor desta comunicação[9], atendível e atendida nos autos - à semelhança, v. g., da missiva referida em II. 1. 25, supra -, nada de relevante acrescenta à posição assumida (nos autos) e/ou à demais matéria dada como provada e que se mostra suficiente para a boa decisão da causa, além de que a Ré não ficou necessariamente confinada à argumentação então produzida, maxime, ao referir que o evento resultara de “doença pré-existente à data da celebração do contrato de seguro de vida em questão”.

            B - Relativamente à factualidade mencionada em II. 1. 34 a 38, supra, a mesma resulta, claramente, do teor dos documentos juntos aos autos (principalmente, a fls. 40/96) conjugado com os depoimentos das testemunhas indicadas pela Ré, supra referidos (cf. II. 8.) e, ainda, com o “curso ordinário das coisas[10] (cf. II. 6., supra), tratando-se, aqui, de resto, de alguma da matéria sobre a qual não sabemos as concretas respostas aventadas pela A./recorrente e/ou em que medida, em seu entender, deveria ser eliminada a materialidade dada como provada.

            C - Por último, dúvidas não restam de que o proponente F (...) , aquando da subscrição da proposta de adesão reproduzida a fls. 40/96, em 24.3.2008, decidiu não referir (omitir) o seu passado clínico, designadamente, as ocorrências do período compreendido entre 11.3.2008 e a data da subscrição daquela proposta, bem sabendo que recorrera, então, aos Serviços de Urgência dos HUC, ficara internado no Serviço de Medicina dos HUC desde 11.3.2008 a 19.3.2008 e fora aí submetido a diversos exames clínicos (entre os quais uma biópsia hepática, sabendo-se que ninguém se submete a uma biópsia se esse meio de diagnóstico não estiver ligado a uma determinada suspeita), o que resulta evidente da simples conjugação dos correspondentes elementos documentais (nomeadamente, de fls. 96, 224, 252 e 283), pelo que nenhum reparo merece o decidido em II. 1. 43, supra.

            10. A factualidade dada como provada respeita assim a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova testemunhal[11], o Mm.º Juiz a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[12]

            O Mm.º Juiz analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º, do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1, do CPC).

            Soçobra, pois, a pretensão da apelante de ver modificada a decisão de facto.

            11. O presente litígio emerge de um contrato de seguro celebrado antes da entrada em vigor do DL n.º 72/08, de 16.4, devendo ser apreciado em face da legislação que este diploma revogou, maxime a que se encontrava inserida no Código Comercial, no segmento que regulava o contrato de seguro, com destaque para o seu art.º 429º (com a epígrafe “Consequência das declarações inexactas ou reticentes), com a seguinte redacção:

            Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.

            § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio.

            Constituía entendimento generalizado que a anulabilidade (e não nulidade, como literalmente constava do art.º 429º do Cód. Com.) do contrato de seguro[13], não se bastava com a verificação de uma qualquer inexactidão do segurado aquando da subscrição da proposta contratual. Era importante que se tratasse de inexactidão susceptível de influir na aceitação do contrato de seguro proposto à Seguradora ou nas respectivas condições, recaindo sobre a seguradora o ónus da prova de um nexo de causalidade entre a inexactidão, omissão ou falsas declarações e a outorga do contrato (o ónus de prova de que o segurado, quando subscreveu a proposta de seguro e respondeu ao questionário clínico apresentado - às questões concretas nele incluídas -, tinha conhecimento de que padecia da doença que o vitimou ou que exarou declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas, susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir).

            O art.º 429º do C. Comercial fulmina com o valor negativo, correspondente à anulabilidade do negócio, a prestação culposa de declarações inexactas ou reticentes que tenham viciado a vontade de contratar da seguradora[14].[15]

            12. Sabemos que o contrato de seguro tem uma vertente fundamentalmente aleatória para o tomador do seguro e para o segurador, assim se justificando, respectivamente, a transferência e a assunção da responsabilidade mediante o compromisso do pagamento e recebimento de um prémio de seguro; na ocasião em que o contrato é celebrado é suposto que nem o segurador, nem o segurado tenham certezas quanto à ocorrência do sinistro, impondo-se ao segurado ou ao tomador do seguro que forneça ao segurador elementos relevantes e verdadeiros de que esta carece para a assunção e delimitação do risco.

            Reportando-nos, em particular, aos contratos de seguro do Ramo-Vida, e, designadamente, quando visem a transferência de responsabilidade referente ao pagamento de empréstimos bancários, entre as diligências que estão na livre disponibilidade do segurador conta-se a formulação de um questionário mais ou menos extenso, cujo conteúdo está na sua exclusiva disponibilidade, ao qual o tomador do seguro deve responder, habilitando a contraparte a aceitar, rejeitar ou modelar o contrato ou, porventura, fornecendo-lhe elementos susceptíveis de indiciarem a necessidade de serem efectuados exames médicos complementares, mais ou menos profundos.

            Sobre o segurado recai, pois, o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso do seguro do ramo Vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a segurar. Este ónus resulta, além do mais, do princípio da boa fé, precisamente porque a avaliação do risco depende das informações prestadas pelo segurado no momento da formação do contrato.[16]

            13. Neste contexto e vistas as particularidades do presente caso, não tem relevância decisiva o facto de o questionário não ter sido escrito pelo punho do marido da A., que se terá limitado a assinar o documento: o que releva decisivamente não é a autoria material do escrito, mas o ter ou não o documento assinado pelo interessado sido preenchido de acordo com informação esclarecida e conscientemente prestada pelo autor da assinatura do documento, não havendo qualquer motivo para pôr em causa a fidedignidade das informações prestadas acerca do estado clínico actual só pelo facto de o interessado não ter manuscrito o questionário pelo seu próprio punho.

            De resto, a A. não invoca que ela e o seu marido, como pessoas seguras, não tiveram consciência, no momento da assinatura, do teor e conteúdo efectivo e essencial do documento.[17]

            14. Ante o aludido seguro de grupo, o dever de informação e esclarecimento recaía legalmente sobre o Banco/tomador de seguro, e não sobre a Ré/seguradora, sendo que a eventual omissão de um dever de informação acerca do efectivo alcance das respostas aos vários itens do questionário clínico, bem como a advertência explícita sobre as consequências de uma resposta inexacta, previstas no contrato de adesão celebrado, é, pois, imputável exclusivamente ao tomador de seguro por força do estipulado no art.º 4º do DL n.º 176/95, de 26.7 (alterado pelos DL n.º 60/2004, de 22.3 e 357-A/2007, de 31.10)[18], não podendo imputar-se ou transmitir-se à seguradora a responsabilidade pelo eventual cumprimento deficiente pelos funcionários do Banco/tomador de seguro de tal dever de plena e cabal informação e esclarecimento das pessoas seguras.

            15. Decorre do apurado circunstancialismo que não se poderá imputar à Ré/seguradora um eventual deficiente cumprimento do dever de esclarecimento das pessoas seguras, em seguro do ramo vida de grupo.

            E não tendo sido alegado que, ao assinarem a declaração/questionário clínico, os interessados não tiveram efectiva consciência da natureza, do teor e do conteúdo do documento (v. g., que ele foi preenchido por terceiro, à sua revelia, sem o seu conhecimento ou contra as indicações dadas pelo subscritor do documento acerca do seu real e efectivo estado de saúde) não pode deixar de concluir-se que a subscrição do dito questionário tem de significar e fazer presumir a aprovação do seu conteúdo e a assunção da paternidade do documento pelo assinante/ subscritor, consideradas, ainda, as exigências do princípio da boa fé contratual (art.º 762º, n.º 2, do CC), de particularíssimo relevo no momento preliminar da definição e delimitação dos riscos a assumir pela seguradora num contrato do ramo vida, em que estes dependem essencialmente de informações e esclarecimentos prestados pelos interessados acerca da sua real situação clínica, envolvendo matéria que – por se situar no cerne da reserva da vida privada – a seguradora não terá normalmente possibilidades de apurar e aprofundar autonomamente.[19]

            16. Não se questionando a aplicabilidade do regime jurídico dos contratos de adesão e das cláusulas contratuais gerais aos contratos de seguro, afigura-se, porém, que o mesmo também não releva para a situação dos autos.

            De facto, apresentando-se o aludido “questionário” como uma das formas de declaração inicial do risco pelo candidato tomador do seguro ou pessoa segura que tem por objectivo a ponderação por parte da seguradora dos riscos a correr com a celebração do contrato que lhe é proposto, estando assim em causa a postura do candidato ou proponente do seguro relativamente a perguntas simples e claras sobre o seu estado de saúde, baixas e internamentos, meras declarações de ciência que, destinadas embora a serem valoradas pela contraparte na sua declaração negocial, não contêm qualquer declaração de vontade relativamente à qual se possa falar de adesão e vinculação, para efeitos de inclusão na previsão dos art.ºs 1º e 2º do DL n.º DL n.º 446/85, de 15.10, designadamente em relação ao segurado (pré-elaborado está o questionário, que não as respostas, e destinatário destas é a seguradora; o segurado não adere ao questionário, responde-lhe para fornecer à seguradora elementos em função dos quais esta estabelece as condições de aceitação do contrato), tudo numa fase prévia à celebração do contrato de seguro (consoante o conteúdo das respostas ao questionário sobre o estado de saúde do potencial segurado, a seguradora decide se, em definitivo, apresenta uma proposta de seguro e, na hipótese afirmativa, as condições que propõe para que seja celebrado o contrato de seguro, sendo que só então, nessa segunda fase, poderemos dizer que estamos perante um contrato de adesão. Como é óbvio, a seguradora não apresenta um contrato-tipo já com o questionário preenchido), será de concluir que qualquer pretensa omissão de informação não releva, em sede de validade do contrato, pela simples razão de que tal “questionário” não constitui cláusula contratual geral do contrato de seguro para efeito de vinculação da seguradora aos deveres de comunicação e informação dessas cláusulas em contratos de adesão. [20]           

            17. É incontroverso que o contrato de seguro em apreço é do ramo Vida/Grupo associado ao crédito à habitação, em que é tomadora do seguro e beneficiária irrevogável a interveniente Banco C (...) s, S. A. (cf., principalmente, II. 1., 5, 8, 18 e 32, supra), regulado pelas disposições atrás referidas.

            18. In casu, tudo gira à volta das respostas a um “questionário”, por parte da pessoa segura, declarações em que a seguradora deve confiar e em função das quais aceita ou não o contrato e fixa as respectivas condições.

            É através do “questionário” que a seguradora faz saber ao candidato as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco - era exigível responder sem omissões e com rigor e objectividade, tendo presente que as respostas iam servir, como serviram, de base à apreciação da aceitação e condições do contrato, condicionando, desde logo, a dispensa ou a realização de exames médicos, sabendo-se que a Seguradora os não exigiu em virtude das ditas respostas negativas [cf., sobretudo, II. 1. 36 a 38, supra].

            Está em causa a viciação da vontade da seguradora, que aceitou cobrir o risco de ocorrência de um sinistro com base numa avaliação de circunstâncias que não correspondiam à realidade - no momento da subscrição da proposta de adesão, o falecido proponente F (..) omitiu factos relacionados com o seu estado de saúde, de que tinha conhecimento pessoal (mormente, ao negar que tivesse sido aconselhado a consultar médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica), com o propósito de impedir a Ré de analisar adequadamente o risco de seguro, e decidir de forma esclarecida e informada se aceitava ou não a proposta de adesão relativa ao contrato de seguro em causa nos autos -, de molde que, se à seguradora tivesse sido transmitida a situação real, não teria contratado ou fá-lo-ia em condições diferentes das efectivamente negociadas, pois, como bem se refere na decisão sob censura, a falta da informação acerca do internamento hospitalar em momento temporal imediatamente anterior à data da subscrição da proposta de adesão, consubstancia uma omissão que, necessária e inevitavelmente, influiria na aceitação do contrato de seguro de vida por parte da Ré Seguradora, podendo mesmo levar à recusa da sua celebração [cf. ainda, sobretudo, II. 1. 14, 34, 35, 43 e 44, supra].

            Assim sendo, a Seguradora nunca chegou a formar uma vontade de aceitação do contrato (que apenas poderia vigorar a partir da data mencionada em II. 1. 9, 29, 30, 33 e 41, supra), pois que não teve oportunidade de nela considerar, emitindo a correspondente declaração negocial, os factos que lhe foram omitidos.[21] [22]

            Preenchidos, pois, os pressupostos da invalidade do contrato, por via da invocada anulabilidade, tal como prevista no regime imperativo consagrado no art.º 429º C. Comercial, com os efeitos legais daí decorrentes (cf. o art.ºs 289º do CC).

            19. Dir-se-á, por último - independentemente da questão de saber se e em que medida estamos perante matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida [sendo que, por exemplo, a A. apenas em sede de recurso veio invocar que o Banco ou a Seguradora violaram de alguma forma os deveres de comunicação e informação a que se reportam os art.ºs 5º e 6º do DL n.º 446/85, de 15.10] -, que, tendo ficado provado que “todo o processo prévio de preparação da proposta de adesão, nomeadamente análise e explicação das condições, duração do contrato, simulação do prémio de seguro, modo de pagamento do prémio de seguro, periodicidade do pagamento, preenchimento e subscrição da proposta de adesão decorreu junto do mediador e tomador do seguro, o Banco C (...) s S. A. (sucursal Banco C(...) de Coimbra/Casa do Sal)” e que “o proponente F (...) aquando da subscrição da proposta de adesão, em 24.3.2008, omitiu deliberadamente no questionário médico a informação de que em 11.3.2008, sentiu-se mal e acabou por ser internado nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde realizou diversos exames clínicos” (cf. II. 1. 39 e 43, supra), e considerando ainda o explanado em II. 13. a 16., supra, dúvidas não restam de que não foram violados, pela Ré, ou sequer pelo tomador do seguro, quaisquer deveres de informação e esclarecimento, e bem assim que nada será de apontar aos procedimentos que culminaram na subscrição da proposta de seguro pelo proponente falecido (cf. II. 1. 11 e 40, supra).   

            20. Soçobram, desta forma, as demais “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.         

            Custas pela A./apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 568.


*

13.9.2016


Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernando Monteiro


[1] Documentos de fls. 43 a 45.
[2] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 15.09.2011-processo 1079/07.0TVPRT.P1.S1, publicado no “site” da dgsi.
[3] Vide A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 127 e seguintes.
    De resto, quando o legislador introduziu um efectivo grau de jurisdição em matéria de facto, através do DL n.º 39/95, de 15.02, deixou expresso no preâmbulo deste diploma, nomeadamente:
   «A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
   Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
   A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
(…)
   Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado (…).»

[4] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[5] Cf. Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ, 110º, págs. 190 e seguintes e, de entre vários, o acórdão da RL de 25.3.2003, in CJ, XXVIII, 2, 91 (e dgsi/processo 2155/2003.7).
[6] Vide, entre outros, o acórdão do STJ de 14.01.1998, in BMJ 473º, 484, que impressiva e avisadamente refere que se os tribunais estivessem à espera de elementos perfeitos e completos, talvez não se passasse, ainda hoje, do velho ´non liquet´ em praticamente todos os casos
     E, em idêntico sentido, o acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.
     Cf. ainda o mencionado acórdão da RL de 25.3.2003.
[7] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[8] Ademais, existe manifesta discrepância entre a posição expressa no corpo da alegação (v. g., quando se afirma: “tendo as respostas dadas a esses pontos de facto (11 e 12) sido correctas e verdadeiras”) e o teor das “conclusões” da alegação de recurso (cf. a “conclusão 1ª”/ponto I, supra).
[9] Vejam-se, nomeadamente, os seguintes excertos (com sublinhado nosso):

   “(…) Da apreciação efectuada pelo nosso Departamento Clínico à informação médica disponibilizada, concluímos que a Pessoa Segura, não faz qualquer referência, no ato de subscrição do contrato de Seguro em análise, a qualquer tipo de doença pré-existente, tendo, pelo contrário, respondido em sentido negativo a todas as questões relacionadas com a existência de eventuais problemas de saúde.

Assim, aquando do preenchimento da referida proposta e respectivo Questionário Médico, em 24 de Março de 2008, (cópia em anexo), não foi mencionada a patologia pré-existente, diagnosticada cerca de 3 meses antes da subscrição do contrato de Seguro de Vida, conforme informação constante no Certificado de Óbito de nossa posse.

Nestas condições verificámos que existia um quadro clínico decorrente de doença pré-existente, que justificou acompanhamento e tratamento médico, o qual se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco. Esclarecemos ainda que é através da proposta de Seguro e respectivo Questionário Médico que a Companhia pode avaliar e aceitar os riscos garantidos ao abrigo do referido contrato de seguro.

As declarações inexactas, reticentes ou que omitam qualquer facto, designadamente, relativas a algumas doenças pré-existentes, isto é, que tenha ocorrido antes da data de entrada em vigor dos contratos de seguro e que por isso se encontram excluídas do âmbito da cobertura de riscos, tornam nulo o pedido de adesão ao contrato de Seguro de Vida em causa.

Nestas circunstâncias lamentamos informar V. Exa. que, nos termos do estabelecido nas Condições Gerais da Apólice, de que juntamos cópia, declinamos qualquer responsabilidade pelo pagamento do capital seguro procedendo, nesta data, à anulação do contrato. (…)
[10] Cf. Vaz Serra, Estudo cit., págs. 80, nota (29) e 190.
[11] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[12] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Estudo cit., pág. 82.

[13] Orientação alicerçada na recondução das anomalias ali previstas à teoria geral do erro, in casu, do erro-vício, por se tratar de motivos determinantes da vontade referentes ao objecto do negócio, cuja essencialidade para o declarante - que aqui é a seguradora - não poderia ser ignorada pelo declaratário, tudo em consonância com o disposto nos art.ºs 251º e 247º do CC - Cf., na doutrina, José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, pág. 380.
[14] Ao contrário do que está previsto no regime do seguro actualmente em vigor, que, em determinadas situações bem delimitadas, admite que subsista ainda o contrato modificado, em função da alteração do risco efectivamente assumido pela seguradora (cf. o art.º 24º do DL 72/2008, de 16.4).

[15] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 04.3.2004, 17.11.2005, 24.02.2008, 27.5.2008-processo 08A1373, 27.3.2014-processo 2971/12.5TBBRG.G1.S e 11.02.2016-processo 427/11.2TBCNT.C1.S1, in CJ-STJ, XII, 1, 102; XIII, 3, 120; XVI, 1, 116 e “site” da dgsi, respectivamente.
[16] Cf. o citado acórdão do STJ de 11.02.2016-processo 427/11.2TBCNT.C1.S1 e ainda, entre outros, o acórdão da RC de 10.5.2011-processo1002/08.4TBTNV.C1, publicado no “site” da dgsi.
[17] Cf., nomeadamente, o citado acórdão do STJ de 27.3.2014-processo 2971/12.5TBBRG.G1.S e o acórdão da RL de 17.12.2015-processo 2815/14.3TBOER.L1-2 [concluindo-se que “II. É anulável, ao abrigo do art.º 429º do Código Comercial (…), o contrato de seguro do ramo vida em que os segurados assinaram, sem o lerem, questionário clínico, preenchido por uma funcionária do banco/tomador, em que constava uma situação clínica mais favorável do que a real, situação real essa que os segurados haviam comunicado à dita funcionária.”], publicado no “site” da dgsi.
[18] Que reza o seguinte: Nos seguros de grupo, o tomador do seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre as coberturas e exclusões contratadas, as obrigações e direitos em caso de sinistro e as alterações posteriores que ocorram neste âmbito, em conformidade com um espécimen elaborado pela seguradora (n.º 1). O ónus da prova de ter fornecido as informações referidas no número anterior compete ao tomador do seguro (n.º 2). Nos seguros de grupo contributivos, o incumprimento do referido no n.° 1 implica para o tomador do seguro a obrigação de suportar de sua conta a parte do prémio correspondente ao segurado, sem perda de garantias por parte deste, até que se mostre cumprida a obrigação (n.º 3). O contrato poderá prever que a obrigação de informar os segurados referida no n.° 1 seja assumida pela seguradora (n.º 4). Nos seguros de grupo a seguradora deve facultar, a pedido dos segurados, todas as informações necessárias para a efectiva compreensão do contrato (n.º 5).

[19] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 25.6.2013-processo 24/10.0TBVNG.P1.S1 [assim sumariado: 1. Num seguro de grupo, não está vedado à seguradora, única demandada na lide, opor ao aderente certa cláusula de exclusão do risco, por a omissão do dever de informação e esclarecimento ser exclusivamente imputável ao tomador de seguro, não se comunicando ou transmitindo os efeitos de tal omissão culposa à própria seguradora, em termos de amputar o contrato da cláusula não devidamente informada ao aderente. 2. Na verdade, não se mostrando legalmente prevista a comunicabilidade à esfera jurídica da seguradora dos efeitos do incumprimento dos deveres legais de informação colocados a cargo do tomador de seguro - e não podendo o tomador de seguro considerar-se juridicamente como intermediário, auxiliar ou comissário da seguradora no momento da concreta adesão das pessoas seguradas - carece de fundamento normativo a pretensão de responsabilização objectiva da seguradora por um comportamento negligente exclusivamente imputável ao outro contraente, não demandado pela interessado/aderente.], 27.3.2014-processo 2971/12.5TBBRG.G1.S, 09.7.2014-processo 841/10.0TVPRT.L1.S1 e 20.5.2015-processo 17/13.5TCGMR.G1.S1, publicados no “site” da dgsi.
[20] Cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 27.5.2008-processo 08A1373, cit., e de 06.7.2011-processo 2617/03.2TBAVR.C1.S1, e bem assim o acórdão da RC de 02.7.2013-processo 444/11.2TBSEI.C1 [O regime das cláusulas contratuais gerais não é aplicável ao questionário pré-elaborado pela seguradora ao qual o segurado responde, de modo a fornecer àquela elementos na fase prévia à celebração do contrato de seguro em função dos quais a seguradora estabelece as condições de aceitação do contrato.], publicados no “site” da dgsi.

[21] Cf., designadamente, os acórdãos do STJ de 17.10.2006-processo 06A2852 [com as seguintes conclusões: As falsas declarações prestadas, no âmbito de um contrato de seguro, por parte do segurado, determinam, nos termos do art.º 429º do C. Comercial, a sua anulabilidade. O questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurado através do qual lhe indica as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco. Como assim, é irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: o que pesa na apreciação da Seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas.] e de 06.7.2011-processo 2617/03.2TBAVR.C1.S1, publicados no “site” da dgsi.

[22] Como também se refere na decisão recorrida, não é/era exigível à Ré a aceitação de um tal negócio, porquanto a natureza e gravidade dos factos omitidos aumentava inevitavelmente o risco a avaliar pela Ré, e isso apesar de ser um seguro de grupo, pois esta realidade não dispensa a análise e avaliação do concreto risco envolvido.