Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
28/16.9PTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
IN DUBIO PRO REO
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Data do Acordão: 09/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (J L CRIMINAL – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIME
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 410.º, N.º 2, DO CPP; ART. 32.º DA CRP
Sumário:
I - Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa.
II - O vício em questão, deve limitar-se ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
III – Tal vício não se verifica quando os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento.
IV - O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção, Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Z, Juízo Local Criminal de Y - Juiz 1, sob acusação do Magistrado do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção de Tribunal singular, o arguido A…, imputando-se-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos artigos 148.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, e de uma contraordenação, p. e p. pelos artigos 13.º, n.ºs 1 e 5, 145.º, alínea a) e 147.º, todos do Código da Estrada.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 15 de fevereiro de 2018, decidiu:
a) Absolver o arguido da prática, como autor material, de uma contraordenação, p. e sancionada pelos artigos 13.º, n.ºs 1 e 4, 145.º, alínea a) e 147.º, todos do Código da Estrada. b) Condenar o arguido, A, pela prática, como autor material, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão.
c) Condenar o arguido, A, pela prática, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão;
d) Em cúmulo jurídico das penas determinadas em b. e c., condenar o arguido na pena única de 14 meses de prisão;
e) Suspender a pena de 14 meses de prisão pelo período de um ano.
f) Condenar o arguido nas penas acessórias parcelares de proibição de conduzir veículos com motor de 10 meses cada (cf. artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal).
g) Em cúmulo jurídico, aplicar uma pena acessória única de 12 meses de proibição de conduzir veículos com motor (cf. artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal).

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. O tribunal a quo, não obstante a constatação de que o arguido possa ter desmaiado e involuntária e inconscientemente tenha invadido a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, acaba por não investigar e apreciar criticamente tais contingências da vida, como se lhe impunha, admitindo essa possibilidade.
2. Tanto mais que o arguido nega que conduzisse em estado de sonolência e, consequentemente se tenha deixado dormir, referindo ao invés, que não sabe o que se passou, que terá desmaiado, sofrido um apagão, que apenas se recorda de se encontrar no hospital onde lhe é referido que tinha sido vítima de um acidente.
3. Esta explicação que não foi apreciada, sento até a mais verosímil de poder ter acontecido, não foi contraposta à do “micro-sono ou de menos vigilância”, porque a ter acontecido o arguido teria acordado ou despertado, dado que não sofreu quaisquer lesões ou traumas na cabeça, extraindo-se assim, as necessárias ilações.
4. Não há uma única prova produzida em audiência de julgamento que permita concluir ou que se revele, intrinsecamente, mais segura por forma a concluir que a causa da invasão foi provocada pelo “micro sono ou de menos vigilância”, é que uma síncope também ocorre quando não há um aporte adequado de sangue para o cérebro, provocando o desmaio.
5. Na verdade, só depois de o discutir e averiguar, é que o tribunal recorrido estaria em condições de poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
6. Haveria que averiguar se a invasão da faixa de rodagem contrária por banda do arguido ocorreu em consequência de um evento súbito, imprevisível, imediato, inevitável e estranho à vontade do arguido, i.é, de um colapso, de uma quebra de tensão, de um desmaio, que determinou a mudança de trajectória e que chegasse inconsciente ao hospital.
7. A falência de manancial probatório, nos termos que se deixaram alegados, a verificação de um non liquet, de um facto pouco claro que suscite dúvidas deverá, o mesmo, ser valorado probatoriamente da favor do arguido.
8. Devendo o ponto 15. da matéria de facto ser alterado no sentido aqui defendido, dando tal matéria como não provado, tendo necessariamente como consequência a absolvição do arguido.
9. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, também ocorre quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
10. Foi violada a al. a) do nº 2 do art.º 410.º do CPPenal).
Deve o presente recurso ser considerado procedente, nos termos expressos nas conclusões, devendo ser revogado a sentença recorrida e substituída por douto acórdão que determine absolvição do arguido.

O Ministério Público no Juízo Local Criminal de … respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação da douta sentença recorrida.

A Ex.ma Procuradora-geral adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respetiva motivação constantes da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
1. No dia 10 de Junho de 2016, cerca das 18:52 horas, o arguido A conduzia o veículo ligeiro de mercadorias da marca …, com a matrícula …, próximo do quilómetro KK da Estrada Nacional …, no sentido Norte/Sul, zona onde a estrada tem uma configuração rectilínea, proveniente de … e com destino a …, a velocidade concretamente não apurada.
2. No mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, circulava no sentido de trânsito Sul/Norte e na sua mão de trânsito, B que conduzia o veículo ligeiro de passageiros da marca …, modelo …, de sua propriedade, com a matrícula …, transportando como acompanhante a esposa C.
3. Quando chegava ao quilómetro KK da EN …, em …, o arguido A iniciou um desvio continuado para o lado esquerdo, saindo da hemifaixa de rodagem em que circulava e transpondo a marca M2 (linha descontínua) e passando a circular na hemifaixa de rodagem contrária.
4. Ao quilómetro KK o arguido circulava na hemifaixa de rodagem contrária local onde embateu com a parte frontal central do seu veículo na parte frontal esquerda do veículo ligeiro de passageiros conduzido por B que circulava na sua mão de trânsito.
5. B não efectuou qualquer travagem, não logrando evitar ser embatido na hemifaixa de rodagem em que circulava por ter sido surpreendido com a presença do veículo conduzido pelo arguido.
6. Como consequência directa de tal colisão, o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado na perpendicular da hemifaixa de rodagem direita, sentido Norte/Sul, ficando a ocupar toda a referida faixa de rodagem com a retaguarda junto da marca M2 e a frente sobre a guia.
7. E o veículo conduzido por B ficou imobilizado na perpendicular da hemifaixa em que circulava (sentido Sul/Norte), ficando com o pára-choques da retaguarda sobre o rail e a frente ocupando parcialmente a sua via de trânsito.
8. Em consequência do referido embate e atenta a gravidade dos ferimentos B veio a falecer, nesse mesmo dia, no Hospital ….
9. B sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia junto a fls. 155 e 156 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente lesões traumáticas cranianas, torácico abdominais e cardiovasculares, as quais foram causa directa e necessária da sua morte.
10. C sofreu as lesões descritas junto a fls. 198 a 209, 210 e 211 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, nomeadamente politraumatismo com trauma craniano, torácico, abdómen e membro superior esquerdo, tendo recebido assistência no Hospital … onde ficou internada, tendo sido transferida para o Centro Hospitalar do … no dia 11 de Junho de 2016 onde ficou internada até ao dia 22 de Julho de 2016.
11. Efectuado ao arguido A exame toxicológico de quantificação de álcool no sangue o mesmo deu resultado negativo, tendo sido detectada uma presença de medicamentos em doses consideradas terapêuticas, bem assim THC-COOH, canabinóides o qual embora presente no sangue não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução e ao falecido B o resultado dos exames de quantificação de álcool no sangue foi negativa.
12. O tempo apresentava-se limpo e seco.
13. No local de embate a estrada é composta por uma recta com boa visibilidade com dois sentidos de trânsito e linha descontínua separadora dos sentidos de trânsito, com pavimento betuminoso em bom estado de conservação.
14. A distância entre a saída da curva, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo arguido, e o local do embate é uma recta com 480 metros.
15. Ao actuar da forma descrita o arguido A procedeu de forma livre, conduzindo o veículo de forma desatenta e descuidada e não logrando controlar o veículo que conduzia, deixando que o mesmo transpusesse a linha longitudinal descontínua e invadisse a faixa de rodagem contrária e embatesse no veículo conduzido por B, agindo sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo as precauções de segurança exigidas no exercício da condução, que era capaz de adoptar e que devia ter adoptado para evitar um resultado que podia e devia prever mas que não previu, dando, assim, causa àquelas lesões para as vítimas, que foram causa adequada das ofensas no corpo e da sua morte.
16. Agiu, ainda, o arguido, com desrespeito pelas leis estradais.
17. Sabia o arguido que tais condutas que se tornaram condição do acidente, lhe eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou, com relevância para os presentes, que:
18. O arguido:
- Trabalha como agricultor numa propriedade que era dos seus pais, auferindo mensalmente cerca de € 500,00 (quinhentos euros) a € 600,00 (seiscentos euros).
- Paga mensalmente a quantia de € 325,00 (trezentos e vinte e cinco euros) a título de renda da casa onde vive com a sua namorada, a qual, presentemente, não trabalha, encontrando-se a frequentar um curso no Centro de Formação Profissional.
- Frequentou o curso de Engenharia Civil.
19. O arguido não tem antecedentes criminais registados no seu certificado do registo criminal.
Matéria de Facto Não Provada:
Provaram-se todos os factos com relevância e interesse para a boa decisão da causa, inexistindo factos dados como não provados.
-
Consigna-se que não foram reconduzidos aos factos provados, nem aos factos não provados, as alegações constantes das peças apresentadas pelos sujeitos processuais que se revelam redundantes, improfícuas para a decisão da causa ou estranhas ao objecto do processo, vagas, imprecisas ou conclusivas, por não contenderem com a verificação dos elementos objectivos típicos e subjectivos dos crimes e contra-ordenação imputados ao arguido.
Fundamentação da Matéria de Facto e Exame Crítico da Prova:
O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, interpretada de acordo com as regras da experiência comum e da livre convicção do julgador.
Em primeiro lugar, e com relevância para a análise dos autos, cumpre salientar o teor do relatório do acidente, constante de fls. 120 a 149 dos autos, a que acrescem ainda os esclarecimentos prestados e constantes de fls. 160 – elaborado pela Esquadra de Trânsito do Comando Distrital de … da Polícia de Segurança Pública. Tais elementos foram ainda concatenados com o teor da participação de acidente de viação, de fls. 44 a 46 e o relatório fotográfico junto aos autos, de fls. 47 a 62 dos presentes.
Da sua análise foi possível apurar, desde logo, as condições do local do acidente, nomeadamente em termos de traçado, visibilidade, estado de conservação do via e, ainda, condições meteorológicas que na data se faziam sentir.
No mesmo documento foram ainda discutidos e analisados as condições de manutenção das viaturas intervenientes no acidente de viação, e, bem assim, ponderadas e equacionadas diversas hipóteses que possam ter concorrido para a sua verificação.
Concomitantemente, o tribunal analisou ainda o relatório de autópsia de B (vide fls. 155 e 156), e os registos clínicos de C (vide fls. 197 a 212) – tais elementos permitiram ao Tribunal concluir quanto às lesões sofridas pelo condutor e acompanhante da viatura com a matrícula … como consequência do acidente em que foram intervenientes.
Chama-se ainda a atenção para os resultados dos exames toxicológicos elaborados aos dois condutores – vide fls. 82 e 83, e fls. 196. Os mesmos permitiram, em primeiro lugar, excluir o consumo de álcool por parte de qualquer um dos condutores como factor susceptível de influenciar a ocorrência do acidente de viação em que ambos foram intervenientes. Por outro lado, e em segundo lugar, sem prejuízo de se ter apurado que o arguido havia consumido substância canabinóide, o resultado do exame toxicológico permite concluir que a quantidade apurada não é suficiente para poder afectar a sua capacidade de condução.
Sem prejuízo dos elementos documentais carreados para os autos, cumpre atentar nas declarações prestadas pelo arguido, o qual afirmou desde logo que não se recorda do acidente – com efeito, o arguido descreveu o seu dia de trabalho e como decorreu a sua viagem desde … até a um local já muito próximo daquele onde ocorreu o acidente, salientando que, após, só se recorda de acordar no hospital.
Salientou que conhecia bem o percurso que fez naquela data – o qual percorre diariamente, para se deslocar para a quinta que explora, na zona de …. Referiu ainda, com relevância, que tem por hábito levantar-se cedo para se deslocar para o trabalho e que aquele dia não foi excepção. Mais referiu que, naquela data passou o dia a tosquiar o rebanho de ovelhas que tem, após o que tomou um banho e lanchou, antes de encetar o caminho de regresso a ….
Nega que se tenha sentido cansado ou sonolento no decurso da viagem de regresso a …; também não se recorda de se ter deparado com qualquer problema mecânico (hipótese afastada, aliás, pelo relatório do acidente elaborado pela Polícia de Segurança Pública), ou com qualquer problema na via onde circulava, concluindo não encontrar qualquer explicação para o acidente.
O arguido referiu ainda que conduzia dentro dos limites de velocidade determinados para o local – facto corroborado também pela análise feita no relatório do acidente elaborado pela Polícia de Segurança Pública, e também pelo depoimento das testemunhas inquiridas e que transitavam no local no momento do acidente – não encontrando, por conseguinte, qualquer explicação para a ocorrência do acidente.
Inquirida a testemunha , a mesma referiu que na data dos factos circulava na mesma via em que o arguido, mas em sentido contrário, ou seja, Sul-Norte, recordando-se de se ter cruzado com uma carrinha branca (que se apurou ser a carrinha conduzida pelo arguido) e que, nesse momento se apercebeu que a mesma estava a avançar para a sua faixa de rodagem. Continuou o seu percurso, e, quando observou a estrada pelo espelho retrovisor, constatou que a referida carrinha já se encontrava na sua faixa de rodagem (e, por conseguinte, na faixa de rodagem contrária àquela em que deveria circular) e que ainda se apercebeu de que iria ocorrer um choque entre aquela carrinha e um dos carros que circulava no mesmo sentido Sul-Norte, até porque a carrinha já tapava a visibilidade que tinha daquele mesmo veículo.
Em face disso, refere ter tomado a iniciativa de chamar as autoridades.
Foi também inquirida a testemunha …, agente da Polícia de Segurança Pública que foi chamado ao local do acidente, já após a sua ocorrência.
Refere esta testemunha que, à sua chegada se apercebeu da existência de marcas no pavimento que permitiam concluir qual o local onde o choque entre as duas viaturas teria ocorrido, apesar de não ter encontrado qualquer marca de travagem, por parte de qualquer das viaturas envolvidas – factos também assinalados quer no relatório do acidente, quer no relatório fotográfico juntos aos autos.
Por outro lado, esta testemunha atestou também, tal como já frisado pelo arguido, quer pela anterior testemunha, que o tempo estava bom e que o local se caracterizava por ter boa visibilidade.
Esta testemunha esclareceu ainda que foi o responsável pelo preenchimento do auto de participação de acidente.
Subsequentemente, foram ouvidos os dois ocupantes da viatura que seguia imediatamente atrás da viatura sinistrada, com matrícula … – .
A primeira das id. testemunhas – – descreveu, à semelhança das anteriores testemunhas inquiridas, que circulava numa estrada com pouco trânsito, e que o acidente ocorreu junto ao Jumbo de …. Salientou que o veículo de matrícula … circulava à sua frente, a alguma distância, e que, na medida em que a distância que os separava se manteve constante assume que seguissem aproximadamente à mesma velocidade – em torno dos 80 Km/hora.
Salientou com relevância que se apercebeu da aproximação da viatura conduzida pelo arguido, com uma trajectória que descreveu como sendo curvilínea, dirigindo-se na direcção do veículo de matrícula …, cujo condutor não esboçou qualquer manobra no sentido de evitar o embate, o que estranhou.
Por seu turno, a testemunha confirmou igualmente que circulavam ao final da tarde, no sentido Sul-Norte, em estrada com bom pavimento e boa visibilidade, para além de as condições atmosféricas serem também boas.
Descreveu a trajectória do veículo conduzido pelo arguido, tendo ficado com a percepção que o mesmo vinha desgovernado, na medida em que vem da zona da berma em direcção à faixa contrária, onde circulavam, indo embater violentamente na viatura de matrícula …. Esta testemunha equaciona que o seu condutor tenha sido surpreendido pela aproximação súbita do veículo do arguido na medida em que não o viu a esboçar qualquer manobra no sentido de tentar evitar o embate, até porque ela própria, testemunha, ficou com a percepção imediata de que a carrinha do arguido iria embater e que poderia, inclusivamente, embater na viatura em que circulava.
Finalmente, foram inquiridas as testemunhas arroladas pelo arguido – .
Nenhuma destas testemunhas presenciou o acidente em que o arguido foi interveniente. Revelaram, contudo, estar a par da forma como toda esta situação foi vivenciada pelo arguido, referindo que o mesmo tem dificuldade em aceitar a situação, e que tem procurado explicações para o sucedido. Mais descreveram o arguido como uma pessoa preocupada, trabalhadora, bom amigo e condutor prudente, no qual confiam incondicionalmente.
Os depoimentos destas testemunhas corroboram, aliás, as declarações prestadas pelo arguido, o qual manifestou, por diversas vezes no decurso da audiência, a sua perplexidade quanto à forma como o acidente ocorreu e inconformismo face ao facto de se ter perdido uma vida.
Por outro lado, foi igualmente possível constatar, pelas declarações do arguido e depoimentos destas identificadas testemunhas, que o arguido procura ainda hoje reconciliar-se consigo próprio quanto ao sucedido, procurando respostas quanto à forma como o acidente ocorreu.
Concatenando todos estes elementos, mister se torna concluir que, de facto, a dinâmica do acidente se encontra razoavelmente assente – concorrendo os depoimentos das testemunhas e as análises efectuadas no relatório do acidente elaborado pela Polícia de Segurança Pública, quanto às circunstâncias em que o mesmo se deu, e também quanto às consequências daí decorrentes.
Contudo, se está assente, em termos físicos, a dinâmica do acidente, impõe-se analisar o mesmo do ponto de vista da intervenção do arguido e do condutor do veículo de matrícula … quanto à sua verificação.
Com efeito, resulta também assente que o condutor que veio a falecer – … – não esboçou qualquer tentativa de manobra evasiva no sentido de evitar o embate; de igual modo, não se apurou que o mesmo, assim como o arguido, tenham travado antes do embate se verificar.
Significa, pois, que o embate ocorreu de forma súbita, e quiçá inesperada, pelo menos do ponto de vista do condutor …, não sendo despiciendo equacionar algum grau de desatenção na condução, atento tudo quanto se expôs.
Porém, e sem prejuízo do exposto, anote-se que foi a viatura conduzida pelo arguido que invadiu a hemifaixa contrária, que, segundo o depoimento das testemunhas que circulavam na estrada na mesma altura, que assinalaram que o mesmo seguia uma trajectória que o levava a aproximar-se cada vez mais dessa hemifaixa contrária, circulando de uma forma caracterizada como sendo desgovernada até que embateu na viatura de matrícula … e se imobilizou na via.
Em face do exposto, e na medida em que não foram apurados quaisquer factores externos susceptíveis de influenciar negativamente a condução do arguido – quer sejam manchas de óleo, areias ou água na via, quer seja uma qualquer avaria que tenha afectado o veículo por este conduzido – resta-nos analisar as condições deste para o exercício da condução.
Não se ignora que se está perante uma pessoa jovem e tanto quanto é dado a conhecer ao tribunal, saudável. Porém, saliente-se que o mesmo vinha de um longo dia de trabalho, que iniciara bastante cedo, tendo-se dedicado à tosquia de um rebanho de ovelhas, actividade que lhe tomou todo o dia. Referiu o arguido que após terem terminado a tosquia dos animais, tomou banho, trocou de roupa, comeu e iniciou o caminho de regresso a …. Estamos pois, perante um conjunto de circunstâncias em que o arguido regressa a casa, após um dia de trabalho longo e cansativo, tendo, porém, antes de iniciar a marcha, tido um período de tempo de descontracção. Não se ignora que o arguido afirmou que se sentiu bem durante todo o percurso, sem ter sentido indícios de sonolência, mas dizem-nos as regras de experiência comum, mormente no âmbito da condução rodoviária, que todas as circunstâncias apuradas, a que se soma o facto de se estar num dia de final de Primavera, e, por conseguinte, com temperaturas mais amenas, que estavam reunidas as condições para que o arguido tenha passado por uma situação de micro-sono ou de menos vigilância, pelo tempo suficiente para perder o controlo da viatura em que circulava. Aliás, reitere-se que os factos apurados quanto à forma como ocorreu o acidente concorrem para tal conclusão. A testemunha afirmou ter-se apercebido que a viatura do arguido se estava a aproximar da sua hemifaixa de rodagem, tendo depois constatado que acabou por invadi-la. O mesmo foi corroborado pelas testemunhas . E, finalmente, os indícios físicos recolhidos no local apontam para o que o ponto de colisão tenha ocorrido, precisamente, na hemifaixa contrária àquela em que o arguido circulava. Aliás, a descrição destas duas últimas testemunhas acarretam precisamente a conclusão de que se está perante um cenário em que o arguido perdeu o controlo da viatura e foi incapaz de o recuperar e de evitar o embate na viatura que circulava em sentido contrário.
Destarte, pelo exposto, e no que tange aos factos dados como provados em 15., 16. e 17., todos estes elementos, concatenados entre si contribuíram para a formulação de que, sem prejuízo da afirmação reiteradamente feita pelo arguido quanto ao facto de se ter sentido bem e ser habitual ter jornadas de trabalho longas e fazer aquele percurso, de facto, os factos coligidos apontam para uma situação em que o arguido perdeu, momentaneamente, a plena capacidade de vigilância com que circulava, tendo ficado desatento, e, nesse âmbito, perdeu o controlo da viatura que conduzia, infringiu regras de circulação rodoviária e contribuiu decisivamente para a verificação do acidente, com as consequências descritas para os dois ocupantes da viatura, quando, a verdade é que poderia ter cuidado de agir de forma diversa, adoptando uma postura de maior cautela, descansado por um período mais alargado após o final da sua jornada de trabalho ou, por hipótese, terminando a mesma mais cedo, por forma a encontrar-se plenamente apto ao exercício da condução. Não se pode ignorar que, uma coisa é a forma como percepcionamos o nosso cansaço e a forma como o controlamos ou o sentimos afectar as nossas capacidades para o desempenho de actividades como, inter alia, a condução. Diversamente, é a forma como efectivamente o mesmo afecta a capacidade de actuar, a capacidade de reacção durante o exercício, in casu, da condução, actividade esta que, dadas as suas características, exige ao condutor que adopte todas as medidas de que seja capaz por forma a exercê-la da forma mais segura possível. Daí que o tribunal tenha dado os aludidos factos como provados.
No que às concretas condições sócio-económicas e profissionais do arguido, o Tribunal ponderou as suas declarações, as quais se afiguraram coerentes e credíveis.
Finalmente, quanto à ausência de antecedentes criminais registados, atentou-se no Certificado do Registo Criminal do arguido, junto aos autos a fls. 445.
No que tange à ausência de factualidade dada como não provada, tal resulta, desde logo, da ausência de qualquer outro elemento probatório produzido nesse circunspecto, e, bem assim, por contraponto à prova concretamente produzidas e analisada nos autos, cf. explanado supra.
*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação. (Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Como bem esclarecem os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, «Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art. 684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recorrente A as questões a decidir são as seguintes:
1.ª - se a decisão recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a), n.º 2 do art.410.º do Código de Processo Penal; e
2.ª - se foram violados os princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo, impondo-se a absolvição do arguido/recorrente.
Passemos ao seu conhecimento.
-
1.ª Questão: do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O recorrente A defende que a decisão recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a al. a), n.º 2 do art.410.º do Código de Processo Penal.
Alega para o efeito e em síntese o seguinte:
- O Tribunal a quo constatou e admitiu a possibilidade de que o arguido possa ter desmaiado e involuntária e inconscientemente tenha invadido a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, e não investigou e apreciou criticamente tais contingências da vida;
- Tanto mais que o arguido negou que conduzisse em estado de sonolência em estado de sonolência e, consequentemente se tenha deixado dormir, referindo ao invés, que não sabe o que se passou, que terá desmaiado, sofrido um apagão, que apenas se recorda de se encontrar no hospital onde lhe é referido que tinha sido vítima de um acidente, como resulta dos segmentos das suas declarações, que se indicam na gravação e transcrevem na motivação;
- Esta explicação, que é mais verosímil de poder ter acontecido, não foi contraposta à do “micro-sono ou de menos vigilância”, referida na sentença, porque a ter acontecido o arguido teria acordado ou despertado, dado que não sofreu quaisquer lesões ou traumas na cabeça, extraindo-se assim, as necessárias ilações.
- Não há uma única prova produzida em audiência de julgamento que permita concluir ou que se revele, intrinsecamente, mais segura por forma a concluir que a causa da invasão foi provocada pelo “micro sono ou de menos vigilância”, pois uma síncope também ocorre quando não há um aporte adequado de sangue para o cérebro, provocando o desmaio.
- Haveria que averiguar se a invasão da faixa de rodagem contrária por banda do arguido ocorreu em consequência de um evento súbito, imprevisível, imediato, inevitável e estranho à vontade do arguido, i.é, de um colapso, de uma quebra de tensão, de um desmaio, que determinou a mudança de trajectória e que chegasse inconsciente ao hospital.
- Não o tendo o Tribunal a quo discutido e averiguado o motivo determinante da invasão da faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, não estava em condições de poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição, pelo que a sentença padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada no ponto n.º 15 da sentença recorrida.
Vejamos se assim é.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou
c) O erro notório na apreciação da prova.».
Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito.
Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.

Posto isto.
O recorrente A refere que o Tribunal a quo constatou e admitiu a possibilidade de que o arguido possa ter desmaiado e involuntariamente, nesta situação, tenha invadido a faixa de rodagem contrária àquela em que seguia, mas não indica, em concreto, em que parte da sentença consta escrita essa constatação e admissão de possibilidade de que o arguido, previamente à invasão da faixa contrária àquela em que seguia, desmaiou.
Não indica o recorrente, no texto da sentença recorrida, o local onde o Tribunal a quo referiu que constatou e admitiu a possibilidade de que o arguido possa ter desmaiado, nem o Tribunal de recurso encontrou tal afirmação na decisão judicial.
O Tribunal a quo fundamentou a factualidade dada como provada nos pontos n.ºs 15, 16 e 17 da douta sentença recorrida, respeitante às condições do arguido para o exercício da condução, essencialmente em face estado de saúde do arguido dado o conhecer pelo próprio, conjugado com as suas declarações, com os depoimentos das testemunhas …, conjugadas com as regras da experiência comum.
Da fundamentação desta parte da factualidade dada como provada na sentença, consta que o arguido é uma pessoa jovem, e tanto quanto foi dado a conhecer ao Tribunal, saudável, tendo o arguido declarado que se sentiu bem durante todo o percurso e sem sonolência.
No dizer do Tribunal a quo, “ … os factos coligidos apontam para uma situação em que o arguido perdeu, momentaneamente, a plena capacidade de vigilância com que circulava, tendo ficado desatento, e, nesse âmbito, perdeu o controlo da viatura que conduzia, infringiu regras de circulação rodoviária e contribuiu decisivamente para a verificação do acidente, com as consequências descritas para os dois ocupantes da viatura, quando, a verdade é que poderia ter cuidado de agir de forma diversa, adoptando uma postura de maior cautela, descansado por um período mais alargado após o final da sua jornada de trabalho ou, por hipótese, terminando a mesma mais cedo, por forma a encontrar-se plenamente apto ao exercício da condução. Não se pode ignorar que, uma coisa é a forma como percepcionamos o nosso cansaço e a forma como o controlamos ou o sentimos afectar as nossas capacidades para o desempenho de actividades como, inter alia, a condução. Diversamente, é a forma como efectivamente o mesmo afecta a capacidade de actuar, a capacidade de reacção durante o exercício, in casu, da condução, actividade esta que, dadas as suas características, exige ao condutor que adopte todas as medidas de que seja capaz por forma a exercê-la da forma mais segura possível. Daí que o tribunal tenha dado os aludidos factos como provados.”.
Constando da fundamentação da sentença que o arguido é saudável, que teve um dia cansativo - iniciado bastante cedo, com dedicação à atividade de tosquia durante todo o dia, e inicio da condução após ter tomado banho, em final da primavera, com temperatura amena – e, que face à perceção do acidente pelas testemunhas … - descrevendo a invasão da faixa de rodagem por parte do arguido por perda de controlo do seu veículo e incapacidade de o recuperar - entendemos que não resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, que se impunha ao Tribunal a quo averiguar
se a invasão da faixa de rodagem contrária por banda do arguido ocorreu em consequência de um evento súbito, imprevisível, imediato, inevitável e estranho à vontade do arguido, como um colapso, de uma quebra de tensão, de um desmaio, que determinou a mudança de trajectória e que chegasse inconsciente ao hospital.
Quando o recorrente A imputa à douta sentença recorrida o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, porquanto não terá investigado e apreciado criticamente o seu estado de saúde, nomeadamente, a possibilidade de ter desmaiado previamente à invasão da faixa contrária àquela em que seguia, remete para segmentos na gravação das suas próprias declarações, cuja reapreciação requer assim ao Tribunal de recurso.
A impugnação da matéria de facto, efetuada nestes termos, não se confunde com o vício em questão, uma vez que não se limita ao texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.
A partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o Tribunal da Relação não vislumbra, um qualquer facto que ficou por averiguar em julgamento, relevante para a boa decisão da causa, nomeadamente para a defesa do recorrente.
Por outro lado, os factos dados como provados permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, com o preenchimento pelo arguido/recorrente dos elementos constitutivos do crimes de homicídio por negligência e de ofensa à integridade física por negligência, pelo que, consequentemente, não temos por verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do Código de Processo Penal.
Embora o recorrente A impugne a matéria de facto aludindo apenas ao vício a que alude o art.410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, acaba por imputar, ainda, ao Tribunal a quo, um erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como provada a factualidade constante do ponto n.º 15 da sentença, requerendo a reapreciação de segmentos das suas declarações produzidas em julgamento.
Esta situação remete-nos para a impugnação da matéria de facto pela via ampla, a que se reporta o art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P..
O art.412.º, n.º3 do Código Penal, impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, pela chamada via ampla, o dever de especificar:
« a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devam ser renovadas
O n.º 4 deste art.412.º, acrescenta que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.», pelo o recorrente deverá indicar a sessão de julgamento em que as declarações ou depoimentos constam e localizar a passagem em causa na gravação, de modo a deixar claro qual a parte da declaração ou depoimento que se quer que o Tribunal de recurso ouça ou aprecie.
Nos termos do n.º 6 do art.412.º do C.P.P., o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e, ainda, de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
No presente caso, o arguido A especifica, nas conclusões da motivação, o concreto ponto de facto que considera incorretamente julgado e a concreta prova que impõe decisão diversa da recorrida, mas já não indica as concretas passagens em que funda a impugnação, através da indicação da sessão de julgamento em que as suas declarações constam na gravação.
Porém, na motivação do recurso, indica os concretos pontos da matéria de facto que impugna e localiza na gravação as passagens das suas declarações, transcrevendo os respetivos segmentos.
O Tribunal da Relação considera, assim, que o mesmo deu cumprimento mínimo ao estabelecido no art.412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P. e, por uma questão de economia processual, mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, julga-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, se concluir pela existência de erro de julgamento.
Antes de passar ao conhecimento direto da questão, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse.
É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no art.127.º do Código de Processo Penal, que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.
As normas da experiência, a que se deve atender na apreciação da prova, são «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» Cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300. .
Quanto à livre convicção do juiz, nessa apreciação da prova, ela não pode esta deixar de ser “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela (deve ser) uma convicção objetivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros.” Cfr. Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 203 a 205. .
Na livre apreciação da prova o juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis. Observa, a este respeito, o Prof. Germano Marques da Silva, que «Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem essencialmente da imediação, mas hão de basear-se na correção do raciocínio, que há de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.». Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição, pág.186
O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no art.355.º do Código de Processo Penal. É ai, na audiência de julgamento, que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova, na receção direta de prova e se assegura o princípio do contraditório, garantido constitucionalmente no art.32.º, n.º5.
Reportando-se aos princípios da oralidade e imediação diz o Prof. Figueiredo Dias, que «Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...). Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais corretamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.”. Obra citada, páginas 233 a 234
Na verdade, a convicção do Tribunal a quo é formada da conjugação dialética de dados objetivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Assim, se o recorrente impugna somente a credibilidade das declarações ou do depoimento deve indicar elementos objetivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade das declarações ou depoimentos, pois aquela, quando estribada em elementos subjetivos é um sector especialmente dependente da imediação do tribunal recorrido.
Uma vez, porém, que o princípio da livre apreciação da prova tanto vincula o tribunal de 1.ª instância como o tribunal de recurso, e que a reforma do Código de Processo Penal de 1998 deixou inequívoco que se quis assegurar um recurso efetivo da matéria de facto, o Tribunal da Relação, na reapreciação da matéria de facto a que se procede nos termos do art.412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P., vai proceder a uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão tomada pelo Tribunal a quo quanto ao ponto de facto que o recorrente considera incorretamente julgado, avaliando se as provas indicadas por este impõem – e não apenas permitem – decisão diversa da recorrida.
Se o Tribunal a quo, que beneficiou plenamente da imediação e da oralidade da prova, explicou racionalmente a opção tomada, e o Tribunal da Relação entender que da reapreciação da prova resulta o acerto dessa opção sobre a matéria de facto impugnada, nos termos do art.127.º do C.P.P., por não impor decisão diversa, deve manter a decisão recorrida.
Retomando o caso concreto.
O Tribunal da Relação procedeu à audição das declarações do arguido.
Das suas declarações, prestadas na audiência de julgamento que decorreu na manhã do dia 2 de fevereiro de 2018, resulta, no essencial, designadamente, o seguinte:
Depois de no dia anterior aos factos em causa se deitar pelas 20h/20h30, levantou-se no dia seguinte pelas 5 horas da manhã, como é habitual nessa altura. Foi dia de tosquiar ovelhas, com uma equipa de 6 pessoas e 4 a agarrar ovelhas até às 16h/16/30. Depois tomou banho, trocou de roupa e comeu. Antes do acidente de viação vinha a uma velocidade normal, lembra-se de fazer a curva que antecede a reta onde ocorreu o acidente e de se cruzar com um carro. Não se recorda do acidente, só se lembra de acordar no Hospital “…todo partido, tal como as duas outras pessoas que ficaram bastante mal”. Rachou ou partiu três costelas, a clavícula, duas vezes o fémur, o pulso e ficou com lesões visíveis num olho que ficou torto e escoriações na cara, e “não encontro explicação para o que se passou”.
Perguntado diretamente se “admite que possa ter perdido os sentidos, que possa ter desmaiado? Já disse que não vinha com sono ” respondeu de imediato que a última hipótese é que pode ter-se deixado dormir. Admitindo que “vinha bem” a conduzir, que não vinha sonolento, pode ter desmaiado. Voltando a ser questionado sobre a possibilidade de ter desmaiado, volta a dizer: “a última hipótese que eu ponho é ter-me deixado dormir”. Já desmaiou ao ver o seu próprio sangue.
Na audiência de julgamento realizada na parte da tarde do dia 2 de fevereiro de 2018, o arguido pediu para voltar a prestar declarações, e são estes segmentos indicados na gravação que se mostram transcritos na motivação do recurso.
Refere o arguido agora que lhe custou ouvir do depoimento das duas últimas testemunhas que possa ter-se deixado dormir, pois fez a viagem toda bem e esteve sempre desperto.
Voltando-lhe a ser feita a pergunta se não terá desmaiado, refere que poderá ter desmaiado, e que “adormecer é que não.”
Do ora exposto resulta que o arguido A, na parte da manhã, mais espontaneamente, admite como hipótese, mesmo que seja a última, ter-se deixado dormir, apesar de não se recordar do que se passou quando invadiu a faixa de trânsito contrária e foi embater no veículo que seguia na sua mão de trânsito.
A afirmação do recorrente de que é verosímil ter desmaiado antes do acidente uma vez que chegou inconsciente ao Hospital sem que haja sofrido lesões ou traumas na cabeça, está longe de ser um argumento pertinente.
Tendo o arguido ter sido interveniente num violento acidente de viação de que saiu, no seu dizer “todo partido” e até com lesões na cabeça, não foge às regras da experiência comum que o mesmo ficou inconsciente durante algum tempo em consequência do violento traumatismo sofrido no seu corpo.
Se o arguido tem elementos que contrariavam estas regras da experiência comum devia-os ter apresentado em julgamento; se o não fez, só se pode queixar de si.
Em suma, reapreciada a prova indicada pelo recorrente nas conclusões do recurso, conclui o Tribunal da Relação que a convicção a que o Tribunal a quo chegou mostra-se objeto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, onde não se vislumbra qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
Por outro lado, a prova indicada pelo recorrente, que são apenas as suas declarações, não se impõe uma decisão diversa da recorrida.
Assim, mais não resta que julgar improcedente esta questão.
-
2.ª Questão: da violação dos princípios da presunção da inocência e in dubio pro reo.
O recorrente A defende, ainda, que entende que foi violado o princípio in dúbio pro reo porquanto existe uma dúvida razoável quanto à factualidade dada como provada no ponto n.º 15 da sentença. A falência de manancial probatório, nos termos que se deixaram alegados, deve levar a um non liquet, a ser valorado probatoriamente a favor do arguido.
A matéria de facto constante do ponto n.º 15 deve ser alterada, passando para a factualidade não provada e, consequentemente, deve ser revogada a sentença recorrida e o arguido absolvido da acusação.
Apreciando.
O art.32.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
A presunção de inocência, inscrita ainda no art.6.º, § 2.º da CEDH, é um princípio de inspiração jusnaturalista iluminista que assenta na dignidade do ser humano e na defesa da sua posição individual perante a omnipotência do Estado.
É mais abrangente do que o princípio do “in dubio pro reo”, já que este é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido.
O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.
A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido. Cfr. entre outros, o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996, in C.J., ASTJ, ano IV, 1º, pág. 177.
Dito de outro modo, refere o Prof. Roxin, que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111.
Se na fundamentação da sentença oferecida pelo Tribunal, este não invoca qualquer dúvida insanável, ou, ao invés, se a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, com indicação clara e coerente das razões que fundaram a convicção do tribunal, inexiste lugar à aplicação do princípio in dubio pro reo.
No caso em apreciação e salvo o devido respeito, não é nesta perspetiva que o recorrente A coloca a questão, mas antes na da insuficiência da prova produzida face à decisão de facto proferida, e do erro de julgamento, assunto que atrás se conheceu no âmbito dos vícios do art.410.º do C.P.P. e da impugnação por via ampla da matéria de facto, prevista no art.412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código.
Lendo a fundamentação sobre a matéria de facto da douta sentença, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pelo arguido A dos factos dados como provados e que este impugna.
O que resulta daquela decisão é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pelo arguido/recorrente A dos factos dados como provados, pelo que está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do princípio in dúbio pro reo associado ao princípio da inocência.
Perante o exposto, consideramos definitivamente fixada a matéria de facto, nos termos que constam da douta decisão recorrida.
Preenchendo a conduta do arguido todos os elementos constitutivos dos crimes pelos quais se mostra acusado e pelos quais foi condenado, como bem se demonstra na fundamentação da matéria de direito da douta sentença recorrida, improcede esta questão e, consequentemente, o recurso.

Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando em 5 UCs a taxa de justiça (art.513º, nºs 1 e 3, do C. P.P. e art.8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).
*
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).
*
Coimbra, 12-09-2018

Orlando Gonçalves (relator)

Inácio Monteiro (adjunto)