Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
40/08.1TBMMV.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 03/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.483 CC, 31 DA LEI Nº 100/97 DE 13/9
Sumário: 1. - Não são cumuláveis as indemnizações por acidente de trabalho e a indemnização por facto ilícito, desde que haja identidade de danos ressarcidos a um e a outro título.

2. - A indemnização laboral é consumida ou pode vir a ser consumida pela indemnização que venha a ser arbitrada com base em facto ilícito, beneficiando desta consumpção o responsável a título laboral.

3. - O responsável civil por acidente de viação não tem direito a abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.

Decisão Texto Integral:             Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

            1. Relatório

            A 17 de Janeiro de 2008, no Tribunal Judicial da Comarca de Montemor-o-Velho, com o benefício de apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais despesas do processo, J (…) instaurou acção declarativa sob forma ordinária contra L (…) Seguros, SA pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 61.483,55, sendo € 8.091,68, a título de incapacidade temporária absoluta, € 220,93, a título de incapacidade temporária parcial, € 45.670,93, a título de perda de ganhos futuros, € 7.500,00, a título de incapacidade temporária absoluta resultante da cirurgia a que vai ser submetido, a que acrescem € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais e juros contados à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

            Em síntese, o autor alega que no dia 13 de Junho de 2005, pelas 7h40, na Estrado do Campo, Meãs do Campo, concelho de Montemor-o-Velho, foi vítima de um acidente de viação causado por um veículo, achando-se a responsabilidade civil emergente de acidente de viação com intervenção de tal veículo transferida para a ré, resultando do referido sinistro os danos cujo ressarcimento peticiona.

            Efectuada a citação da ré, esta contestou aceitando a factualidade relativa à dinâmica do acidente, admitindo a responsabilidade do condutor do veículo por si seguro, impugnando por desconhecimento os danos alegados pelo autor, alegando que o autor nada mais tem a receber a título de perda de capacidade de ganho em virtude de já ter sido ressarcido deste dano, a título de acidente de trabalho, concluindo pela improcedência da acção.

            Proferiu-se despacho saneador tabelar e procedeu-se à condensação da factualidade relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória.

            As partes ofereceram as suas provas, realizando-se a prova pericial requerida pela ré.

            Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com registo magnético da prova pessoal aí produzida.

            Proferiu-se decisão sobre a matéria de facto vertida na base instrutória.

            Elaborou-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada, condenado a ré a pagar ao autor a quantia de € 40.739,55, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento, a quantia de € 7.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde a prolação da sentença (08 de Junho de 2011) e até efectivo e integral pagamento.

            Inconformada com esta decisão, a ré interpôs recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem incidência sobre o montante total arbitrado a título de danos patrimonial futuro do Recorrido configurando uma duplicação de indemnização por se tratar de acidente simultaneamente de viação e trabalho;

2. O acidente dos presentes autos consubstanciou simultaneamente um acidente de viação e de trabalho;

3. Ocorre que, não há um dano da viação e um dano do trabalho, mas apenas um dano com origem na viação;

4. O Autor havia já efectivamente recebido da Companhia de Seguros (…)aquando da propositura da presente acção, o montante de €6.640,57 a título de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias; €22.987,34 a título de capital de remissão referente a uma IPP de 18,16%; €10,00 de deslocações ao Tribunal; €485,90 a título de despesas de transporte durante a assistência clínica

5. Ora, o montante de capital de remissão entregue ao Recorrido, referente à sua incapacidade permanente para o desempenho de funções laborais, destinava-se a ressarci-lo integralmente da perda de capacidade de ganho com base na IPP determinada e avaliada com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI).

6. No direito laboral está em causa a avaliação da incapacidade de trabalho resultante de acidente de trabalho ou doença profissional que determina a perda da capacidade de ganho;

7. No âmbito do direito civil, e face ao principio da reparação integral do dano nele vigente, deve-se valorar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os actos e gestos correntes do dia-adia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da actividade profissional específica do examinando.

8. Com efeito, no dano de natureza geral inclui-se o dano laboral e quanto a este e somente este a Recorrente se insurge, porquanto na indemnização arbitrada há uma duplicação de indemnização atribuída ao Recorrido.

9. Como é consabido, não pode o Autor cumular indemnizações pelo mesmo dano, motivo pelo qual à quantia apurada na acção como correspondendo ao seu dano, deverá ser deduzida a referida quantia de € 22.987,34 já entregue ao Autor;

10. Assim, no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho, isto é, à quantia de €40.000,00 deve ser descontada a quantia de €22.987,34, perfazendo assim o montante total devido ao Recorrido €17.012,66 (dezassete mil e doze euros e sessenta e seis cêntimos).

11. Pretende-se desta forma evitar o enriquecimento injustificado do lesado, mediante a acumulação do próprio capital e os respectivos rendimentos.

12. Na verdade, não sendo as indemnizações cumuláveis o lesado não poderá receber as duas indemnizações integral e autonomamente, dado que, se tal sucedesse, isso equivaleria a reparar duas vezes o mesmo dano, com o consequente enriquecimento ilegítimo.

13. Apenas por manifesta má-fé poderá o Recorrido aceitar o pagamento da quantia que lhe foi atribuída pela douta sentença recorrida, sabendo que já recebeu os montantes acima referidos a título de indemnização, por via da seguradora de acidentes de trabalho;

14. As indemnizações não são cumuláveis mas sim complementares, o que significa isto que por via da complementaridade das prestações deve ser deduzida ao valor aqui fixado o valores já pago pela Congénere Acidentes de Trabalho a título de capital de remissão referente à IPP.

15. A jurisprudência que consultamos é unânime quanto a este aspecto ( Entre outros, acórdãos do STJ de 11-9-2008 (www.dgsi.pt/jstj), 24-1-2002 ( in Col. Jur. Acs. do STJ 2002, Tomo I, pág. 54 ), de 26-5-1993 ( in Col. Jur. Acs. do STJ 1993, Tomo II, pág. 130 ).

16. Assim, a manter-se a decisão recorrida consubstancia ou traduz um enriquecimento ilegítimo do Recorrido, que dessa forma se vê ressarcido, duplamente, pelos mesmos danos (perda da capacidade de ganho), no foro laboral e no foro civil.

17. Nesta medida, e ressalvando o devido respeito, a douta sentença recorrida extrapola o âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 562.º 564.º e 566.º do Código Civil, na medida em que aplica as referidas normas, indiscriminadamente, olvidando a quantia indemnizatória recebida pelo Recorrido, violando, concomitantemente, o entendimento da Jurisprudência unânime quanto a este assunto.

18. Assim, e por toda a ordem de razões já expostas, deverá a douta sentença ser revogada no que concerne ao total do montante que a Recorrente foi condenada a titulo de dano patrimonial futuro, devendo ser descontado o montante recebido pelo Recorrido no âmbito do direito laboral.

            O autor contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso alegando inexistir qualquer duplicação de indemnizações, pois as tabelas usadas para determinação do dano laboral e civil são diferentes, tendo a indemnização pelo dano futuro arbitrada nestes autos sofrido uma dedução de um quarto e, ainda que assim sucedesse, sempre competiria à seguradora de acidentes de trabalho solicitar o reembolso do que pagou a tal título e não à ré recorrente a dedução do montante já pago ao autor a título de perda de capacidade ganho por acidente de trabalho.

            Ordenou-se a baixa dos autos à primeira instância a fim de se proceder à fixação do valor da causa.

Suprida a omissão apontada, colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

            2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 684º, nº 3 e 685º-A nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil

A única questão a decidir é a de saber se deve ser deduzida à indemnização arbitrada ao recorrido a título de perda de capacidade de ganho o montante que lhe foi entregue pela seguradora de acidentes de trabalho, a título de capital de remição da sua pensão por acidente de trabalho.

3. Fundamentos constantes da decisão sob censura e que não foram objecto de qualquer impugnação, não impondo os elementos do processo decisão diversa, impassível de ser destruída por outras provas não tendo sido oferecido qualquer documento superveniente que por si só seja suficiente para destruir a prova em que a decisão recorrida assentou


3.1

            No dia 13 de Junho de 2005, às 7:40 horas, ocorreu um embate na Estrada do Campo, concelho de Montemor-o-Velho, no qual foram intervenientes o veículo de matrícula (...) IT, marca Renault, onde o autor era transportado de forma gratuita, e o veículo de matrícula (...)PO, de marca Nissan (alínea A dos factos assentes).

3.2

O embate ocorreu quando o veículo Nissan, matrícula (...) PO, conduzido por S (…), subia uma lomba e avistou o veículo de matrícula (...) IT, conduzido por J (…) (alínea B dos factos assentes).

3.3

Ao avistar o veículo Renault, o condutor do Nissan travou de repente e porque o piso estava molhado, saiu da sua hemi-faixa de rodagem e foi embater de frente naquele veículo, na hemi-faixa de rodagem destinada à circulação deste (alínea C dos factos assentes).

3.4

Em consequência do embate o autor sofreu ferimentos que foram determinantes do seu internamento no Centro Hospitalar de Coimbra – Hospital dos Covões (resposta ao artigo 1º da base instrutória).

3.5

Ao autor foi-lhe diagnosticado um traumatismo torácico com fractura do externo e fractura bimaleolar esquerda (resposta ao artigo 2º da base instrutória).

3.6

Em consequência das lesões referidas em 2º, da base instrutória, o autor teve que ficar imobilizado com bota engessada à esquerda e medicado (resposta ao artigo 3º da base instrutória).

3.7

E sujeitou-se a um período de tratamentos, consultas e exames (resposta ao artigo 4º da base instrutória).

3.8

Em consequência das referidas lesões o autor apresenta as seguintes sequelas ao nível do membro inferior esquerdo: dor à palpação do maléolo medial; discreto edema das tíbio-társica; dificuldade em deambular em pontas de pés e calcanhares; limitação das mobilidades do tornozelo (faz 9º de flexão dorsal e 20º de flexão plantar) limitação das mobilidades do pé (faz 2º de inversão e 0º de eversão); artrose ao nível das articulações tíbio-társica e médio-társica esquerdas, patologia esta que tem carácter degenerativo e irá agravar-se com o decorrer do tempo, aumentando a dor e a limitação funcional (resposta ao artigo 5º da base instrutória).

3.9

Em consequência das lesões sofridas o autor foi portador de uma incapacidade temporária absoluta (ITA) de 13 de Junho de 2005 a 2 de Abril de 2006 (resposta ao artigo 6º da base instrutória).

3.10

E de uma incapacidade temporária parcial (ITP) de 50% de 3 de Abril de 2006 a 18 de Abril de 2006 (resposta ao artigo 7º da base instrutória).

3.11

Face às sequelas de que ficou a padecer, o autor é portador de uma incapacidade permanente geral, correspondente à afectação definitiva da sua actividade física e/ou psíquica, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, fixável em 12 pontos, acrescida de 5 pontos, tendo em vista o agravamento das sequelas que se irá registar e que se pode traduzir num aumento daquela incapacidade, o que corresponde a uma incapacidade permanente geral global de 17 pontos, tudo de acordo com a Tabela de Incapacidades em Direito Civil [Anexo II do Decreto-lei número 352/07, de 23 de Outubro] (resposta ao artigo 8º da base instrutória).

3.12

As sequelas referidas no artigo 5º, da base instrutória irão agravar-se no futuro (resposta ao artigo 9º da base instrutória).

3.13

E vão obrigar o autor a submeter-se a uma intervenção cirúrgica denominada “Artodese do tornozelo”, com vista a fixação articular-artrodose tíbio társica (resposta ao artigo 10º da base instrutória).

3.14

O que implicará para o autor uma ITA de cerca de 6 meses (resposta ao artigo 11º da base instrutória).

3.15

A operação cirúrgica referida no artigo 10º, da base instrutória, tem hoje um custo que se situa entre três a quatro mil euros (resposta ao artigo 12º da base instrutória).

3.16

Tendo em conta o tipo de lesões, os tratamentos (que incluíram, entre outros, imobilização gessada, deambulação com canadianas, e programa de fisioterapia), o autor sofreu dores que são de fixar no grau quatro na escala de sete graus de gravidade crescente utilizada para medir o quantum doloris (resposta ao artigo 13º da base instrutória).

3.17

O autor era à data do embate manobrador de máquinas da construção civil, na sociedade[1] AA (...), S.A., auferindo uma retribuição mensal base de €: 702,00, acrescida de subsídios de alimentação de €: 126,50 (resposta ao artigo 14º da base instrutória).

3.18

O autor sofreu quando esteve no hospital, onde foi sujeito a tratamentos dolorosos (resposta ao artigo 17º da base instrutória).

3.19

O autor sofre actualmente com dores (resposta ao artigo 19º da base instrutória).

3.20

E sofrerá quando for sujeito à intervenção cirúrgica referida em 10º, da base instrutória (resposta ao artigo 20º da base instrutória).

3.21

O autor nasceu no dia 19 de Agosto de 1970[2].

3.22

A título de retribuições pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial, referidos, respectivamente, nos artigos 6º e 7º, da base instrutória, o autor recebeu a quantia de €: 6.640,57 [seis mil e seiscentos e quarenta euros e cinquenta e sete cêntimos] (resposta ao artigo 22º da base instrutória).

3.23

No âmbito do processo de acidente de trabalho que correu termos no 1º Juízo do Tribunal do Trabalho de Coimbra com o número 517/06.3TTCBR, o autor, ali sinistrado, e a COMPANHIA DE SEGUROS (…), S.A., ali entidade responsável, acordaram em fixar a IPP (incapacidade permanente parcial) daquele em 18,16% (resposta ao artigo 23º da base instrutória).

3.24

O acidente mencionado em A), dos factos assentes, ocorreu no percurso do autor para o seu local de trabalho e foi considerado como acidente de trabalho, em cujo âmbito o autor recebeu já as seguintes quantias: € 6.640,57, a título de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias; € 22.987,34 a título de capital de remição[3] referente a uma IPP de 18,16%; € 10,00, de deslocações ao Tribunal; 485,90, a título de despesas de transporte durante a assistência clínica (alínea G dos factos assentes).

3.25

A responsabilidade por danos causados a terceiros em consequência da circulação do veículo (...) PO encontrava-se transferida para a Europeia Seguros, actualmente, (…) Seguros, S.A., através de um contrato de seguro titulado pela apólice número 00541723 (alínea D dos factos assentes).

3.26

A responsabilidade por danos causados a terceiros em consequência da circulação do veículo (...) IT encontrava-se transferida para a Companhia de Seguros (…), S.P.A., através de um contrato de seguro titulado pela apólice número (...) (alínea E dos factos assentes).

3.27

A ré assumiu a responsabilidade do seu segurado no embate descrito nas alíneas A), B) e C), dos factos assentes, através de carta de 8 de Maio de 2006 (alínea F dos factos assentes).

3.28

O autor é beneficiário da Segurança Social com o número (...) (alínea H dos factos assentes).

4. Fundamentos de direito

4.1 Deve ser deduzido o montante que foi entregue ao recorrido pela seguradora de acidentes de trabalho, a título de capital de remição da sua pensão por acidente de trabalho à indemnização que lhe foi arbitrada a título de dano futuro por perda de capacidade de ganho?

No caso em apreço, a recorrente não se insurge contra os critérios seguidos na decisão recorrida para a determinação do montante arbitrado a título de indemnização ao recorrido por perda de capacidade de ganho. A recorrente apenas pugna pela dedução a esse montante daquele que foi pago ao recorrido a título de capital de remição da pensão por acidente de trabalho pela seguradora de acidentes de trabalho.

Na decisão sob censura afastou-se a pretendida dedução argumentando-se com a diversidade dos danos a impossibilitar essa operação. Escreveu-se na decisão recorrida, a este propósito:

Aqui chegados, importa questionar se na fixação da indemnização pelo referido dano deverá ser tida em conta a circunstância de ter ficado provado que o acidente em causa nestes autos ocorreu no percurso do autor para o seu local de trabalho, razão pela qual foi considerado como acidente de trabalho, em cujo âmbito o autor recebeu a quantia de €: 22.987,34 a título de capital de remissão referente a uma IPP de 18,16%.

A resposta não pode, no entender deste Tribunal, deixar de ser negativa.

Na verdade, o dano que a indemnização acima fixado visa ressarcir não é um dano laboral, mas um dano de natureza geral, ou seja, o que corresponde à denominada incapacidade permanente geral, correspondente à afectação definitiva da actividade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares, sociais, de lazer e desportivas, a qual não tem sequer expressão em termos de incapacidade para o trabalho, apenas exigindo ao autor esforços acrescidos nesse domínio.

Assim, tratando-se de danos distintos (o decorrente da incapacidade permanente parcial, do domínio laboral, e da incapacidade permanente geral, do âmbito do direito civil), afigura-se que as respectivas indemnizações terão que ser igualmente distintas, não sendo de contemporizar, ao nível da indemnização do dano civil, aquilo que o autor recebeu no âmbito da indemnização do dano laboral.

Cumpre apreciar e decidir.

Na decisão recorrida fixou-se a indemnização a título de dano futuro por perda de capacidade de ganho na importância de quarenta mil euros, valor fixado, a final, com recurso às regras da equidade. No percurso da fixação da indemnização o tribunal recorrido teve os seguintes pontos de referência:

a) o percentual de desvalorização de que ficou a padecer o recorrido (17 %);

b) os valores anuais das perdas salariais correspondentes a tal afectação (€ 1.950,15);

c) o capital necessário para produzir rendimento equivalente às perdas salariais determinadas a uma taxa média de 3 % (€ 65.005,00);

d) a redução a metade daquele capital em virtude da afectação de que o recorrido ficou a padecer não se traduzir numa efectiva perda de rendimentos (uma primeira redução de um quarto) e por causa da antecipação do recebimento do capital (a segunda redução de um quarto) (€ 36.565,31);

e) a necessidade do recorrido ser submetido a uma futura intervenção cirúrgica, com vista a fixação articular-artrodose tíbio-társica, com um custo de três a quatro mil euros, na data da decisão da matéria de facto em primeira instância e a implicar uma incapacidade temporária absoluta de cerca de seis meses.

Nos termos do disposto no artigo 31º, nº 1, da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro[4], “Quando o acidente for causado por outros trabalhadores ou terceiros, o direito à reparação não prejudica o direito de acção contra aqueles, nos termos da lei geral.

Se o sinistrado em acidente receber de outros trabalhadores ou de terceiros indemnização superior à devida pela entidade empregadora ou seguradora, esta considera-se desonerada da respectiva obrigação e tem direito a ser reembolsada pelo sinistrado das quantias que tiver pago ou despendido” (artigo 31º, nº 2, da Lei nº 100/97).

Se a indemnização arbitrada ao sinistrado ou aos seus representantes for de montante inferior ao dos benefícios conferidos em consequência do acidente ou da doença, a desoneração da responsabilidade será limitada àquele montante” (artigo 31º, nº 3, da Lei nº 100/97).

A entidade empregadora ou a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1, se o sinistrado não lhes houver exigido judicialmente a indemnização no prazo de um ano, a contar da data do acidente” (artigo 31º, nº 4, da Lei nº 100/97).

A entidade empregadora e a seguradora também são titulares do direito de intervir como parte principal no processo em que o sinistrado exigir aos responsáveis a indemnização pelo acidente a que se refere este artigo” (artigo 31º, nº 5, da Lei nº 100/97).

As previsões legais que se acabaram de citar permitem-nos concluir, com toda a segurança, que não são cumuláveis as indemnizações por acidente de trabalho e a indemnização por facto ilícito[5], desde que haja identidade de danos ressarcidos a um e a outro título[6]. Além disso, resulta dos mesmos normativos que a indemnização laboral é consumida ou pode vir a ser consumida pela indemnização que venha a ser arbitrada com base em facto ilícito, beneficiando desta consumpção o responsável a título laboral. Pode assim afirmar-se que nestes casos de concurso de responsabilidades para ressarcimento dos mesmos danos existe uma pluralidade de responsáveis, a título solidário, sendo um caso de solidariedade imprópria, porquanto o responsável a título laboral pode fazer repercutir no terceiro responsável a totalidade da responsabilidade que lhe cabe.

Na nossa perspectiva, sendo inegável não haver absoluta identidade entre os danos ressarcidos no domínio laboral e nestes autos, não pode deixar de se considerar que existe alguma relação de identidade, sendo contudo o dano ressarcido em sede civil mais amplo do que aquele que foi ressarcido em sede laboral. Daí que, na decisão recorrida se tenha utilizado como factor de referência relevante para a fixação do dano futuro derivado da perda de capacidade de ganho a perda salarial anual correspondente à desvalorização medicamente determinada (17 %), desvalorização bastante próxima daquela que foi fixada em sede laboral (18,16 %). Atente-se ainda que a desvalorização arbitrada em sede laboral não corresponde necessariamente a uma efectiva redução dos ganhos do sinistrado no exercício da sua actividade profissional, na exacta medida da desvalorização arbitrada, podendo mesmo não se verificar nenhuma efectiva redução desses ganhos, havendo assim, sob este prisma, uma grande similitude com as condições em que é ressarcida a incapacidade parcial permanente geral em sede de direito civil. Pelo que precede, afigura-se-nos que o obstáculo à dedução pretendida pela recorrente não reside na falta de identidade dos danos ressarcidos em sede civil e laboral, como se entendeu na decisão recorrida, porque alguma identidade existe, ainda que não total.

Na nossa perspectiva, o obstáculo à pretendida dedução reside no regime legal aplicável a estes autos (artigo 31º, nº 2, da Lei nº 100/97), pois de acordo com tal previsão legal não tem o responsável civil direito a abater à indemnização que lhe compete pagar o montante que já haja sido pago pelo responsável laboral, competindo antes a este último o direito ao reembolso pelo sinistrado daquilo que houver pago a este e na medida em que se verificar identidade de danos ressarcidos.

Assim, por força do disposto no nº 2, do artigo 31º da Lei nº 100/97, não deve ser abatido ao valor da indemnização devida ao recorrido, a título de dano futuro por perda de capacidade de ganho, a suportar pela seguradora responsável pelo acidente de viação, o capital recebido pelo sinistrado em tal acidente, a título de capital de remição de pensão por incapacidade parcial permanente laboral.

Por tudo quanto ficou exposto, conclui-se pela total improcedência do recurso de apelação interposto por L (…) Seguros, SA.

5. Dispositivo

Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por L (…) Seguros, SA e, em consequência, ainda que com base em distintos fundamentos, em confirmar a sentença recorrida proferida a 08 de Junho de 2011. Custas do recurso de apelação a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.


***

Carlos Gil ( Relator )

Fonte Ramos

Carlos Querido



[1] Na resposta consta “firma”, designação corrente mas incorrecta de sociedade, pois a firma é o nome da sociedade.
[2] Certidão de nascimento junta a folhas 136.
[3] Corrige-se o erro de ortografia constante da alínea G dos factos assentes, bem como dos fundamentos de facto da decisão sob censura.
[4] Uma vez que o sinistro ocorreu a 13 de Junho de 2005, não lhe é aplicável a Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, nomeadamente o seu artigo 17º que, no essencial, corresponde ao artigo 31º da Lei nº 100/97, de 13 de Setembro.
[5] Sobre a questão, a título meramente exemplificativo, veja-se o acórdão desta Relação de 02 de Fevereiro de 2010, proferido no processo nº 1593/04.9TBLRA.C1, relatado pelo primeiro juiz-adjunto neste acórdão, acessível no site do ITIJ, bem como a jurisprudência e doutrina citadas na nota 16 do mesmo acórdão, especialmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2009, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Garcia Calejo, no processo nº 1995/05.3TBVCD.S1, acessível no site do ITIJ.
[6] Sobre esta problemática, ainda que a propósito de questão jurídica diversa mas análoga veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Novembro de 2010, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Lopes do Rego, no processo nº 270/04.5TBOFR.C1.S1, acessível no site do ITIJ.