Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | MARIA JOÃO AREIAS | ||
| Descritores: | AVALISTA TÍTULOS EM BRANCO ABUSO DE PREENCHIMENTO RELAÇÃO FUNDAMENTAL INADMISSIBILIDADE DE MEIOS DE DEFESA | ||
| Data do Acordão: | 12/13/2022 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | CONFIRMADA | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGOS 10.º, 17.º, 30.º, N.º 1, 32.º E 77.º DA LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS | ||
| Sumário: | I – Assentando o aval numa relação cambiária triangular que envolverá sempre três sujeitos, o avalizado, o avalista e o credor cambiário, para além daquela relação subjacente entre o avalista e o avalizado, podemos (ou não) encontrar uma outra relação extracartular entre o avalista e o credor cambiário que figura como beneficiário direto do aval.
II – É o que acontece nos casos de subscrição de títulos em banco em que o avalista outorga no próprio acordo de preenchimento celebrado entre avalizado e credor, assim como se pode existir uma convenção extracartular exclusiva entre avalista e credor, a incidir sobre aspetos do direito cambiário entre ambos (prazos, condições), contemporânea ou posterior à prestação do aval, destinado a regular o modo de liquidação da divida cambiária por parte do avalista. III – Sempre que o avalista e credor estejam ligados por uma relação extracartular, estaremos em presença de relações imediatas e o conteúdo daquela convenção é invocável pelo avalista contra o credor na qualidade de meio de defesa próprio. IV – O avalista não se pode socorrer de um alegado abuso de preenchimento, baseado, não em qualquer violação dos acordos de preenchimento da livrança, mas em pretensões respeitantes à relação fundamental subjacente entre o banco e a sociedade avalizada, só exercitáveis no âmbito do contrato de abertura de crédito do qual ele não é parte. (Sumário elaborado pela Relatora) | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n° 1052/21.5T8GRD-A.C1 – Apelação
Relator: Maria João Areias 1º Adjunto: Paulo Correia 2º Adjunto: Helena Melo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO AA, veio, por apenso à execução comum para pagamento de quantia certa que lhe é movida por Banco 1..., S.A., deduzir oposição por meio de embargos de Executado, com os seguintes fundamentos: I. Ilegitimidade do Exequente no âmbito das negociações do processo especial de revitalização a que se submeteu a sociedade subscritora da livrança exequenda, o embargante foi informado pelo Banco 1..., S.A. que o crédito exequendo foi vendido/cedido à sociedade H..., pelo que, fruto da cessão de créditos operada, transferiu a sua posição creditícia para esta sociedade, deixando de ter interesse em prosseguir, como exequente a presente execução, sendo, como tal, parte ilegítima. II. Inexigibilidade. Suspensão da Execução. Caução O crédito exequendo é inexigível por a declaração de vencimento da obrigação principal – a cargo da subscritora da livrança – ser ilegítima, em consequência da situação pandémica vivida no ano de 2020 até à data em que foi declarado o vencimento antecipado do contrato de financiamento nº ...23, por ser abusiva ao não tomar em consideração uma alteração superveniente das circunstâncias em que as partes fundaram a vontade recíproca de contratar (art. 437º do CC) e também por contrariar expectativas fundadas de que não poria termo ao contrato no momento em que o fez. III. Alteração das circunstâncias e abuso de direito Apesar do forte abalo sentido na atividade económica em fruto da situação pandémica que se vive em Portugal e no mundo, e que levou a T..., S.A., a suspender o pagamento das prestações do empréstimo que subjaz à livrança executada, ainda que fosse efetuando pagamentos das prestações até dezembro de 2019, o Banco 1..., S.A. aceitou os atrasos, declarando-se tolerante e compreensivo com a situação, afirmando esperar pela consolidação da retoma da atividade económica para se iniciar o pagamento da dívida; desde finais de 2019 até maio de 2021 (data da declaração de vencimento antecipado), ocorreram conversações com o Banco 1..., S.A. que criaram fundadas expectativas de que o banco aceitaria reestruturar o contrato de financiamento nº ...23; expectativas reforçadas por, por várias vezes, durante 2020 e 2021, o Banco 1..., S.A. ter concedido crédito à T..., S.A., (e empresas que o banco qualificava integrar o grupo T..M...) através das linhas de crédito de €.200.000,00 (desconto/adiantamento de cheques pós-datados) e de €.100.000,00 (desconto de letras aceites); apesar das boas perspetivas de retoma da atividade, das conversações mantidas, da manutenção do apoio de crédito (através das duas linhas atrás faladas) e das expectativas que apontavam para reiniciar-se o pagamento da dívida após a consolidação da retoma da atividade económica, inesperadamente, em maio de 2021, o Banco 1..., S.A. pôs termo ao contrato e preencheu a livrança caução em branco com ele coligada e executou-a; o que configura uma contradição de vontades, já que o Banco 1..., S.A., depois de aceitar a manutenção dos apoios de crédito e declarar que esperaria pela retoma da atividade da T..., S.A., para recomeçar a pagar o empréstimo, alterou o seu comportamento, inopinadamente, sem esclarecer por que motivo o fez e sem dar qualquer oportunidade da empresa avançar com uma solução – o que configura abuso de direito na forma de venire contra factum proprium e tu quoque; se a mutuária e o embargante não fossem surpreendidos pela imprevista e surpreendente decisão de exigir o cumprimento antecipado e integral do capital mutuado, teriam legitimidade para requerer a modificação do contrato por alteração das circunstâncias. III. Impugnação do crédito exequendo Impugna-se o valor de preenchimento da livrança porque o cálculo dos juros está exagerado, atendendo a que a E3M está negativa desde, pelo menos, novembro de 2015, sendo o spread de 3%, impondo-se que o banco venha esclarecer qual o nominal da Euribor a 3 meses que considerou, em cada momento, mais o spread e sobre que capital fez incidir esse cálculo. Conclui, pedindo que na procedência dos embargos, se declare: a) a ilegitimidade do Banco 1..., S.A.; b) Se assim não se entender, a suspensão da execução, enquanto não são julgados os embargos; c) Em qualquer circunstância, procedendo os embargos, deve declarar-se extinta a execução. A Exequente deduziu oposição aos embargos, pugnando pela sua improcedência, alegando, em síntese, que a alegada cessão de créditos não se mostra ainda concretizada, negando, não só, o invocado abuso de direito, como a alegada alteração das circunstâncias, uma vez que o incumprimento já existia antes da situação de pandemia. Quanto ao valor do preenchimento da livrança, o alegado carece de fundamento pois os juros foram calculados com base no reconhecimento do spread de 3%, acrescido de 3% a título de mora, em conformidade com o que resulta das cartas enviadas à sociedade mutuária e avalistas a 7 de junho de 2021. Entendendo que os autos dispunham de todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito, foi proferido Despacho Saneador a julgar improcedentes os embargos, determinando o prosseguimento da execução. * Não se conformando com tal decisão, o Embargante/executado interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões: 1. Foi alegado nos embargos que o Banco 1..., S.A. é parte ilegítima. 2. Por requerimento com a ref. ...55, de 17.05.2022, a A... requereu a sua habilitação como cessionária do crédito do Banco 1..., S.A.. 3. Por douto despacho com a ref. ...65, de 19.05.2022, o Tribunal considerou demonstrada a cessão de créditos e declarou habilitada A.... 4. Assim, à data (02.06.2022) em que foi proferida a decisão que julgou os embargos de executado improcedentes, a A... estava colocada na posição processual (exequente e embargada) do Banco 1..., S.A.. 5. Pelo que, smo, a decisão não deveria declarar parte legítima o Banco 1..., S.A. mas sim a A... – a decisão violou o art. 577º, alínea e), 578º do CPC. Alteração das circunstâncias e abuso de direito 6. Em sede de embargos foi invocada a alteração superveniente das circunstâncias que fundaram a base negocial do financiamento e o comportamento abusivo do banco. 7. O abuso de direito decorre do comportamento contraditório – depois de negociar e criar legítimas expetativas de que aceitaria reestruturar o financiamento à sociedade T..., S.A., inesperadamente, em maio de 2021, declarou o vencimento antecipado do contrato e preencheu a livrança caução em branco que o titula – e 8. Ainda por exigir o cumprimento integral do contrato, num quadro da alteração das circunstâncias, quadro esse que afetou o princípio da igualdade e do equilíbrio contratual, durante a sua execução. 9. O Banco 1..., S.A. ao declarar o vencimento antecipado do empréstimo, ao preencher a livrança e ao executá-la, violou a boa fé contratual – sinalizou que apoiaria a empresa e inopinadamente alterou o seu posicionamento, exigindo, de uma só vez, o cumprimento integral do financiamento, sem dar a oportunidade à devedora principal de retomar o seu cumprimento. 10. O Tribunal decidiu estas duas questões – alteração das circunstâncias e abuso de direito – sem submeter a prova o alegado nos embargos, por entender que o avalista – embargante não pode opor exceções ao preenchimento do título em branco por não estar em relação imediata com o credor/portador da livrança executada. 11. Apesar do aval configurar uma relação jurídica diversa da relação subjacente ou causal (o financiamento entre o banco credor e a devedora), tal não impede que o avalista possa invocar o preenchimento abusivo da livrança, por parte do credor/portador da livrança, desde que tenha intervindo ou participado no pacto de preenchimento da livrança – como é o caso destes autos. 12. Com efeito, o embargante-avalista participou no financiamento (como administrador da subscritora da livrança e prestador de garantia de aval) e no pacto de preenchimento que dele consta (cláusula 18ª das condições gerais - Doc 2 e 3 do r.e.). 13. Atenta a intervenção do embargante no contrato de financiamento, na dupla qualidade de administrador da sociedade subscritora da livrança e de avalista, ficou vinculado ao acordo de preenchimento da livrança, assim como o Banco 1..., S.A. e a sociedade T..., S.A. 14. Tendo-se mantido a livrança em poder do seu portador (o Banco 1..., S.A.), o avalista/embargante tem legitimidade para invocar factos integradores do preenchimento abusivo da livrança - por alteração superveniente das circunstâncias e abuso de direito –, devendo o Tribunal apreciar os factos suscitados, à luz do art 10º da LULL. 15. O contrato de financiamento nº ...23 (DOC 2 do r.e.) e a alteração (DOC 3 do r.e.) são documentos adquiridos para o processo que devem ser tomados em consideração na apreciação dos factos que conduzem à violação do pacto de preenchimento da livrança, por força do art 413º do CPC. 16. A jurisprudência e a doutrina invocada no corpo das alegações confirmam este entendimento. Impugnação do valor pelo qual foi preenchida a livrança (cobrança de juros acima do convencionado). 17. Também sobre esta questão entendeu a douta sentença que o embargante-avalista não podia invocar em sua defesa o preenchimento abusivo do valor da livrança, por não se encontrar em relação imediata com o portador da livrança. 18. Reproduz-se o alegado antecedentemente – participando o avalista no acordo de preenchimento da livrança bem como o portador do título (Banco 1..., S.A.) tem toda a legitimidade para discutir esta questão, que deve ser submetida a julgamento. 19. A douta sentença violou art.10º LUL. * Pela Exequente foram apresentadas contra-alegações no sentido da improcedência do recurso. Dispensados que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso. * Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo –, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes: 1. Ilegitimidade do Exequente Banco 1..., S.A. 2. Se o embargante, na qualidade de avalista podia invocar em sua defesa o abuso do pacto de preenchimento, com fundamento em alteração das circunstâncias, abuso de direito, e errado de cálculo relativamente aos juros 3. Em caso afirmativo, se houve violação do pacto de preenchimento. III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO * 1. Da (i)legitimidade do Exequente Invoca o embargante a legitimidade processual do exequente, alegando que, no âmbito das negociações mantidas com o exequente no PER que corre termos contra a sociedade devedora e executada nos autos, foi informado que o crédito exequendo foi vendido/cedido à sociedade H..., entidade que passou a liderar as negociações com vista à aprovação do PER. O exequente/embargado impugnou tal alegação, afirmando que tal transmissão/cessão não foi ainda concretizada. A decisão recorrida veio a julgar improcedente a exceção de ilegitimidade do exequente com fundamento em que, a admitir-se a hipótese de ter havido transmissão do direito de crédito, por ter ocorrido na pendência da causa – facto que não se encontra documentado nos autos e da qual o executado não foi ainda notificado –, continua a ser parte legítima para o prosseguimento dos autos a parte que tinha legitimidade para instaurar a execução – “impendendo sobre os outorgantes da eventual transmissão de créditos, na eventualidade dela vir a ser outorgada, o dever de notificar a cessão aos devedores e de promover a habilitação do cessionário. O Apelante insurge-se contra o decidido, com a seguinte alegação: - por requerimento com a ref. ...55, de 17.05.2022, a A... requereu a sua habilitação como cessionária do crédito do Banco 1..., S.A.. - por douto despacho com a ref. ...65, de 19.05.2022, o Tribunal considerou demonstrada a cessão de créditos e declarou habilitada a A... - assim, à data (02.06.2022) em que foi proferida a decisão que julgou os embargos de executado improcedentes, a A... estava colocada na posição processual (exequente e embargada) do Banco 1..., S.A.. - pelo que, a decisão não deveria declarar parte legítima o Banco 1..., S.A. mas sim a A... – a decisão violou o art. 577º, alínea e), 578º do CPC. Não é de dar razão à Apelante. Desde logo, porque não põe em causa qualquer um dos fundamentos em que assentou (e, a nosso ver, bem) o juízo de legitimidade ativa assumido pela decisão recorrida: - de que era ao exequente Banco 1..., S.A., quem, na qualidade de titular do crédito exequendo, detinha legitimidade para a propositura da execução; - ainda que viesse a ocorrer transmissão do crédito no decurso da ação ou execução, o cedente continua a ter legitimidade para prosseguir com a ação enquanto o cessionário não promover a sua habilitação nos autos, em conformidade com o disposto no artigo 263º, nº1, do CPC. O regime constante no nº1 do artigo 263º do CC, consagra o carater facultativo da habilitação na sucessão entre vivos (artigo 356º, nº2): a partir da transmissão, o transmitente, apesar de não se mais titular da situação jurídica transmitida, substituiu processualmente o adquirente, seu atual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que indiretamente é seu[1]. O facto de, no decurso da execução e quando ainda se encontravam pendentes os embargos, a 17 de maio de 2022, a A... ter vindo promover a sua habilitação como cessionária, habilitação que veio a ser julgada procedente por decisão de 19 de maio de 2022, constituem factos supervenientes que não produzem quaisquer efeitos retroativos quanto à legitimidade do exequente e quanto à decisão a proferir nos embargos de executado: o Banco 1..., S.A., enquanto titular do direito de crédito exequendo era parte legítima para a presente execução, quer à data da sua instauração quer à data da dedução dos embargos. A circunstância de posteriormente, a A... ter vindo invocar a ocorrência de uma cessão de tal crédito a seu favor, e de a sua habilitação ter vindo a ser julgada procedente, significa tão só que, a partir da data do trânsito em julgado de tal decisão, o Banco 1..., S.A. será substituído na causa pela A..., na qualidade de exequente. * 2. (In)admissibilidade dos meios de defesa invocados pelo embargado Embora de forma não autonomizada, na apreciação que faz dos demais fundamentos dos embargos, a decisão recorrida, teve em consideração os seguintes factos: 1. O banco exequente (Banco 1..., S.A.) instaurou a presente execução contra a sociedade T..., S.A., e AA, dando à execução, como título executivo, uma livrança subscrita pela sociedade executada e avalizada pelo executado AA – a qual lhe foi entregue pela sociedade executada, aquando da celebração de um contrato de financiamento com a sociedade executada (no ano de 2014), no valor de 2.000.000,00€, que o exequente (na altura Banco 2...) lhe entregou e de que ela dispôs, no âmbito do qual a sociedade executada incumpriu o acordado, o que motivou a resolução do contrato, o preenchimento da livrança e a interpelação dos executados, que não pagaram. 2. A sociedade T..., S.A., apresentou um processo especial de revitalização (PER), que motivou a suspensão da execução contra a mesma – tendo no decurso do referido PER sido reconhecido o crédito aqui em execução, o qual foi contemplado nesses termos no plano de revitalização aprovado pelos credores e homologado pelo tribunal. Sintetizando a decisão recorrida, pelo seguinte modo, as pretensões do embargante: “Nesta sede, não tendo colocado em causa a celebração do contrato de financiamento, a entrega da livrança em causa e sua qualidade de avalista, a entrega da quantia objeto do financiamento, o incumprimento do contrato (por não pagamento das prestações vencidas desde o final do ano de 2019), o vencimento de todas as prestações após interpelação do banco, a sua interpelação para o pagamento e o não pagamento de qualquer prestação, impugnou a exigibilidade da obrigação exequenda em duas vertentes: a) Por um lado, alegando que decorreram negociações entre o banco e a sociedade devedora entre setembro de 2019 (tendo deixado de pagar as prestações a partir de dezembro de 2019) e maio de 2021 (data da declaração de vencimento antecipado), tendo ocorrido uma alteração das circunstâncias que fizeram crer a sociedade executada que a base negocial iria ser alterada, tendo o banco exequente, neste quadro circunstancial, atuado em abuso de direito, declarando vencidas todas as prestações e resolvido o contrato; b) Por outro lado, impugnando o crédito exequendo: impugnando o valor de preenchimento da livrança, porque o cálculo dos juros está exagerado, atendendo a que a E3M está negativa desde, pelo menos, novembro de 2015 e sendo o spread de 3%, os juros imputados à divida não estão bem calculados, impondo-se que o banco venha aos autos esclarecer qual o nominal da Euribor a 3 meses que considerou, em cada momento, mais o spread e sobre que capital fez incidir esse cálculo em cada momento. A decisão recorrida, entendendo disporem os autos de todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito, veio a julgar improcedentes os embargos, por entender que o executado/embargante/avalista não pode opor ao banco exequente, portador da livrança, todas as exceções que a sociedade devedora e subscritora da livrança lhe poderia opor, por não ter tido intervenção na relação fundamental ou subjacente, configurando a oposição deduzida matéria de exceção que só a subscritora da livrança poderia deduzir, com base na seguinte fundamentação: - a invocação da alteração das circunstâncias da base negocial como fundamento da renegociação contratual e o não atendimento das mesmas pelo banco exequente, que alegadamente terá rompido as negociações e, injustificadamente, terá resolvido o contrato e exigido o vencimento de todas as prestações, em abuso de um direito, pode fundamentar a inexigibilidade da obrigação exequenda, uma modificação da obrigação ou, no limite, um meio de defesa do avalista oponível ao portador da livrança; - se o relacionamento entre o banco exequente e a sociedade devedora se encontra sempre no domínio das relações imediatas (quer no que concerne ao alegado contrato de financiamento, quer no que concerne à relação cambiária subsequente), relativamente ao embargado, o relacionamento do banco exequente com o embargado situa-se no domínio das relações mediatas relativamente à obrigação causal ou subjacente e no domínio das relações imediatas no que concerne à obrigação cambiária. - não tendo o executado/embargante/avalista sido parte na relação causal ou subjacente, sendo a sua responsabilidade única e simplesmente derivada da relação cambiária contemporânea da relação causal, o mesmo não pode opor ao portador da livrança (ainda que interveniente na relação causal) as exceções pessoais que o devedor (interveniente também nessa relação causal), ou seja, a sociedade devedora, lhe poderia opor, só lhe podendo opor o pagamento; - mesmo no domínio das relações imediatas (i.e. com o sacador, dentro da relação que deu causa à emissão do título de crédito), não valem os princípios cambiários da literalidade e abstração, (de que decorre que a letra é independente da “causa debendi” subjacente) e, por isso, além do pagamento, o avalista pode invocar contra o beneficiário de letra ou livrança em branco o preenchimento abusivo do título de crédito ou a nulidade do aceite, e, em geral, os seus meios pessoais de defesa, isto é, as exceções derivadas da relação causal existente entre eles, e não as do avalizado; - situando-se a relação entre o executado/embargante/avalista no domínio das relações mediatas relativamente à obrigação subjacente ou causal, sendo a sua obrigação uma obrigação cambiária pura, de garantia, dominada pelos princípios da autonomia, da literalidade e da abstração, não tendo o executado/embargante/avalista alegado e reconduzido os embargos para o domínio das relações imediatas (situando a sua intervenção com o portador do título no âmbito da relação causal ou subjacente), conclui-se que o mesmo não pode opor ao banco exequente e portador da livrança as exceções fundadas na relação subjacente ou causal com a subscritora da livrança. Insurge-se o Apelante contra o decidido, com a seguinte alegação: - apesar de o aval configurar uma relação jurídica diversa da relação subjacente ou causal (o financiamento entre o banco credor e a devedora), tal não impede que o avalista possa invocar o preenchimento abusivo da livrança, por parte do credor/portador da livrança, desde que tenha intervindo ou participado no pacto de preenchimento da livrança – como é o caso destes autos; - com efeito, o embargante-avalista participou no financiamento (como administrador da subscritora da livrança e prestador de garantia de aval) e no pacto de preenchimento que dele consta (cláusula 18ª das condições gerais – Docs. 2 e 3 do r.e.). - atenta a intervenção do embargante no contrato de financiamento, na dupla qualidade de administrador da sociedade subscritora da livrança e de avalista, ficou vinculado ao acordo de preenchimento da livrança, assim como o Banco 1..., S.A. e a sociedade T..., S.A.; - tendo-se mantido a livrança em poder do seu portador (o Banco 1..., S.A.), o avalista/embargante tem legitimidade para invocar factos integradores do preenchimento abusivo da livrança - por alteração superveniente das circunstâncias e abuso de direito –, devendo o Tribunal apreciar os factos suscitados, à luz do art 10º da LULL. Vejamos então, se o executado/Apelante, na sua qualidade de avalista, se poderia fazer valer (ou não): i) do alegado abuso de direito no preenchimento da livrança, e de ii) um alegado erro de cálculo no respetivo preenchimento, por assentarem em factos respeitantes à relação fundamental existente entre o subscritor da livrança e o avalizado. 2.1. Se o executado, enquanto avalista, poderia invocar o abuso de direito no preenchimento da livrança, quer por o Banco 1..., S.A. ter criado expectativas de que não o faria, quer por, ao declarar o vencimento antecipado das obrigações e a subscrição da livrança ter impedido a invocação de alteração das circunstancias.
Antes de dar reposta à questão de saber quais os meios de defesa oponíveis pelo avalista, e se o invocado abuso no preenchimento da livrança – atentos os factos em que se faz assentar tal abuso – poderia ser validamente invocado pelo executado/embargante, haverá que fazer uma breve introdução ao regime do aval e da letra em branco. O aval é o negócio jurídico-cambiário através do qual uma pessoa (avalista ou dado do aval) garante o pagamento da letra por parte de um dos subscritores (avalizado) – artigo 30º, nº1, da LULL (aplicável à livrança por força do art. 77º). No aval existirá sempre uma relação subjacente entre o avalista e o avalizado, pelo que, quanto a ambos encontrar-nos-emos perante relações imediatas. Assentando o aval numa relação cambiária triangular que envolverá sempre três sujeitos, o avalizado, o avalista e o credor cambiário, para além daquela relação interna entre o avalista e o avalizado, podemos (ou não) encontrar uma outra relação extracartular entre o avalista e o credor cambiário que figura como beneficiário direto do aval. Será o que acontece nos casos de subscrição de títulos em banco em que o avalista amiúde outorga no próprio acordo de preenchimento celebrado entre avalizado e credor, mas pode igualmente verificar-se uma convenção extracartular entre avalista e credor, a incidir sobre aspetos do direito cambiário entre ambos (prazos, condições), contemporânea ou posterior à prestação do aval, destinado a regular o modo de liquidação da divida cambiária por parte do avalista[2]. Sempre que o avalista e credor estejam ligados por uma relação extracartular, estremos em presença de relações imediatas e o conteúdo daquela convenção é invocável pelo avalista contra o credor na qualidade de meio de defesa próprio[3]. Embora responda nos mesmo termos em que responde aquele por quem é dado o aval (artigo 32º, nº1, LULL), a obrigação do avalista autónoma, subsistindo mesmo no caso de a obrigação do avalizado ser nula por qualquer razão que não um vício de forma (artigo 32º, nº2). É frequente na prática comercial que uma letra (ou uma livrança) seja sacada ou aceite antes de se encontrar completamente preenchida – será o caso de um pedido de abertura de crédito junto de um banco, em que se subscreve em favor do banco uma livrança “em branco”, porquanto o montante devido não se encontra ainda determinado nem a data do respetivo vencimento. “Supõe normalmente uma relação fundamental que comporta um direito de crédito não inteiramente definido (porque falta determinar o respetivo montante, ou porque se aguarda o seu vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito[4]”. A sua validade encontrar-se-á dependente, entre outros requisitos de a mesma ser acompanhada da existência um “pacto de preenchimento”, isto é, de um acordo, prévio ou contemporâneo entre o subscritor do título e aquele a quem o mesmo é entregue, destinado a fixar os termos em que de preenchimento no futuro das menções em falta (quantia cambiária, lugar ou época de pagamento, etc.)[5]. Quanto à violação desse pacto de preenchimento, dispõe o artigo 10º da LULL: “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador salvo se tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”. Pressupondo o disposto no artigo 10º que a letra (ou livrança) tenha entrado em circulação, ou seja que o portador já não seja o portador originário e tenha entregue o título a outrem, daí se retira, a contrario sensu, que, caso a letra se mantenha no âmbito das relações imediatas – ou seja, entre o sacador ou subscritor e o aceitante ou o emitente – poderá entre eles ser livremente discutível, quer a relação subjacente (ato ou negócio jurídico que subjaz à emissão do título), quer o pacto de preenchimento. Ou, nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, “deve entender-se que o portador referido no artigo 10.° da LULL a quem o preenchimento abusivo não pode ser oposto é um portador que não seja interveniente no pacto de preenchimento[6]”. Há muito é discutida a questão de saber se, apresentando o título em branco as assinaturas do avalista e do avalizado, pode o avalista invocar a desconformidade do seu completamento com o acordo de preenchimento celebrado entre credor e avalizado. A doutrina e a jurisprudência[7] têm vindo a entender, de um modo geral, que, em princípio, caso o avalista tenha sido, também ele, parte no pacto de preenchimento, poderá socorrer-se da invocação do preenchimento abusivo do título, ou seja, de que o preenchimento dos elementos deixados em banco à data da aposição da assinatura do aceitante e do seu avalista foi feito em desrespeito ou inobservância dos acordos realizados[8]. Em tal situação, não podemos afirmar que o avalista se esteja a prevalecer de exceções provindas somente da relação do subscritor da letra/livrança com o portador do título, invocando uma relação alheia. Pelo contrário, está a invocar a discrepância verificada na forma como foi preenchido o título, no que respeita à sua data e/ou ao seu montante e à vontade que foi manifesta por si, na qualidade de avalista, aquando do pacto de preenchimento[9]. Admite-se, assim, que o avalista pode invocar o preenchimento abusivo da letra por o mesmo ter ocorrido ao arrepio dos acordos de preenchimento: por ex., que o preenchimento da letra tivesse ocorrido antes do vencimento da dívida, num momento em que a subscritora da livrança/mutuária não tivesse entrado ainda em incumprimento, ou que no montante nela aposta tenham sido incluídos valores que extravasam o acordado. “A tipologia da desconformidade integra duas categorias fundamentais. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o próprio completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título (o qual foi indevidamente conservado pelo credor e posteriormente preenchido noutro contexto). A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzidas no título, com destaque (pela litigiosidade concretamente suscitada) para a inserção de quantia superior à que decorre dos «acordos realizados»[10]” No caso em apreço, a alegação em que o executado/embargante baseia a invocação de um alegado abuso de direito no preenchimento da livrança, nada tem a ver um eventual desrespeito pelos acordos de preenchimento realizados relativamente ao título dado em garantia. Os fundamentos de oposição de que se pretende fazer valer nada têm a ver, de facto com alguma alegada violação do pacto de preenchimento (cujos termos, nem sequer, invoca): o embargante não põe em causa que a livrança tenha sido preenchida de acordo com o constante no contrato de financiamento, na parte nele respeitante às condições de preenchimento da livrança que o acompanhava – não nega a verificação de incumprimento desde 2019, assim como, não nega que a declaração de vencimento antecipado da dívida tenha sido efetuada de acordo com as condições previstas no contrato e que, segundo o acordado, em tais condições, o banco se encontrava autorizado a preencher a livrança pela totalidade do montante em dívida. O que ele afirma é que foi abusiva a declaração de vencimento antecipado do empréstimo, a concomitante exigibilidade integral da divida, e o consequente preenchimento da livrança – não por os mesmos terem sido executados fora das condições previstas contratualmente, mas porque, i) por um lado, o Banco 1..., S.A. criou legítimas expetativas de que iria “aceitar modificar o empréstimo” e gerou a convicção de que não iriam antecipar o seu vencimento e exigir a integralidade da dívida; ii) por outro lado, esta declaração antecipada impediu a possibilidade de a mutuária e o embargante pedirem a modificação do contrato por alteração das circunstâncias nos termos do art. 437º, nº1, CC. O que o embargante invoca é um direito de revisão ou modificação das condições do contrato de financiamento com fundamento na alteração de circunstâncias – e este é um direito só exercitável dentro da relação obrigacional do contrato de abertura de crédito, do qual só o banco e a sociedade T..., S.A. (subscritora da livrança) são efetivamente partes[11]. O embargante fundamenta o abuso de preenchimento, não em qualquer violação dos acordos de preenchimento da livrança, mas em pretensões respeitantes à relação fundamental subjacente entre o banco e a sociedade avalizada, só exercitáveis no âmbito do contrato de abertura de crédito do qual ele não é parte. Como sustenta Carolina Cunha[12], vale aqui o princípio geral res inter alios acta, de que o art. 17º da LULL é uma manifestação: à partida, está vedado ao avalista prevalecer-se de exceções pessoais entre o credor e o avalizado, ou seja, retirar um benefício de uma relação obrigacional que lhe é estranha. Concluindo, apoiando-se a invocação do preenchimento abusivo da livrança em circunstâncias de que o avalista não se pode valer para se eximir ao pagamento do montante aposto na livrança, por consistirem numa defesa só exercitável no âmbito do contrato de abertura de crédito, na inteira disponibilidade do mutuário, é de confirmar que tal alegação não pode constituir fundamento de embargos. 2.b. Se poderia invocar o erro de cálculo na quantia exequenda Quanto à impugnação do valor de preenchimento da livrança, porque o cálculo dos juros está “exagerado”, admitindo-se que poderia, eventualmente, configurar um tipo de defesa de que o avalista se poderia socorrer – caso alegasse e provasse que o valor aposto na livrança teve por base uma taxa de juros diferente da estipulada –, os termos simplistas e genéricos em que se mostra exposta a alegada existência de um erro de cálculo não nos permite concluir pela existência de qualquer discrepância entre a taxa acordada e a taxa que serviu de base a tal cálculo: o embargante não alega, desde logo, qual a taxa de juro aplicável ou, pelo menos, qual o critério para a sua fixação, segundo os termos contratuais, e qual a relevância para tal cálculo da sua alegação de que a taxa Euribor a 3 meses se tenha mantido negativa desde, pelo menos 2015. A quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respetivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos - enquanto factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título[13]. Como tal, também quanto a este fundamento dos embargos, contem os autos os elementos que permitem ao tribunal decidir pela sua improcedência. A Apelação é de improceder. IV – DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a suportar pelo Apelante.
Coimbra, 13 de dezembro de 2022
V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC. (…) [1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, Artigos 1º a 361º, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 693. [2] Cfr. Carolina Cunha, “Manual de Letras e Livranças”, 2016, Almedina, pp. 120-121. [3] Carolina Cunha, obra citada, p. 125. [4] Carolina Cunha, “Manual de Letras e Livranças”, 2016, Almedina, p. 166. [5] José A. Engrácia Antunes, “Os Títulos de Crédito, Uma introdução”, Coimbra Editora, p. 66. [6] “Aval em branco”, Revista de Direito Comercial, p. 30, disponível em https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5b2b4edf758d46759ea212a0/1529564897269/2018-09.pdf. [7] Cfr., entre outros Acórdão do TRL de 19-11-2020, relatado por Maria do Céu Silva, www.dgsi.pt. [8] Carolina Cunha vai mais longe e sustenta que, mesmo nos casos em que o avalista não qualquer contacto com o credor nem celebrou com ele qualquer convenção de preenchimento, o credor não pode ignorar que o sujeito que avaliza ainda em branco o título que sabe destinado a suportar a obrigação cambiária do avalizado, está a manifestar a vontade de que o preenchimento se faça nos mesmos termos que vierem a vigorar para a concretização da obrigação cambiária desse avalizado – obra citada, p. 189. [9] Cfr. Carolinha Cunha, Letras e Livranças, Teses, p. 591-597. [10] Carolina Cunha, obra citada, p. 184. [11] O que continuaria a ser verdadeiro, mesmo fora da abstração que carateriza as relações cambiárias, como será a impossibilidade de ao fiador do arrendatário lhe ser vedada a invocação de qualquer vício do locado como meio de obstar à exigibilidade do valor da renda, [12] Carolina Cunha chama atenção para o facto de o artigo 17º da LULL não ser aqui aplicável pois supõe situações geradas pela circulação do título, quando o avalizado não é necessariamente um portador “anterior”, sendo que se coincidir, como quase sempre sucede, com o aceitante da letra ou com o emitente da livrança, nunca foi sequer um “portador” da letra – obra citada, p. 123, em especial nota 340. [13] Cfr., entre muitos outros, Acórdão do TRC de 14-12-2020, relatado por Fonte Ramos, disponível in www.dgsi.pt. |