Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
104/17.0GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: CONFISSÃO INTEGRAL E SEM RESERVAS
REDUÇÃO DA TAXA DE JUSTIÇA A METADE
Data do Acordão: 06/05/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 344.º, N.ºS 1 E 2, AL. C), DO CPP
Sumário: Só beneficia do efeito previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 344.º do CPP, ou seja, da redução da taxa de justiça em metade, a confissão, integral e sem reservas, feita no início da audiência de discussão e julgamento.
Decisão Texto Integral:







          Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I - RELATÓRIO

No processo comum n.º 104/17.0GAACB supra identificado, após a realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:

- condenar o arguido A., pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5,50;

- condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C., a reduzir a metade atenta a confissão, bem como os encargos com o processo.


*

O Ministério Público, não se conformando com o último segmento decisório relativo à redução a metade da taxa de justiça devida pelo arguido, em virtude da respectiva confissão integral e sem reservas, dele interpôs o presente recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

1. O presente recurso incide sobre a sentença que, quanto ao arguido A., decidiu «Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C., a reduzir a metade atenta a confissão, bem como os encargos com o processo.», com os seguintes fundamentos:
«O processo mostrou-se simples, pelo que fixo a taxa de justiça em 2 UC, em que o arguido vai condenado (art. 514º do Código de Processo Penal e Tabela III, aplicável ex vi, artigo 8º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).
Por outro lado, não obstante a confissão ter ocorrido em momento posterior à produção de prova, parece-nos claro que o artigo 344.º do CPP não distingue, para tais efeitos, o momento da confissão, pelo que a taxa de justiça será a reduzir a metade (cfr. artigo 344º, n.º 2, al. c do Código de Processo Penal)
O arguido é ainda responsável pelos encargos do processo, nos quais vai condenado.»

2. A sentença recorrida interpretou o normativo previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 344.º do Código de Processo Penal como estabelecendo um efeito jurídico (redução da taxa de justiça a metade) independente do momento em que, na audiência de julgamento, ocorra a confissão integral e sem reservas do arguido.

3. Na perspectiva do Ministério Público, o referido normativo deverá ser interpretado como estabelecendo efeito jurídico (redução da taxa de justiça a metade) dependente do momento em que, na audiência de julgamento, ocorra a confissão integral e sem reservas do arguido.

4. Atendendo à ordem de produção da prova prevista no artigo 341.º do CPP, as declarações do arguido (presente) precedem a apresentação dos demais meios de prova e apenas a confissão integral e sem reservas ocorrida nesse primeiro momento tornaria inútil a apresentação dos demais meios de prova e poderia desencadear os efeitos jurídicos previstos no artigo 344.º/2 do CPP, designadamente a «redução da taxa de justiça em metade»; trata-se de beneficiar o arguido pelo contributo que, através da confissão no início do julgamento, prestou à celeridade processual, à diminuição da complexidade do processo de valoração da prova e à redução dos custos com a administração da justiça.

5. A circunstância de não se efectuar a «Apresentação dos meios de prova indicados pelo Ministério Público, pelo assistente e pelo lesado» devido a uma inicial confissão integral e sem reserva traduz-se, obviamente, numa redução do tempo necessário à realização da audiência de julgamento, com a inerente redução de custos com a mesma, tanto ao nível do consumo de energia e de equipamentos, como ao nível do tempo despendido por magistrados, advogados e funcionário(s) participantes na diligência, incluindo ao nível do tempo despendido na valoração da prova pelo magistrado judicial em sede de elaboração da sentença.

6. In casu, como resulta da acta de julgamento, o arguido inicialmente remeteu-se ao silêncio, tendo a produção da prova tido início com a inquirição da primeira testemunha indicada na acusação pública, apenas optando por confessar integralmente os factos imputados depois de produzida a prova pelo Ministério Público.

7. Por isso, considera-se que a sentença recorrida, ao aplicar ao arguido o efeito jurídico da «Redução da taxa de justiça em metade» decorrente de uma confissão integral e sem reservas efectuada depois da apresentação dos meios de prova, interpretou incorrectamente a norma prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 344.º do CPP, aplicando indevidamente o aludido efeito jurídico e, consequentemente, encontra-se nessa parte ferida de ilegalidade, devendo (apenas) tal segmento decisório ser revogado e substituído por outro que condene o arguido, tão só, «no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C., bem como os encargos com o processo.»

O arguido não respondeu ao recurso.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve ser dado provimento ao recurso do Ministério Público, revogando-se a sentença recorrida na parte em que reduziu a metade a taxa de justiça.

Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do CPP, não foi obtida resposta.

Os autos tiveram os vistos legais.


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II- FUNDAMENTAÇÃO                   

Atendendo ao texto da motivação e respectivas conclusões, no presente recurso uma única questão vem suscitada: - em audiência de julgamento, quando deve ter lugar a confissão integral e sem reservas do arguido, para que se verifiquem os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 344º do CPP [designadamente, o da al. c)]?

Alega o recorrente:

In casu, como resulta da acta de julgamento, o arguido inicialmente remeteu-se ao silêncio, tendo a produção da prova tido início com a inquirição da primeira testemunha indicada na acusação pública.

depois da produção do depoimento da testemunha arrolada no libelo acusatório e do Ministério Público ter prescindido do depoimento da segunda e última testemunha arrolada (atento o silêncio inicial do arguido), veio o arguido «pretender prestar declarações, o que fez, confessando integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados na acusação, esclarecendo a instâncias do Mm.º Juiz que o fazia de forma livre e voluntária».

Ora, como se deixou expresso em sede de alegações orais, embora o arguido tenha efectivamente admitido todos os factos que lhe eram imputados na acusação, não o fez no momento em que podia desencadear o efeito jurídico da «Redução da taxa de justiça em metade», precisamente porque a confissão dos factos ocorreu depois da apresentação dos meios de prova – depois da prestação de depoimento de testemunha arrolada na acusação.

Por isso, considera-se que a sentença recorrida, ao aplicar ao arguido o efeito jurídico da «Redução da taxa de justiça em metade» decorrente de uma confissão integral e sem reservas efectuada depois da apresentação dos meios de prova, interpretou incorrectamente a norma prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 344.º do CPP, aplicando indevidamente o aludido efeito jurídico e, consequentemente, encontra-se ferida de ilegalidade, devendo (apenas) tal segmento decisório ser revogado e substituído por outro que condene o arguido, tão só, «no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) U.C., bem como os encargos com o processo.»”.

 Dispõe o artigo 344º do CPP (sob a epígrafe Confissão):

«1- No caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.

2- A confissão integral e sem reservas implica:

a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados;

b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, à determinação da sanção aplicável; e

c) Redução da taxa de justiça em metade.

3- Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que:

a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles;

b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou

c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos.

4- Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova.»

Estabelecendo o n.º 2 do preceito efeitos automáticos da confissão integral e sem reservas, importa saber em que momento tal confissão deve ocorrer.

Ficou consignado na sentença recorrida: “O processo mostrou-se simples, pelo que fixo a taxa de justiça em 2 UC, em que o arguido vai condenado (art. 514º do Código de Processo Penal e Tabela III, aplicável ex vi, artigo 8º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).

Por outro lado, não obstante a confissão ter ocorrido em momento posterior à produção de prova, parece-nos claro que o artigo 344.º do CPP não distingue, para tais efeitos, o momento da confissão, pelo que a taxa de justiça será a reduzir a metade (cfr. artigo 344º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal). - É nosso o sublinhado

O arguido é ainda responsável pelos encargos do processo, nos quais vai condenado.

Ora, é por não concordar com o, assim, decidido, que foi interposto o presente recurso. Entende o Ministério Público que os referidos efeitos ope legis (do n.º 2) só se verificam se a aludida confissão tiver lugar no início da audiência de julgamento.

E, afigura-se-nos que correctamente, pois, essa foi a intenção do legislador.

A Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal (da AR): - Lei n.º 43/86, de 26 Set., que esteve na origem no DL n.º 78/87, de 17 Fev., que aprovou o Código de Processo Penal/87, determinou no artigo 2º, n.º 2, al. 69): «Estabelecimento da possibilidade de a confissão total e sem reservas da culpabilidade pelo arguido - formalizada em momento inicial do julgamento em termos que não levantem dúvidas de autenticidade, e sempre que ao crime não caiba abstractamente pena de prisão superior a três anos - evitar a produção da prova, permitindo que se passe imediatamente à determinação da sanção;».

A este propósito escreveu Maia Gonçalves, em anotação ao artigo 344º do CPP/87: Embora o artigo não seja explícito, entendemos que essa declaração, para o efeito, terá de ser feita nas declarações iniciais da audiência. Embora lhe seja lícito prestar declarações em qualquer momento da audiência (art. 343º, n.º 1), o arguido terá que aproveitar, para o efeito, as primeiras declarações que presta. Foi isto o que se estabeleceu na Lei de Autorização legislativa. A declaração prestada em momento posterior pode não ter qualquer interesse processual e resultar até da evidência da prova já produzida. Não poupa actividade processual e não justificaria o relevante benefício de ordem fiscal concedido pela al. c) do n.º 2, que tem como razões subjacentes não só criar incentivos à confissão, mas também a constatação de uma menor actividade processual nos casos de confissão inicial. Sucede ainda que a colocação do artigo nas disposições cimeiras do Capítulo sobre a produção de prova, seguidamente ao artigo que trata, na generalidade, das declarações do arguido, sugere precisamente esta solução.”.

Na verdade, se atentarmos no “Capítulo III – Da produção da prova” verificamos que os primeiros artigos versam:

- o artigo 340º - Princípios gerais

- o artigo 341º - Ordem de produção de prova

- o artigo 342º - Identificação do arguido

- o artigo 343º - Declarações do arguido

- o artigo 344º - Confissão

- o artigo 345º - Perguntas sobre os factos (ao arguido)

- art. 346º (Declarações do assistente); art. 347º (Declarações das partes civis); art. 348º (Inquirição das testemunhas); (…).

Ou seja, segundo a ordem indicada, sendo as declarações do arguido o primeiro meio de prova a ser produzido, a sua confissão poderá tornar desnecessária a produção da demais prova, no caso de se tratar de confissão integral e sem reservas, com os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 344º [os factos imputados consideram-se provados, passando-se de imediato às alegações orais e à determinação da sanção aplicável (se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos), sendo a taxa de justiça reduzida em metade]. Devendo considerar-se confissão integral aquela que abrange todos os factos imputados, e confissão sem reservas aquela que não acrescenta novos factos susceptíveis de dar aos imputados um tratamento diferente do pretendido (ex. confissão dos factos da acusação integradores de ofensas corporais, mas com acrescentamento de novos factos figurativos de uma legítima defesa).

Quanto às demais declarações confessórias do arguido, que podem ocorrer em qualquer momento da audiência, até mesmo durante as suas últimas declarações (artigos 343º, n.º 1 e 361º, n.º 1 do CPP), serão livremente valoradas pelo tribunal, que decidirá sobre a necessidade, ou não, de produção de prova quanto aos factos confessados.

Também, no sentido de que só a confissão (integral e sem reservas) feita no início da audiência implica os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 344º, designadamente a redução da taxa de justiça em metade, se pronunciaram Oliveira Mendes ([1]) e Paulo Pinto de Albuquerque ([2]).

Donde, no caso vertente, a confissão do arguido, no momento em que foi produzida (após o depoimento da test. indicada pela acusação pública), não lhe permite beneficiar da redução da taxa de justiça prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 344º do CPP.


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III- DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Julgar procedente o recurso e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, na parte em que reduziu em metade a taxa de justiça (atenta a confissão).

                                   (fazendo-se menção desta decisão, na sentença, a fls. 105 dos autos)

Sem tributação.


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Coimbra, 5 de Junho de 2019

Elisa Sales (relatora)

Jorge Jacob (adjunto)


[1] - Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1098.
[2] - Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, pág. 868.