Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
245/16.1T8CNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: CASO JULGADO
DIVÓRCIO MÚTUO CONSENTIMENTO
RELAÇÃO DE BENS COMUNS
PARTILHA
DOAÇÃO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 10/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.581, 621 CPC, 1714, 1722, 1775 CC
Sumário: I - A relação de bens comuns apresentada em processo de divórcio consensual não faz caso julgado quanto a tal natureza, podendo esta ser discutida no processo de partilhas ou nos meios comuns.

II - O cônjuge do donatário em casamento no regime de comunhão de adquiridos, não pode, ao menos por via de regra, adquirir contitularidade, por usucapião, no bem doado.

Decisão Texto Integral:








ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

M (…), contra J (…), acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum.

Peticionou:

A condenação do réu a reconhecer que a autora é a legítima proprietária dos prédios inscritos na matriz sob os arts. 0 (...) e 1 (...) e a restituir-lhe a posse desses mesmos prédios e, ainda, a condenação daquele no pagamento de uma indemnização por prejuízos causados.

Alegou, em suma:

Foi casada com o réu, o qual se recusa, desde a dissolução do vínculo matrimonial, a entregar-lhe os prédios acima aludidos, os quais são  seus bens próprios.

O réu contestou.

Disse, nuclearmente, que os bens não são bens próprios da autora, mas antes são bens comuns do ex casal e, como tal devem ser partilhados.

Pediu a improcedência da acção.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«Julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada, em consequência do que se decide:

a) Declarar que a autora é a única e legítima proprietária do prédio urbano composto de casa de habitação, dependências e quintal, sito em Y (...) , freguesia de X (...) , com a área total de 848,50m2, inscrito na matriz sob o artigo 0 (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o nº 00 (...) ; e do prédio rústico, composto de terra de semeadura, em Y (...) Sul, freguesia de X (...) , com a área de 296m2, inscrito na matriz sob o art. 1 (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede sob o número 11 (...) ;

b) Condenar o réu a, transitada em julgado a presente sentença, proceda à entrega dos prédios identificados e restitua a posse dos mesmos à autora; mais ficando aquele condenado a, após a verificação do trânsito em julgado, abster-se de praticar qualquer acto que impeça ou diminua a utilização por parte da autora quanto aos aludidos prédios;

c) Julgar improcedentes, por não verificados, os demais pedidos deduzidos pela autora, absolvendo o réu dos mesmos.»

3.

Inconformado recorreu o réu.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

Contra alegou a autora pugnando pala manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

(…).

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Natureza comum dos bens em causa: quer por reconhecimento da autora na acção de divórcio por inclusão na relação de bens comuns, quer por usucapião.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos que importa considerar:

1. Autora e réu contraíram matrimónio a 07 de Junho de 1980, sem convenção antenupcial.

2. O contrato de casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 13 de Dezembro de 2011, transitada em julgado em 02 de Fevereiro de 2012, proferida no âmbito do processo nº 1047/10.4TBCNT, que corre termos no extinto Tribunal Judicial de Cantanhede.

3. A referida acção de divórcio foi intentada por J (…).

4. Em sede de audiência de discussão e julgamento realizada na indicada acção de divórcio, foi o intentado divórcio sem consentimento do outro cônjuge convertido em divórcio por mútuo consentimento.

5. Ainda nessa sede, ficou a constar de acta elaborada o que se segue:

“Acordos

Não há filhos menores sobre os quais hajam de regular-se as responsabilidades parentais.

Os cônjuges prescindem mutuamente de alimentos.

A casa de morada de família fica atribuída ao cônjuge até a partilha, que deverá ser efectuada no prazo de um ano a contar da presente data.

Relação de bens

1 – Três mobílias de quarto completas, no valor aproximado de €350,00;

2 – Cozinha completa e mobília de sala de jantar, no valor aproximado de €350,00;

3 – Um conjunto de sofás, móvel de televisão e mesinha de centro, no valor aproximado de €200,00;

4 – Prédio rústico (pinhal), descrito na matriz rústica sobre o art. 2 (...) …

5 – Prédio rústico (terra de semeadura com 6 árvores de fruto), descrito na matriz rústica sob o art. 1 (...) …

6 – Prédio urbano, em propriedade total, descrito na matriz sob o art. 0 (...) …” cujo teor se dá aqui por reproduzido.

6. Este acordo foi homologado pela sentença aludida em 2. supra.

7. Enquanto casal, autora e réu viveram no prédio urbano, correspondente a casa de habitação, dependências, sito em Y (...) , freguesia de X (...) , inscrito na matriz sob o art. 0 (...) e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o nº 00 (...) , ocupando, de igual modo, o prédio rústico, contíguo ao primeiro, inscrito na matriz sob o artigo 1 (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 11 (...) .

8. Por escritura outorgada a 20 de Agosto de 1982, denominada de “escritura de doação”, A (…) e R (…) progenitores da aqui autora, doaram a esta os prédios referidos em 7.

9. A autora intentou processo de inventário para partilha dos bens do dissolvido casal, o qual correu termos sob o nº 1047/10.4TBCNT no extinto Tribunal Judicial de Cantanhede.

10. No âmbito desse processo de inventário, e por decisão proferida a 10.05.2012, transitada em julgado, foram os interessados remetidos para os meios comuns para, nesta sede, aferir da titularidade dos prédios referidos em 7. supra.

11. Autor e réu efectuaram obras nos prédios referidos em 7.

6.

Apreciando.

A questão é simples.

Desde logo no que tange ao primeiro fundamento do recurso, o recorrente não tem razão.

Pois que constituem doutrina e jurisprudência pacíficas  que a relação de bens junta em processo de divórcio por mútuo consentimento não vincula os outorgantes divorciandos para o futuro, já que ela não faz caso julgado quanto à natureza, qualidade, quantidade ou valor dos bens relacionados.

Assim, e para além dos arestos citados nas contra alegações, se decidiu nos seguintes, a título exemplificativo indicados, acórdãos, todos acessíveis in dgsi.pt.

Ac. do STJ de 2.11.2010 p. n.º 726/08.0TBESP-D.P1.S1:

«A relação especificada dos bens comuns do casal não importa o acordo dos cônjuges quanto à partilha dos respectivos bens (...). IV - A sentença que decretou o divórcio, por mútuo consentimento, não constituiu caso julgado, relativamente à questão do acordo de partilha parcial dos bens comuns do casal, quanto à posterior partilha dos mesmos».

Ac. da RC de  16.10.2001, p. 2067/2001:

«A inobservância, pelos cônjuges, do requisito legal da junção aos autos da relação especificada dos bens comuns não os inibe de, no futuro, a menos que pretendam permanecer na indivisão, requerer a partilha, judicial ou extrajudicialmente.

A sentença que decretou o divórcio não constituiu caso julgado, relativamente á questão dos bens comuns do casal, ou à declarada falta deles, pois nada decidiu quanto a estes, não tendo fundamento legal concluir-se tal, a propósito da homologação dos acordos...»

Ac. da RC de 1 14.02.14.02.2006, p. 4056/05:

«1. A junção da relação de bens em acção de divórcio por mútuo consentimento, exigida pelo n.º 1, a) do artigo 1419.º do Código de Processo Civil, constitui mera condição de prosseguimento da causa;

2. O caso julgado da sentença que decreta o divórcio, em acção de divórcio por mútuo consentimento, não cobre a titularidade dos bens aí relacionados, pelo que não obsta a que no futuro inventário para separação de meações se possa questionar se algum, ou alguns, desses bens são comuns ou propriedade de um só dos cônjuges…

A relação especificada de bens comuns, com a indicação dos respectivos valores, não é senão um documento com que deve ser instruído o requerimento para o divórcio por mútuo consentimento, nos termos do artigo 1419.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil. Trata-se de uma condição de prosseguimento da acção e nada tem a ver com o objecto da acção. Não se forma caso julgado sobre o direito de propriedade dos bens relacionados, na medida em que nem sequer por aí passa o pedido.»

Ac. da RP de  23.02.2015., p. 4091/07.5TVPRT.P1:

«A relação especificada dos bens comuns a que se reporta artigo o artigo 1419.º, n.º 1, alínea b), do CPC não é abrangida pelos efeitos do caso julgado da sentença que decretou o divórcio por mútuo consentimento, não ficando precludida a possibilidade de qualquer dos cônjuges vir a reclamar a partilha de um bem comum omitido na referida relação.»

Ac. da RL de 11.07.2013, p. 3546/10.9TBVFX.L1-7:

«O pressuposto de decretamento do divórcio previsto no art.º 1775.º, n.º 1, al. a), do C. Civil é a apresentação do documento relação especificada dos bens comuns e não a existência de acordo quanto aos bens comuns, nada obstando a que dessa relação sejam omitidos bens, que dela conste a declaração de inexistência de acordo quanto a determinados bens ou, até, que cada um dos cônjuges apresente a sua relação especificada de bens comuns, uma vez que os litígios sobre a mesma serão ulteriormente dirimidos no processo próprio.»

Ac. da RL de  03.03.2011, p. 7398-C/1990.L1-2:

«Os efeitos do caso julgado da sentença que decrete a dissolução do casamento, por divórcio, não se estendem à relação de bens comuns que apresentada haja sido.»

Ac. da RE de 10.03.2010, p. 2214/09.9TBPTM.E1.

Ac. da RG 13.02.2014, p. 941/11.0TMBRG.G1.

E no mesmo sentido se inclinando a melhor doutrina.

Assim:

«Apesar da lei processual exigir que se junte à petição de divórcio ou separação por mútuo consentimento a relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores (artigo 1419.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil), o mesmo ocorrendo quando os cônjuges acordem, na tentativa de conciliação do processo de divórcio litigioso (artigo 1407.º, n.º 3 do mesmo Código), os efeitos do caso julgado na sentença que decrete a dissolução do casamento por divórcio, não se estendem a essa relação pois, é seguro, não se verifica a identidade de pedidos nem tem que haver entendimento prévio quanto à partilha dos bens do casal, que só os acordos quanto à prestação de alimentos, destino da casa de morada de família e exercício do poder paternal foram sujeitos à apreciação na mesma sentença (artigo 1776.º, n.º 2 com referência ao artigo 1775.º, n.º 2, ambos do Código Civil)». - Lopes Cardoso in Partilhas Judiciais, volume III, 4.ª edição, pg. 365

«A lei exige que o processo de divórcio por mútuo consentimento seja instruído com uma ‘relação especificada de bens comuns’ sem a qual o divórcio não pode ser decretado. No entanto, nem a decisão final do Conservador, nem a sentença do juiz acrescentam qualquer valor a tal documento. A questão de saber se os efeitos do caso julgado da sentença que decrete o divórcio por mútuo consentimento abrangem o conteúdo da relação de bens há muito que vem sendo decidida pela negativa nos nossos tribunais. O caso julgado funda-se directamente no pedido, no efeito jurídico pretendido pelo Autor. E, na verdade, no processo de divórcio por mútuo consentimento não existe qualquer pedido ou decisão sobre a existência ou sobre a titularidade dos bens relacionados» - Rita Lobo Xavier in A relação especificada de bens comuns: relevância jurídica da sua apresentação no divórcio por mútuo consentimento, Revista Julgar n.º 8-2009, Coimbra Editora, pgs. 21, 25 e 26.

As citações foram longas mas valeram a pena, pois que, por despiciendos e redundantes, nos dispensam de comentários e dilucidações adicionais.

E assim se concluindo que inexiste caso julgado quanto à qualidade de bens comuns do casal ora em causa, não obstante como tal terem sido indicados no pretérito processo de divórcio.

 Destarte, a questão da natureza dos bens – se próprios da autora se comuns do extinto casal - poderia ser escalpelizada no processo de partilha, como o foi.

E, inclusive se colocando nos presentes autos, pois que o réu alegou que, não obstante os bens terem sido, formalmente, doados à demandante, o que realmente se verificou foi uma venda ao casal que os pagou com dinheiro comum deste.

Porém, e como dimana dos factos dados como provados, a doação apurou-se, mas esta venda não se provou.

Logo, e em sede de discussão da natureza dos bens, a conclusão a retirar, em função da prova daquela doação e do regime de comunhão de adquiridos vigente para o casamento, é a de que eles são bens próprios da autora – artº 1722º nº1 als. a) e b) do CC.

Tal acervo factual tem de ser o único a considerar, pois que, não obstante, e «en passant», o recorrente iniciar as alegações afirmando que o recurso também abrange os factos, nem no seguimento das mesmas, nem nas respectivas conclusões, ele se reporta à factualidade dada como provada e não provada, pelo que ele não cumpre, mínimamente, os requisitos/exigências legais/formais do artº 640º do CPC.

Finalmente, e no atinente ao argumento da usucapião.

Primus é no mínimo questionável que, existindo doação escrita e formal dos bens à autora, o que, como se disse e em função do regime de bens do casamento lhe atribui a titularidade dos mesmos em exclusivo, o cônjuge possa adquirir os mesmos por usucapião.

Na verdade, o seu uso e fruição, por banda deste, deve ser interpretado apenas no contexto que as faculdades oriundas do casamento lhe concedem, não podendo aqueles serem tidos e permitidos para a aquisição do seu domínio.

Isto sob pena de intolerável frustração/violação daquele regime de bens, designadamente atenta a sua imutabilidade – artº 1714º do CC.

Secundus, e em todo o caso, porque não se provaram factos que permitam concluir pela aquisição a tal título.

Improcede, brevitatis causa, o recurso.

7.

Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.

I - A relação de bens comuns apresentada em processo de divórcio consensual não faz caso julgado quanto a tal natureza, podendo esta ser discutida no processo de partilhas ou nos meios comuns.

II - O cônjuge do donatário  em casamento no regime de comunhão de adquiridos, não pode, ao menos por via de regra, adquirir contitularidade, por usucapião, no bem doado.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2017.10.11

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos