Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5287/17.7T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 10/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - VISEU - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 4 Nº2, 577, 580, 581, 621 CPC
Sumário: A qualificação jurídica não interfere com a identidade da causa de pedir, pelo que se o substrato factual for o mesmo em ambas as ações, que se sucedem no tempo, não basta para escapar ao efeito negativo do caso julgado – artigo 621.º do Código de Processo Civil –, formado na primeira ação, a alegação de um fundamento jurídico distinto daquele que foi invocado anteriormente, no caso, a invocação de enriquecimento sem causa em vez dos contratos de mútuo anteriormente alegados.
Decisão Texto Integral: *

Sumário:

A qualificação jurídica não interfere com a identidade da causa de pedir, pelo que se o substrato factual for o mesmo em ambas as ações, que se sucedem no tempo, não basta para escapar ao efeito negativo do caso julgado – artigo 621.º do Código de Processo Civil –, formado na primeira ação, a alegação de um fundamento jurídico distinto daquele que foi invocado anteriormente, no caso, a invocação de enriquecimento sem causa em vez dos contratos de mútuo anteriormente alegados.


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Recorrente ………………..M (…)

Recorrida……………………M (…)


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I. Relatório

a) O presente recurso vem interposto pelo Autor e respeita ao despacho saneador que absolveu a Ré do pedido, absolvição esta que se fundou no facto de ter sido julgada procedente a exceção de caso julgado formado na ação n.º 1753/15.7T8VIS, que correu termos no Juízo Central Cível de Viseu, entre as mesmas partes.

Naquela ação n.º 1753/15.7 T8VIS o Autor alegou diversos mútuos celebrados entre si e a Ré e muito embora não tenha resultado provado que as quantias tenham sido mutuadas pelo Autor à Ré, ficou demostrada nessa ação a existência de transferências/depósitos, desde janeiro de 2001 até 2010, de dinheiros do Autor para contas de que o Autor e a Ré eram cotitulares.

Nessa ação não se provou qualquer causa justificativa para os depósitos que a Ré utilizou em seu proveito, pelo que se verifica um empobrecimento do Autor à custa dum enriquecimento da Ré, que é ilícito, razão pela qual na presente ação deve a Ré ser condenada no pedido (€117.658,30 acrescida dos juros de mora vencidos desde a citação para a primitiva ação que ocorreu em 25/03/2015, na quantia de €12.339,62, bem como os que se vencerem até efetivo e integral pagamento), com fundamento distinto, que é agora o enriquecimento sem causa.

O Autor argumentou que não existia caso julgado porquanto na presente ação a causa de pedir é distinta.

A Ré sustenta o oposto, referindo que na ação anterior o Autor invocou o enriquecimento sem causa a título subsidiário, pretensão (do enriquecimento sem causa) que foi recusada no despacho saneador daquela ação.

Em todo o caso, ficou demostrado naquela ação que não houve enriquecimento porquanto Autor e Ré utilizavam as contas misturando rendimentos e encargos, pelo que voltando a julgar-se a mesma questão violar-se-ia a decisão já tomada na anterior ação.

Sobre a questão o tribunal, como já se disse, proferiu a seguinte decisão:

«Termos em que se decide julgar procedente a exceção de caso julgado e em consequência absolve-se a Ré da instância – art-ºs 577º i), 578º, 580º, 581º e 576º nº 2 do CPC»

b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte do Autor, cujas conclusões são as seguintes:

«…C) Em ambas ações há coincidência quanto aos sujeitos, mas já não se verifica identidade quanto às causas de pedir e quanto aos pedidos;

D) Em ambas ações, os pedidos porque derivam de causas de pedir diferentes, são natural e consequentemente diferentes;

E) Embora haja alguma coincidência quanto a alguns factos alegados, as pretensões deduzidas em ambas ações são diferentes, bem assim como o fundamento jurídico de cada uma das ações;

F) Na ação que correu termos sob o n.º 1753/15.7T8VIS, a causa de pedir consistia na celebração entre as partes de contratos de mútuo, na qual se discutiu o pedido de condenação da Ré, na devolução da quantia de 122.668,30€, resultante do somatório de diversas quantias emprestadas/mutuadas pelo Autor à Ré;

G) Na presente ação a causa de pedir é o enriquecimento sem causa da Ré baseado nessas mesmas entregas de dinheiro feitas pelo Autor àquela sem causa e que se mostra inquestionável terem existido tal até como foi concluído na ação que correu termos sob o nº 1753/15.7T8VIS;

H) Dos pontos nºs 7º, 8º, 9º e 10º da matéria dada como assente na sentença proferida no proc. nº 1753/15.7T8VIS, já transitada em julgado e confirmada por Acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/2017, resulta que o Autor fez com regularidade depósitos na identificada conta nos montantes apurados e aqui peticionados;

I) Na presente ação, em sede de pedido formulado, o Autor peticionou a condenação da Ré na devolução de tais quantias a título de enriquecimento sem causa, uma vez que a mesma as não devolveu nem demonstrou intenção de o fazer;

J) Embora se tenha pedido a condenação da Ré na devolução das quantias referidas na ação que correu termos sob o n.º 1753/15.7T8VIS, o pedido, a pretensão formulada em cada uma das ações é distinta – na primeira, a causa de pedir era celebração entre as partes de contratos de mútuo – a segunda, o enriquecimento sem causa, com a inerente restituição das quantias recebidas e que engrossaram, sem causa, o património da Ré;

K) Ou seja, se a primeira ação é uma ação de simples cumprimento de um contrato, relativamente ao pedido formulado, na presente ação parte-se precisamente da circunstância de que apesar de não ter resultado provado que tais depósitos na conta bancária supra identificada tenham sido efetuados a título de empréstimo, resultou reconhecido em 1.ª instância e confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra que manteve a sentença proferida, que o Autor fez depósitos na identificada conta nos apurados montantes, com regularidade, pretendendo o autor ser compensado pelas quantias pagas e não devolvidas pela Ré, tendo a Ré ficado enriquecida à custa de um correlativo empobrecimento do Autor;

L) Importa referir que no proc. N.º 1753/15.7T8VIS, o Autor em resposta à contestação apresentada pela Ré – atenta a negação pela mesma dos empréstimos realizados por aquele – peticionou a restituição das quantias elencadas na petição inicial a titulo de enriquecimento sem causa, pedido que lhe veio a ser indeferido no despacho de saneador proferido por considerar o Tribunal a quo inadmissível a alteração/ampliação da causa de pedir, formulada, por ter havido oposição de alteração do pedido e causa de pedir da Ré;

M) Apesar de termos alguns factos coincidentes, estamos perante causas de pedir complexas, nas quais o Recorrente fundamenta o seu pedido em distintos fundamentos jurídicos, sendo que nesta ação alegou factos tendentes a demonstrar que as quantias que o Recorrente depositou na conta da Ré importou uma mais-valia para o património desta, enriquecendo-a;

N) Não existe coincidência entre os pedidos e as causas de pedir, pelo que, não se tem por verificada a (não invocada) exceção de caso julgado;

O) Daquela tríade de conceitos (identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir), é apenas patente que existe identidade de sujeitos em ambas as ações. Fora isso, e salvo o devido respeito por outra opinião, é para nós claro que os pedidos de ambas as ações são diferentes e assentam em causas de pedir igualmente distintas;

P) A questão fundamental levantada nas duas ações é diferente, como diferente é o efeito jurídico que em ambas as ações se pretende obter e tutelar e bem assim como o concreto facto jurídico em que assentam as pretensões para as quais se pede a tutela jurisdicional;

Q) Não vislumbramos onde é que a decisão a proferir nesta ação pode colidir com a decisão proferida no processo 1753/15.7T8VIS e confirmada por Acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/2017 (ou então que possa haver duplicação/repetição de decisões) se a questão que nela foi submetida a apreciação e decisão, no que concerne ao pedido aqui em causa, nunca foi objeto de pronunciamento (expresso ou mesmo implícito) na sentença proferida no processo 1753/15.7T8VIS;

R) Em momento algum a sentença proferida no proc. nº 1753/15.7T8VIS e confirmada por Acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/2017 se debruçou sob o instituto do enriquecimento sem causa, nem porventura o poderia fazer por extravasar o petitório, o objeto do litígio e os temas da prova em discussão nesses autos;

S) É errado afirmar - como fez o Tribunal a quo - que as decisões proferidas de 1ª e 2ª instância não se limitaram, na fundamentação, a referir que os depósitos feitos pelo Autor não constituíam mútuos, pois tais decisões limitaram-se a apreciar e a concluir não estarem demonstrados os alegados empréstimos do Autor à Ré mas referindo expressamente e por diversas vezes na sua fundamentação que, ressalta à evidência a existência dos depósitos, por parte do Autor, para uma conta solidária de Autor e Ré, com a consequente movimentação a poder ser efetuada por um ou outro ou por ambos;

T) Neste sentido, o thema decidendum da presente lide não é coincidente com o thema decidendum dos autos 1753/15.7T8VIS e as causas de pedir de uma e outra acção, são por demais diferentes, pelo que, em nenhum momento com os presentes se pretende contornar a imodificabilidade da decisão proferida sob o nº 1753/15.7T8VIS através de ação agora interposta com base no instituto do enriquecimento sem causa, porque este instituto nunca foi alvo de pronunciamento;

U) É nosso entendimento que, nenhum dos pressupostos necessários à verificação da exceção de caso julgado, com a exceção da identidade de sujeitos em ambas as ações que são os mesmos, ocorrem no caso em apreço, razão pela qual o tribunal recorrido não podia ter julgado verificada a referida exceção;

V) O Tribunal a quo com a decisão proferida violou diversos preceitos legais, por errada interpretação e aplicação, os artigos 577.º, alínea i), 580º, 581° do CPC, razão pela qual tem de ser substituída por acórdão que julgue não verificada a referida exceção e ordenar o prosseguimento dos autos.

Termos em que, Deverá o presente recurso interposto pelo Recorrente, ser julgado totalmente procedente por provado, sendo revogada a douta sentença recorrida, sendo a mesma substituída por acórdão que julgue não verificada a exceção do caso julgado e ordene o prosseguimento dos autos, com as legais consequências; …»

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o presente recurso coloca apenas a questão de saber se ocorre caso julgado entre a pretensão deduzida na presente ação, pedido de reembolso de determinadas quantias com base no instituto do enriquecimento sem causa, e a decisão, já transitada em julgado, proferida no processo n.º 1753/15.7T8VIS.

III. Fundamentação

a) Matéria processual a considerar

Na ação n.º 1753/15.7T8VIS foram declarados provados os seguintes factos:

1- A Ré é madrinha de batismo do Autor.

2- O 2.º marido da Ré, F (…), faleceu em 15 de Janeiro de 2001.

3- A Ré constituiu o Autor como seu procurador mediante instrumento passado em 04 de Fevereiro de 2003, através do qual lhe conferiu latos poderes, nomeadamente para “Abrir, movimentar ou cancelar contas bancárias, fazendo depósitos ou levantamentos, assinando para o efeito ordens de transferência, pagamento ou cheques, solicitar livro de cheques e extractos” e bem assim para  Receber quaisquer quantias, valores e documentos que lhe pertençam, para levantar nas estações postais valores declarados, cartas registadas, encomendas postais e outras, mercadorias e tudo o mais que lhe for dirigido, passar recibos, dar quitações, fazer despachos alfandegários e assinar conhecimentos ou endossos”.

4 - Ainda a Ré, em 2004, constituiu com o Autor, juntamente com os seus filhos (…) - que dela se apartou em Outubro de 2006 – a “Sociedade Agrícola (…)Lda.”, com sede em (...) , vocacionada para a exploração vitícola de prédios tomados de arrendamento à Ré.

5 - Por escritura de 19 de Janeiro de 2010 o Autor, no exercício dos poderes conferidos pela procuração acima aludida, vendeu o prédio denominado de Casa (…), pelo preço de €120.000,00, a qual teve utilização não apurada. 

6- O Banco (…) instaurou contra a Sociedade (…)Lda. e a Ré M(…) execução hipotecária nº 343/1436TBSCD, que hoje pende na instância executiva desta Comarca de Viseu, reclamando o pagamento da quantia de €192.370,01, além dos juros e demais encargos legais, em resultado da sociedade em questão não ter respeitado as condições de reembolso acordadas.

7- No período compreendido entre Outubro 2001 a Janeiro de 2004 o Autor depositou na conta nº (…) - antecessora da conta nº (…) - da Caixa (…) da qual é co-titular o Autor, desde 17 de Janeiro de 2001, a quantia global de 6.997,60 €, conforme se discrimina:

- 10/10/2001 – 249,40 €; - 06/11/2001 – 249,40 €; - 05/12/2001 – 249,40 €; - 04/01/2002 – 249,40 €; - 05/02/2002 – 250,00 €; - 14/03/2002 – 250,00 €; - 03/04/2002 – 250,00 €; - 07/05/2002 – 250,00 €; - 06/06/2002 – 250,00 €; - 05/07/2002 – 250,00 €; - 05/08/2002 – 250,00 €; - 04/09/2002 – 250,00 €; 03/10/2002 – 250,00 €; - 08/11/2002 – 250,00 €; - 05/12/2002 – 250,00 €; - 03/01/2003 – 250,00 €; - 06/02/2003 – 250,00 €; - 06/03/2003 – 250,00 €; - 08/04/2003 – 250,00 €; - 09/05/2003 – 250,00 €; - 06/06/2003 – 250,00 €; - 07/07/2003 – 250,00 €; - 07/08/2003 – 250,00 €; - 11/09/2003 – 250,00 €; - 06/10/2003 – 250,00 €; - 07/11/2003 – 250,00 €; - 03/12/2003 – 250,00 €; - 06/01/2004 – 250,00 €.

8- Além destas quantias, nos anos de 2001, 2004, 2005 e 2010, o Autor depositou na conta identificada em 7 a quantia global de 33.710,70€, conforme se discrimina:

- 12/09/2001 – 623,50 €; - 29/01/2004 – 1.900,00 €; - 27/02/2004 – 1.900,00 €; - 25/03/2004 – 1.900,00 €; - 24/11/2004 – 1.720,50 €; - 01/03/2005 – 2.250,00 €; - 27/01/2010 – 23.416,70 €.

9 - Nos anos de 2004 a 2009 o Autor depositou na conta já identificada em 7 a quantia global de 76.950,00€, conforme se discrimina: - 29/05/2004 – 1.350,00 €; - 01/06/2004 – 1.350,00 €; - 01/06/2004 – 1.350,00 €; - 30/06/2004 – 1.350,00 €; - 05/08/2004 – 1.350,00 €; - 31/08/2004 – 1.350,00 €; - 08/10/2004 – 1.350,00 €; - 05/11/2004 – 1.350,00 €; - 06/12/2004 – 1.350,00 €; - 03/01/2005 – 1.350,00 €; - 02/02/2005 – 1.350,00 €; - 01/03/2005 – 1.350,00 €; - 05/04/2005 – 1.350,00 €; - 04/05/2005 – 1.350,00 €; - 01/06/2005 – 1.350,00 €; - 08/07/2005 – 1.350,00 €;  - 02/08/2005 – 1.350,00 €; - 01/09/2005 – 1.350,00 €; - 04/10/2005 – 1.350,00 €;- 02/11/2005 – 1.350,00 €; - 05/12/2005 – 1.350,00 €; - 03/01/2006 – 1.350,00 €; - 07/02/2006 – 1.350,00 €;  - 10/03/2006 – 1.350,00 €; - 05/04/2006 – 1.350,00 €; - 03/05/2006 – 1.350,00 €;- 02/06/2006 – 1.350,00 €; - 06/07/2006 – 1.350,00 €; - 02/08/2006 – 1.350,00 €; - 04/09/2006 – 1.350,00 €; - 06/10/2006 – 1.350,00 €; - 06/11/2006 – 1.350,00 €; - 04/12/2006 – 1.350,00 €; - 02/01/2007 – 1.350,00 €; - 01/02/2007 – 1.350,00 €; - 01/03/2007 – 1.350,00 €; - 02/04/2007 – 1.350,00 €; - 02/05/2007 – 1.350,00 €; - 04/06/2007 – 1.350,00 €; - 01/08/2007 – 1.350,00 €; - 05/07/2007 – 1.350,00 €; - 04/09/2007 – 1.350,00 €; - 04/10/2007 – 1.350,00 €; - 07/11/2007 – 1.350,00 €; - 04/12/2007 – 1.350,00 €; - 03/01/2008 – 1.350,00 €; - 07/02/2008 – 1.350,00 €; - 03/03/2008 – 1.350,00 €; - 03/04/2008 – 1.350,00 €; - 05/06/2008 – 1.350,00 €; - 07/07/2008 – 1.350,00 €; - 11/08/2008 – 1.350,00 €;  - 03/09/2008 – 1.350,00 €; - 06/10/2008 – 1.350,00 €; - 05/11/2008 – 1.350,00 €; - 09/12/2008 – 1.350,00 €; - 06/01/2009 – 1.350,00 €.

10 - Todos os movimentos mencionados nos antecedentes artigos foram concretizados por depósito na conta bancária em causa, por meio de cheque, dinheiro ou por transferência bancária.

11- A coberto da referida procuração o Autor passou a movimentar as contas da Ré abertas na Caixa (…) anteriormente denominada de (...) - com os nºs (…), a primeira sucessora da segunda.

12- Naquela mesma instituição de crédito o Autor era, por seu turno, titular da conta nº (…)

13- O Autor, na qualidade de único sócio-gerente daquela sociedade – (…) Lda. - abriu em nome desta a conta nº (…), na mesma Caixa (...) .

14- Da dita conta da Ré no período compreendido entre Janeiro de 2002 e Setembro de 2014 existem pagamentos, ordens de levantamento e transferências suportados por aquela conta a favor das contas do Autor e da sociedade por si gerida, nos seguintes termos:

- em 2005, a Ré emitiu a favor do Autor cheques em 14.05, 20.07, 18 e 24.10, das quantias, respetivamente, de €3.000,00, €1.747,58, €1.345,50 e €1.543,24;

- através de ordens de levantamento subscritas pelo próprio Autor ao balcão da Caixa de Crédito, aquele procedeu ao levantamento das quantias de €2.000,00 em 02.12.2011, €1.500,00 em 01.06.2011, €1.500,00 em 01.06.2012 e €1.000,00 em 26.11.2012;

- transferências realizadas em 20.04.2009, 13.07.2009, 21.10.2010, 16.01.2012, 28.09.2012 e 29.04.2013, com crédito na conta do Autor das quantias, respetivamente, de €20.000,00, €20.000,00, €12.500,00, €2.500,00, €2.500,00, €1.377,21 e €750,00.

15- E por idênticas operações de 08.11.2011 e de 27.02.2012, ambas por ordem do Autor, e de 03.02.2014, a conta da sociedade gerida por aquele foi creditada dos montantes de €7.500,00, de €2.400,00, e €139.951,30, por débito da conta da Ré, tudo num total de €149.851,30.

16- A Ré tem ou apresenta património imobiliário e usufruiu de saldos bancários nos termos que constam supra e infra.

17- Durante o período de tempo a que se reportam os depósitos elencados em 7, 8 e 9 a conta bancária da Ré - conta nº 3320 40080368369 - aberta junto do Crédito Agrícola, apresentou um saldo mensal médio credor superior a €5.000,00, conta essa que era “alimentada” por rendimentos de Autor e Ré.

18- No respeitante à Caixa de (…) e relativa à conta nº (…) - no final de Janeiro de 2008 a Ré dispunha de depósitos a prazo que ascendiam a €259.639,37, o que igualmente sucedia em 1 de Janeiro de 2009, em 31 de Dezembro de 2009 esse montante era de €242.193,46 e em 31 de Dezembro de 2010 esse valor era de €229.693,46

19- Como sua madrinha de batismo a Ré esteve ligada ao Autor, até finais de 2013, por uma relação de afetividade e confiança.

20- Após a morte do marido da Ré, em 15 de Janeiro de 2001, decorrido algum tempo não apurado em concreto, o Autor foi viver para a “Casa (...) , onde então vivia a Ré, em condições de alojamento não apuradas especificadamente.

21- A partir dessa data a Ré confiou ao Autor a administração dos seus bens e recursos, até então geridos por seu marido.

22- Para acudir a uma situação económico-financeira debilitada da Sociedade (…) Lda., de que é sócio dominante e único gerente, o Autor beneficiou, pelo menos, da quantia de €149.851,30 retirada da mencionada conta da Ré na Caixa (...) .

23- A Sociedade (…) Lda., por reporte ao último balanço e contas conhecidos apresentados por ela, respeitantes ao exercício de 2013 e depositados nos serviços de registo centrais do Ministério da Justiça, apresentava:

- capitais próprios negativos, porque neutralizados por resultados transitados negativos que, no final do exercício, ascendiam a menos €639.269,34;

- dívidas a fornecedores de €36.673,42;

- outro passivo corrente de €316.150,65.

24- A Ré foi também titular da conta n.º 0018000314878755020, aberta entre 04.04.2006 e 28.06.2012 no Banco (…), onde o Autor e a sua aludida sociedade tinham também contas abertas, relativamente à qual poupanças da Ré ali depositadas foram afetadas à liquidação de responsabilidades quer do Autor, quer da sua sociedade agrícola, em montante superior a €60.000,00., aberta com um saldo inicial de 500€.

25- Para consolidação de diversos empréstimos contraídos junto do mesmo Banco (…) e em mora, o Autor celebrou com aquele, em 15.01.2013, um acordo para regularizar uma dívida então de €172.742,00 sendo que servindo-se da procuração passada pela Ré, constituiu a favor do banco credor hipoteca sobre o prédio urbano daquela composto de casa de habitação, adega e logradouro, inscrito na matriz urbana da freguesia de (...) sob o art. 3.900.

26- Na mesma qualidade, constituiu a Ré como garante solidário, juntamente com os próprios filhos (…).

27- A conta mencionada ou identificada em 7, para ser movimentada pelo Autor, não carecia do uso da ajuizada procuração.

28- A conta identificada em 24 foi aprovisionada pelo Autor com as seguintes operações:

- transferência bancária no valor de 30.000€;

- subscrição Multisector, investimento feito no valor de 30.000€;

- depósito bancário no valor de 36.000€, inteiramente realizado pelo Autor através de cheque nº 6900000120 do Banco (…) SA, referente ao pagamento da 9ª prestação, pela venda de ações que o Autor tinha na empresa “(…)

29- O Autor, pela venda de 54.614 ações que detinha na Empresa “G (…) S.A.” ajustou o pagamento do preço global de 324.000€, sendo que na dita conta do B (…) – n.º (…) - os fundos ali acolhidos estavam aplicados em 6.000 unidades de participação do Fundo Multisector FEI, no montante de €30.484,80, e em 6.000 unidades de participação do Fundo Energia Invest FEI, no montante de €32.850,00, com liquidação das unidades de participação do Fundo Multisector por €30.80,00, ficando à ordem o montante de €30.540,43, sendo que em Agosto de 2011, os títulos de participação do Fundo Energia foram alienados por €32.913,00, ficando à ordem a quantia de €63.453,43, com subsequente transferência- em Setembro de 2011 - para a conta n.º (…) da “Sociedade (…), Lda.” da quantia de €53.449,49 e, em 10 e 21 de Outubro da quantia de €9.500,00 para a conta n.º (…) do Autor, ambas da mesma instituição financeira, ficando à ordem o valor residual de €503,94.

30- O acordo referido em 25, efetuado com o Banco (…), SA, foi instruído com contratos e pelo menos uma livrança assinada pela Ré.


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Na presente ação o Autor refere o seguinte na petição inicial:

«1. O Autor na ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum que correu termos neste Tribunal, Juízo Central Cível – Juiz 2, sob o nº de processo 1753/15.7T8VIS, peticionou a condenação da Ré na devolução da quantia 117.658,30 € referente às quantias mutuadas por aquele à Ré.

2. No âmbito daquele processo não resultou provado que tais quantias tenham sido emprestadas/mutuadas à Ré, como decorre do disposto no art.º 1142º do C. Civil,

3. Contudo ficou provado nos pontos 7º, 8º e 9º da matéria dada como assente na sentença proferida em 20/02/2017 (cfr. doc. nº 1.1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, bem como o teor dos demais que se venham, a juntar), e confirmada por acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/2017, que o aqui Autor depositou na conta nº (…) – antecessora da conta nº 3(…) – da Caixa (…), da qual é co-titular (desde janeiro de 2001, cfr. doc. nº 1.2 e 1.3) juntamente com a Ré, as alegadas quantias e que tais depósitos foram efetuados nas datas que abaixo se passam a discriminar, conforme consta da matéria de facto dada como provada naquela ação:

(…).

4. Foi igualmente dado como assente no ponto 10 daquela douta sentença que todos os movimentos mencionados nos artigos 7º a 9º foram concretizados por depósito na conta bancária em causa, por meio de cheque, dinheiro ou por transferência bancária.

5. Como ficou supra exposto, naquela ação não resultou provado que tais depósitos na conta bancária supra identificada tenham sido efetuados a título de empréstimo à Ré.

6. Também não resulta da factualidade dada como provada naquela ação que exista qualquer causa justificativa para que tais depósitos tenham sido efetuados, nem tão pouco resulta provada a existência de qualquer causa justificativa para que a Ré tenha utilizado em seu exclusivo interesse as importâncias depositadas pelo Autor.

7. A Ré utilizou tais importâncias no seu exclusivo interesse, tendo em 9 anos gasto em proveito próprio as quantias supra, bem como todas as demais quantias ali depositadas, tal como resulta do extrato que se junta sob doc. nº 92.

8. A Ré ao utilizar tais quantias em seu único e exclusivo interesse, não as tendo devolvido ao Autor até à presente data, faz com que este se encontre empobrecido na quantia de 117.658,30 €.

9. Assim, estamos perante um enriquecimento da Ré à custa de um correlativo e imediato/direto empobrecimento do Autor.

10. A vantagem patrimonial obtida pela Ré com a utilização que fez do dinheiro depositado naquela conta bancária mostra-se totalmente injustificada.

11. Dúvidas não existem que a Ré utilizou em seu único e exclusivo interesse dinheiro pertença do Autor, sem qualquer causa justificativa.

12. Pelo que requer o Autor que a Ré seja condenada na devolução de tais quantias a título de enriquecimento sem causa, uma vez que a mesma as não devolveu até à presente data, nem demonstrou intenção de o fazer, pese embora tenha sido interpelada a fazê-lo, quer pela via da ação acima referida, quer por meio de carta, vide doc. nº 93.

13. Permanecendo assim em dívida a quantia de 117.658,30 € a título de capital acrescida dos juros de mora vencidos na quantia de 12.339,62 €, no total de 129.997,92 €, acrescida dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento».

b) Apreciação da questão objeto do recurso

1 – Como é sabido, nos termos do n.º 1 do artigo 580.º e 581.º, n.º 1 e 4, do CPC, a exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado, existindo repetição da causa quando a segunda ação é idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.

Como refere Lebre de Freitas, cumpre distinguir entre a exceção de caso julgado e a autoridade de caso julgado.

Diz o autor que «…pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida (…). Mas o efeito negativo do caso julgado nem sempre assenta na identidade do objecto da primeira e da segunda acções: se o objecto desta tiver constituído questão prejudicial da primeira (e a decisão sobre ela proferida deva, excepcionalmente, ser invocável) ou se a primeira acção, cujo objecto seja prejudicial em face da segunda, tiver sido julgada improcedente, o caso julgado será feito valer por excepção» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 354 (nota 6. ao art. 498º do anterior CPC).

No nosso caso está em causa a exceção de caso julgado.

Não se suscitam dúvidas quanto à identidade dos sujeitos, nem quanto ao pedido, pois pede-se a mesma quantia.

A questão controvertida em sede de exceção do caso julgado consiste apenas em verificar se existe também identidade de causa de pedir em ambas as ações, ou seja, se tendo sido alegadas as mesmas transferências de dinheiro, as mesmas quantias, nas mesmas datas, ou seja, tratando-se da mesma realidade factual, bastará para escapar ao efeito negativo do caso julgado a alegação de um fundamento jurídico distinto daquele que foi invocado na primeira ação, isto é, a invocação do enriquecimento sem causa na presente ação em vez do mútuo alegado na primeira ação.

Cumpre deixar referido que a factualidade alegada é a mesma, nada tendo sido acrescentado em termos factuais na presente ação além da afirmação de que na anterior ação não resultou provada qualquer causa para a existência das aludidas transferências de dinheiro.
2 – Afigura-se que ocorre também identidade de causa de pedir, como decidido em 1.ª instância, o mesmo é dizer, que se verifica a exceção de caso julgado.
Pelas seguintes razões:

a) Nas palavras de Anselmo de Castro «São possíveis teórica e praticamente dois conceitos de causa de pedir; ou se toma como tal a relação jurídica material, ou as relações jurídicas que legitimam a pretensão (o pedido), ou se entende que a causa de pedir é o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer “fattispecie” jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstracção feita da relação jurídica que lhe corresponda.

A primeira é a teoria da individualização ou da individuação; a segunda, a da substanciação» - Direito Processual Cível Declaratório, Vol. I. Almedina/1981, pág. 205.
Como resulta da letra do artigo 581.º, n.º 4, do CPC, se declara que há identidade de causa de pedir quando os factos são os mesmos, adota-se a teoria da substanciação.
Nas palavras de Mariana França Gouveia, referindo-se ao conceito de causa de pedir para efeitos de caso julgado «A causa de pedir identifica-se com os factos essenciais, factos que são determinados e separados de todos os outros pela norma aplicável. Esta referência à norma é, porém, suficiente: os factos essenciais são os factos concretos, ou seja, temporal e geograficamente localizados» - A Causa de Pedir na Acção Declarativa. Coimbra, Livraria Almedina, 2004, pág. 424.
b) Sendo este o conteúdo do conceito «causa de pedir» então não basta invocar em relação aos mesmos factos um novo fundamento jurídico para os acoplar ao pedido.
É que, como já lecionava Alberto dos Reis, «…a causa de pedir nada tem que ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe.
Essa valoração é simples apreciação ou ponto de vista mental; se a parte ou o tribunal modificar a qualificação ou valoração, nem por isso se dirá que houve mudança na causa de pedir.
Isto equivale a dizer com Chiovenda: a causa petendi não é a norma abstracta da lei invocada pela parte, mas o facto que se alega como expressão de vontade concreta da regra legal; de sorte que a simples mudança de ponto de vista jurídico, isto é, a invocação de norma legal diversa, não significa diversidade de causa de pedir. Essa mudança é lícita à parte e ao juiz; quando muda somente o ponto de vista jurídico, não se evita a excepção de caso julgado (Chiovenda, Instituciones cit., Tomo1.ª, págs 380 e 371)» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3.ª edição. Coimbra Editora, 1981, pág. 127.
E continua o autor:
«Uma mulher casada, tendo conhecimento de que o marido se exibia, no cinema e na rua, em companhia de outra mulher e passeava com ela de braço dado, propôs contra ele acção de divórcio. Alegou, como fundamento, os factos apontados e considerou como revelação do adultério do réu; enquadrou, por isso, a acção no n.º 2 do art. 4.º do Dec. De 3-11-1910.
O juiz da 1.ª instância julgou provados os factos articulados; mas porque viu neles, não a revelação de adultério, mas injúria grave praticada pelo réu contra a autora, decretou o divórcio com fundamento, não no n.º 2 do art. 4.º, invocado pela autora, mas no n.º 4 do mesmo artigo (…).
A causa de pedir da acção eram os factos apontados pela autora e não a qualificação jurídica que ela entendera dar-lhes. A autora pediu o divórcio com o fundamento no adultério do marido. O que significa isto, em rigorosa técnica processual?
Significa que, ao fazer o enquadramento legal dos factos imputados ao marido, viu neles a manifestação de adultério, qualificou-os como expressão de relações adulterinas entre o réu e a mulher em companhia da qual se exibia em público. Catalogou-os, por isso, no n.º 2 do art. 4.º do Dec. De 3-11-910.
Estava o tribunal adstrito a tal qualificação jurídica?
É evidente que não. O art. 664.º vincula o tribunal aos factos fornecidos pelas partes; mas não o vincula à aplicação, que as partes façam, das regras de direito. Quer dizer, o juiz não podia decretar o divórcio com base em factos diversos daqueles que a autora lhe oferecia; mas podia perfeitamente aplicar a esses factos norma de lei diferente da que a autora invocara.
A Autora dissera: os factos que exponho caem sob o império do n.º 2 do art. 4.º; o tribunal tinha plena liberdade de declarar: os factos apresentados pela autora caem sob o domínio, não do n.º 2 do art. 4.º, mas do n.º 4 do art. 4.º.Com isto, o tribunal mantinha-se fielmente dentro da causa de pedir alegada pela parte (os factos atribuídos ao marido); o que sucedia era que, não concordando com o ponto de vista jurídico exposto pela autora, como era seu direito, submetia os factos a outro enquadramento legal, dava-lhes qualificação jurídica diferente» - Ob. cit. , pág. 128.

Ou seja, a invocação de um novo fundamento jurídico, de uma nova qualificação jurídica dos factos, como não altera a causa de pedir não impede a exceção do caso julgado.

No caso dos autos os factos são os mesmos e como são os mesmos cumpre concluir que se repete a causa de pedir, pelo que se verifica a exceção do caso julgado.

Sobre esta problemática, aludindo à questão do enriquecimento sem causa, Alberto dos Reis referiu:

«… Andrade considera: mas já não é liquido que o caso julgado impeça o autor de, com base nos mesmos factos, alegar outro direito, título jurídico ou via legal que possa conduzir ao mesmo resultado prático. O autor pediu determinada quantia a título de indemnização por perdas e danos, fundado portanto em responsabilidade civil do réu (contratual ou aquiliana); decaiu; o caso julgado obstará a que, em nova acção o autor peça a mesma soma as título de não locupletamento á custa alheia?

(…) O teor da sentença, no caso figurado é este: o réu não deve ao autor a título de perdas e danos, a quantia pedida. Se pode ou não ser condenado a pagá-la, em nova acção, a título de não locupletamento à custa alheia, é questão a decidir, não em face do art. 673.º, mas em face das regras relativas à identidade das acções. A questão, no fundo, apresenta-se assim: A acção de não locupletamento assentará na mesma causa de pedir que a acção de indemnização de perdas e danos?

Se a resposta for negativa não existe o obstáculo do caso julgado; se for afirmativa, há caso julgado que precludiu a nova alegação do autor.

Inclinamo-nos a crer que o autor tem fechada a porta à acção de não locupletamento, em consequência do fenómeno da preclusão» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 175.

O Prof. Castro Mendes referindo-se a esta passagem da obra de Alberto dos Reis, disse o seguinte:

«Se o eventum litis foi desfavorável ao autor, não temos dúvidas de que lhe ficam precludidas todas as linhas de fundamentação jurídica que podia ter invocado e que aliás o juiz podia ex officio ter tomado como base de decisão, nos termos do art. 664. Todas as hipóteses de solução que o juiz rejeita, necessariamente, ficam indiscutivelmente insubsistentes. Se o juiz, no primeiro processo, em que se invocou responsabilidade civil, já podia haver condenado por locupletamento e não o fez, parece que não seja a circunstância de se abrir segundo processo que lhe possa dar novamente essa possibilidade» - Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil. Edições Ática, 1968, pág. 293.

Neste sentido também Mariana França Gouveia, quando diz que «…para o caso julgado, na sua vertente de excepção, a causa de pedir é definida através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada. Uma acção posterior será barrada pela excepção do caso julgado quando os mesmos factos reconhecidos como provados são os únicos alegados, mesmo que a norma invocada seja diferente. Estes factos principais enquadram apenas os que servem de fundamentação ao pedido, o que tem como consequência que, propondo o réu acção de sentido contrário, basta a identidade de factos constitutivos do direito do autor que o réu alega (para logo de seguida invocar a excepção) para que haja identidade de causa de pedir» - Ob. cit., pág. 509.

Seguindo este entendimento, no acórdão do STJ de 17 de abril de 2018 (Fonseca Ramos), no processo n.º 1486/15.4T8PDL.L1.S1, ponderou-se que «… II - Tendo a primeira acção intentada pelo banco, baseada na responsabilidade civil contratual do réu seu cliente, sido julgada improcedente, e tendo o banco, em sede reconvencional, na segunda acção, afirmado que formulava o pedido de condenação do autor/reconvindo baseado nos mesmos factos já invocados naquela primeira acção, mas agora considerando existir enriquecimento sem causa do autor/reconvindo, consideramos que, numa e noutra acção, é o mesmo o núcleo essencial dos factos integradores das normas concorrentes, alegados no primeiro processo, sendo por isso a mesma, a causa de pedir invocada na reconvenção, apenas existindo diversa qualificação jurídica, emprestada pelo reconvinte. III – (…). IV - Sendo, como se considera ser, que o núcleo factual é o mesmo e que, na primeira acção, o banco/autor considerou que os factos (causa de pedir) integravam responsabilidade civil contratual do demandado e, no pedido reconvencional da segunda acção, considerou o mesmo núcleo factual como substrato para formular pretensão ancorada no instituto do enriquecimento sem causa, concluímos ser a mesma a causa de pedir, pelo que foi violado o caso julgado formado com a sentença proferida na primeira acção, não se discutindo, no caso, os demais requisitos do n.º1 do art. 581.º do CPC» (sumário) – in www.djsi.pt.

Esta argumentação e respetiva conclusão partem da teoria da substanciação adotada no Código de Processo Civil.

Com efeito, como referiu M. Teixeira de Sousa, «Os problemas suscitados pelo concurso de causas de pedir resolvem-se através da tese da substanciação sobre os elementos da causa de pedir. Sendo esta integrada por factos sem qualificação, mas com relevância jurídica, o facto ou o composto fáctico pode preencher, sem cumulação objectiva, a previsão de diferentes normas materiais. Não assim se a causa de pedir se constituísse segundo a tese da individualização, pois as distintas qualificações jurídicas corresponderiam a diferentes causas de pedir.

Pela teoria da substanciação é irrelevante a afirmação em juízo do concurso de causas de pedir. Consequentemente, uma nova apreciação da acção é impedida pela excepção de caso julgado ou por esta e pelo efeito preclusivo do caso julgado. Se o autor optou por individualizar a pretensão por factos que preenchem várias previsões legais, basta o caso julgado da sentença para evitar a reapreciação da causa. Se o autor individualizou a pretensão processual através de factos subsumíveis apenas a uma norma jurídica, fica precludida a possibilidade de em outra acção completar a causa de pedir com a factualidade que podia ter sido invocada na primeira» - Sobre a Teoria do Processo Declarativo. Coimbra Editora, 1980, pág. 165/166.

Como ensinou Antunes Varela, «Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa» - Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, Almedina/1980, pág. 380.

Cabe ao autor alegar e provar a falta de causa que conduziu ao enriquecimento. Com efeito, como referiu Antunes Varela, «A falta de causa da atribuição patrimonial terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342.º, por quem pede a restituição do indevido. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa» - Ob. Cit. pág. 381.

É conhecida, porém, a dificuldade que existe na prova de factos negativos, como é o caso da prova da ausência de causa no enriquecimento.

No caso dos autos, poder-se-ia sustentar a diversidade de causas de pedir, e mesmo assim de modo não consensual face ao que ficou referido atrás, se aos factos alegados tivessem sido acrescentados outros com o fim de mostrar que as deslocações de dinheiro para a esfera patrimonial da ré não tiveram causa jurídica.

Como se disse, é tarefa difícil provar esta ausência de causa, fora dos casos típicos dos artigos 476.º a 478.º do Código Civil, pelo que a parte terá de alegar e provar um complexo factual que mostre ele mesmo o modo como se produziu a deslocação patrimonial, o qual deve deixar clara, ao mesmo tempo e segundo as regras de experiência, a inexistência ou alta improbabilidade de causas alternativas juridicamente relevantes para essa deslocação.

Ora, no nosso caso, tal composto factual é formado pelos mesmos factos já alegados na ação anterior, só foi alterada a qualificação desses factos, mas, como resulta do exposto, a qualificação jurídica não tem o condão de modificar a identidade da causa de pedir, pelo que estamos perante a mesma causa de pedir.

c) Concluindo: se o substrato factual for o mesmo em ambas as ações que se sucedem no tempo, não basta para escapar ao efeito negativo do caso julgado, formado na primeira ação, a alegação de um fundamento jurídico distinto daquele que foi invocado anteriormente, no caso, a invocação de enriquecimento sem causa em vez dos contratos de mútuo anteriormente alegados.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente.


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Coimbra, 20 de outubro de 2020

Alberto Ruço ( Relator)

Vítor Amaral

Luís Cravo