Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1655/09.6TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 06/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 66.º, DO CPC, 18.º, N.º 1, DA LOFTL E 4.º, N.º 1, AL. E) E F) DO ETAF; DEC.LEI 197/99, DE 08/06
Sumário: 1. O contrato administrativo define-se como um acordo juridicamente vinculativo celebrado entre dois ou mais sujeitos de direito com vista à constituição, modificação ou extinção de uma relação regulada pelo direito administrativo e que, por isso mesmo, fica submetido a um regime substantivo de direito público.
2. Um contrato de fornecimento de mobiliário celebrado entre um particular e uma autarquia que não obedeça a tais características é regulado pelo direito privado e o foro competente é o tribunal comum.
Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A..., Lda. intentou, em 22/7/2009, acção declarativa, sob a forma sumária, contra a Câmara Municipal de B..., pedindo o pagamento de facturas alusivas a vendas de mobiliário, que a Ré ainda não lhe pagou, no valor de € 14.333,04, a título de capital em divida, e de € 6.286,11, referente a juros de mora, já vencidos, e os vincendos até efectivo e integral pagamento.

A Ré deduziu oposição, defendendo-se por excepção dilatória, ao considerar que o Tribunal Comum é materialmente incompetente, já que o que está em causa nos autos é um contrato administrativo e, por esse motivo, é competente o Tribunal Administrativo, e também por excepção peremptória, invocando a prescrição do crédito reclamado pela Autora, não tomando qualquer posição acerca dos factos alegados.

A Autora, na resposta, manteve a posição que já havia assumido na petição inicial.

            Com dispensa da audiência preliminar, pelo M.mo Juiz foi proferido o despacho de fl.s 66 a 71, em que se decidiu pela procedência da alegada excepção de incompetência material dos tribunais comuns, atribuindo-a aos tribunais administrativos, em consequência do que absolveu a ré da instância.

            Inconformada, interpôs a autora o presente recurso, o qual foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 86), concluindo a sua motivação do seguinte modo:

            1. Pelo douto despacho saneador recorrido decidiu o M.mo Juiz a quo julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal comum, atentas, fundamentalmente, as normas conjugadas dos artigos 78.º, n.º 1, al. a), e) e f) e n.º 7, 151.º, n.º 1 e 160.º n.º 2 e 161 e seg.s do DL n.º 197/99, de 8 de Junho, 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF e 178.º, n.º 1 do CPA, por considerar ter sido celebrado entre o autor e o réu um contrato administrativo, submetido a um procedimento contratual regulado por normas de direito público e por isso, cai no âmbito da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

            2. Ora, o presente pleito traduz-se, numa acção de condenação, nele estando em causa o direito do autor ver pago o mobiliário fornecido ao Fórum de B.... Foi, pois, pela relação contratual estabelecida entre a autora e o réu, que resultou a dívida reclamada pela autora.

            3. Sendo que, tal relação contratual não reveste natureza administrativa, por não se verificarem os requisitos da relação jurídica administrativa.

            4. Pelo que, não comportando o contrato em apreciação nenhuma das características dos contratos administrativos é de concluir, ser o tribunal cível o materialmente competente para a apreciação e conhecimento do objecto da acção.

            5. Assim, salvo o devido respeito, o douto despacho em crise violou o disposto, nomeadamente, nas normas conjugadas dos artigos 66.º, do CPC, 18.º, n.º 1, da LOFTL e 4.º, n.º 1, al. e) e f) do ETAF, pelo que, deve esse despacho ser revogado e substituído por outro que julgue improcedente a excepção de incompetência material suscitada pelo réu, competente o Tribunal a quo e prossiga a tramitação normal do processo.

            Termina, pedindo a procedência do recurso que interpôs.

           

            Não foram apresentadas contra-alegações.

            Dispensados os vistos legais, há que decidir.

            Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a única questão a decidir é a da competência/incompetência, em razão da matéria, relativamente aos tribunais comuns, para o conhecimento, apreciação e decisão dos presentes autos.

            Os factos a ter em conta são os que constam do relatório que antecede.

            Passando à análise de tal questão, importa ter em consideração o seguinte:

            É ponto assente que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor – neste sentido, v. g., Ac. do STJ de 20/05/98, in BMJ 477 – 389.

            Ora, o que a autora pretende obter é a condenação da ré a pagar-lhe o restante do preço dos móveis que esta lhe encomendou, no seguimento de contactos havidos entre as partes, que acordaram os moldes em que tal fornecimento deveria ser feito, incluindo, como é óbvio, o respectivo preço.

            O M.mo Juiz a quo partindo do princípio de que se tratou de um contrato celebrado ao abrigo do disposto no DL 197/99, de 8/6, daí retira a consequência de que a competência para o conhecimento e decisão dos presentes autos cabe aos Tribunais Administrativos, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF.

            Segundo este preceito, compete aos Tribunais Administrativos a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

            Na decisão recorrida seguiu-se, de perto, o decidido no Acórdão do STJ, de 08/01/2009, Processo 08B3352, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj, no qual, numa situação semelhante, se decidiu que, em tais casos, sempre serão competentes os Tribunais Administrativos, por tais contratos estarem sujeitos a um procedimento contratual, regulado por normas de direito público.

            No entanto, desde logo cumpre salientar que existe uma diferença de monta entre a situação sub judice e a tratada no Aresto em referência.

            É que neste tratou-se de um caso em que o fornecimento de serviços foi regulado através de consulta prévia, nos moldes previstos no supra referido DL 197/99, ao passo que na situação aqui em apreço, se desconhece se assim aconteceu.

            Tanto assim é que se refere na decisão recorrida o seguinte:

            “É certo que não resulta directa nem imediatamente dos autos qual a modalidade em que tal contrato foi celebrado.”.

            Presumindo-se do facto de a autora alegar que a ré a contactou para apresentar um projecto e respectivo orçamento, o qual esta aceitou e na sequência de que foi fornecido o material em causa, que se trata de um contrato celebrado ao abrigo de tal DL.

            Com o devido respeito, não podemos concordar com tal conclusão.

            Efectivamente, como melhor consta dos artigos 7.º a 10.º da p.i., a autora limitou-se a alegar que a ré lhe enviou um e.mail, para que procedesse à entrega do material relativo à encomenda da segunda tranche do equipamento para o Fórum Cultural de B..., tendo sido contactada para que apresentasse o projecto e respectivo orçamento, para a decoração de alguns espaços de tal Fórum, proposta que foi por ambas as partes aceite e a autora forneceu os bens em causa.

            Por seu turno, a ré, ao contestar, cf. artigos 7.º e 9.º da contestação, limitou-se a referir que se trata de um contrato de fornecimento de mobiliário, que consubstancia um contrato administrativo, tal como este é definido no artigo 178.º do CPA, o que acarreta a competência do Tribunal Administrativo para o conhecimento e decisão dos presentes autos.

            E não concordamos com a decisão proferida porque, desde logo, não se pode concluir que estamos perante um caso em que o contrato foi precedido das consultas e mecanismos previstos em qualquer regime pré-contratual, regulado por normas de direito público.

            Nenhuma das partes o alegou, nem dos autos se podem retirar elementos que tal permitam concluir.

            Assim, falece o pressuposto para a aplicação do artigo 4.º, n.º 1, al. e) do ETAF, uma vez que não estamos em face de questões relativas à validade de actos pré-contratuais ou à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.

            De igual modo, não se pode aplicar a sua al. f), que se refere às questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

            Conforme artigo 178.º, n.º 1, do CPA, pode definir-se o contrato administrativo como “o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídica administrativa.”.

            Por outro lado, como refere Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, vol. III, pág. 439:

            Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração.”.

            Ora, no caso dos autos, a relação contratual estabelecida entre as partes não reveste natureza administrativa, por não se verificarem os respectivos pressupostos, ora enunciados.

            Efectivamente, nem a ré actuou munida de quaisquer poderes de autoridade, nem se vislumbram restrições de interesse público, nem à autora foram atribuídos quaisquer direitos ou impostos deveres públicos quer na celebração quer na execução do contrato que motiva os presentes autos.

            De igual forma, não estão em causa questões relativas à validade de actos pré-contratuais, nem a interpretação, validade e execução do contrato que subjaz à compra e venda em causa, dado que os bens transaccionados já foram entregues, apenas restando à ré cumprir a obrigação de pagar o respectivo preço, tal como decorre do disposto nos artigos 874.º e 879.º, ambos do CC.

            Ou seja, estamos fora do âmbito de uma relação jurídica administrativa, pelo que não tem aplicação o disposto nas al.s e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e, por conseguinte, não cabe a competência para o conhecimento e decisão dos presentes autos aos tribunais administrativos, mas sim aos comuns, tal como decorre do disposto no artigo 66.º do CPC.

            No sentido ora propugnado, podem ver-se os Acórdãos do STJ, de 27/04/2006, Processo 06A606 e de 24/06/2008, Processo 08A1714, ambos disponíveis no sítio da dgsi, já acima identificado.

            A nível doutrinário, podem acolher-se, no mesmo sentido, os ensinamentos de José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, Almedina, Outubro de 2005, a pág. 239 (citados no Aresto por último referido), onde se refere que “para estarmos perante uma relação jurídico-administrativa pelo menos um dos sujeitos tem de actuar nas vestes de autoridade pública, investido de poderes de imperium com vista à realização do interesse público.”.

            Em sentido idêntico se pronuncia Pedro Gonçalves, in O Contrato Administrativo Uma Instituição Do Direito Administrativo Do Nosso Tempo, Almedina, Janeiro de 2003, a pág.s 26 e 27, quando ali refere que deve ser qualificado como contrato administrativo “todo o contrato que preencha o requisito de administratividade que consiste em constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica administrativa; é por essa razão que o contrato fica submetido a um específico regime substantivo de direito público”.

            E definindo-o como “um acordo juridicamente vinculativo celebrado entre dois ou mais sujeitos de direito com vista à constituição, modificação ou extinção de uma relação regulada pelo direito administrativo e que, por isso mesmo, fica submetido a um regime substantivo de direito público”.

            Acrescentando que para um contrato poder ser classificado como administrativo, pelo menos, um dos seus sujeitos tem de o celebrar nessa qualidade (enquanto tal) e não no exercício de uma capacidade jurídica de direito privado.

            Acrescentando o mesmo autor, a pág.s 60 e 61 que o contrato administrativo tem carácter de excepção no interior dos contratos da Administração, no sentido de que estes são privados, salvo se neles estiver presente um qualquer factor de administratividade e quanto aos contratos que não são previamente regulados por normas de direito administrativo, os mesmos só revestem a natureza administrativa se as partes os submeterem a um regime substantivo de direito público, pelo que, nada se estabelecendo, são contratos de direito privado.

            Ora, no caso em apreço, não se pode ter por assente que as partes contratantes tenham submetido o contrato que celebraram a normas de direito público, nem nenhuma delas actuou enquanto membro da Administração Pública, bem como, de igual forma, não se vislumbra que o mesmo regule qualquer relação jurídico-administrativa, no sentido em que acima já a definimos, pelo que se tem de concluir tratar-se de um contrato de direito privado e por isso, a submeter aos tribunais comuns, o que importa a revogação da decisão recorrida, atribuindo-se a competência para o conhecimento e decisão destes autos ao Tribunal a quo.

            A única possibilidade de se poder qualificar o contrato dos autos como administrativo seria a de, como acima aflorado, nele estar presente um qualquer factor de administratividade.

            Estes, cf. obra por último citada (pág.s 58 a 60) são os casos de o contrato ter um objecto público e em consequência celebrado no contexto de uma relação que é, em si mesma, regulada pelo Direito Adiministrativo; de a lei definir um regime substantivo especial para um contrato ou categoria de contratos da Administração Pública, disciplinando aspectos da relação contratual, dos direitos e deveres das partes, pelo facto de a Administração ser parte; ou quando o mesmo, embora de natureza privada é expressamente submetido pelas partes a um regime substantivo de direito público.

            Ora, o contrato que subjaz aos presentes não tem presente nenhum destes factores de administratividade e, por conseguinte, nos termos expostos, tem de classificar-se como sendo um contrato de direito privado, pelo que não cabe nas al.s e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, pelo que, em conjugação com o seu artigo 1.º e 212.º, n.º 3, da CRP, não está a competência para o conhecimento e decisão dos presentes autos atribuída aos Tribunais Administrativos, mas si aos Tribunais Comuns, por força do que se dispõe no artigo 66.º, do CPC.

            Em suma, o contrato aqui em apreço não é regulado por normas de direito administrativo e ainda que o fosse não se trata de relações jurídico-administrativas, pelo que só pode qualificar-se como contrato de direito privado, do que decorre que a competência para o seu conhecimento e decisão cabe aos tribunais comuns.

            Consequentemente, tem de proceder o presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, atribuindo-se a competência para a tramitação dos presentes autos ao Tribunal a quo.

Nestes termos se decide:

Julgar procedente a apelação deduzida, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que atribui a competência para o conhecimento e decisão destes autos ao Tribunal a quo, onde deverá prosseguir a ulterior tramitação dos autos.

Custas pelo apelante.