Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1386/12.0TBVNO.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE VIDA
EXONERAÇÃO DA RESPONSABILIDADE
HERDEIRO
MUTUÁRIO
Data do Acordão: 04/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DL 446/85, DE 25/10.
Sumário: I – Muito embora sendo dois contratos típicos distintos (contrato de crédito ao consumo e o contrato de seguro), em face da dependência recíproca ambos os contratos se completam na obtenção da finalidade económica comum, consubstanciando coligação de contratos, que deve ser perspectiva através de uma “concepção unitária”, com reflexos ao nível da interpretação negocial.

II - A existência de seguro de vida implica, em princípio, a exoneração da responsabilidade dos herdeiros do mutuário.

Decisão Texto Integral: Acordam do Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

            1.1.- O Autor – BANCO A…, SA instaurou na Comarca de Ourém acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra os Réus – S… e E...

            Alegou, em resumo:

            Em 4 de Junho de 2008 celebrou com M…, com consentimento da esposa C…, um contrato de mútuo no valor de € 13.650,00, que o mutuário se obrigou a pagar em prestações, mas que deixou de pagar, estando em dívida com a importância de € 8.354,92 e juros vencidos.

            Porque M… e esposa já faleceram, os Réus, na qualidade de herdeiros, são os únicos responsáveis pela dívida.

            Pediu:

Que os Réus sejam habilitados como únicos herdeiros dos falecidos M… e C…;

A condenação dos Réus a pagar ao Autor a quantia de € 8.354,92, acrescida de € 1.841,67 de juros vencidos até 12/10/2012 e de € 73,67 de imposto de selo sobre os juros vencidos e ainda os juros que sobre a dita quantia de € 8.354,92 se venceram á taxa anual de 13.944% desde 13/10/2012 e até integral pagamento, bem como o imposto de selo que à referida taxa de 4% sobre estes juros recair.

Contestaram os Réus, dizendo, em síntese, que as prestações em dívida ocorreram depois do falecimento do mutuário M…, mas dada a existência de seguro de vida não são os Réus responsáveis pelo pagamento, mas a Seguradora.

Respondeu o Autor.

1.2. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença a absolver os Réus do pedido.

1.3. - Inconformado, o Autor recorreu de apelação, com as seguintes conclusões:

1) À matéria de facto dada como provada em 1ª instância, impõe-se aditar ( art. 712 nº1 a) CPC) a seguinte – “ Os Réus S… e E… são os únicos herdeiros do falecido M…”.

2) A sentença recorrida ao não julgar a acção totalmente procedente violou os arts. 2014, 2068 e 1071 do CC, e os arts. 405 e 406 do CC.

Não houve contra-alegações.


II – FUNDAMENTAÇÃO

            2.1. – Objecto do recurso

            As questões submetidas a recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, são as seguintes:

            O aditamento de factos (a habilitação legitimidade e a qualidade de herdeiros);

Se a existência de seguro de vida implica a exoneração da responsabilidade dos herdeiros do mutuário.

            2.2. – O aditamento de factos provados

            O Autor alegou que o falecido M… deixou como únicos herdeiros os Réus, tendo junto certidões comprovativas do assento de nascimento e os Réus não contestaram.

Em processo civil a prova da aquisição por sucessão ou transmissão da titularidade de um direito ou complexo de direitos e obrigações, faz-se através da habilitação, que pode assumir três formas distintas: habilitação legitimidade, habilitação acção ou principal e habilitação incidental.

A habilitação legitimidade é a que se faz através da petição inicial da acção e dos actos de prova subsequentes, como elo de demonstração da titularidade da situação jurídica invocada, ou seja, quando numa acção ou execução se alega que o autor ou o réu, exequente ou executado, sucederam na posição jurídica que pertencia a outra pessoa. Neste caso, a habilitação desempenha o papel ou requisito da legitimidade processual do autor ou do réu, pois não se trata de qualquer modificação subjectiva da instância, e cuja apreciação não faz caso julgado.

No aspecto funcional, a habilitação legitimidade, sem que assuma autonomia processual, aproxima-se da habilitação incidental, já que visa colocar o sucessor na posição jurídica do falecido, radicando a diferença no facto daquela se apresentar no início da acção, enquanto esta ocorre na pendência de uma causa.

Demandados directamente os Réus, na qualidade de herdeiros, e por conseguinte sucessores, verifica-se que o Autor alegou factos sobre a habilitação legitimidade, estando processualmente adquirido que os Réus são os únicos herdeiros do falecido M...

            2.3. - Os factos provados

...

2.4. – Se a existência de seguro de vida implica a exoneração da responsabilidade dos herdeiros do mutuário.

            Problematiza-se a questão de saber se, por força do contrato de seguro de vida, a responsabilidade pelo pagamento das prestações referentes ao mútuo é apenas da Seguradora e já não dos herdeiros do mutuário.

            Em 4/6/2008 o Autor emprestou a M… a importância de € 13.650,00, nas condições constantes do contrato de mútuo.

            Convencionaram como “protecção” uma apólice de um seguro de vida “subscrita pelo Banco, pela qual o capital vincendo em dívida à data dessa ocorrência ficará(ao) integralmente saldados, nas situações emergentes de (…) “ ( cf. cláusula 13ª).

Do documento “Resumo das condições do seguro protecção vida Banco …” extrai-se tratar-se de um seguro de grupo contributivo, em que a Companhia Portuguesa de Seguros de Vida F…, SA, figura como Seguradora, o Banco A…, SA como tomador e beneficiário, e o falecido M… como segurado.

A sentença recorrida rejeitou a pretensão do Autor, argumentando que os Réus cumpriram o dever de informação, não sendo responsáveis pelo pagamento dos montantes em dívida, “uma vez que tal obrigação, mercê da existência do aludido contrato de seguro, pertence à seguradora”.

Em contrapartida, o Autor/Apelante sustenta a impossibilidade de accionar o seguro por falta exclusiva dos Réus, visto que não forneceram a documentação solicitada pela seguradora, pelo que devem ser responsabilizados pelas prestações em dívida.

São dois contratos típicos distintos (contrato de crédito ao consumo e o contrato de seguro) mas aqui ligados entre si por um nexo funcional, de tal modo que constituem uma unidade económica, embora cada um mantenha a sua individualidade própria. Atenta a dependência recíproca ou unilateral, ambos os contratos se completam na obtenção da finalidade económica comum.

            O fenómeno da coligação negocial, perspectivado inicialmente segundo uma concepção atomística, ao pressupor uma pluralidade jurídica, com uma unidade económica funcional, autonomizando estruturalmente cada um dos contratos, produtores dos seus próprios efeitos, tem vindo actualmente a ser abordado através de uma “concepção unitária”. Isto significa, além do mais, que “ todas as normas e institutos dirigidos directa ou indirectamente ao conteúdo “económico” do contrato (à avaliação económica das cláusulas, prestações ou obrigações, à avaliação económica do próprio contrato ou dos singulares contratos que compõem o complexo, à correlação económica de forças, aos equilíbrios e desequilíbrios económicos gerados em conclusão do contrato e no desenvolvimento da execução contratual, à própria utilidade ou inutilidade económica de sobrevivência autónoma de contratos singulares pertencentes ao complexo, etc.) devem ser objecto de uma aplicação unitária “( cf., FRANCISCO PEREIRA COELHO, “ Coligação Negocial e Operações Negociais Complexas”, Boletim da Faculdade de Direito, Volume Comemorativo, 2003, pág.209 e segs. ).

            Uma das consequências desta nova concepção situa-se no âmbito da interpretação e integração negocial, que deve atender ao conjunto de todos os elementos, de forma complexiva, postulando, antes de mais, um problema de interpretação da declaração negocial, enquanto actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer, não apenas numa vertente puramente factual ou psicológica, mas visando fixar o sentido normativo dessa declaração (interpretação normativa).

Para tanto, importa tomar em consideração que qualquer declaração de vontade negocial revela-se como um fenómeno ambivalente: enquanto acto de comunicação e enquanto acto determinativo ou normativo ( cf., por ex., KARL LARENZ, Derecho Civil, Parte Generale, 1978, pág.448 e segs.).

Ora, este fenómeno reflecte-se também no problema da interpretação, tanto assim que o acto de comunicação, destinado a ser conhecido e entendido pelo declaratário, provoca nele a correspectiva confiança, pelo que a declaração de vontade há-de responsabilizar o declarante por esta confiança, dentro da “ordem envolvente da interacção negocial”, ou seja a critérios normativos de razoabilidade e de boa-fé, com uma função integrativa e reguladora das condutas dos contraentes. Mas, tornando-se o acto comunicativo juridicamente vinculante, a interpretação negocial não pode deixar de ser sistémica, convocando os princípios, como o da justiça contratual, da boa fé, da segurança, do equilíbrio das prestações.

O contrato de seguro em relação ao qual o segurado apenas tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo contratual que lhe é proposto, dentro do tipo contratual desejado pelas partes, exprime a estipulação de contrato de adesão.

            Os contratos de seguros, como contratos de adesão, devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts.236 e 237 do CC, como também ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública ( art.280 do CC ) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227 nº1 e 762 nº2 do CC ).

            O DL 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelo DL 220/95 de 31/8, estabelece, como princípio geral, que “as cláusulas gerais são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam “ ( art.10º ). Adoptando-se uma metodologia semelhante à do Código Civil ( art.236 e segs. ) ( cf., por ex., Ac do STJ de 15/5/2001, C.J. ano IX, tomo II, pág.82 ), dá-se, no entanto, prevalência a uma justiça individualizadora, ao remeter-se para o contexto de cada contrato singular. Assim, na interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve apurar-se o sentido normal da declaração, ou seja, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, segundo a teoria da impressão do destinatário (art.236 nº1 do CC). Mas nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.238 do CC). Isto significa que a letra do negócio (o texto do documento) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação.

            Porém, constituindo um claro afloramento do princípio geral da justiça contratual, o art.11 nº1 determina que “as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real “, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente ( nº2 ) ( cf., Ac do STJ de 1/3/2001 e 15/5/2001, C.J. ano XI, tomo I, pág.135 e tomo II, pág.82, ALMENO DE SÁ, Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas, 2ª ed.,pág.67 e 68 ;cf., sobre as regras de interpretação do contrato de seguro, J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, Contrato de Seguro, 2009, pág.116 e segs.).

Coloca-se, assim, a questão de saber se a existência de seguro de vida implica a exoneração da responsabilidade dos herdeiros do mutuário, e sobre a qual existem três orientações jurisprudenciais:

a) Uma no sentido de que a responsabilidade é apenas da Seguradora.

Argumenta-se, em apertada síntese, que o segurado não é parte do contrato, impendendo sobre ele (ou os herdeiros) o dever de informação, pelo que a responsabilidade do pagamento cabe exclusivamente à Seguradora, como decorre do art. 458 ( a contrario) do C Comercial, e com o princípio da boa fé ( cf., Ac STJ de 18/4/2006 ( proc. nº 06A818), Ac STJ de 3/2/2009 ( proc. nº 08A3947), Ac RP 16/7/2007 ( proc. nº 0753388), Ac RC de 11/2/2011 ( proc. nº 5559/04.0TBCRA ), disponíveis em www dgsi.pt.).

b) Outra, cuja solução depende essencialmente da interpretação dos contratos e do apuramento da vontade das partes (cf., por ex., Ac RL de 11/2/2010 ( proc. nº 9345/03.TVLSB ), em www dgsi.pt).

c) A terceira posição defende que a existência do contrato de seguro não desvincula ou exonera os herdeiros do mutuário, visto que o seguro funciona como reforço da garantia e não como substituição dos responsáveis, e, por outro lado, trata-se de uma responsabilidade solidária ( cf., por ex., Ac RL de 30/11/2006 ( proc. nº 8135/2006), Ac RL de 13/1/2009 ( proc. nº 6766/2008), Ac RC de 21/1/2014 ( proc. nº 16/11.1TBSCD ), em www dgsi.pt ).

Impõe-se, antes de mais, apurar o que efectivamente foi acordado, tendo em conta o princípio da autonomia da vontade e a finalidade do contrato de seguro, bem assim o princípio da boa fé.

Neste contexto, verifica-se que nas condições gerais do contrato de crédito convencionaram expressamente – “ 13 a) (…) o capital vincendo em dívida à data da ocorrência ficará(ão) integralmente saldados (…)”.

Daqui resulta, segundo os critérios de interpretação enunciados, no âmbito da coligação dos contratos, que a responsabilidade pelo pagamento com a morte é da inteira responsabilidade da Seguradora, sendo o Banco o beneficiário.

O Apelante diz que os demandados não cumpriram cabalmente o dever de informação, o que motivou o encerramento do processo por parte da Seguradora, parecendo, assim, aderir e agir em conformidade com a primeira das orientações, ao situar o enfoque apenas na violação do dever de informação por parte dos Réus ( herdeiros).

Comprovou-se que os Réus apresentaram os documentos referidos na cláusula 8ª do documento resumo, questionando-se se o fizeram cabalmente, designadamente quanto ao solicitado relatório médico.

Com efeito, está provado que entre 4/4/2011 e 18/8/2011 houve troca de mensagens ( cf. docs de fls. 86 e segs.) entre o Réus (rectius a sua mandatária) e o Autor.

Entre 21/10/2011 e 8/3/2012 a Seguradora e o Autor solicitaram aos Réus nova documentação para análise do processo de sinistro, designadamente informações clínicas a prestar pelo médico assistente/família.

            E em 8/6/2012 a Seguradora comunicou aos Réus o enceramento do processo de averiguação do sinistro por falta de elementos, anotando disponibilidade para “reanalisar este assunto em presença dos elementos em falta”.

Acontece que quanto ao solicitado relatório do médico assistente, já anteriormente os demandados, através da sua mandatária, haviam informado, em 4/4/2011, que o hospital não facultava qualquer dado sem autorização e que já pediram à Comissão de Dados.

Acresce que, conforme doc. de fls. 96, a mandatária dos Réus remeteu (10/10/2011) ao Autor cópia do resultado da autópsia, e pediu que caso necessitassem de mais alguma coisa a contactassem directamente ( “ Agradeço que caso necessite de mais alguma coisa que entre em contacto comigo” ).

Diz a sentença que apesar de não enviarem o relatório do médico assistente/família, a verdade é que remeteram o despacho de arquivamento com menção do teor da autópsia, e posteriormente cópia do relatório da autópsia, logo os Réus colaboraram com o Autor e a Seguradora.

Nos contratos de seguro de grupo, o aderente (segurado) não é parte do contrato, mas está sujeito ao dever de informação, decorrente do princípio da boa fé, visto tratar-se de coligação de contratos.

Crê-se que os demandados satisfizeram razoavelmente o dever de informação, segundo o convencionado no contrato de crédito ao consumo e de acordo com o princípio da boa fé. De resto, e em face de tais elementos, incluindo o relatório de autópsia, não está demonstrado sequer que tal inviabilizasse a análise do seguro, e nem a Seguradora e o Autor comunicaram as razões pelas quais o relatório do médico assistente era absolutamente indispensável e muito menos que tal constituísse causa justificativa para o encerramento do processo de averiguação do sinistro, sabido que já tinha elementos sobre a causa da morte, designadamente o relatório de autópsia, e cujo ónus impendia sobre o Autor.

Improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

2.5. - Síntese conclusiva

a) Muito embora sendo dois contratos típicos distintos (contrato de crédito ao consumo e o contrato de seguro), em face da dependência recíproca ambos os contratos se completam na obtenção da finalidade económica comum, consubstanciando coligação de contratos, que deve ser perspectiva através de uma “concepção unitária”, com reflexos ao nível da interpretação negocial.

b) A existência de seguro de vida implica, em princípio, a exoneração da responsabilidade dos herdeiros do mutuário.


III – DECISÃO

            Pelo exposto, decidem:

1)

            Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença.

2)

            Condenar o Apelante nas custas.

            Coimbra, 1 de Abril de 2014.


( Jorge Arcanjo - Relator)

( Teles Pereira )

( Manuel Capelo )