Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3377/21.0T8LRA.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
COBERTURA FACULTATIVA
EXCLUSÃO DA GARANTIA DO SEGURO
HABILITAÇÃO LEGAL PARA CONDUZIR
PROVA DO TÍTULO HABILITANTE
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 121.º, N.º 4, 123.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DA ESTRADA, 117.º, N.º 1, DO CÓDIGO DO TRABALHO, 2.º E 4.º DO DECRETO-LEI N.º 126/2009, DE 27-05
Sumário:
I – A habilitação, nos termos legais, para conduzir um veículo pesado de mercadorias apenas pode ser provada por documento.

II – Não tendo sido apresentada, apesar de diligências probatórias realizadas nesse sentido, a Carta de Qualificação de Motorista, tem de concluir-se que o referido título não existe.

III – É lícito à entidade seguradora recusar o pagamento do capital seguro com base numa cláusula, prevista no respectivo contrato, que exclui a responsabilidade, ao nível da cobertura facultativa, quando o veículo sinistrado seja conduzido por pessoa que não esteja legalmente habilitada a fazê-lo.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
 
Processo n.º 3377/21.0T8LRA.C2
Tribunal Judicial da Comarca de Leiria
Juízo Central Cível de Leiria (J 3)

 
                                                Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

                                                             
                                                I – RELATÓRIO.                  

                                                             
                              A... LDA., pessoa coletiva com o NIPC ...43, com sede em Rua ..., ... , Ap. ...13, ...40 ..., instaurou no Juízo de Central Cível de Leiria acção comum contra


                              B... S.A., pessoa coletiva com o NIPC ...31, com sede em Av. ... ...pedindo, com base no sinistro rodoviário melhor descrito na petição inicial, que a ré seja condenada a pagar à autora a quantia de 53.651,98 €, acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.                      

                               
                                                                ***
   A ré contestou, sustentando que a regularização do sinistro descrito nos autos encontra-se excluída contratualmente em virtude do condutor do veículo interveniente no mesmo não se encontrar legalmente habilitado a conduzir tal viatura.   
   Paralelamente, impugnou parte da factualidade alegada na petição inicial. 

                                                             
                                                                ***                           
   Em resposta, a autora pronunciou-se no sentido da improcedência da excepção invocada pela ré.  

                                                             
                                                                ***                           
                                                   Em 17/3/2022, foi proferida sentença [1] que, considerada verificada a excepção peremptória invocada pela ré, julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido. 

                                                             
                                                                ***                           
   Não se conformando com a decisão proferida, a autora interpôs recurso para esta Relação, tendo, por Acórdão proferido a 22/11/2022, sido a mesma revogada, em virtude do facto constante do ponto 7 da sentença impugnada se mostrar controvertido.  

                                                             
                                                                ***                           
Após os autos terem baixado à 1ª instância, em 23/1/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:           
Em conformidade com o teor do Acórdão que  antecede, determina-se:    
- A notificação da Autora para, no prazo de 10 dias, juntar aos autos o Certificado CAM e a Carta de Qualificação de Motorista relativos ao Motorista AA, válidos à data
do acidente (05/11/2018);                                                        
- A notificação do IMT para informar os autos quais as obrigações legais para habilitação legal de condução de veículos pesados de mercadorias de transporte internacional, entre 26 e 40 toneladas, por cidadãos brasileiros a residir em Portugal há mais de 185 dias, nomeadamente da exigência da CQM e CAM e da Validade da Carta Internacional de Motorista em Portugal, à data de 05/11/2018.”.

                                                             
                                                                ***                           
                                           Dado cumprimento ao referido despacho, o IMT respondeu através de e-mail incorporado nos autos em 9/3/2023, 

                                                             
                                                                ***                           
                              Subsequentemente, foi dado conhecimento, através de peça processual datada de 10/3/2023, que a autora tinha sido declarada insolvente, o que motivou, após a constituição de novo mandatário, a prolação de despacho em 5/5/2023, a conceder à ora apelante o prazo de 10 dias para juntar o documento aludido no despacho de 23/1/2023 ou, em alternativa, para alegar o que tivesse por conveniente, por ter sido entendido que era possível conhecer imediatamente do mérito da causa.           

                                                             

 
                                                                **                             
   Por requerimento de 23/5/2023, a autora informou que desconhecia e ainda não logrou apurar se o motorista em questão possuía, ou não, Certificado CAM e Carta de Qualificação de Motorista.

                                                             
                                                                **                             
            Em 20/6/2023, foi proferido despacho a convidar as partes para, querendo e no prazo de 10 dias, alegarem o que tivessem por conveniente, por ser possível conhecer imediatamente do mérito da causa.

                                                             
                                                                ***                           
   Na sequência do referido convite, as partes apresentaram as respectivas alegações, nos termos que constam das peças processuais datadas de 23/6/2023 e 6/7/2023.  

                                                             
                                                                ***                           
       Em 18/9/2023, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido, com fundamento na exclusão prevista na cláusula 40.º, n.º 1, al. a), das condições gerais da apólice mencionada nos autos.

                                                             
                                                                ***                           
   Não se conformando com a decisão proferida, a autora interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

                                                             
             “1. A aqui Recorrente não se conforma com o teor da Sentença proferida pelo distinto Tribunal a quo, que julgou verificada a causa de exclusão da responsabilidade invocada pela Ré e, em consequência, julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a aqui Recorrida do pedido.

2. Entende a Recorrente que o Tribunal errou ao julgar provado o facto 7 (“O motorista não é titular de Carta de Qualificação de Motorista (CQM), prevista no DL 126/2009, de 26/05.”), 

3. E entendemos,          também,      que, independentemente do facto 7 ser, ou não, dado como provado, a eventualidade de o motorista em questão não possuir Carta de Qualificação de Motorista não integra nem pode integrar a causa de exclusão de responsabilidade de que a Ré se pretende prevalecer.   
   Do Erro de Julgamento / Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, com consequências quanto à subsunção jurídica efetuada (pág.ªs 16 a 19, supra)  

4. Salvo melhor juízo e opinião, o ónus da prova do facto dado como provado com o n.º 7, supra transcrito, é da Ré/Recorrida, não da Autora/Recorrente, pois foi aquela quem, por forma a excecionar a exclusão contratual prevista al. a) do n.º1 da cláusula 40.ª das condições gerais da apólice contratada, alegou, primeiro, que o motorista em questão não estava habilitado a conduzir veículos em território nacional (artigo 9.º da douta Contestação) e, depois, que tal motorista também não possuía Carta de Qualificação de Motorista, não frequentado qualquer curso de formação que lhe atribuísse o Certificado de Aptidão de Motorista (artigo 10.º da Contestação).                                                                           
5. A Ré não juntou qualquer documento e para prova do por si alegado, requereu, unicamente, a notificação da Autora para que juntasse aos autos o Certificado CAM e a Carta de Qualificação de Motorista relativos ao motorista AA, válidos à data do acidente.     
6. Note-se que, podendo ter-se socorrido de outros meios hábeis à prova do facto por si alegado em sustento da exceção que invocou, a Ré nada mais requereu para além da notificação da Autora para juntar documentos e do IMT para prestar informações, não tendo, por exemplo, requerido a notificação das entidades legalmente aptas à emissão dos documentos a que aludiu.    
7. A Autora impugnou o facto alegado pela Ré, razão pela qual não existiu qualquer confissão ou acordo, tal como não existe nos autos documento que permita julgar o facto como provado.

8. Depois de uma primeira decisão revogada por esta mesma Relação, o Tribunal recorrido ordenou a notificação da Autora para que juntasse aos autos o documento pretendido pela Ré.

9. Já após a insolvência da Autora, esta, representada pelo Sr. Administrador de Insolvência, informou os autos que não logrou localizar os documentos solicitados; que não sabe quem é o motorista em questão, pois este não era trabalhador da empresa à data da falência e não foi credor reclamante nos autos de insolvência, não tendo como juntar a documentação solicitada.    
10. Ora, salvo melhor juízo e opinião, os documentos em questão tratam-se de documentos pessoais do motorista e não da empresa que o contratou, razão pela qual não lhe era nem pode ser exigível que os tivesse em sua posse.                            
                        
11. Realce-se que, no nosso ponto de vista, a sociedade agora insolvente não tinha obrigação de guardar em arquivo a documentação em questão, sendo igualmente certo que não foi nem compete à aqui Recorrente proceder à emissão de tais documentos. 
12. Acresce que o Tribunal não promoveu qualquer inversão do ónus da prova e, em nossa opinião, não existe qualquer presunção legal, convenção ou legislação que determine tal inversão.

13. Deste modo, consideramos que não foi recolhida prova bastante que permita ao Tribunal decidir-se pela prova do facto alegado pela Ré – e cuja prova, reitera-se, entendemos que lhe competia.

14. Em nossa perspetiva, não há nem foi careada prova bastante para que o Tribunal formasse a convicção que formou.

15. E existindo dúvida, como nos parece que aqui sempre terá necessariamente de existir, por força do artigo 414.º do CPC, a dúvida quanto à realidade do facto (e, também, quanto à repartição do ónus da prova) tem de ser necessariamente resolvida contra a parte a quem o facto aproveita, que no caso é a Ré/Recorrida.  

16. Deste modo, é nosso humilde entendimento que o facto provado 7 deveria integrar a lista dos factos dados como não provados.                                      
        
17. E tal, conjugado com a prova de que o motorista era titular de carta de condução válida, emitida pelo seu país e portador de Licença Internacional de Condução (facto provado 6), implica que a decisão recorrida deva ser substituída por outra que, por não provada, julgue não verificada a exclusão contratual invocada pela Ré, com consequente ulterior prosseguimento dos autos para prova dos danos e quantificação do quantum indemnizatório.    

18. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido errou no julgamento do facto e, consequentemente, na decisão proferida e violou o disposto nos artigos 5.º, n.º2, 6.º, 7.º, 413.º, 414.º, 436.º, 607.º, n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil e artigos 342.º, n.ºs 1 e 2 e 344.º do Código Civil, impondo-se a revogação da Sentença recorrida e a sua substituição por decisão que julgue improcedente a exceção invocada e ordene o prosseguimento dos autos – o que, muito respeitosamente, se requer.”.  

                                                             
                                                                **                             
                              A ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:                                                 
   “1. A ora Recorrida concorda, em pleno, com a douta Sentença proferido pelo douto Tribunal a quo. 
2. A Sentença objecto de recurso não padece de qualquer vício, no que respeita à matéria de direito e de facto, decisão de mérito, concordando integralmente com a aplicação do Direito ao caso em apreço.      
3. Ao contrário de defendido pela A em sede de recurso, ao qual ora se responde, entende a recorrida devem ser mantidos todos os factos dados como provados na douta Sentença. 
4. Nomeadamente que o condutor do veículo era residente em Portugal desde 8/2/2017, ou seja, há cerca de 1 anos e 9 meses antes da data do acidente que ocorreu a 5/11/2018                 
5. Que o mesmo não havia requerido a regularização da troca da carta de condução brasileira pela Portuguesa no prazo de 185 após entrada em Território Nacional, conforme prescreve o D.L. 40/2016 de 29 de Julho e D.L 37/2014 de 10 de Março,          
6. Que o condutor do veículo seguro não possuía, também, Carta de qualificação de Motorista, não tendo frequentado qualquer curso de formação que lhe atribuísse o Certificado de Aptidão de Motorista,
7. Que ambos os requisitos são obrigatórios para o exercício da condução de veículos com as características do veículo seguro.
8. Nos termos da Clausula 40 n.º 1 alínea a) das Condições Gerais da Apólice, a regularização do presente sinistro se encontrava excluída tendo em conta que no momento da ocorrência do sinistro, veículo seguro, estava a ser conduzido por pessoa que, para tal, não esteja legalmente habilitada ou esteja inibida, por lei ou decisão judicial.”.  

                                                             
                                                                **                             
                                                Questões objecto do recurso:

                                                             
- Alteração da matéria de facto dada como assente pelo Tribunal recorrido (ponto 7);   
- Enquadramento jurídico da causa, face à factualidade que vier a ser julgada relevante.            

                                                             


                                      ***               
                                                II – FUNDAMENTOS.          

                                                             
                                                2.1. Factos provados.              

                                                             
                              A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:                                               
1. Entre a A. e a C..., seguradora adquirida pela “D..., SA”, com a denominação atual da R., foi celebrado um contrato de seguro responsabilidade civil automóvel, através da apólice frota n. ...43 que garantia responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula ..-NP-.., sujeito a determinadas condições particulares e gerais, entre as quais, a seguinte:
2. Na clausula 40.ª, sob a epígrafe “exclusões”, no n.º 1, alínea a), das Condições Gerais da Apólice, página 8/83, consta que o contrato não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações:     
   “a) Sinistros em que o veículo seja conduzido por pessoa que, para tal, não esteja legalmente habilitada ou esteja inibida, por lei ou decisão judicial, de conduzir;”.   
3. Em 05/11/2018, na Estrada ..., ao km 7,9, sentido BB, na União das freguesias ... e ..., concelho ..., ocorreu um sinistro com intervenção do veículo de matrícula ..-NP-...   
4. O condutor AA, na altura trabalhador da Autora, conduzia por ordem e no interesse daquela, o veículo pesado de mercadorias ..-NP-.. que fazia conjunto com o semireboque L-.......     
5. Os veículos ..-NP-.. e L-......, propriedade da A, tratam-se de veículos pesados de mercadorias compostos por trator e semireboque.      
6. O motorista era portador de uma carta de condução brasileira emitida em 04/03/2015 e válida até 23/10/2019 e era também portador de outro título de condução, nomeadamente de uma “Licença Internacional de Condução” (LIC), emitida em 14/08/2018 e com a validade até 23/10/2019, emitida ao abrigo da Convenção Internacional de Viena de 08 de novembro de 1968.     
7. O motorista não é titular de Carta de Qualificação de Motorista (CQM), prevista no DL 126/2009, de 26/05.

                                                             
                                                                ***                           
                                                2.2. Impugnação da matéria de facto.

                                                             
          Defende a apelante que o Tribunal a quo não poderia considerar provada a factualidade vertida no ponto 7, sustentando, para o efeito, que a demonstração da matéria em causa incumbia à ré, a qual não carreou para os autos elementos probatórios que permitissem concluir no sentido de que se verifica a excepção invocada em sede de articulados (exclusão contratual). 

 

                                                             
   No ponto 7 consta que “O motorista não é titular de Carta de Qualificação de Motorista (CQM), prevista no DL 126/2009, de 26/05.”.
   Para motivar tal factualidade, a 1ª instância referiu que “a titularidade de carta de condução depende de apenas de prova documental e a Autora não juntou qualquer documento mesmo depois de vários convites para o efeito, bem como, atento o conteúdo da informação prestada pelo IMT.”.
          Não podemos estar mais de acordo.
   Com efeito, a existência de habilitação para conduzir veículos automóveis depende de prova documental (como, aliás, também frisou esta Relação no Acórdão proferido anteriormente nos autos), o que resulta, além do mais, do disposto nos arts. 121º, nº4, e 123º, nºs 1 e 2, ambos do Código da Estrada.    
                                                  Tais normas que apresentam o seguinte teor:

                                                             
               Art. 121º, nº4 - “O documento que titula a habilitação legal ppara conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos, automóveis e veículos agrícolas, exceto motocultivadores perados a pé, designa-se carta de condução.”.
    Art. 123º, nºs 1 e 2 – “1 - A carta de condução habilita o seu titular a conduzir uma ou mais categorias de veículos e respetivos tipos fixadas no RHLC, sem prejuízo do estabelecido nas disposições relativas à homologação de veículos.                                                        
   2 - A condução de veículos afetos a determinados transportes pode ainda depender da titularidade do correspondente documento de aptidão profissional, nos termos de legislação própria.”.

                                                             
   Estaria a ré obrigada a demonstrar que o condutor do veículo seguro não possuía habilitação (título) para conduzir o veículo sinistrado ?
   Não cremos que o pudesse fazer, sendo certo que quer esta Relação no Acórdão já citado, quer a 1ª instância, foram claros ao determinar que diligências probatórias deveriam ser realizadas com vista a apurar o respectivo acervo factual.
    Recorde-se que o motorista em causa era trabalhador da autora, ora apelante, devendo, por isso, a mesma  verificar ou confirmar se o seu subordinado se encontrava legalmente habilitado para exercer as funções que lhe confiou, ou seja, a condução de um veículo pesado de mercadorias composto por trator e semi-reboque, sob pena de nulidade do respectivo contrato de trabalho, caso o título profissional não existisse (art. 117º, nº1, do Código do Trabalho [2]).
   A ré, como parece óbvio, não tem meios que lhe permitam apurar se um trabalhador de uma terceira entidade, neste caso, a apelante, reúne as condições para desempenhar a actividade para a qual foi contratado.

 

                                                             
   Já a autora, por força das prerrogativas que lhe são conferidas pela legislação laboral, podia – e devia – fazê-lo.  
        Com efeito, o art. 106º, nº2, do Código do Trabalho dispõe que “O trabalhador deve informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral.”
     E o art. 97.º do mesmo Código – sob a epígrafe - Poder de direcção – estabelece que “Compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem.”.
   Deste modo, considerando as diligências, de carácter probatório, que foram efectuadas nos autos, mostra-se correcta a decisão que o Tribunal recorrido proferiu a propósito da titularidade da Carta de
Qualificação de Motorista.                                                       

                                                             
                                                                ***                           
                                                2.3. Enquadramento jurídico.

                                                             
   Independentemente de ter considerado que o facto descrito no ponto 7 não se encontrava provado – o que não se verifica, como vimos – sustentou ainda a apelante que o Tribunal a quo cometeu um erro no enquadramento jurídico da situação sub judice, uma vez que, na tese da recorrente, o motorista em questão encontrava-se devidamente habilitado a conduzir o veículo pesado de mercadorias interveniente no sinistro, em virtude de ser portador de uma carta de condução brasileira, emitida em 04/03/2015 e válida até 23/10/2019, e de uma Licença Internacional de Condução (LIC), emitida em 14/08/2018, ao abrigo da Convenção Internacional de Viena de 08 de novembro de 1968, com validade até 23/10/2019. 
   Sendo inequívoco que o motorista do veículo sinistrado era portador dos títulos que a recorrente menciona – trata-se da factualidade vertida no ponto 6 da matéria assente –, não é menos verdade que os mesmos, atento o quadro normativo aplicável, eram insuficientes para conduzir a viatura pesada que vem identificada nos autos.
      Com efeito, na data em que ocorreu o sinistro (05/11/2018), encontrava-se em vigor o Decreto-Lei n.º 126/2009, de 27 de Maio, o qual transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2003/59/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Julho, alterada pela Directiva n.º 2004/66/CE, do Conselho, de 26 de Abril, e pela Directiva n.º 2006/103/CE, do Conselho, de 20 de Novembro, relativa à qualificação inicial e à formação contínua dos condutores de determinados veículos rodoviários de mercadorias e de passageiros. 
         No art. 2º do referido diploma estabeleceu-se que “O presente decreto-lei é aplicável à actividade de condução exercida por pessoas titulares de carta de condução válida para veículos das categorias C e C+E e subcategorias C1 e C1+E e das categorias D e D+E e subcategorias D1 e D1+E, nos termos do Código da Estrada, adiante designados por motoristas de veículos de mercadorias e de passageiros, respectivamente, ou genericamente por motoristas.”.
   E no art. 4º, nºs 1 e 2, do mesmo decreto-lei, foi prescrito o seguinte:     

                “1 — É obrigatória a posse da carta de qualificação de motorista para o exercício da condução dos veículos a que se refere o artigo 2.º, constando as respectivas especificações e modelo do anexo V ao presente decreto -lei, do qual faz parte integrante.            
2 — A emissão de carta de qualificação de motorista depende da posse de um CAM, emitido de acordo com o n.º 2 do artigo 5.º.” 3.

Por sua vez, no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), aprovado pelo DL n.º 138/2012, de 05 de Julho, encontram-se previstas (art. 3º, nº2) 4 as categorias e subcategorias a que é feita referência no art. 2º do DL nº Decreto-Lei n.º 126/2009.

Verifica-se, deste modo, que o motorista do referido veículo pesado de mercadorias não se encontrava legalmente habilitado a conduzi-lo, pelo que se afigura correcta a conclusão a que a 1ª instância chegou no sentido de que existe uma exclusão contratual (clausula 40.ª, n.º 1, alínea a), das Condições Gerais da Apólice) que determina a improcedência do pedido formulado pela autora.
   Pelo exposto, deve ser mantida, na íntegra, a decisão recorrida, atenta a justeza dos fundamentos fácticos e de direito que a mesma incorpora.     

 
                                      ***               
                                                III – DECISÃO.                     

                                                             
     Nestes termos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
   Custas pela apelante, sem prejuízo das decisões proferidas em matéria de apoio judiciário.  

                                                             

                                                             
Coimbra, 6 de Fevereiro de 2024
(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo
(relator)
António Fernando Marques da Silva
(1ª adjunto)
Luiz Falcão de Magalhães
(2º adjunto)  

 
                                                SUMÁRIO.                              
(...)

                                         

                                                              

 

[1] Saneador-sentença.

[2] Art. 117º, nº1, do Código do Trabalho: “Sempre que o exercício de determinada actividade se encontre legalmente condicionado à posse de título profissional, designadamente carteira profissional, a sua falta determina a nulidade do contrato.”.
3 O sublinhado é nosso.
4 A redacção integral do art. 3º, nº2, do RHLC, é a seguinte: “Sem prejuízo do estabelecido nas disposições relativas à homologação de veículos, a carta de condução habilita a conduzir uma ou mais das seguintes categorias de veículos:
a) AM - veículos a motor de duas ou três rodas, com exceção dos velocípedes a motor, e quadriciclos ligeiros, dotados de velocidade máxima limitada, por construção, a 45 km/h e caracterizados por:
i) Sendo de duas rodas, por um motor de combustão interna de cilindrada não superior a 50 cm3, ou cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico;
ii) Sendo de três rodas, por um motor de ignição comandada, de cilindrada não superior a 50 cm3, ou por motor de combustão interna cuja potência útil máxima não seja superior a 4 kW, ou ainda cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico; iii) Sendo quadriciclos, por motor de ignição comandada, de cilindrada não superior a 50 cm3 ou ainda cuja potência nominal máxima contínua não seja superior a 4 kW, se o motor for elétrico ou de combustão interna, cuja massa sem carga não exceda 350 kg.
b) A1 - motociclos de cilindrada não superior a 125 cm3, de potência máxima até 11 kW e relação peso/potência não superior a 0,1 kW/kg, e triciclos com potência máxima não superior a 15 kW;
c) A2 - motociclos de potência máxima não superior a 35 kW, relação peso/potência inferior a 0,2 kW/kg, não derivados de versão com mais do dobro da sua potência máxima; d) A - motociclos, com ou sem carro lateral e triciclos a motor;
e) B1 - quadriciclos de potência não superior a 15 kW e cuja massa máxima sem carga, excluindo a massa das baterias para os veículos elétricos, não exceda 400 kg ou 550 kg, consoante se destine respetivamente ao transporte de passageiros ou de mercadorias;
f) B - veículos a motor com massa máxima autorizada não superior a 3 500 kg, concebidos e construídos para transportar um número de passageiros não superior a oito, excluindo o condutor, a que pode ser atrelado um reboque com massa máxima até 750 kg ou, sendo esta superior, desde que a massa máxima do conjunto formado não exceda 3 500 kg;
g) BE - conjuntos de veículos acoplados compostos por um veículo trator da categoria B e um reboque ou semirreboque com massa máxima autorizada não superior a 3 500 kg;
h) C1 - veículos a motor diferentes dos das categorias D1 ou D, com massa máxima autorizada superior a 3 500 kg e inferior a 7 500 kg, concebidos e construídos para transportar um número de passageiros não superior a oito, excluindo o condutor; a estes veículos pode ser atrelado um reboque com massa máxima autorizada não superior 750 kg;
i) C1E - conjuntos de veículos acoplados, compostos por um veículo trator da categoria C1 e reboque ou semirreboque com massa máxima autorizada superior a 750 kg, desde que a massa máxima do conjunto formado não exceda 12 000 kg; conjuntos de veículos acoplados, compostos por um veículo trator da categoria B e reboque ou semirreboque com massa máxima autorizada superior a 3 500 kg, desde que a massa máxima do conjunto formado não exceda 12 000 kg;
j) C - veículos a motor diferentes dos das categorias D1 e D, cuja massa máxima autorizada exceda 3 500 kg, concebidos e construídos para transportar um número de passageiros não superior a oito, excluindo o condutor; a estes veículos pode ser atrelado um reboque com massa máxima autorizada não superior a 750 kg;
k) CE - conjuntos de veículos acoplados, compostos por veículo trator da categoria C e reboque ou semirreboque com massa máxima autorizada superior a 750 kg;
l) D1 - veículos a motor concebidos e construídos para o transporte de um número de passageiros não superior a 16, excluindo o condutor, com o comprimento máximo não superior a 8 m; a estes veículos pode ser atrelado um reboque com massa máxima autorizada não superior a 750 kg;
m) D1E - conjuntos de veículos acoplados, compostos por veículo trator da categoria D1 e um reboque com massa máxima autorizada superior a 750 kg;
n) D - veículos a motor concebidos e construídos para o transporte de um número de passageiros superior a oito, excluindo o condutor; a estes veículos pode ser atrelado um reboque com massa máxima autorizada não superior a 750 kg;
o) DE - conjuntos de veículos acoplados, compostos por veículo trator da categoria D e reboque com massa máxima autorizada superior a 750 kg.