Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/08.1TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: VIOLAÇÃO DO SEGREDO DE JUSTIÇA
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
Data do Acordão: 09/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 371º, N.OS 1 E 2, AL. B) DO CÓDIGO PENAL, 37º, N.º 1 E 85º DO DECRETO-LEI N.º 24/84 DE 16 DE JANEIRO
Sumário: 1. A falta de consciência da ilicitude do facto, ou erro sobre a ilicitude, traduz a falta de consciência de uma proibição jurídica não por referência ao conteúdo do tipo legal, mas por referência à capacidade de compreensão, pelo agente, da proibição da sua conduta.
2. A actuação do arguido que não foi condicionada senão por uma desconsideração do dever de reserva, que o levou a tratar em público uma matéria abrangida por um dever funcional de segredo e a transmitir ulteriormente a uma jornalista elementos escritos concernentes à mesma matéria e igualmente abrangidos pelo segredo de justiça que ao caso cabia, é censurável penalmente.
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum da competência de tribunal singular que correram termos pelo Tribunal Judicial da comarca de AA..., após julgamento com documentação da prova produzida em audiência, foi proferida sentença absolvendo os arguidos E... e L..., com os demais sinais dos autos, da prática de um crime de violação de segredo de justiça, previsto e punido pelo artigo 371º, n.os 1 e 2, al. b) do Código Penal, por referência ao disposto nos artigos 37º, n.º 1 e 85º do Decreto-Lei n.º 24/84 de 16 de Janeiro, pelo qual ambos haviam sido pronunciados.

No decurso do prazo de interposição do recurso o assistente R... requereu que se declarasse a invalidade da audiência de julgamento por omissão total da gravação, por imperceptível, e que se ordenasse a sua repetição, bem como a repetição dos actos subsequentes, aí incluída a sentença.
O Mmº Juiz do tribunal a quo, após averiguar da viabilidade da transcrição da gravação efectuada, determinou a transcrição das declarações e depoimentos prestados em audiência.
Entretanto, o assistente interpôs recurso da sentença retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
l° - O recorrente e assistente pretende recorrer da matéria de facto. Contudo, as declarações dos arguidos, da testemunha O... (jornalista), do Assistente encontram-se imperceptíveis.
2° - Tal irregularidade é susceptível de afectar os direitos fundamentais da arguida, pondo em causa o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e implicando, necessariamente uma limitação ao direito de recurso.
3° - Porém, nada tendo sido decido até ao termo do prazo para apresentação da motivação, a deficiente gravação da prova constitui uma irregularidade, que afecta o valor do acto praticado e que, apresentada tempestivamente pelo assistente, conduz à invalidade do julgamento.
4° - Pelo que foram violados os arts. 364º nº 1, e 428 nº l do Código de Processo Penal e o Artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
5° - Desta forma, deve ser declarada inválida a audiência de julgamento bem como os termos subsequentes destes autos, ordenando-se que se proceda de novo a audiência de julgamento.
7° - O Assistente entende que a matéria de facto dada como não provada, na douta sentença recorrida, salvo o devido respeito, foi-o indevidamente, em virtude de que, face à prova produzida em audiência de julgamento, foram considerados como não provados tactos constantes da douta acusação, que o deveriam ter sido face à prova ali produzida.
8° - O que levará, por maioria de razão, à condenação dos arguidos pela prática do crime de Violação de Segredo de Justiça, previsto no art. 371°, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal, de que foram acusados.
9° - Constata-se que a Douta Sentença do Tribunal a quo peca por contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
10° - A contradição destes tactos constitui vício de julgamento e consubstancia contradição insanável da fundamentação, nos termos do art. 410º, nº 2. al. b) do CPP, determinante da renovação da prova.
11° - Por fim, a douta sentença padece, ainda, de erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 410º, nº 2. al. c) do CPP, determinante da renovação da prova.
12° - Bem como, a Douta Sentença pugna pelo errado enquadramento jurídico-legal.
13° - Com os elementos de que dispunha, o Tribunal a quo não podia, simultaneamente, dar como provado no ponto 9 que "Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente" e dar como não provado os factos constantes nas alíneas B) a F). Esta contradição constitui vício de julgamento e consubstancia contradição insanável da fundamentação, nos termos do artº 410º, nº 2. alo b) do CPP, determinante da renovação da prova.
14º - A Ma Juiz a quo, ao decidir que não ficou provado o constante das alíneas B) e E) da Matéria de Facto Não Provada, fez errada apreciação da matéria de facto à luz da confissão do arguido (de forma espontânea no inicio do seu depoimento).
15° - Tribunal a quo ao dar como não provado que o arguido E... tivesse consciência de que estaria a praticar um crime (vide alíneas B) a E) da matéria de facto não provada), retirou uma ilação do direito ao silêncio. E desta forma procedeu a uma incorrecta aplicação da lei, na medida em que o art. 61º, n.º 1, al. c), do CPP não confere o direito à Ma Juiz a quo de interpretar o dito silêncio do arguido E....
16° - O Tribunal a quo persistiu na errada interpretação da matéria de facto quanto à alínea A) da Matéria de Facto Não Provada, pois o próprio arguido L... declarou que o assistente soube do processo disciplinar pela notícia do jornal do Mirante.
17° - Quanto à inconsciência sobre a prática do crime por parte do arguido L..., o erro sobre a ilicitude é censurável quando a falta de consciência se fica a dever directa e imediatamente a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente. Nesta medida, o arguido L... não é um cidadão comum, pois ao ser autarca tem o dever de conhecer a lei, apesar de o Tribunal a quo parecer ter esquecido ou confundido o principio de que o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém.
18° - Face ao facto nº 8 dado como provado, demonstra-se que o comportamento dos arguidos revela indiferença para um dos valores da ordem jurídica - o do segredo de justiça - e é por causa dessa indiferença que os mesmos não tomam consciência do carácter ilícito da sua conduta e não porque havia uma interpretação da norma, donde resultava que o seu comportamento era lícito.
19° - O processo de inquérito tem natureza secreta, uma vez que era regulado, com as adaptações necessárias, pelas normas respeitantes ao processo comum (artigo 35°, nº 3, do Estatuto Disciplinar) e por consequência é-lhe aplicável o artigo 37° n.º 1 do ED.
20° - Ainda que se venha a considerar que o processo de inquérito não tem natureza secreta importa que, da matéria de facto provada (vide pontos n.ºs 3, 4, 5, 6 , 7 e 8 da douta Sentença sob a epígrafe Matéria de Facto Provada) ficou provado que, quanto à conduta de E..., no momento em que a informação foi transmitida electronicamente à jornalista O..., o processo de inquérito já havia sido convertido em processo disciplinar.
21° - Nos termos do artigo 4°, n.º 1 do DL 116/98, de 5 de Maio, "os médicos veterinários dependem hierárquica e disciplinarmente do presidente da câmara da respectiva área da sua intervenção ". Consequentemente, no caso dos Médicos Veterinário Municipais, a Câmara Municipal enquanto órgão colegial e executivo, não é, salvo devido respeito por melhor opinião, competente para instaurar procedimentos disciplinares e inquéritos, bem como para aplicar penas disciplinares previstas no artigo 110 do E.D.
22° - De acordo com a realidade jurídica antedita, o arguido L... nunca deveria ter partilhado este assunto com o órgão executivo da Câmara de AA..., devendo o processo de inquérito (e respectivo relatório de inquérito) ter ficado à sua guarda.
23º - Não assiste razão ao Tribunal a quo na sua Fundamentação de Direito quando afirma:
"Resulta da conjugação dos citados artigos 85º nº 2, 39º, n.º 1 e 18º do Estatuto Disciplinar dos Funcionário e Agentes da Administração Central, Regional e Local, que o mencionado órgão executivo pode deliberar sobre tal matéria (muito embora não se revele, à partida, necessário, dado que tal acto pode igualmente ser praticado pelo seu superior hierárquico do funcionário em causa). Com efeito, pertence-lhe a competência disciplinar, que aqui terá de ser entendida em sentido lato (por maioria de razão), ou seja, compreendendo todas as vertentes disciplinares, incluindo a instauração do processo disciplinar. "
24° - Da prova factual recolhida em sede de julgamento, verifica-se o preenchimento dos requisitos do crime de violação de segredo de Justiça previsto no artigo 371º, n.º 1 e 2, al b) do CPP, não mais se esperando senão a condenação daqueles arguidos (L..., pelo facto de ter publicitado o relatório aos restantes vereadores e ter falado do assunto em reunião pública de Câmara; e o arguido E..., por ter facultado à jornalista O..., via correio electrónico, de forma pessoal e concreta, de molde a dar a conhecer os pormenores do processo que envolvia o assistente).
25º - Porque provado, o assistente sofreu seriamente com os factos que fazem parte integrante da situação sub judice, na medida em que teve de recorrer a uma ajuda médica especializada para conseguir ultrapassar a humilhação que ainda sofre com a referida publicação da notícia no jornal semanário "O Mirante", pelo que, deverá o mesmo ser ressarcido pelos danos sofridos, na quantia de 5000,00€ a suportar pelos arguidos, face a conduta ilícita praticada.
Pelo que se requer, nos termos de facto e de direito invocados e nos demais aplicáveis, que seja revogada a Sentença do Tribunal a quo aqui recorrida ordenando-se a sua substituição por Douto acórdão que condene os arguidos pela prática do crime de Violação de Segredo de Justiça, p. e p. no artigo 371°, n.º 1 e 2, al. b), do Código Penal e consequentemente, sejam os arguidos condenados a pagar a quantia de 5000,00 euros a título de indemnização cível pelos danos morais causados com a publicação do relatório do processo de inquérito no jornal semanário "O Mirante".

O arguido L... respondeu, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
Ulteriormente, após junção da transcrição efectuada, foi proferido despacho julgando improcedente a nulidade de omissão da gravação arguida pelo assistente (fls. 943/945).
Inconformado com essa decisão, dela recorreu o assistente, retirando da motivação deste recurso as seguintes conclusões:
A) Ao existir sinal deficiente de áudio no CD que contém a documentação da audiência cometeu-se uma irregularidade processual.
B) Que foi atempadamente arguida pelo assistente.
C) Este ao pretender recorrer da matéria de facto, apenas o poderia fazer tendo acesso ao registo audível de forma clara e perceptível dos depoimentos dos arguidos, do assistente e das testemunhas ouvidas em sede de julgamento, visando dar cumprimento ao nº 3 do art. 412º do CPP.
D) A irregularidade cometida foi arguida perante quem tinha legitimidade para dela conhecer.
E) A deficiente gravação das declarações prestadas quando requerida, é uma irregularidade que afecta a validade do acto, pondo em causa a possibilidade de descoberta da verdade material.
F) O despacho recorrido viola o disposto nos artigos 123º e 363º, ambos do CPP.
G) Uma vez que, com as alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007, de 29/08 ao CPP é sempre obrigatória a documentação dos actos da audiência, sob pena de nulidade.
Pelo que se requer, nos termos de facto e de direito invocados e nos demais aplicáveis, deverá o presente recurso merecer provimento, por verificação da nulidade da sentença por inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada (falta de documentação de declarações orais) nos termos do art. 363º do CPP), devendo anular-se a douta sentença, ordenando-se a repetição do julgamento e, consequentemente, anular-se o despacho ora recorrido.
O arguido L... respondeu também a este recurso, pronunciando-se pela sua improcedência.
O Mmº Juiz do tribunal a quo sustentou a decisão que foi objecto deste último recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela improcedência dos dois recursos interpostos.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões dos recursos, há que decidir as seguintes questões:
- Nulidade decorrente da falta de documentação de declarações orais prestadas em audiência;
- Contradição insanável da fundamentação;
- Erro notório na apreciação da prova;
- Erro de julgamento da matéria de facto;
- Errado enquadramento legal do provado.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Na sentença recorrida tiveram-se como provados os seguintes factos:
1 - No dia 28 de Setembro de 2006, o arguido E..., que desempenhava o cargo de Vice-Presidente da Câmara Municipal de AA... comunicou ao arguido L..., Presidente da referida Câmara, a conduta omissiva do Veterinário Municipal, R..., em virtude de um problema relacionado com um cão que apareceu morto nas margens do Rio A….
2 - O arguido L..., por entender que tal conduta era susceptível de integrar ilícito disciplinar determinou a abertura de processo de inquérito contra o veterinário municipal R..., no âmbito do qual, em sede de conclusão, se propôs a instauração de processo disciplinar.
3 - Nessa sequência, no dia 22 de Janeiro de 2007, pelas 15,00 horas, no edifício dos Paços do Município de AA..., em AA..., ocorreu a reunião ordinária do Executivo da Câmara Municipal de AA..., à qual presidiu o arguido L..., na qualidade de seu Presidente.
4 - Na sequência da aludida reunião, aberta ao público em geral, o arguido L... introduziu a discussão/votação a seguinte matéria, conforme se lê na acta correspondente:
«"Participação do Vereador E... contra o Sr. Veterinário Municipal – Informação do Dr. A....
Presente o processo de inquérito instaurado na sequência de falta de resposta do Sr. Veterinário Municipal ao ofício n.° 5782, datado de 26.7.2006, assinado pelo Sr. Vice-Presidente da Câmara, comunicando a situação de um cão vadio com aspecto de doença contagiosa, que se encontrava nos Olhos de Água, no Alviela, o qual tinha provocado inúmeras queixas por parte dos utentes daquele espaço.
Por se poder estar perante foco de contágio foi solicitada a intervenção urgente do Sr. Veterinário Municipal, Dr. R....
No dia 8.9.2006, o Sr. Vereador E... apôs no canto superior esquerdo do referido ofício a seguinte nota: "No dia 8 de Setembro o cão apareceu morto no rio, sem resposta do Veterinário".
Em 28.9.2006, o Vereador E... deu conhecimento desta situação ao Presidente da Câmara Municipal de AA... que, por despacho de 18.10.2006, determinou a instauração de processo de inquérito.
Efectuado o processo de inquérito é agora presente o relatório/informação do inquiridor nomeado, o qual em face dos factos provados e qualificação jurídica propõe a conversão do processo de inquérito em processo disciplinar contra o Sr. Veterinário Municipal, Dr. R..., já que a sua conduta omissa constitui infracção disciplinar, por violação dos seus deveres de zelo (art. ° 3°, n. ° 1, n. ° 4 ai. b) e n. ° 6 do Estatuto Disciplinar)".
5 - Em face de tal exposição, foi deliberado converter o processo de inquérito em processo disciplinar contra o Veterinário Municipal, Dr. R....
6 - A explanação dos factos que estiveram na base da instauração do processo de inquérito e, bem assim, a deliberação em converter o processo de inquérito em processo disciplinar contra o Veterinário Municipal ocorreu à porta aberta e de forma pública e, por esse motivo, todos os presentes, tiveram conhecimento do teor das diligências efectuadas em sede de inquérito, o que aconteceu, designadamente, com a jornalista O… .
7 - Esta, em face do que ouviu na aludida reunião camarária, solicitou ao arguido E... todas as informações relativas a tal caso, em ordem a compilar elementos a fim de publicar tal notícia.
8 - Assim, em data não concretamente apurada, mas anterior a 7 de Fevereiro de 2007, o arguido E..., via correio electrónico, enviou à jornalista O... cópia do relatório preliminar do inquérito cujo teor serviu de base à notícia publicada no Jornal Semanal Regional "O Mirante", na sua edição de 7 de Fevereiro de 2007, onde se lê: "Processo Disciplinar põe em causa 'Veterinário Municipal (...) O caso é explicado no relatório preliminar a que O Mirante teve acesso".
9 - Agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente.
10 - Aos arguidos não são conhecidos antecedentes criminais.
11 - R... sentiu-se humilhado com o conteúdo da notícia identificada em 8.
12 - O mesmo apresenta um quadro depressivo.

Relativamente ao não provado foi consignado o seguinte:
Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.
Nomeadamente, não se provou:
A) Que R... tenha tido conhecimento do teor do relatório preliminar e, ainda, de que havia sido instaurado processo disciplinar contra si através da notícia publicada naquele Jornal Semanal;
B) Que os arguidos estivessem cientes de que o conteúdo e actos praticados no processo de inquérito disciplinar instaurado contra o Veterinário Municipal e, ainda, que a decisão de instauração de processo disciplinar contra funcionário constitui matéria sigilosa, atenta a natureza secreta do processo disciplinar.
C) Que o arguido L... soubesse que não podia comunicar os factos acima descritos em reunião pública, de porta aberta, pois dava conhecimento a quem estivesse a assistir do conteúdo de processo de inquérito e, ainda, da decisão de converter tal processo em processo disciplinar.
D) Que o arguido E... soubesse que não podia enviar cópias do relatório preliminar extraído do processo de inquérito instaurado contra o Veterinário Municipal, porque dava a conhecer à jornalista O... o teor das diligências e factos apurados em sede de inquérito.
E) Que ambos os arguidos tenham agido cientes de que, com a sua conduta, davam a conhecer de forma pública e para quem quisesse ouvir factos apurados em acto de inquérito disciplinar sujeito, por esse motivo, a segredo de justiça.
F) Que os arguidos soubessem e conhecessem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

A convicção do tribunal recorrido quanto à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
O tribunal formou a sua livre convicção através da análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente nos depoimentos prestados e nos documentos juntos aos autos a fls. 24, 90 a 93, 120 a 178, 465, 472, 485 a 494.
O arguido E... exerceu o seu direito silêncio pelo que não lhe foi colhido qualquer depoimento.
Já o arguido L... forneceu a sua versão dos factos. Explicou que considerava a matéria em causa da sua competência mas tomou a opção de a submeter à apreciação dos restantes vereadores para que todos verificassem da necessidade de transformar o inquérito em processo disciplinar. Assegurou que todas as reuniões da Câmara são públicas e que não se apercebeu de que estava alguém na sala nem teve essa preocupação. Afirmou não conseguir precisar o que transmitiu, apenas assegurando não ter lido o relatório que foi transcrito na acta, mas ficou ciente de que quem ouvisse percebia o essencial (embora não pudesse colher elementos para a notícia em causa). Acreditava estar a tomar “a atitude normal” e que se soubesse que era crime não o tinha feito. Sabia que o processo disciplinar estava sujeito a segredo embora não lhe parecesse que “se enquadrasse”. Do seu depoimento perpassou uma grande confusão sobre as deliberações camarárias (por isso ficou convencido de que não houve verdadeira deliberação da Câmara), embora tal discussão se mostre inócua para a decisão a tomar.
O demandante R... defendeu que teve conhecimento da instauração do procedimento disciplinar por intermédio de um telefonema da jornalista que pretendia obter um comentário seu acerca do assunto, embora tivesse conhecimento de que corria um processo de inquérito e que o mesmo podia ser arquivado ou ser aberto um processo disciplinar. Alegou ter-se sentido humilhado por ter sido posta em causa a sua dignidade pessoal e profissional e ainda que necessitou de ansiolíticos para aguentar a pressão quando saiu a 2ª notícia no jornal. Disse ter-se sentido injustiçado e considerar degradante o facto de, após 21 anos na Câmara, ninguém ter tido “uma palavra” consigo. Quanto ao mais teceu considerações, algo confusas, acerca das razões da abertura e do desfecho do processo disciplinar.
A jornalista O... explicou que entrou na sala onde decorria a reunião à porta aberta quando o assunto já estava a meio, tendo percebido pelas palavras do Presidente, em traços gerais, que se discutia um processo de inquérito dirigido a apurar factos ocorridos nos AO… com um animal doente e se se avançava para processo disciplinar. Referiu não ter dúvidas a quem o mesmo se dirigia dado que apenas existia um veterinário municipal. Na tentativa de obter pormenores falou com o Presidente no final da reunião, o qual remeteu a questão para o Vice-Presidente. Dias mais tarde abordou este último, que lhe enviou por via electrónica um documento do inquérito que antecedia o processo disciplinar.
DC…, esposa do demandante, explicou que o marido se começou a isolar, ficou irritadiço, humilhado e envergonhado, e que as pessoas o abordavam na rua para perguntar o que se passava.
AC… e NC… atestaram o brio profissional e a perturbação do demandante face à notícia saída no jornal.
JJ…, Vereador da Câmara, explicou que foi distribuído um CD com a agenda da reunião, o qual continha o relatório do inquérito. Quanto à reunião disse que a mesma era pública e que na mesma houve acordo unânime de todos os vereadores quanto à instauração do processo disciplinar. Apenas quando a reunião estava quase a terminar se apercebeu da entrada de uma pessoa.
Também AR… depôs em sentido idêntico ao da testemunha anterior, relatando os procedimentos habitualmente seguidos pela Câmara.
LS… secretariou a reunião, preparando a mesma e fazendo a acta respectiva. Explicou que envia os documentos (com excepção dos que não se consigam digitalizar) aos participantes para que os mesmos possam estar informados. Apercebeu-se da entrada de uma senhora na sala no final da reunião. Esclareceu que apesar do relatório não ter sido lido na reunião colocou na acta extractos do mesmo a fim de a tornar perceptível. Explicou ainda os procedimentos seguidos nas reuniões camarárias.
Em suma, durante todo o julgamento perpassou a confusão entre os distintos procedimentos e competências, ficando, porém, a convicção de que todos, incluindo a jornalista que redigiu a notícia (e o próprio jornal para que trabalhava), estavam convictos de que a decisão de converter o processo de inquérito em processo disciplinar não se encontrava abrangida pelo segredo a que se encontra adstrito o processo disciplinar. Por outro lado, também o arguido L... estava convencido de que ao levar a questão à apreciação de todos os membros do executivo camarário agia de acordo com a lei, e isto apesar do carácter público da reunião em causa.
É certo que as pessoas ouvidas divergiram acerca dos hábitos seguidos nas reuniões, mas o depoimento da testemunha LS…, atenta a sua segurança e coerência, afigurou-se mais credível do que os demais neste ponto. Ora, esta testemunha afirmou que apenas se recordava de ser ordenada a evacuação da sala quando se tratava da aplicação de uma pena, o que é compatível com a circunstância de, em casos como o presente, o respectivo Presidente, a quem incumbe a disciplina dos trabalhos, estar convencido de que a discussão podia ser realizada publicamente.
Foram ainda levados em conta os Certificados do Registo Criminal de fls. 407 e 408.

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Arguiu o assistente e agora recorrente R..., no segundo recurso que interpôs, a nulidade da sentença proferida por falta de documentação de declarações orais prestadas em audiência, reportando-se ao art. 363º do Código de Processo Penal (diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), invocando ser a prova gravada parcialmente inaudível.
Após o recorrente ter suscitado a deficiência da gravação e antes ainda da interposição do recurso da sentença, foi determinada a transcrição da prova. O despacho recorrido veio a ser proferido após junção aos autos da transcrição e nele se considerou que a transcrição das declarações e dos depoimentos prestados em audiência de julgamento permitia verificar a existência de um registo completo e manifestamente perceptível. Nessa constatação se fundou a decisão de julgar improcedente a arguição de nulidade, tendo o Mmº Juiz do tribunal recorrido, após positiva indagação da tempestividade daquela arguição no âmbito das alterações legais e da evolução jurisprudencial relativa ao tema, consignado o seguinte:
“Sucede que, compulsada a transcrição das declarações e dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, verifica-se que existe um registo completo e manifestamente perceptível das mesmas, não podendo, por isso, e sem necessidade de ulteriores considerações, deixar de se concluir pela inexistência da invalidade arguida pelo assistente.
Em face de todo o exposto, e ao abrigo do preceituado nos artigos 118º, nº 1, 120º, 122º e 363º do Código de Processo Penal, julgo improcedente a nulidade de omissão da gravação arguida pelo assistente”.
Registe-se, a título prévio e face ao expendido pelo recorrente nas conclusões deste recurso, que em bom rigor não está em causa a nulidade da sentença (nulidades de sentença são apenas as previstas no art. 379º), mas apenas a parcial nulidade (sanável) da prova produzida em audiência (na parte não documentada ou deficientemente documentada), ainda que a procedência dessa arguição pudesse ter como reflexo a invalidade da sentença proferida (art. 122º, nº 1) - Aliás, no recurso anteriormente interposto o recorrente havia identificado correctamente a nulidade do acto e a subsequente invalidade da sentença.. E assim, por força do princípio do máximo aproveitamento dos actos processuais inválidos (com expressão legal na última norma citada), da eventual declaração de nulidade parcial apenas poderia resultar a repetição da produção da prova não gravada e não já a integral repetição do julgamento, como pretende o recorrente.
Revertendo para a questão fulcral do recurso que agora cuidamos de apreciar, importa reter que não é qualquer anomalia do registo sonoro da prova que gera a nulidade prevista no art. 363º. A deficiente gravação da prova só se afirmará como nulidade se por força dela se revelar impossível a compreensão do sentido do depoimento gravado, já que só nesse caso resultará ou poderá resultar prejuízo para o apuramento da verdade, na dupla vertente da impossibilidade de o recorrente estruturar o seu recurso sobre a matéria de facto na prova gravada e de o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida em audiência. Donde se segue que apenas nesta situação – quando a correcção da deficiência se mostrar essencial para o apuramento da verdade – haverá que proceder à repetição da prova imperceptível. É esta a solução que decorre da consideração do subsidiariamente aplicável (ex vi art. 4º do CPP) art. 9º do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro - DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro, art. 9º: “Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.”.
Ora, a transcrição da prova constante dos autos evidencia um registo pontuado por falhas ocasionais, mas que de modo algum contende com a validade da prova que visa documentar. As falhas verificadas, assinaladas na transcrição, permitem captar o sentido das declarações e depoimentos prestados, em termos tais que se pode afirmar com toda a segurança não restarem quaisquer dúvidas sobre o teor dos depoimentos prestados ou sobre a resposta a qualquer questão de candente interesse para a decisão de facto. Aliás, o próprio recorrente socorreu-se abundantemente da prova produzida, transcrevendo-a na motivação do seu recurso. Sendo assim, não se poderá afirmar o prejuízo para o recurso da matéria de facto. Tanto basta para se concluir pela improcedência da arguição da nulidade decorrente da deficiente gravação da prova, bem como da invalidade do julgamento com base nessa irregularidade.

No recurso interposto da sentença, após suscitar a questão da deficiente gravação da prova, invoca o recorrente a verificação de contradição insanável da fundamentação, nos termos do art. 410º, nº 2, do CPP, sustentando para o efeito que o tribunal não podia dar como provado no ponto 9 que “agiram os arguidos de forma livre, voluntária e consciente” e dar simultaneamente como não provado que:
B) Que os arguidos estivessem cientes de que o conteúdo e actos praticados no processo de inquérito disciplinar instaurado contra o Veterinário Municipal e, ainda, que a decisão de instauração de processo disciplinar contra funcionário constitui matéria sigilosa, atenta a natureza secreta do processo disciplinar.
C) Que o arguido L... soubesse que não podia comunicar os factos acima descritos em reunião pública, de porta aberta, pois dava conhecimento a quem estivesse a assistir do conteúdo de processo de inquérito e, ainda, da decisão de converter tal processo em processo disciplinar.
D) Que o arguido E... soubesse que não podia enviar cópias do relatório preliminar extraído do processo de inquérito instaurado contra o Veterinário Municipal, porque dava a conhecer à jornalista O... o teor das diligências e factos apurados em sede de inquérito.
E) Que ambos os arguidos tenham agido cientes de que, com a sua conduta, davam a conhecer de forma pública e para quem quisesse ouvir factos apurados em acto de inquérito disciplinar sujeito, por esse motivo, a segredo de justiça.
F) Que os arguidos soubessem e conhecessem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Para evidenciar a verificação do vício que invoca, faz o recorrente apelo a declarações prestadas em audiência pelo arguido L..., transcrevendo-as. Inutilmente, diga-se de passagem, porque a arguição dos vícios previstos no nº 2 do art. 410º não se confunde com a arguição do erro de julgamento por recurso aos depoimentos gravados. São vícios distintos, como distinta é, consequentemente, a forma da sua arguição. Se é certo que aquele último pressupõe a gravação da prova produzida em audiência e a impugnação pelo recorrente do que em primeira instância se teve como provado com observância do que pertinentemente dispõe o art. 412º, nºs 3 e 4, já a verificação dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410º há-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, como expressamente resulta do teor da norma. Trata-se, de resto, de matéria que se encontra no âmbito dos poderes de conhecimento oficioso da instância de recurso - Cfr. o Ac. do STJ de 19/10/95, publicado no DR, série I-A, de 28/12/95, que fixou jurisprudência nos seguintes termos: “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”..
O vício invocado pelo recorrente, previsto na al. b) do nº 2 do art. 410º, é o da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. Revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. É o que sucede, por exemplo, quando o mesmo facto é dado como provado e como não provado, quando se consideram assentes factos contraditórios ou quando se verifica uma insanável contradição entre a motivação e a decisão.
Ora, em bom rigor, não se poderá afirmar a verificação de uma tal contradição por apelo ao texto da decisão recorrida, ainda que com recurso às máximas da experiência, visto não existir conflitualidade entre o provado e o não provado. O recorrente parece partir do princípio de que a actuação livre, voluntária e consciente abrangeria necessariamente o «conhecimento» referido nos factos que sob as alíneas B), C), D), E) e F) se tiveram como não provados. Na verdade, não é assim, já que estamos perante elementos diversos, todos eles do domínio do subjectivo, é certo, mas com alcance e significado distintos. E, como é sabido, para que de crime se possa falar, tanto os elementos objectivos (a materialidade do crime) como os elementos subjectivos hão-de estar verificados.
Os elementos objectivos traduzem a conduta, a acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos.
E quanto aos elementos subjectivos?
Dizer-se que o arguido actuou de forma livre, traduz essencialmente um afastamento das causas de exclusão da culpa, indicando que o arguido pôde determinar a sua acção; a referência à actuação deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo) significa que o agente quis o facto criminoso; conscientemente, reporta-se à sua imputabilidade; sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, traduz o elemento intelectual do dolo, consistente no conhecimento dos elementos objectivos do tipo.
Para que ocorresse a contradição nos termos invocados pelo recorrente necessário seria que relativamente a qualquer um destes elementos se tivesse concluído na sentença simultaneamente pela sua verificação e pela sua não verificação, o que não sucede, ou que a inclusão dos factos pertinentes no provado ou no não provado colidisse com o sentido da correspondente motivação de facto, o que também se não verifica.
Não ocorre, pois, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.

Numa outra perspectiva, o recorrente invoca também o vício do art. 410º, nº 2, al. c) – erro notório na apreciação da prova – a par da impugnação da matéria de facto por recurso às declarações e depoimentos gravados, sustentando que o arguido confessou os factos constantes da acusação, manifestando-se ainda no sentido de os factos constantes das alíneas B) e E), à luz das regras da experiência comum, deverem ser considerados provados, fundando esse entendimento numa parcela, que transcreve, das declarações do arguido L... em audiência.
A transcrição feita pelo recorrente tem, efectivamente, correspondência na prova gravada, mas aquelas passagens não poderão ser valoradas fora do seu enquadramento geral, fornecido pela globalidade das declarações do arguido L.... Assim, mais adiante, nas suas declarações, reportando-se à reunião camarária em que a questão foi tratada, disse o arguido:
Arguido L...: O que estava em discussão era o desrespeito e … e aquilo que eu quis transmitir aos meus colegas foi o desrespeito que houve por parte de um funcionário e resulta, resulta disso tudo a informação da transformação do processo de inquérito para processo disciplinar (transcrição, fls. 649).
E mais adiante:
Não, não, não… eu na altura, de uma forma genérica eu penso que nem, nem, nem sequer na altura o nome da pessoa que estava em causa, do funcionário, veterinário, foi referenciado. Não posso …imperceptível …mas penso que nessa altura nem sequer o nome do funcionário foi referenciado na nossa conversa. Provavelmente se tivesse sido … imperceptível …veterinário, provavelmente não há mais nenhum veterinário na câmara Municipal e subentendia-se que seria aquela pessoa (idem).
Ainda mais adiante (transcrição, fls. 683):
Pois … imperceptível … se eu, se eu soubesse que… que aquilo constituía um crime, é evidente que eu mandava tirar … imperceptível…
E a seguir:
(…) em nenhum outro momento, e já lá vão os tais 20, 24 a 25 anos, nunca foi colocada qualquer questão e qualquer problema relativamente a isso e portanto nunca pensei, nunca pensei que pudesse vir a ser acusado (…) (idem, fls. 684).
Em momento ulterior, pergunta o M.P.:
O Sr. Presidente sabe, no fundo… ou tinha consciência, ou tem consciência que tinha na altura de que não podem ser relatados factos, que estejam abrangidos no âmbito de um inquérito ou de um processo disciplinar?
Responde o arguido:
Fiquei agora a saber…(idem, fls. 699).
M.P.:
Não sabia disso?
Arguido:
Não, não é uma questão de … não é uma questão de não saber, é uma forma… aquilo que eu entendia na altura era, atenta a atitude grave que se tinha passado, eu partilhei com os meus colegas essa preocupação, sem ter o cuidado, sem ter a preocupação de poder vir a ser entendido como um crime o facto de eu estar a partilhar aquilo com, com os meus colegas (idem, fls. 700).
Esta perspectiva do arguido L... relativamente à questão suscitada foi, aliás, repetitivamente abordada ao longo de todo o interrogatório em audiência. A sucessão de declarações prestadas e os respectivos termos são compatíveis com o convencimento formado pelo tribunal a quo, vertido na sentença, nomeadamente, na parte em que afirma que “em suma, durante todo o julgamento perpassou a confusão entre os distintos procedimentos e competências, ficando, porém, a convicção de que todos, incluindo a jornalista que redigiu a notícia (e o próprio jornal para que trabalhava), estavam convictos de que a decisão de converter o processo de inquérito em processo disciplinar não se encontrava abrangida pelo segredo a que se encontra adstrito o processo disciplinar. Por outro lado, também o arguido L... estava convencido de que ao levar a questão à apreciação de todos os membros do executivo camarário agia de acordo com a lei, e isto apesar do carácter público da reunião em causa.
É certo que as pessoas ouvidas divergiram acerca dos hábitos seguidos nas reuniões, mas o depoimento da testemunha LS…, atenta a sua segurança e coerência, afigurou-se mais credível do que os demais neste ponto. Ora, esta testemunha afirmou que apenas se recordava de ser ordenada a evacuação da sala quando se tratava da aplicação de uma pena, o que é compatível com a circunstância de, em casos como o presente, o respectivo Presidente, a quem incumbe a disciplina dos trabalhos, estar convencido de que a discussão podia ser realizada publicamente”.
Ora, o núcleo essencial da fase decisória é precisamente a valoração crítica da prova, sendo através dela que o julgador, apreciando o facto em correlação com a prova produzida, dá nota das razões que o convenceram num ou noutro sentido, dando cumprimento ao imperativo da parte final do nº 2 do art. 374º, procedendo ao “…exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A conjugação desta última norma com o disposto no art. 127º desenha o modo de fixação da matéria de facto, levando a que o provado se ofereça como o resultado depurado dos meios de prova produzidos em audiência ou levados aos autos nos termos legais. Não podendo esse produto final resultar exclusivamente do puro convencimento do julgador, da sua mera intuição, vertida numa convicção subjectiva, também não poderá prescindir de uma análise lógica que excederá em muito a mera soma das parcelas, antes se afirmando como actividade intelectual abrangente (valorando especialmente um ou outro depoimento mais marcante, fruto da credibilidade do seu autor; desvalorizando depoimentos mais emotivos e menos objectivos; relacionando conclusões de prova pericial com declarações ou depoimentos; etc.), em que serão ponderadas as provas tanto nas suas coincidências como nas suas incongruências, à luz da experiência comum, de um juízo de normalidade das coisas, assimilando o resultado da percepção abrangente e simultânea de vários sentidos, fazendo uso daquela psicologia dos profanos de que falava Max Weber, que só a experiência da vida e uma intensa actividade profissional podem proporcionar e que muito dificilmente poderá ser integralmente vertida numa fundamentação escrita (por exemplo, as dúvidas resultantes de um depoimento aparentemente seguro que no entanto, em momentos críticos, perante perguntas imprevisíveis, é acompanhado de inflexões na voz, hesitações antes da resposta, contradições com afirmações anteriores, deduções ilógicas; o modo de valorar o depoimento da testemunha que em vez de responder linearmente à questão que lhe é posta, procura ansiosamente no olhar de quem a interroga o caminho para a resposta; a certeza sobre a falsidade do depoimento da testemunha assertiva e peremptória que de repente se vê confrontada com uma pergunta que manifestamente não esperava e que antes de responder procura uma indicação no rosto da “parte” que não quer prejudicar), mas também deduzindo dos factos conhecidos os factos desconhecidos que não são ou não podem ser objecto de prova directa [as chamadas presunções judiciais, tantas vezes diabolizadas em alegações que confundem presunções de prova com presunções de culpa. Estas últimas, são absolutamente proibidas em processo penal (art. 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa); já as presunções judiciais são um meio de prova lícito (349º e 351º do Código Civil) e, como tal, admissível em processo penal (art. 125º do CPP). Valorando factos conhecidos à luz do contexto em que ocorreram e com recurso às regras da experiência comum é possível extrair conclusões relativas a factos que não foram objecto de prova directa, mas que nem por isso se deverão considerar sem mais como não provados]. É precisamente esse trabalho de análise crítica que consolida a livre convicção do tribunal, permitindo-lhe considerar como provados os factos merecedores de uma certeza judiciária e como não provados todos aqueles que sejam inegavelmente desmentidos pelas regras da experiência ou que não se mostrem comprovadamente demonstrados. É esse convencimento racional, lógico-dedutivo e fundamentado, desde que devidamente explicitado, que permite ao juiz afirmar a verdade do caso concreto, fixando a correspondente matéria de facto. Assim se efectiva a “livre apreciação da prova” consagrada no art. 127º do CPP.
Revertendo para a sentença recorrida, verifica-se que o tribunal a quo valorou, segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, a prova produzida e dela retirou as conclusões pertinentes, nada autorizando a substituição daquela que foi a sua convicção pela opinião relativa à prova que vem expressada pelo recorrente. Este limita-se a fazer a sua interpretação pessoal da prova, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido decidiu em matéria de facto. Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância; não se procura encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso - No sentido apontado, veja-se o Acórdão da Relação do Porto, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss.. E se esta é a conclusão a retirar da análise da matéria de facto, não é diversa a que resulta da apreciação exclusiva do texto da decisão recorrida, ainda que uma vez mais com recurso às máximas da experiência, para os efeitos de verificação do alegado erro notório na apreciação da prova nos termos do art. 410º, nº 2, al. c), já que o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos elementos a que atribuiu relevância, explicitando um critério lógico, coerente e objectivo, não denotando a sentença em crise, seja pelo seu teor literal, seja por recurso às regras da experiência comum, qualquer erro evidente na valoração da prova.

Por fim, há que averiguar se foi correctamente operada a subsunção jurídica dos factos provados.
O art. 371º do Código Penal, na parte que agora releva, rege nos seguintes termos:
1 – Quem, independentemente de ter tomado contacto com o processo, ilegitimamente der conhecimento, no todo ou em parte, do teor de acto de processo penal que se encontra coberto por segredo de justiça, ou a cujo decurso não for permitida a assistência do público em geral, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, salvo se outra pena for cominada para o caso pela lei de processo.
2 – Se o facto descrito no número anterior respeitar:
a) …
b) A processo disciplinar, enquanto se mantiver legalmente o segredo;
o agente é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.
Concordantemente, dispunha o art. 37º, nº 1, do DL nº 24/84, de 16 de Janeiro (diploma aplicável ao caso, ainda que entretanto revogado pela Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro) que “o processo disciplinar é de natureza secreta até à acusação, podendo, contudo, ser facultado ao arguido, a seu requerimento, o exame do processo, sob condição de não divulgar o que dele conste”.
Por seu turno, o art. 85º, nº 3, estatuía que “o inquérito tem o fim de apurar factos determinados e a sindicância destina-se a uma averiguação geral acerca do funcionamento do serviço”.
E o art. 87º, nº 3, dispunha que “os funcionários ou agentes encarregados da sindicância ou inquérito devem instaurar processo disciplinar, com dependência de despacho da entidade competente, quando verifiquem a existência de infracções disciplinares”.
A decisão recorrida absolveu os arguidos com base, quanto ao arguido L..., na consideração de que, em função da inserção sistemática do referido art. 85º se deverá concluir que o legislador não terá pretendido atribuir carácter secreto ao processo de inquérito previsto no Estatuto Disciplinar vertido no DL nº 24/84; e quanto ao arguido E..., com base na consideração de que este se terá limitado a enviar à jornalista cópia do relatório apreciado em sede de reunião pública e, portanto, já divulgado aos respectivos participantes e assistência. Consignou-se ainda na sentença que, “ainda que assim não se entendesse, sempre seria de levar em consideração que os arguidos agiram sem consciência de que estavam a praticar facto ilícito, erro que não lhes seria censurável dado que não se vislumbra qualquer impedimento a que o assunto em causa fosse tratado pelo órgão competente, em reunião pública, dado ser essa a forma habitual de reunião daquele órgão (de acordo, aliás, com os princípios da publicidade que devem estar subjacentes aos actos das autarquias locais), em claro abono da transparência”.

A posição assumida pelo tribunal a quo, de considerar o inquérito subtraído ao dever de segredo, não é de perfilhar, já que o processo de inquérito constitui processo disciplinar especial, como claramente resulta do DL nº 24/84, quando dispõe no art. 35º, nº 1, que “o processo disciplinar pode ser comum ou especial”, acrescentando no nº 3 que “os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e, na parte nelas não previstas, pelas disposições respeitantes ao processo comum”, constituindo processos especiais previstos no Estatuto a que nos reportamos o processo por falta de assiduidade, regulado nos arts. 71º e 72º, o processo de revisão, regulado nos arts. 78º a 83º e ainda os processos de inquérito, de sindicância e de meras averiguações, contemplados nos arts. 85º a 88º. Nessa medida, não oferece qualquer dúvida que o processo de inquérito em causa, mesmo antes de convertido em processo disciplinar, se encontrava já em segredo de justiça.

A questão final que importará ponderar, à luz do provado, será, então, a de saber se a falta de consciência da ilicitude, nos termos que se tiveram como assentes, é de molde a excluir a responsabilidade penal dos arguidos. A questão não poderá ser decidida nos termos simplistas em que o foi, e muito menos a título subsidiário, como se fez na sentença recorrida, na qual, em síntese, se diz que os factos provados não integram a tipicidade de um crime mas se a integrassem, ainda assim não haveria crime por falta de consciência da ilicitude.
A falta de consciência da ilicitude do facto, ou erro sobre a ilicitude, traduz a falta de consciência de uma proibição jurídica não por referência ao conteúdo do tipo legal, mas por referência à capacidade de compreensão, pelo agente, da proibição da sua conduta, razão pela qual não tem sentido a objecção colocada pelo recorrente de que aos arguidos não poderia aproveitar o desconhecimento da lei. Mas ainda assim, não basta a afirmação da falta de consciência da ilicitude, sendo sempre necessário averiguar se o erro do agente lhe é ou não censurável. E na medida em que a verificação do erro não afasta o dolo, apenas excluindo a culpa, sendo de censurar à pessoa do agente o erro em que incorreu, há lugar à punição pela comissão do crime, ainda que o facto de o dolo ser mitigado pelo erro possa eventualmente – não necessariamente – conduzir a uma especial atenuação da pena.
Os requisitos da falta de consciência da ilicitude não censurável exigem, desde logo, a verificação de uma situação em que a concreta ilicitude se revele discutível e controvertida, já que só em tais situações “a solução dada pelo agente à questão da ilicitude do facto pode ainda corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente reconhecido e todavia, em definitivo, a consciência ética errar por não ter tomado em conta (ou na conta devida) outros pontos de vista de valor ou razões de estratégia e de oportunidade juridicamente relevantes” - Figueiredo Dias, “Direito Penal”, tomo I, pág. 638.. E exigem ainda que tenha sido propósito do agente corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante - Cfr. a última obra e loc. citados.. “A “pura” falta de consciência do ilícito – sc., aqueles casos em que o agente não valora a sua conduta no sentido de um comando geral proibitivo – deverá ser sempre considerada censurável” - idem, pág. 639..
Ora, não só não estamos perante uma situação em que a ilicitude se deva reputar de controvertida, como a própria matéria de facto que antes tivemos ensejo de transcrever evidencia que a actuação dos arguidos não foi condicionada senão por uma desconsideração do dever de reserva, que os levou a tratar em público uma matéria abrangida por um dever funcional de segredo e a transmitir ulteriormente a uma jornalista elementos escritos concernentes à mesma matéria e igualmente abrangidos pelo segredo de justiça que ao caso cabia. Donde se conclui que o erro lhes é censurável. Ainda assim, as condicionantes que envolveram a situação concreta, a prática institucionalizada que vinha sendo seguida e a ausência, relativamente a ambos, de uma personalidade que se possa considerar desvaliosa, bem como o arrependimento mais que evidente nas declarações produzidas, com reflexos imediatos na prática que desde então passou a ser seguida, reclamam no caso a atenuação especial da pena.

Como resulta já do que antecede, haverá que proferir decisão condenatória, o que suscita uma nova questão, que recorrentemente se vem suscitando, qual seja, a de saber se havendo que proferir decisão condenatória depois de ter havido absolvição em primeira instância, como é o caso, deverão os autos regressar à 1ª instância para aí se determinar a medida da pena, salvaguardando-se a possibilidade de recurso quanto a ela. Falsa questão, diríamos, quando todos os factos necessários à decisão condenatória estiverem apurados, já que o Tribunal da Relação é aquele que, em caso de recurso, seria chamado a decidir da medida da pena, razão que nos tem levado, em tais casos, a decidir de imediato sobre a pena aplicável. Não assim nos casos em que sendo de afastar a opção pela pena de prisão, não tenham sido fixados factos (nem consignada a impossibilidade de os determinar) referentes às condições sociais e económicas dos arguidos e/ou, havendo lugar à consideração de indemnização por danos não patrimoniais na sequência de pedido de indemnização civil, não tenham sido apurados os factos pertinentes relativos às condições sócio-económicas do ofendido. Ora, no caso vertente, a consideração do critério previsto no art. 70º do Código Penal exclui de forma manifesta a opção pela pena privativa da liberdade, apontando para a consideração da pena de multa, esta a pressupor a fixação de uma taxa ajustada àquelas condições económicas. A primeira instância não averiguou, no entanto, os factos pertinentes, sendo a matéria de facto fixada na sentença recorrida totalmente omissa relativamente às condições pessoais dos arguidos, na vertente das condições familiares, profissionais e económicas, o que inviabiliza a correcta determinação da medida das penas. Trata-se de nulidade de sentença, enquadrável na previsão do art. 279º, nº 1, al. c), do CPP. Outra solução não resta senão a de determinar a baixa dos autos à 1ª instância para que o mesmo tribunal que proferiu a sentença recorrida proceda à reabertura da audiência nos termos do art. 371º do CPP, averiguando as condições pessoais dos arguidos e do demandante (condições sociais e económicas), proferindo de seguida nova sentença.

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III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
a) Em negar provimento ao recurso do despacho de fls. 943/945, que julgou improcedente a nulidade da omissão de gravação da prova;
b) Em conceder parcial provimento ao recurso da sentença, anulando-se a sentença recorrida e determinando-se que o tribunal recorrido proceda à reabertura da audiência para averiguar as condições pessoais (profissionais, familiares e económicas) dos arguidos e do demandante, proferindo de seguida nova sentença.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente, já reduzida a metade, em 4 UC

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Eduardo Oliveira)