Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
56/16.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPRA E VENDA
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
RECEBIMENTO DO PREÇO
CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL
PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DE PROVA
Data do Acordão: 05/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 4
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 352, 358, 369, 371, 372, 392, 396 CC, 429 CPC
Sumário: 1. O regime do art.º 429º do CPC pressupõe que se trate de documentos necessários ou úteis para a decisão da matéria de facto da causa - por o requerente ter o correspondente ónus da prova, ou poderem infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus - e que, necessariamente, não se encontrem nos autos e/ou neles não seja admitido o seu conteúdo e existência.

2. Se o título da escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço aos vendedores/recorrentes, fá-lo, no entanto, da sua declaração de terem recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário (art.º 371º do CC), o que implica o reconhecimento de um facto que lhes é desfavorável, beneficiando o vendedor/recorrido, e que os art.ºs 352º e 358º, n.º 2 do CC qualifica como confissão.

3. A jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido, maioritariamente, que quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um começo ou princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento da totalidade do preço.

4. A prova pessoal (testemunhal) será insuficiente para corporizar o complemento probatório necessário à demonstração da invocada falta de pagamento do preço se, nomeadamente, nenhuma das testemunhas foi suficientemente segura e coerente na exposição dos factos que relataram como advindos, unicamente, no contexto do seu relacionamento com os AA., apontando, antes, que o por elas transmitido em audiência foi circunscrito e “ajustado” à versão trazida aos autos por aqueles, não se vendo razão para que, por exemplo, já nada pudessem saber de outros factos (coevos) igualmente relevantes para a vida ou a situação jurídica-económica dos AA. e, até, de algum modo entrecruzados com a realidade dos autos.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:                  

              

           

I. Em 04.01.2016, A (…) e mulher I (…) intentaram a presente acção declarativa comum contra J (…) e mulher M (…) (1ºs Réus) e G (…)Lda. (2ª Ré), pedindo: a condenação dos Réus a pagar aos AA. e interveniente a quantia de € 220 000, parte restante do preço devido pela venda do prédio referido no art.º 15º da petição inicial (p. i.) e titulada pelo documento 3, acrescido de juros legais vencidos (no montante de € 61 600) e a vencer até integral pagamento, à taxa legal [a)] e, complementarmente, a pagar a indemnização de € 50 000, correspondente ao prejuízo resultante do empréstimo que os AA. foram obrigados a contrair, pelo facto de os Réus não terem pago essa parte do preço, por esse não pagamento se assumir como acto ilícito, acrescido dos juros que se vierem a liquidar a final, no acto de pagamento, após a prolação da sentença [b)]; a condenação dos 1ºs Réus a pagar aos AA. a quantia que lhes foi liquidada pela autoridade tributária, na sequência da venda referida na alínea anterior, no montante de € 40 133,44, bem como os juros que lhe forem exigidos no acto de pagamento integral e a liquidar em incidente próprio [c)]; a condenação dos Réus no pagamento de juros à taxa de 5 % ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora supra calculados, nos termos do art.º 829º- A, n.º 4 do Código Civil (CC) [d)].

Na p. i., os AA. pediram a intervenção principal provocada de M (…)por, alegadamente, ter um interesse igual ao seu a defender nesta causa.

Alegaram, em síntese: celebraram com o 1º Réu um contrato-promessa de compra e venda respeitante a um imóvel, alvo de um aditamento (tudo, com o conteúdo e nos termos que melhor precisaram), em que foi outorgante também a dita interveniente e sendo que neste, nomeadamente, veio a ser acordado que a escritura pública de compra e venda seria feita com a Ré sociedade, enquanto compradora; vieram a celebrar a escritura pública de compra e venda da totalidade do prédio, havendo para o efeito o 1º Réu convencido os AA. e a interveniente, tendo aquele levado estes a “declarar falsamente que haviam recebido a totalidade do preço”, com a “promessa” de que o valor então em falta - € 220 000 - “seria pago muito em breve, o mais tardar no prazo de 30 dias”; o preço em falta não foi pago; foram tributados, em sede de IRS, no montante de € 44 331,04, que não conseguiram pagar; “por força do facto de as Finanças estarem a penhorar os rendimentos dos autores, estes tiveram de recorrer a um crédito bancário para sobreviver”; os 1ºs Réus “são responsáveis pelas quantias reclamadas, quer pelo não pagamento do preço, quer pela indemnização derivada desse não pagamento, dado que o negócio foi celebrado com o réu, no exercício da sua actividade comercial de empreiteiro, que exerce no proveito comum do casal dos réus e apenas por conveniência deste foi outorgada a escritura de compra e venda em nome da 2ª ré, sociedade comercial de que é o sócio maioritário”, sendo certo que, “no que respeita à liquidação fiscal, assumiram essa obrigação no aditamento ao contrato-promessa celebrado em 25.6.2008”; esta situação de incumprimento dos Réus causou-lhes danos, pelos quais visam ser indemnizados.

Os Réus contestaram, aceitando parte dos factos alegados na p. i. e impugnando a restante factualidade (de forma motivada), apresentando ainda factos susceptíveis de configurar defesa por excepção; invocaram, nomeadamente, a ilegitimidade dos 1ºs Réus, a nulidade da cláusula constante do aditamento que transferia para o 1º Réu a obrigação do pagamento de impostos devidos pelo A. e que no acto da outorga da referida escritura pública a Ré sociedade entregou ao A. um cheque no valor de € 112 500, correspondente ao remanescente do preço em dívida naquela data e cujo valor veio a ser creditado aos AA.. Concluíram pela improcedência da acção.

Os AA. exerceram o contraditório acerca da matéria de excepção[1], defendendo a respectiva improcedência.

Foi admitida a intervenção principal provocada de M (…) como associada dos AA., a qual veio a falecer, tendo o A. sido habilitado como seu único herdeiro.[2]

Foi depois proferido despacho saneador que julgou improcedente a dita excepção de ilegitimidade passiva, relegou para final o conhecimento da defesa por excepção peremptória, firmou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.

Por despacho de 18.6.2018 foi declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide quanto aos 1ºs Réus (declarados insolventes - cf. o documento junto com o ofício datado de 21.5.2018), tendo os autos prosseguido os seus termos contra a Ré sociedade; na segunda parte do mesmo despacho foi indeferido o requerimento de notificação do Réu (nos termos e para os efeitos e sob as cominações do art.º 429º do CPC) para juntar aos autos as cópias dos cheques comprovativos do pagamento das quantias referidas no ponto 5. do requerimento de 12.5.2016 (cinco cheques, no montante global de € 337 500)[3].

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal a quo, por sentença de 31.10.2018, julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
Inconformados, os AA. apelaram formulando as seguintes conclusões:

(…)

A Ré não respondeu.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir: a) legalidade do despacho de 18.6.2018 (2ª parte) (art.ºs 644º, n.º 3 e 660º do Código de Processo Civil/CPC); b) modificação da decisão relativa à matéria de facto/erro na apreciação da prova; c) decisão de mérito, cuja modificação depende, sobretudo, da eventual alteração da decisão de facto.


*

I. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

1) Por acordo escrito que intitularam de contrato-promessa de compra e venda, celebrado em 14.4.2005, os autores declararam prometer vender e o 1º Réu declarou prometer comprar “uma parcela com a área aproximada a 11 000 (onze mil) metros quadrados, a destacar do prédio rústico composto de terra de cultura com árvores de fruto, tanchas, vinha, pinhal e eucaliptos, sito no lugar de (...) , freguesia de (...) , concelho da (...) , parcela essa a confrontar do norte com caminho, do sul com Herdeiros de (…) (os ora primeiros outorgantes), do nascente com (…) e do poente com estrada, estando a totalidade do prédio, de onde a parcela se destaca inscrito na matriz rústica da freguesia de (...) , sob o artigo n.° 2055-R e descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) , sob o n.° 55157, a fls. 83 do Livro B- 142”.

2) Desse escrito consta, nos termos da cláusula segunda, que o preço correspondente à venda seria fixado segundo o seguinte critério:

«a) Por cada lote autorizado a constituir no referido prédio, com área igual ou inferior a 300 (trezentos) metros quadrados, o segundo outorgante pagará a quantia de 22 500 (vinte dois mil e quinhentos) Euros;

b) Por cada fogo habitacional cuja construção for autorizada, no caso de construção de edifícios por andares, o segundo outorgante pagará a quantia de 12 500 (doze mil e quinhentos) Euros

3) Mais ficou aí acordado que, por conta desse preço, o 1º Réu pagaria aos autores as seguintes quantias:

«a) Como sinal e princípio de pagamento, no acto de assinatura do contrato-promessa de compra e venda ora junto sob o n.º 1, a importância de 50 000 (cinquenta mil) Euros, de que os primeiros outorgantes deram plena quitação, por ter sido então pago.

b) A quantia de 75 000 (setenta e cinco um) euros, em 01.8.2005;

c) A quantia de 75 000 (setenta e cinco mil) euros, em 15.11.2005, salvo se for previsível que a escritura definitiva se realize até ao final do mês de Dezembro/2005.

d) O restante preço no ato da escritura

4) Sob a cláusula terceira, foi estabelecido, no mesmo escrito, que a «escritura definitiva correspondente ao presente contrato-promessa deverá ser outorgada no prazo de um mês após a emissão do alvará de loteamento que vai ser requerido para o prédio prometido vender, obrigando-se a segunda outorgante a obter a necessária documentação. Proceder à marcação da mesma e a custear as despesas da escritura. A notificação para a celebração da escritura definitiva correspondente ao presente contrato promessa, deve ser efectuada por qualquer dos outorgantes, com a antecedência mínima de dez dias, cabendo-lhe a marcação da mesma

5) Em 25.6.2008, os autores, a aqui interveniente (entretanto falecida) e o 1º Réu celebraram o que denominaram de aditamento ao contrato-promessa de compra e venda de 14.4.2005, no qual declararam alterar a respectiva cláusula primeira e acrescentar a cláusula oitava.

6) No novo n.º 3 da cláusula primeira foi fixado que o «preço correspondente à compra e venda é de € 557 500 (Quinhentos e cinquenta sete mil e quinhentos euros), a pagar da seguinte forma:

a) Até à outorga da escritura pública o segundo outorgante entrega aos primeiros a quantia de € 337 500 (Trezentos e trinta e sete mil e quinhentos euros),

b) A restante parte do preço, ou seja o montante de € 220 000 (Duzentos e vinte mil euros), será pago com a parcela sobrante da urbanização, que se situará na zona sul da urbanização com a área de 7 169,25 metros quadrados. Conforme cópia do conforme cópia do projecto que fica a fazer parte do presente aditamento, que desde já lhe atribuem o mencionado valor de duzentos e vinte mil euros,

c) A transmissão da parcela sobrante, mencionada na alínea anterior, será efectuada aos primeiros, quando o segundo outorgante tiver em posse de toda a documentação necessária para o poder fazer, e livre de ónus ou encargos».

7) No número 4 aditado à cláusula primeira, ficou a constar que caso «se venha a obter aproveitamento com a implantação de lotes, na parcela actualmente designada no projecto como zona verde, paralela à actual Rua das Oliveiras, estes não vão alterar o preço fixado dos € 557 500. Como compensação, os segundos outorgantes assumem o pagamento de todas as despesas e impostos com a transferência da parcela sobrante, que os primeiros outorgantes venham a suportar

8) A cláusula oitava tem o seguinte teor: «A escritura pública será outorgada em nome da sociedade por quotas G (…) Lda., com sede em Assanha da Paz, freguesia de Almagreira, concelho de Pombal, com o NPC (…), na qualidade de compradora».

9) Por escritura pública que foi intitulada de compra e venda e hipoteca, outorgada no dia 26.6.2008, perante a Notária, Dr.ª (…)no respectivo Cartório, em (...) , os autores e a interveniente declaram vender e a 2ª Ré, representada por todos os seus sócios, declarou comprar, pelo preço de € 557 500, “que já receberam”, “um prédio rústico, sito na freguesia de (...) , concelho da (...) , inscrito na matriz sob o artigo 2 055, com o valor patrimonial tributário para efeitos de IMI de € 165,52 e para efeitos de IMT de € 3 278,95, descrito na Conservatória do Registo Predial da (...) sob o número 1954, da aludida freguesia, com inscrição definitiva de aquisição G - um e G - dois, na proporção de metade cada”.

10) Aquando do referido em 9), os autores e a interveniente tinham já recebido o preço aí mencionado.

11) O autor contraiu uma dívida fiscal que, em Novembro de 2012, ascendia a € 44 331,04.

12) Por escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, celebrada a 19.8.2009[4], no Cartório Notarial da (...) , a cargo da Notária, Dr.ª (…)os autores contraíram perante o Banco (…), S. A., um empréstimo no montante de cinquenta mil euros.

2. E deu como não provado:[5]

a) Quais os motivos subjacentes à outorga do aditamento referido em 5), designadamente, que tal aditamento tivesse subjacente a intenção do 1º Réu se aproveitar “do estado de necessidade financeira dos autores e da interveniente” e que ele visasse ficar-lhes com o prédio, sem lhes pagar mais nada.

b) Que o 1º Réu tenha levado os autores e a interveniente a declarar falsamente, na escritura referida em 9), que haviam recebido a totalidade do preço, com promessas de que o preço em falta, no montante de € 220 000, seria pago muito em breve, o mais tardar no prazo de 30 dias.

c) Que tenha sido em virtude dessa alienação que os autores foram tributados, em sede de IRS, no montante de € 44 331,04.

d) Que o valor de € 220 000 não tenha sido pago aos autores, tendo sido por isso que os autores não procederam ao pagamento da dívida fiscal acima aludida, viram penhorados os seus rendimentos e tiveram que recorrer ao crédito bancário para sobreviver.

3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Relativamente ao recurso do despacho de 18.6.2018, ressalvado o devido respeito, não vemos qual o interesse em juntar (porventura uma nova cópia) de um documento que já se encontra nos autos - na verdade, o documento referente ao aludido cheque datado de 26.6.2008, no montante de € 112 500, foi levado aos autos com o requerimento dos Réus de 31.3.2016, constando do mesmo, inclusive, as menções dos procedimentos de saque e de arquivo bancário que lhe respeitam (cf., v. g., fls. 171 verso do processo físico; e, sobretudo, as “conclusões 1ª, 2ª, 5ª, 21ª e 22ª”, ponto I, supra).

Por outro lado, não se questionando o pagamento do montante de € 337 500 através dos meios de pagamento mencionados no requerimento dos AA. de 12.5.2019, a junção dos “cheques” em causa nada acrescentaria ao que já se encontrava admitido nos autos [cf., ainda, II. 1. 6) alínea a), supra].

Por último, preceituando o n.º 1 do art.º 429º do CPC que quando se pretenda fazer uso de documento em poder da parte contrária, o interessado requer que ela seja notificada para apresentar o documento dentro do prazo que for designado e que, no requerimento, a parte identifica quanto possível o documento e especifica os factos que com ele quer provar, já era evidente a perspectiva dos AA. de que a totalidade do valor pago a título de preço era corporizada pelos cheques por eles indicados e que perfaziam a dita quantia de € 337 500, pelo que estaria em falta o valor reclamado de € 220 000, sabendo-se ainda (mais claramente, na fase de recurso) que os AA. pretendiam ver conjugados esses elementos com, principalmente, o “aditamento” ao contrato-promessa dito em II. 1. 5) a 8) e o contrato referido no ponto seguinte, supra, e, necessariamente, com a prova pessoal a produzir em audiência de julgamento, de forma a poder ser infirmado o teor da escritura pública referida em II. 1. 9), supra, quanto ao declarado recebimento da totalidade do preço e poder ser corroborada a perspectiva por eles defendida em juízo.  

Por conseguinte, ainda que não seja porventura de sufragar na íntegra aquela segunda parte do despacho de 18.6.2018[6], não é incorrecto dizer, como aí se afirmou, que “os pretendidos documentos não se destinam à prova de qualquer facto controvertido, uma vez que são atinentes a pagamentos que os próprios autores alegaram ter recebido dos réus”.

Acresce, face ao disposto no art.º 660º do CPC[7], que nenhuma infracção foi assim cometida e, ainda que o tivesse sido, nenhuma relevância teria para a subsequente tramitação e a decisão final dos autos (não consubstanciando, pois, documentos necessários ou úteis para a decisão da matéria de facto da causa - por o requerente ter o correspondente ónus da prova, ou poderem infirmar a prova de factos de que o detentor do documento tem o ónus - e que, necessariamente, não estivessem nos autos e/ou neles não fosse admitido o seu conteúdo e existência)[8], e, sempre, que nenhum interesse (com alguma relevância) assiste aos AA./apelantes que deva ainda ser salvaguardado.

            Improcedem, desta forma, as “conclusões 1ª a 6ª” da alegação de recurso (ponto I, supra).

4. a) Os AA./recorrentes insurgem-se contra a decisão sobre a matéria de facto, invocando, principalmente, a prova pessoal produzida em audiência de julgamento, pugnando para que se dê como não provado o facto constante do n.º 10 dos factos provados [cf. II. 1. 10), supra] e seja aditado um novo facto provado com a seguinte redacção: “a dívida fiscal e o mútuo dado como provado nos pontos 11 e 12 são consequência do não pagamento pelos RR. da quantia devida de € 220 000” (cf., sobretudo, a “conclusão 16ª”, ponto I, supra).

            Por conseguinte, é fundamental saber se outra poderia/deveria ser a decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade em causa.

            b) Pese embora a maior dificuldade na apreciação da prova (pessoal) em 2ª instância, designadamente, em razão da não efectivação do princípio da imediação[9], afigura-se, no entanto, que, no caso em análise, tal não obstará a que reanalise, designadamente, a credibilidade das testemunhas e verifique se os depoimentos foram apreciados de forma razoável e adequada.

            E na reapreciação do material probatório disponível por referência à factualidade em causa, releva igualmente o entendimento de que a afirmação da prova de um certo facto representa sempre o resultado da formulação de um juízo humano e, uma vez que este jamais pode basear-se numa absoluta certeza, o sistema jurídico basta-se com a verificação de uma situação que, de acordo com a natureza dos factos e/ou dos meios de prova, permita ao tribunal a formação da convicção assente em padrões de probabilidade[10], capaz de afastar a situação de dúvida razoável.

c) Consignou-se na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, designadamente (atendendo, obviamente, ao objecto da impugnação):

«(…) No âmbito dos autos, foi junta prova documental e produzida, em audiência, prova testemunhal.

(…) No que respeita aos factos que integraram os temas de prova[11], com exceção do facto 10. (…), a prova documental produzida nos autos revelou-se, ao que se crê, manifestamente insuficiente para a respectiva comprovação.

Na qualidade de testemunhas, prestaram depoimento:

(…) 2. O (…), que, por conhecimento direto, também manifestou nada saber.

Limitou-se a referir o que foi ouvindo dizer aos autores[12], acerca do caso em litígio nos autos, sendo que, estranhamente, denotou nada saber quanto ao litígio objeto do processo 1959/09.8TBFIG, em que também estiveram envolvidos, conforme certidão junta pelos réus (fls. 179 e segs., do processo físico), sendo certo que, atentas as conversas frequentes que disse manter com aqueles seus amigos e vista, ainda, a sua profissão (oficial de justiça) seria natural que também tivesse acompanhado o desenrolar dessa causa.

Considerando, por um lado, a falta de conhecimento pessoal e direto dos factos e, por outro lado, a falta de credibilidade que (nos moldes muito sumariamente expostos) mereceu o seu depoimento, esta testemunha não logrou convencer o tribunal da veracidade de qualquer um dos factos controvertidos.

3. J (…), que disse conhecer os autores desde há longos anos, sendo amigo do autor e com ele almoçando duas ou três vezes por ano, para porem a conversa em dia.

Tal como a anterior testemunha:

- Limitou-se a relatar o que – alegadamente – o autor lhe contou, nomeadamente, que havia vendido o terreno a um indivíduo da zona de Pombal, que lhe ficou a dever duzentos mil euros e que andava com problemas financeiros por causa disso.

- Revelou nada saber acerca da existência de quaisquer outros litígios referentes à venda – ou promessa de venda – do mesmo terreno, nomeadamente, quanto à existência da ação supra identificada.

(…) Em suma, como consequência lógica da falta de conhecimento direto dos factos revelada pelas testemunhas e da fragilidade dos respetivos depoimentos (…), conclui-se pela absoluta insuficiência da prova testemunhal para demonstração cabal de qualquer um dos factos controvertidos (mesmo daqueles em relação aos quais tal meio de prova se revelava idóneo).

Em mera síntese e atendendo, mais discriminadamente, ao facto provado 10., especifica-se que a sua demonstração decorreu do teor da escritura pública de venda do imóvel - na qual foi expressamente declarado pelos vendedores (aqui autores e interveniente) terem recebido a totalidade do preço -, aliado à circunstância de os autores não terem produzido qualquer prova no sentido de abalar a veracidade daquela sua afirmação e de demonstrar a sua versão dos factos no sentido da sua falsidade.

A acabada de referir absoluta ausência de prova no sentido de ser inexata ou falsa a mencionada declaração de recebimento do preço constante da escritura pública (que se entende constituir uma confissão extrajudicial) torna, ao que se julga, absolutamente inútil a discussão (doutrinal e/ou jurisprudencial) referente à força probatória dessa declaração e ao modo como é admitida a prova do facto inverso (ou seja, a demonstração de que o afirmado pagamento não fora efetuado). Contudo, sempre se deixa aqui consignado que, nesta sede, se adere, em absoluto, ao entendimento adotado no Acórdão da RC de 09.01.2018-Processo 8470/15.6T8CBR.C1 (dgsi) (…)[13]

Quanto aos demais factos relevantes (integrados nos temas de prova), entendeu-se que a prova produzida foi manifestamente insuficiente para a respetiva demonstração, uma vez que, como acima adiantado, nenhum desses factos foi alvo de prova documental bastante e a prova testemunhal foi valorado como absolutamente inidónea e insuficiente para o convencimento da sua veracidade.» 

d) Esta Relação procedeu à audição dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento, conjugando-os com a restante prova.

            Relativamente à prova pessoal, visto o objecto da impugnação e o aduzido pelos recorrentes, atente-se no que de essencial foi dito pelas seguintes testemunhas (melhor identificadas na acta da audiência de julgamento e na alínea que antecede):

- O (…):

            Referiu saber da existência da compra e venda dos autos e que os AA. “começaram-se a queixar que os fulanos [compradores] não tinham pago tudo. Só tinham pago cerca de metade ou menos de metade ou coisa assim. Então eles começaram a ter muitas dificuldades. Começaram a ter penhoras. Ela [A.] às vezes chamava-me lá ao café para mostrar-me cartas das Finanças e aflita”.

            Desconhece o preço da compra e venda e o valor que, no dizer dos AA., lhes era ainda devido (“faltava pagar, acho eu, € 200 000; era assim uma coisa; sei que a quantia de cerca de € 200 000 ele falava-me.”).

Os AA. “tinham penhoras, começaram a ficar com dívidas - (…) eram os impostos que ele [A.] não tinha pago (“não sei se é para aí € 40 000, era assim perto disso…”) porque, entretanto, não tinha liquidez”, derivada, segundo os AA., daquela falta de pagamento dos Réus, razão pela qual terão recorrido a um empréstimo bancário (“sei que pediram ao banco, mas não sei a que banco”, nem qual o montante em causa) e junto de familiares.

“(…) Eu nunca vi os documentos, sou sincera” e tudo quanto sabe “são desabafos” dos AA. e o que viu nalguns “papéis das Finanças” (“das penhoras porque ela/A. estava em pânico”), nunca tendo presenciado qualquer reunião ou contacto dos AA. com os demais contraentes (“não, não assisti”)

            Afirmou desconhecer, de todo, quaisquer factos relacionados com o processo 1959/09.8TBFIG.C1, movido por “(…) Lda.” contra os aqui AA. e interveniente M (…), no qual, por sentença de 06.4.2014, foram os (aí) Réus condenados a restituir à A. a quantia de € 154 627,35 e respectivos juros a contar da notificação da sentença (cf. o documento junto com o requerimento de 02.5.2016), mormente a existência de eventuais penhoras por terem prometido vender anteriormente o mesmo prédio àquela sociedade/A. [dizendo, neste contexto: “não sei se ele/A. já era casado com a (…)/A.”; “a (…) era a minha cabeleireira e tinha um primeiro casamento (…) e depois casou-se com o (…), segunda vez e eu só soube que eles tinham estes problemas… e depois abriram um café. E depois todas as manhãs passo porque ela fica-me com a correspondência e passo pelo café. Eles até podiam ter outros processos anteriores, mas ela não me ia dizer nada porque não era minha cabeleireira e ainda não tinham o café.”].

- J (…):

O depoente e o A. têm um “hobby” em comum (“radioamadorismo”), há alguns anos e, “de vez em quando” fazem “umas almoçaradas para pôr a conversa em dia (…), umas duas, três vezes por ano”.

Conheci e conheço (o terreno objecto do contrato dos autos) porque ele ainda lá está” mas, “segundo consta, o que ele/A. me contou na altura”, não recebeu a totalidade do preço - “passado pouco tempo de fazer a escritura, tivemos essa conversa, num almoço que tivemos juntos e ele falou-me nisso, sim, que tinha feito a escritura em (...) , que lhe tinham dado algum dinheiro e que lhe tinham ficado a dever o resto, (…) à volta dos € 220 000”, montante que nunca lhe terá sido pago.

O A. “teve problemas (económicos) e graves” - “foi penhorado pelas Finanças por causa das mais-valias do terreno e chegou a um ponto que teve de pedir dinheiro emprestado ao banco para sobreviver”; “(…) parece que continuam (…) em dívida com o dinheiro e eles estão a ter alguns problemas graves mesmo”; o A. “continua a afirmar que não recebeu” a dita importância devida a título de preço; desconhece se os AA. tiveram penhoras por dívidas à Banca.

 Não viu (“não, não vi”) quaisquer documentos (das vendas, penhoras…) (ele/A. disse-me e eu acredito nele, não é?”); não acompanhou a venda (“não, não acompanhei”) ou a preparação da documentação (“também não”) e não faz “a mínima ideia” da identificação da empresa compradora (“ele não me falou da empresa; ele disse-me que tinha vendido os terrenos a um Sr. de Pombal”).

Sendo-lhe perguntado se o A. vendeu o terreno mais que uma vez, se tinha feito outro negócio anteriormente e, depois, se lhe contou que teve um processo em Tribunal por causa de um contrato-promessa com outro senhor antes do senhor de Pombal, respondeu, respectivamente: “pelo que ele me disse só vendeu o terreno a esse senhor; mais nada”; “não; que eu tenha conhecimento não”.

Concluiu, depois: “foi as conversas que nós tivemos” e que o A. apenas lhe disse o atrás referido, não lhe tendo dado conta de quaisquer factos anteriores relacionados com a negociação do mesmo terreno.

e) Independentemente da eventual relevância da factualidade e do desfecho da acção 1959/09.8TBFIG.C1[14] - pelo menos, para um melhor enquadramento da situação económico-financeira dos AA. - e do que, corroborando o decidido em 1ª instância, se dirá infra, antolha-se evidente que a prova pessoal produzida em audiência de julgamento é insuficiente para, conjugada com a realidade já demonstrada, dar como provados os factos indicados em II. 4. a), supra, apresentando-se igualmente insuficiente para corporizar o complemento probatório necessário à demonstração da falta de pagamento da parcela do preço reclamada nos presentes autos, nada sendo de apontar ao enquadramento doutrinal/jurisprudencial dado pela Mm.ª Juíza a quo.

Na verdade, tendo em atenção o objecto do litígio e o disposto, entre outros, nos art.ºs 358º[15], 371º, n.º 1[16] e 372º[17] do CC, e sufragando-se o entendimento, largamente maioritário, de que a força probatória dos documentos autênticos pode ser ilidida por nulidade ou por falsidade (consistente, esta, na formação do documento de maneira diferente da verdade, sendo que tal documento faz prova plena quanto à verdade dos factos praticados pela autoridade ou funcionário público e dos factos que se passaram na sua presença ou de que ele se certificou e podia certificar-se) e que, existindo um começo ou princípio de prova por escrito, a prova testemunhal (em contrário ou além do conteúdo de documentos autênticos ou de escritos particulares autenticados) terá o papel de um suplemento de prova de um facto alegado já tornado verosímil (pois as testemunhas não são já o único meio de prova do facto, diminuindo assim consideravelmente o perigo da sua falibilidade - neste caso, o perigo da prova testemunhal acaba, em grande parte, eliminado, uma vez que a convicção do juiz está já formada em parte com base num documento)[18], resulta dos autos, com suficiente clareza: por um lado, que não existe qualquer escrito que consubstancie tal princípio de prova (v. g., evidenciando o reconhecimento, perante o credor/AA., de factos que o favorecem e que são desfavoráveis ao pretenso devedor/Ré, susceptível de contrariar ou anular a declaração confessória dos AA. constante do título de compra e venda dito em II. 1. 9), supra; ademais, ainda que defensável e não totalmente inverosímil a “tese” defendida pelos AA., a mesma baseia-se, principalmente, no teor do cheque entregue na data da escritura pública, no “aditamento” ao contrato-promessa e na sucessão dos actos praticados pelas partes, desconsiderando toda a demais factualidade dada como provada (cf., sobretudo, II. 1. 6), supra); por outro lado, aceitando-se como boa a perspectiva explanada no acórdão desta Relação citado na sentença de que nada obsta a que contribuam para a formação da convicção do tribunal os factos relatados pela testemunha, ainda que esta deles não haja tomado conhecimento directo, desde que se esteja perante depoimentos relativamente seguros e coerentes, sem confabulações aparentes (dando conta, designadamente, daquilo que, num contexto natural do seu relacionamento com os AA., tais testemunhas ouviram dizer a estes sobre a pretensa dívida em análise)[19], afigura-se evidente que nenhuma das testemunhas foi suficientemente segura e coerente na exposição dos factos que relataram como advindos, unicamente, no contexto do seu relacionamento com os AA., apontando, antes, que o por elas transmitido em audiência foi circunscrito e “ajustado” à versão trazida aos autos pelos AA., não se vendo razão para que, por exemplo, já nada pudessem saber de outros factos (coevos) igualmente relevantes para a vida ou a situação jurídica-económica dos AA. e de algum modo entrecruzados com os destes autos, como decorre, claramente, da leitura dos elementos relativos àquela acção 1959/09.8TBFIG.C1 (veja-se, nomeadamente, os factos aí dados como provados sob os n.ºs 13 e 20 a 22).

 Daí que se tenha afirmado que a prova pessoal em apreço se apresenta (manifestamente) insuficiente para corporizar o complemento probatório necessário à demonstração da invocada falta de pagamento da parcela do preço reclamada nos presentes autos (e, assim, não corresponder à realidade o alegado recebimento da totalidade do preço).[20]

5. Afigura-se, pois, correcto o decidido e a fundamentação apresentada pela Mm.ª Juíza a quo, e não vemos motivo para modificar a decisão sobre a matéria de facto.

            A factualidade dada como provada respeita a prova produzida nos autos e em audiência de julgamento, sendo que, até em razão da exigência de (especial) prudência na apreciação da prova pessoal[21], a Mm.ª Juíza a quo não terá desconsiderado regras elementares desse procedimento, inexistindo elementos seguros que apontem ou indiciem que não pudesse ou devesse ponderar a prova no sentido e com o resultado a que chegou, pela simples razão de que não se antolha inverosímil e à sua obtenção não terão sido alheias as regras da experiência e as necessidades práticas da vida[22]

            A Mm.ª Juíza analisou criticamente as provas e especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, não se mostrando violados quaisquer normas ou critérios segundo a previsão dos n.ºs 4 e 5 do art.º 607º do CPC, sendo que a Relação só poderá/deverá alterar a decisão de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art.º 662º, n.º 1 do CPC).

            Improcede a pretensão dos apelantes quanto à modificação da decisão de facto.

6. Porque os AA./recorrentes não lograram ver modificada a decisão de facto proferida em 1ª instância e não colocam quaisquer questões relacionadas com a decisão de mérito (que não tenham sido ponderadas ao nível da reapreciação da decisão relativa à matéria de facto), sendo que a sentença recorrida fez, a nosso ver, correcta interpretação das disposições legais aplicáveis, não tendo infringido, designadamente, as normas que os apelantes referem como violadas, resta, pois, concluir pela total improcedência das “alegações” de recurso.


*

III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos AA./apelantes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 50 e 53.


*

28.5.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço





[1] Através dos requerimentos de 12.5.2016 e de 24.01.2018 (este, apresentado na sequência do despacho de 10.01.2018).
[2] Cf. o despacho de 21.10.2016, o documento junto a 28.9.2017 e o apenso A (decisão de 15.11.2017), sendo que a competência territorial do tribunal recorrido foi fixada por decisão de 15.6.2016.
[3] Com o seguinte teor: «No que concerne ao requerido sob o ponto 2. do anterior requerimento dos autores [requerimento de 24.5.2018, que aludia a omissão de pronúncia relativamente ao que havia sido pedido a 12.5.2016], há (desde logo) que referir que os pretendidos documentos não se destinam à prova de qualquer facto controvertido, uma vez que são atinentes a pagamentos que os próprios autores alegaram ter recebido dos réus./ Assim sendo, sem necessidade de entrar em outras e mais desenvolvidas considerações e visto que os factos objecto da instrução são apenas aqueles factos, de entre os factos relevantes, que são controvertidos, indefere-se o requerido. (…)»
[4] Rectificou-se a data atento o documento de fls. 34 e seguintes.

[5]A par, obviamente, dos factos que apenas contendiam com a alegada responsabilidade dos 1ºs Réus, atenta a extinção da instância quanto a estes” - refere-se na decisão recorrida.
[6] Reproduzido na “nota 3”, supra.
[7] Sob a epígrafe “efeitos da impugnação de decisões interlocutórias”, preceitua o seguinte: “O tribunal só dá provimento à impugnação das decisões interlocutórias, impugnadas conjuntamente com a decisão final nos termos do n.º 3 do art.º 644º, quando a infracção cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento tenha interesse para o recorrente.”
[8] Vide, nomeadamente, Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. IV (reimpressão), Coimbra Editora, 1987, pág. 38 e J. Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 431, em anotação a idênticas disposições dos CPC de 1939 e 1961, respectivamente.

[9] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 284 e 386 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, págs. 266 e seguinte.
[10]Refere-se no acórdão da RP de 20.3.2001-processo 0120037 (publicado no “site” da dgsi): A prova, por força das exigências da vida jurisdicional e da natureza da maior parte dos factos que interessam à administração da justiça, visa apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador. Se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação da justiça.   

[11] Assim enunciados: a) Saber se foi paga aos autores a quantia de € 220 000 por eles reclamada nestes autos, a título de parte do preço devido pela venda do imóvel melhor identificado na petição inicial. b) Conhecer os danos que decorreram, para os autores, da circunstância de os réus não terem pago o montante referido em a).
[12] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.

[13] Referindo-se, de seguida, na mesma motivação [com sublinhados e negrito ora introduzidos]: “cujo sumário é do seguinte teor: «I – Um documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto (art.º 371º, n.º 1, 1ª parte, do CC). II - Uma escritura pública de compra e venda pertence indiscutivelmente à categoria dos documentos autênticos (art.º 369º, n.ºs 1 e 2 do CC) e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora (art.º 371º, n.º 1 do CC). III - Um documento autêntico prova a verdade dos factos que se passaram na presença do documentador, quer dizer os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções (art.º 371º, n.º 1, 2ª parte, do CC). IV - Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. Dito doutro modo: o documento autêntico não fia, por exemplo, a veracidade das declarações que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram. V - Pode, assim, demonstrar-se que a declaração inserta no documento não é sincera nem eficaz, sem necessidade de arguição da falsidade dele. VI - Se na realidade não faz a mesma prova plena do pagamento do preço à vendedora/recorrente, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já haver recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, beneficia a autora, e que o artigo 352º do CC qualifica como confissão. VII - Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, n.ºs 1 e 4, e 358º, n.º 2 do CC. VIII - Lembre-se que o n.º 2 do art.º 358º do CC dispõe que “A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”. IX - Em resultado dessa força probatória plena, o facto confessado ter-se-ia, em princípio, de considerar como provado, sem poderem ser admitidas outras provas para isso contrariar (designadamente, a prova testemunhal - art.º 393º, n.º 2 - e, consequentemente, o funcionamento das presunções judiciais - art.º 351º, n.º 1, do CC), sem prejuízo, porém, de se poder demonstrar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração “confessória” (art.ºs 372º, nº 1 e 359º do CC). X - A jurisprudência dos tribunais superiores, com base no defendido pelo Prof. Vaz Serra, tem entendido, maioritariamente, que, fora dos casos acima referidos, quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço. XI - Na verdade, se o facto a provar está já tornado verosímil por um começo de prova por escrito, a prova testemunhal é de admitir, pois não oferece os perigos que teria se desacompanhada de tal começo de prova: em tal caso, a convicção do tribunal acha-se já formada parcialmente com base num documento, não sendo a prova testemunhal o único meio de prova do facto. XII - Tal como nos documentos autênticos, fixada a força probatória formal dos documentos particulares, segue-se a determinação da sua força probatória material, que se encontra fixada no art.º 376°, n.° 1, do CC, ao estabelecer que, reconhecido que o documento procede da pessoa a quem é atribuído, que é genuíno, fica determinado que as declarações dele constantes se consideram provadas na medida em que forem contrárias aos interesses do declarante, sendo indivisível a declaração, nos termos que regulam a prova por confissão.»
[14] Desconhece-se se houve qualquer modificação na sequência do recurso de apelação a que se alude no requerimento de 12.5.2016 (nenhuma das partes veio informar nos autos o seu desfecho…).

[15] Que reza o seguinte acerca da força probatória da confissão: A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (n.º 1). A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena (n.º 2). A confissão extrajudicial não constante de documento não pode ser provada por testemunhas nos casos em que não é admitida a prova testemunhal; quando esta seja admitida, a força probatória da confissão é livremente apreciada pelo tribunal (n.º 3). A confissão judicial que não seja escrita e a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal (n.º 4).

[16] Dispondo, sobre a força probatória dos documentos autênticos: Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador.

[17] Que preceitua: A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade (n.º 1). O documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade ou oficial público qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi (n.º 2). Se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, pode o tribunal, oficiosamente, declará-lo falso (n.º 3).

[18] Vide, sobretudo, Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), publicado nos BMJ n.º 111, págs. 108, 116 e 134 a 136 e n.º 112, págs. 201 e seguinte, 219 e seguintes e 264 e seguinte; Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, Coimbra, 1984, págs. 34 e seguintes; Antunes Varela, e Outros, Manual do Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, 2ª edição, pág. 521 [onde se afirma: «a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário … No exemplo figurado, ter-se-á assim como plenamente provado (até prova em contrário, feita no incidente da falsidade) que um dos outorgantes declarou perante o notário … ter recebido determinada quantia, a título de preço da coisa. Mas já se não tem por provado que … este recebeu efectivamente a quantia indicada … (É)são facto(s) que pode(m),consequentemente, ser impugnado(s) por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estar(em) coberto(s) pela força probatória plena deste. O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes.»] e Manuel de Andrade, ob. cit., págs. 225 e seguintes.

   A respeito da posição jurisprudência, cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 06.12.2011-processo 2916/06.1TACB.C1.S1 [tendo-se concluído, designadamente: «III - No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. IV - A escritura pública de compra e venda não fazendo prova plena do pagamento do preço à vendedora, fá-lo, no entanto, da sua declaração de já ter recebido o preço, pois que a realidade da afirmação cabe nas percepções do notário, o que implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art.º 352º do CC qualifica de confissão. V - Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, a vendedora declarou já ter recebido o preço) – cf. art.ºs 355º, n.ºs 1 e 4, e 358º, n.º 2, do CC. VI - Se a vendedora alega que não recebeu o preço, impunha-se, ainda, alegar a falsidade do aludido documento autêntico (art.º 372º, n.º 1, do CC) para, deste modo, afastar a força probatória plena que advém da confissão nele exarada. VII - Também o art.º 359º do CC prescreve outra via de impugnação da confissão extrajudicial, pela prova da falta ou vícios da vontade que inquinam a declaração constante de documento autêntico. E não basta para infirmar a confissão que o confitente alegue não ser verdadeiro o facto confessado. Para que a confissão seja impugnada há-de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima de falta ou de vício da vontade.»] e 09.7.2014-processo 28252/10.0T2SNT.L1.S1 [assim sumariado: «I - No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. II - A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art.º 352º do CC qualifica de confissão. III - Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) - cf. art.ºs 355º, n.º s 1 e 4, e 358º, n.º 2 do CC. IV - Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento. V - Fora destes casos, só quando existir um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida mediante o documentador. VI - Diversa é a situação de existirem nos autos outros elementos de facto que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento.»] e o cit. acórdão da RC de 09.01.2018-processo 8470/15.6T8CBR.C1, publicados no “site” da dgsi, bem como os demais acórdãos dos Tribunais Superiores citados nestes arestos.

[19] Cf. o aresto mencionado na “nota 13”, supra, e a jurisprudência do STJ aí citada (“O valor da prova não depende da sua natureza (directa ou indirecta), mas fundamentalmente da sua credibilidade. (...) Assim, a prova testemunhal indirecta, ainda que seja o único meio probatório produzido, beneficia do valor jurídico reconhecido pelos art.ºs 392º e 396º do CC, nada obstando, pois, à sua admissibilidade e valoração” – Sumário do Acórdão do STJ de 22-04-2008, Revista n.º 878/08 - 7ª Secção).

[20] Ademais, sem quebra do respeito sempre devido, temos por excessiva e desajustada a crítica levada às alegações de recurso, onde se invoca diverso critério de análise e ponderação dos meios de prova face ao adoptado no citado acórdão desta Relação [cf., v. g., a “conclusão 28ª”, ponto I, supra], porquanto, na situação aí considerada, e ao contrário dos presentes autos, verificou-se, além do mais, que existia uma declaração constante de documento particular, enquanto atribuída aos Réus, consubstanciando, realmente, por parte destes, confissão, em data posterior à da declaração confessória do A., constante do “TITULO DE COMPRA E VENDA”, da dívida ao A. do montante peticionado nesses autos (o que, por si só, provava de que não correspondia a realidade a declaração feita pelo A., no “Título”, quanto a já ter recebido essa quantia, tratando-se, pois, de uma inequívoca declaração de dívida feita ao credor/ uma declaração de dívida dos Réus para com o A., uma declaração confessória extrajudicial que constituía prova plena dessa dívida e, que, assim, contrariava, ou anulava, a declaração confessória anterior do A.), constituindo outrossim princípio de prova, por escrito (de circunstancialismo que tornava fortemente verosímil a possibilidade de não corresponder à realidade a declaração de recebimento do preço feita pelo A. no “Título de compra e venda e doação”); depois, várias testemunhas vieram a demonstrar ter conhecimento directo (pelo menos, duas testemunhas demonstraram ter conhecimento directo de factos relevantes) ou indirecto dos factos de sentido contrário ao declarado no “Título”; por último, foi produzida prova por declarações das partes (porventura dispensáveis para se alcançar a convicção que o Tribunal a quo formara, em especial, para dar como não provado “nada ter o Réu pago ao Autores do preço constante do Título de Compra e Venda”) em sintonia com aqueles demais elementos probatórios (e que são apreciadas livremente quanto aos factos que sejam favoráveis aos declarantes e se prestadas de forma coerente, segura, denotando sinceridade, podem, mais a mais, se confortadas por outros elementos de prova, ser levadas em conta para formação da convicção do tribunal quanto à factualidade em causa), pelo que a Relação não detectou “erro de apreciação da prova por parte do Tribunal ´a quo`”.

   Enfim, foi bem diferente o aí produzido, ponderado e analisado…
[21] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 277.
[22] Vide, nomeadamente, Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 192 e nota (1) e Vaz Serra, Estudo citado, BMJ n.º 110, pág. 82.