Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
58746/14.2YIPRT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: LEGITIMIDADE ACTIVA
SOCIEDADE EXTINTA
INJUNÇÃO
ACÇÃO ESPECIAL PARA CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
Data do Acordão: 03/07/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T- J- DA COMARCA DE COIMBRA - CANTANHEDE - JL CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 160º Nº2, 162º Nº 1 E 164º Nº 2 DO CSC
Sumário: Carece de personalidade jurídica e judiciária para instaurar o procedimento de injunção, posteriormente convertido em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a sociedade que já se encontrava extinta naquela data.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


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A..., S.A., por apenso ao processo 58746/14.2yiprt, veio interpor recurso de revisão da decisão proferida nesse processo (acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato) intentada por B... , Lda., pedindo que seja revista a decisão aí proferida, e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, e que se declare a falta de legitimidade da recorrida para propor quaisquer acções, com fundamento no art. 696, al. a) do CPC.

 Alega, em síntese, que: no processo acima identificado foi condenada por acórdão transitado em 10 de Setembro de 2015 a pagar à R., B... , Unipessoal, Lda., a quantia de 9.400,00€, acrescida de IVA à taxa legal; que posteriormente logrou obter documento junto da Conservatória do Registo Predial (11 de Março de 2016), do qual emerge que a matrícula da recorrida foi cancelada, tendo a mesma sido dissolvida e encerrada a liquidação no dia 6 de Maio de 2013, em data anterior à instauração do procedimento injuntivo 58746/14.2yipt; que na escritura de dissolução, outorgada em 6 de Maio de 2013, foi dito por C... , único sócio e gerente da recorrida, que a sociedade em causa não tinha activo nem passivo; que a partir da dissolução e encerramento da liquidação a recorrida foi extinta, deixando de ter personalidade jurídica em 6 de Maio de 2013, pelo que quando intentou a acção em Maio de 2014, já não possuía personalidade jurídica ou judiciária; que não foi nomeado qualquer liquidatário à sociedade e que a recorrida ao afirmar a inexistência de qualquer crédito, operou a chamada renúncia abdicativa e do hipotético activo societário que pudesse existir, contudo omitiu esse facto em juízo.

Porém, sobre o recurso recaiu despacho que oi indeferiu liminarmente, nos termos do art. 699, nº 1 do CPC, com o fundamento de que apresar de, com a extinção deixar de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, as relações de que a sociedade era titular não se extinguiam, como flui do disposto no arts 161, 163- 1 e 164 do CSC, podendo os sócios intentar acções, nos termo do art. 164 do mesmo diploma.

Não se conformou, no entanto a recorrente que interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

“A) Não concorda a Recorrente com o indeferimento liminar referente ao recurso de revisão apresentado.

B) Indeferimento esse que se baseou na questão de que as relações de uma sociedade extinta não desaparecem, passando para os sócios ou liquidatários.

C) Sublinhe-se que, no caso, não estamos perante uma acção pendente aquando do registo de liquidação e dissolução da sociedade, mas de uma acção intentada por uma sociedade extinta – “morta” – há, pelo menos, um ano antes da referida propositura.

D) Reitera a Recorrente que a acção – procedimento injuntivo – foi proposta por uma sociedade cuja dissolução e encerramento da liquidação foi registado no dia 7 de Maio de 2013, tendo o processo injuntivo sido requerido em Maio de 2014.

E) Por conseguinte, quando se inicia o procedimento, a sociedade já não existia, tendo cessado as suas personalidades jurídica e judiciária, carecendo, por completo, de legitimidade para pleitear.

F) Ademais, além de não existir aquando da sua liquidação e dissolução, afirmou o sócio único, perante oficial público, que a sociedade não possuía activo nem passivo, não nomeando qualquer liquidatário para a mesma.

G) Situação que se torna irrelevante e despicienda para os autos, pois aquando da propositura da acção, a sociedade, reitera-se, não existia, não sendo essa mesma situação do conhecimento quer da Recorrente, quer do douto Tribunal a quo, mas sim da sociedade em causa, conforme está documentalmente demonstrado no processo.

H) O que demonstra e evidencia a manifesta e absoluta litigância de má-fé da sociedade aquando da propositura do procedimento injuntivo com clara violação das alíneas a), b) e d) do n.º 2, do art. 542º do C.P. Civil.

I) De facto e de Direito, quem propôs a acção foi a sociedade quando a mesma já não existia estando, naturalmente, a sua matrícula cancelada.

J) E é aqui que reside o grande e manifesto lapso da sentença proferida pelo Tribunal a quo, pois ainda que as relações se transmitam da sociedade para os sócios, mediante certas regras, aqui não houve qualquer transmissão dessas relações, como se encontra documentalmente provado nos autos.

K) É que olvida – ou pelo menos ignora - a mencionada sentença a quo que quem propõe a acção não foi nenhum sócio ou liquidatário mas sim a sociedade (há muito extinta).

L) Sendo que, se esta situação fosse conhecida em primeira instância, o Tribunal nem tão pouco apreciaria o mérito da causa, em virtude de uma imediata absolvição da instância por não estarem reunidos os pressupostos processuais necessários e imprescindíveis.

M) O absurdo da questão, a título meramente exemplificativo, mas que se pode perfeitamente comparar à situação sub judice, seria um cidadão falecido há um ano, vir hoje iniciar um qualquer processo, pleiteando, por si próprio, como se estivesse vivo.

N) Naturalmente que, ao ter conhecimento da real situação da sociedade, a Recorrente não a podia ignorar e dela fez uso tempestivamente em Tribunal, através do meio próprio para o efeito, preenchendo de forma plena os requisitos em causa.

O) Pelo que entende a Recorrente, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo na sua decisão, que os documentos apresentados e junto aos autos são, de per se, mais do que suficientes para alterar a decisão contra si proferida, substituindo-a por outra em sentido mais favorável à Recorrente. “

Pede, a final, que o despacho seja revogado e substituído por sentença que absolva a recorrente.

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

A matéria de facto dada como provada, e que se aceita, é a seguinte:

“a) Em 24 de Abril de 2014, a sociedade e B... , Unipessoal, Lda., intentou contra a recorrente A... , S.A. procedimento de injunção, com o n.º 58746/14.2yiprt, posteriormente transmutado em acção especial para cumprimento de obrigações emergentes de contrato.

b) Por acórdão da Relação de Coimbra, transitado em 10 de Setembro de 2015, a ora recorrente foi condenada apagar à sociedade e B... , Unipessoal, Lda., a quantia de 9.400,00€, acrescida de IVA à taxa legal.

c) Em 11 de Março de 2016 a recorrente obteve conhecimento que, por escritura lavrada em 6 de Maio de 2013, a sociedade B... foi dissolvida e declarado na escritura que aquela não tinha activo em passivo.

d) Pela apresentação 24, de 7 de Maio de 2013 foi registada a dissolução e encerramento da liquidação.

e) Foi na mesma data, pela inscrição 3, registado o cancelamento da matrícula.

f) O recorrente intentou o presente recurso em 4 de Maio de 2016. “

O Direito:

Como se deixou anotado no relatório, o tribunal indeferiu o requerimento de interposição de recurso de revisão, com o fundamento de que, apesar da extinção da sociedade autora, antes da propositura da acção, as relações jurídicas de que ela era titular não se extinguiram.

Cremos, porém, que o tribunal não decidiu bem.

É seguro que, com o registo do encerramento da liquidação (que ocorreu em Maio de 2013, antes, portanto, da propositura da acção em Abril de 2014) a sociedade que intentou a acção já se encontrava extinta (art. 160, nº 2 do CSC) e que carecia, por isso mesmo, de personalidade jurídica e judiciária.

E também é verdade que as relações jurídicas de que a sociedade extinta era titular não se extinguiram, como decorre dos art. 162 a 164 do CSC (v., v.g., Ac. STJ de 26.6.2008, Ac. R.C. de 2.5.2013 e Ac. R.P. 22.3.2015, todos em www.dgsi.pt).

Porém, não se pode ignorar que, com a sua extinção, a sociedade deixou de ser titular ou sujeito daquelas relações (cfr. Ac. STJ de 18.9.2003 e Ac. R.P. de 27.3.2008, no mesmo site do IGFEJ).

E, por isso, não é à sociedade extinta que compete intentar ou fazer prosseguir a acção. É aos liquidatários que compete essa tarefa, em representação dos sócios (cfr. 162, nº 1 e 164, nº 2 do CSC). E com eles não se pode confundir a sociedade extinta: no caso do art. 162, nº 1 do CSC, porque, na acção pendente, a sociedade extinta é substituída pelos sócios representados pelos liquidatários (o que não é o caso, pois a sociedade estava já extinta à data da propositura da acção); no caso do art. 164, nº 2, porque os bens que não tiverem sido partilhados (activo superveniente) pertencem não à sociedade mas aos sócios, que sucedem à sociedade extinta na titularidade desses bens. Como se afirma no Ac. STJ de 18.9.2003 (relatado pelo mesmo relator do Ac. STJ de 26.8.2008), as acções em que houver necessidade de intentar para fazer reconhecer e efectivar o direito a bens não partilhados podem ser intentadas pelos liquidatários, actuando judicialmente como representantes da generalidade dos sócios, ou por estes, mas, neste caso, limitadas ao interesse de cada um“ (art. 164, nº 2 do CSC), “não podem é ser intentadas pela sociedade, que já não tem existência jurídica”.

Do exposto resulta, portanto, que a sociedade B... , Ldª, que se encontrava já extinta, à data da propositura da acção, carecia de personalidade jurídica e judiciária, para intentar a acção que foi julgada parcialmente procedente; e que ocorria, desse modo, uma excepção dilatória que devia ter determinado a absolvição da instância da ali ré, ora recorrente (cfr. arts. 576, nº 2 e 577, al. c) do CPC).

Há, assim, motivo para revisão.

Concluindo, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar a apelação procedente e revogar o despacho de indeferimento liminar, determinando, consequentemente, o prosseguimento dos ulteriores termos do recurso de revisão.

Sem custas.


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Coimbra, 7 de Março de 2017

Relator:

António Magalhães

Adjuntos:

1º - Ferreira Lopes

2º - Freitas Neto