Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
32/23.0PFCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS DO ARGUIDO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
RELATÓRIO SOCIAL
CRIME DE CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Recurso: Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 1
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 69.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 370.º, N.ºS 1 E 2, E 410.º, N.º 2, ALÍNEA A) DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário:
I – A imprescindibilidade do relatório social a que se refere o artigo 370.º do C.P.P. tem que ser apreciada casuisticamente, tendo em vista o fim a que se destina a prova ou indício de prova que com tal instrumento se pretende obter e consoante a suficiência ou insuficiência, para o efeito, da restante prova disponível nos autos.

II – Em regra impõe-se a elaboração de relatório social quanto a arguido ausente da audiência de julgamento e relativamente ao qual sejam desconhecidas as condições pessoais, sociais, económicas e a sua conduta posterior ao facto.

III – Para que ocorra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada é imperativo que o tribunal se demita da sua função investigatória ex officio, isto é, que, podendo fazê-lo, se abstenha de procurar conhecer as condições de vida do arguido relevantes para a determinação da sanção penal que se lhe deva cominar, mostrando-se tal prova possível.  

IV – Resultando dos autos e da decisão recorrida que o arguido não apresentou qualquer prova, que, regularmente notificado, não compareceu em audiência, que o seu defensor não requereu que o mesmo fosse ouvido numa segunda data, que o tribunal determinou a realização de pesquisas nas bases de dados disponíveis para apurar os rendimentos e bens titulados pelo arguido, que estas pesquisas nada esclareceram e que, reconhecendo a ausência de dados sobre a situação económica, o tribunal decidiu fixar no mínimo a taxa diária da pena de multa, resulta que o tribunal fez o bastante, atenta a natureza dos factos e a circunstância de estar em causa uma pena de multa, para obter prova sobre as condições pessoais e sociais do arguido.

V – Embora no crime de condução de veículo sob o efeito do álcool o desvalor da acção seja de pouca monta, por isso se integrando no universo da pequena criminalidade, não pode ser desvalorizado o perigo associado à conduta típica, que coloca frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física e o património, sendo esta perigosidade que se visa prevenir com a pena acessória de proibição de conduzir.

Decisão Texto Integral:
*

            … foi proferida sentença, em 26-09-2023 …, com o seguinte dispositivo (transcrição):

            «…,

a) Condenar o arguido, …, pela prática, em 22-04-2023, como autor material e na forma consumada, de 01 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros).

b) Condenar o arguido … na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 04 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.

…»

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido

            Na sequência das respetivas alegações termina apresentando as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

               «…

XI. Com efeito, a determinação do quantum ou medida da pena depende da culpa e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CPP).

XXII. Aqui chegados, tudo ponderado, entende-se que foram descuradas na determinação da medida da pena principal e acessória, o preceituado nos artigos 40.º, 47.º, 65.º, e 71.º do CP.

           

           

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

            …

            Considerando o teor do douto parecer do Exmº Senhor Procurador-geral Adjunto e o mencionado supra (questão de conhecimento oficioso), as questões a decidir são:

            1ª – Saber se a sentença padece do vício a que alude o artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal;

            2ª - Saber se as penas, principal e acessória que foram aplicadas, se mostram corretamente determinadas ou se, como afirma o Recorrente, se mostram excessivas e desajustadas.

            2. Da decisão recorrida.

           

           

3. Apreciação do recurso

3.1. - Do vício a que alude o artigo 410º nº2 alínea a) do Código de Processo Penal.

Adiantamos, desde já, que se considera não padecer a sentença do aludido vício, pelo que, se abordará a questão de forma muito sumária.

Preceitua o artigo 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:

“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]”.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.

Dito isto, vejamos então se a ausência da matéria de facto provada relativa às condições pessoais e sociais do arguido, se revela, in casu, fundamento para julgar verificado o vício de insuficiência para a decisão daquela factualidade.

Preceitua o artigo 71º do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação concreta da pena” (na parte que ora releva):

1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:

(…)

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”

  Exceto no caso de o arguido ser menor, a lei processual penal acentua o caráter facultativo do relatório social (ou da solicitação de uma informação aos serviços de reinserção social, em alternativa ao relatório social) – cf. artigo 370º, nºs 1 e 2, do CPP [redação conferida pela Lei nº 33/2019, de 22.05].

A imprescindibilidade do relatório social há de ser apreciada pelo julgador casuisticamente, tendo em vista o fim a que se destina a prova ou indício de prova que com tal instrumento se pretende obter e consoante a suficiência ou insuficiência para o efeito da restante prova disponível nos autos – neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2018, Processo nº 108/18.6GAESP.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Bispo, e de 13.07.2020, Processo nº 414/19.2GAESP.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Teresa Coimbra, disponíveis em www.dgsi.pt.

Julgamos que, regra geral, se impõe a elaboração de relatório social quanto a arguido ausente da audiência de julgamento, quando apenas se apuraram os seus antecedentes criminais, desconhecendo-se as suas condições pessoais e sociais, designadamente a sua situação económica e a sua conduta posterior ao facto – assim foi também entendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, Processo nº 2816/08, disponível em www.dgsi.pt.

Contudo, para que ocorra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada, é imperativo que o Tribunal se demita da sua função investigatória ex officio, isto é, que, podendo fazê-lo, se abstenha de procurar conhecer as condições de vida do arguido relevantes para a determinação da sanção penal que se lhe deva cominar, mostrando-se tal prova possível.  

No caso sub judice, compulsada a douta decisão recorrida e os autos em geral, verificamos, por um lado, que o arguido não apresentou qualquer prova e, regularmente notificado, não compareceu em audiência, a qual decorreu na sua ausência, não tendo o Ilustre Defensor presente requerido, nos termos do disposto no artigo 333º nº3 do Código de Processo Penal, que o mesmo fosse ouvido numa segunda data.

Por outro lado, o Tribunal em sede de despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 311º do código de Processo penal, determinou que se efetuassem pesquisas nas bases de dados disponíveis, tendo em vista apurar rendimentos e bens titulados pelo arguido [referência 35953044], sendo que, o resultado das pesquisas em causa nada esclarece sobre tais rendimentos ou bens [referências 35963866, 3260689, 3260690, 36114686, 36114697, 36114722 e 36114725].

Finalmente, atente-se que, em sede de sentença, o Tribunal a quo reconheceu esta ausência de dados sobre a situação económica do arguido e, nessa medida, ao fixar o quantitativo diário da multa fixou-o no mínimo legal.

 Assim, atendendo ao circunstancialismo fático-processual do presente caso, entendemos que o Tribunal recorrido fez o bastante, atenta a natureza dos factos e a circunstância de estar em causa uma pena de multa, para obter prova sobre as condições pessoais e sociais do arguido, designadamente solicitando que fosse feita consulta nas bases de dados disponíveis.

Concluindo.

No caso vertente, a audiência de julgamento decorreu, nos termos legais, na ausência do arguido, não obstante as diligências ordenadas nesse sentido, não foi possível obter informação sobre as condições económicas do mesmo, forçando o Tribunal a decidir sobre a determinação da medida da pena com o único elemento fático documentalmente comprovado nos autos, isto é, os seus antecedentes criminais, sendo certo que, atenta a forma de processo em causa e a natureza dos factos em discussão, não podia o Tribunal a quo procrastinar indefinidamente a prolação da decisão final sobre o objeto do processo.

Não ocorre, assim, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

            3.2. – Da medida das penas principal e acessória.

            3.2.1. Medida da pena de multa.

[1] [2]

3.2.2. – Da medida da pena acessória de proibição de conduzir.

A prática do crime de condução em estado de embriaguez, …, para além da pena principal (prisão ou multa), é ainda sancionada com proibição de conduzir veículos com motor por um período entre 3 meses e 3 anos, conforme dispõe o artigo 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Esta sanção inibitória tem natureza de pena acessória, como resulta claramente do texto do citado artigo, da sua inserção sistemática e do elemento histórico[3], traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado.

A condenação do agente numa pena principal constitui condição necessária, mas já não suficiente para a aplicação da pena acessória, pois, como ensina Figueiredo Dias[4], “torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória”.

Aliás, de acordo com o princípio geral estabelecido no artigo 65º, n.º 1, do Código Penal, “nenhuma pena envolve, como efeito necessário a perda de direitos, civis, profissionais ou políticos”.

Correspondendo a uma manifesta necessidade de política criminal, que se prende com a elevada sinistralidade rodoviária, a aplicação da pena acessória em questão visa dissuadir os condutores de ingerirem bebidas alcoólicas em quantidades que diminuem os reflexos e afetam a capacidade de reação e a destreza, indispensáveis ao exercício da condução em condições de segurança.

A propósito das suas finalidades, refere Figueiredo Dias[5] que, “se (…) pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa (…). Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano”.

A pena em apreço tem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, sendo a sua finalidade a intimidação da generalidade e dirigindo-se ainda à perigosidade do agente.

Embora distintas nos seus pressupostos, quer a pena principal quer a acessória assentam num juízo de censura global pelo crime praticado.

Daí que, não estabelecendo o Código Penal um regime específico para a determinação da pena acessória, se entenda que, tal como sucede com a pena principal, se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal.

Aliás, pressupondo as penas acessórias a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), são verdadeiras penas criminais e por isso, estão também ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção[6].

Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 667/94[7], “a ampla margem de discricionariedade facultada ao juiz na graduação da sanção de inibição de conduzir, permite-lhe perfeitamente fixá-la, em concreto, segundo as circunstâncias do caso, desde logo as conexionadas com o grau de culpa do agente, nada na Lei Fundamental exigindo que as penas acessórias tenham que ter, no que respeita à sua duração, correspondência com as penas principais”.

Na sentença recorrida a pena foi fixada em 4 (quatro) meses, isto é, apenas um mês para além do mínimo legal.

Consideramos que não procedem as razões apontadas pelo Recorrente que, a aceitarem-se conduziriam a deixar na disponibilidade do “sentir” do arguido considerar que uma pena é justa ou injusta.

Os critérios são outros e estão fixados na lei, conforme se explicitou supra.

Refira-se que, nos delitos de tráfego automóvel, à pena acessória de proibição de conduzir é, muitas vezes, associado um efeito mais penalizante do que à pena principal de multa (que os infratores pagam sem grandes inconformismos) ou de prisão suspensa na sua execução (que é vista até como menos onerosa que aquela). Daí que a pena acessória seja encarada como um importante instrumento para restabelecer a confiança da comunidade na validade da norma infringida, pelo que a medida ótima de tutela do bem jurídico e das expectativas comunitárias aponta para uma elevação dos limites da moldura da prevenção geral.

Acresce que, embora no crime de condução de veículo sob o efeito do álcool o desvalor da ação seja de pouca monta (por isso se integra no vasto universo da pequena criminalidade), não pode ser desvalorizado o grau de perigo associado à conduta típica, atento o interesse tutelado (a segurança da circulação rodoviária), colocando frequentemente em causa valores de particular relevo, como a vida, a integridade física e o património. É justamente essa perigosidade que se visa prevenir com a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir.

            …

            III. DISPOSITIVO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso …

            Por ter decaído totalmente no recurso que interpôs, o arguido suportará as custas do respetivo recurso, fixando-se em 3 (três) UCs a taxa de justiça – arts. 513º nºs 1e 3 do Código de Processo Penal e 8º nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, conjugado este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).


            (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 13-12-2023      

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (relatora)

Cândida Martinho (1ª Adjunta)

Helena Lamas (2ª Adjunta)

(Data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


           




[1]
[2]
[3] Vide, Atas da Comissão de Revisão do Código Penal, n.ºs 5, 8, 10 e 41.
[4] In “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 158.
[5] In “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 165.
[6] Vide, Maria João Antunes, in “Consequências Jurídicas do Crime”, 2ª Edição, 2015, Coimbra Editora, pág. 38.
[7] In BMJ, 446º - suplemento, pág. 102