Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
592/20.8T8PBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Data do Acordão: 05/04/2021
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE POMBAL DO TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 122.º, N.º 2, DA LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO
Sumário: Os juízos de família e menores são competentes em razão da matéria para tramitar a acção declarativa instaurada na sequência de decisão proferida no sentido de suspender o processo de inventário pendente em Cartório Notarial e de remeter os interessados para os meios comuns relativamente a determinadas questões concretas suscitadas naquele processo.
Decisão Texto Integral:



            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A… instaurou a presente ação de processo comum contra M…, ambos já identificados nos autos, pedindo que a ação seja julgada procedente, e em consequência, a ré condenada a:

I- Reconhecer que a quantia de €179.431,43, que retirou das contas bancárias comuns, corresponde atualmente à quantia de €179.431,43 e que a mesma faz parte do património comum do extinto casal (artigo 1689º do CC);

II- Ver tal quantia, acrescida de juros de mora desde a citação, relacionada no inventário para separação de meações nº 4201/16 do Cartório Notarial de …, a cargo de …, como crédito sobre ela demandada.

Alegou para tanto que:

- foi casado com a ré, tendo esse casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença transitada em julgado.

- a ré na constância do casamento, apropriou-se da quantia de €179.431,43, que retirou de contas conjuntas, pretendendo subtrair tal quantia ao património comum, e a uma futura partilha subsequente a divórcio, não tendo tal quantia sido depois restituída ao património comum.

- o autor instaurou em 12/10/2016 contra a ré ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, que correu termos no Juiz 3 da Secção Cível da Instância Central da Comarca de Leiria com o número 3080/16.3T8LRA, na qual alegou, entre outros, os factos descritos nos artigos 1 a 39 desta petição inicial, relativos ao levantamento de dinheiro das contas comuns, apropriação e recusa em restituir metade e na qual pediu a condenação da ré a pagar ao autor metade do valor que levantou das contas bancárias.

- A ré apesar de citada, não contestou, tendo sido proferida sentença, que julgou a ação improcedente e absolveu a demandada do pedido, constituindo a decisão que declarou confessados os factos caso julgado em relação à presente ação.

- em 31/8/2016, a ré instaurou, no Cartório Notarial de … a cargo de …, inventário (subsequente ao divórcio referido em 4 desta pi) para separação de meações, ao qual coube o número 4201/16, constando da verba nº 1 da relação de bens, sob o título “direito de crédito”, o seguinte bem: “Crédito sobre a interessada M…, correspondente aos valores em dinheiro que a mesma retirou do património comum, de contas bancárias comuns, e de que se apropriou, no montante de €179.431,43”.

- No despacho que recaiu sobre o incidente da reclamação, a Srª Notária decidiu remeter as partes para os meios comuns para apreciação das questões controvertidas referente à existência ou inexistência do direito de crédito relacionado na verba um e quanto à falta de relacionação do imóvel, cuja falta foi acusada pela reclamante, nos termos do nº 1, do art. 36º e n.º 2 do artigo 17.º, ambos do Regime Jurídico do Processo de Inventário”.

-Na sequência da decisão proferida no processo de inventário dos bens comuns subsequente ao divórcio entre autor e ré, o autor instaurou contra a aqui ré ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum com os mesmos fundamentos da presente ação, que correu termos no Juiz 4 do Juízo Central Cível de Leiria com o nº 1377/19.0T8LRA, tendo no âmbito do referido processo, após os articulados, sido proferida sentença, que declarou o referido Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Leiria incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar a ação, por tal competência pertencer ao Juízo de Família e de Menores e, consequentemente, absolveu a ré da instância.

- Na sequência da sentença proferida no proc. nº 1377/19.0T8LRA do J4 do Juízo Central Cível de Leiria, o autor instaurou a presente ação.

*

A ré contestou, pedindo que seja julgada verificada a exceção dilatória de caso julgado, absolvendo-se a ré da instância, ou em alternativa que a ação seja julgada improcedente por não provada e por via dela ser a ré absolvida dos pedidos.

Peticionou ainda, a condenação do autor por litigância de má fé, em multa e indemnização.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgou o Juízo de Família e Menores de Pombal incompetente em razão da matéria para tramitar e julgar a presente acção, atribuindo-a ao Juízo Central Cível de Leiria, com a consequente absolvição da ré da instância, ficando as custas a cargo do autor.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o autor A…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida, imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 152), finalizando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de aferir da competência material para a tramitação e conhecimento dos presentes autos de acção declarativa de condenação, intentada na sequência da suspensão de inventário para separação de meações, subsequente a divórcio, por força da remessa para os meios comuns da decisão da questão sub judice.

A matéria de facto a ter em consideração é a que resulta do relatório que antecede.

Competência material para a tramitação e conhecimento dos presentes autos de acção declarativa de condenação, intentada na sequência da suspensão de inventário para separação de meações, subsequente a divórcio, por força da remessa para os meios comuns da decisão da questão sub judice.

Analisando as alegações e respectivas conclusões de recurso, insurge-se o autor contra a decisão recorrida, por entender que a competência material para a tramitação e conhecimento dos presentes autos está atribuída ao Tribunal a quo, com o fundamento em que, nos termos do disposto no artigo 122.º, n.º 1, al. c) e n.º 2, da LOSJ, é atribuída aos Tribunais de Família e Menores a competência para julgar as questões relativas às partilhas subsequentes a divórcio.

Na decisão em recurso, considerou-se que a competência material para a tramitação e conhecimento dos presentes autos está atribuída ao Juízo Central Cível de Leiria, citando-se em defesa do decidido o Acórdão da Relação do Porto, de 26/10/2020, Processo n.º 1029/20.8T8PRD, publicado na respectiva base do ITIJ, com a seguinte fundamentação:

É claro, que conforme resulta do disposto no artº 122º nº 2 da LOSJ, são os Juízos de Família e Menores que têm competência para praticar os atos jurisdicionais relativos aos inventários instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de pessoas e bens a que se aplica o regime desses processos.

Todavia, o disposto no nº 2 do artº 122º, a meu ver, não tem o sentido de se aplicar à remessa para os meios comuns, antes visa as decisões a tomar no próprio processo de inventário, como sejam - para além da sua tramitação, decorrente da entrada em vigor da Lei 117/2019 de 13/9 - designadamente a decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio, à semelhança do que já sucedia com o nº 7 do artigo 3º da anterior Lei 23/2013 de 5/3 (“compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado praticar os atos que, nos termos da presente lei, sejam da competência do juíz”).

Referindo o mencionado preceito legal (artº 122º nº 2 da LOSJ), que os JFM exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário, tal exclui os processos que não são de inventário.

Nesse sentido, o artigo 122º nº 2 da LOSJ refere-se apenas a decisões a tomar no próprio processo de inventário, porque tudo o que extravasa o processo de inventário já extravasa o âmbito da jurisdição da Família e Menores e cai no âmbito estritamente cível, sob pena de a jurisdição de Família e Menores ser chamada a decidir questões de natureza cível, como sucede no caso sub judice.

As decisões a tomar nos meios comuns sê-lo-ão fora de um processo de inventário, num processo autónomo, pois não faria sentido que o JFM decidisse no âmbito de um inventário no sentido da remessa para os meios comuns e depois fosse o próprio JFM a decidir essa outra ação comum – com os JFM a decidirem questões cíveis (reais, contratos ) ou de competência dos tribunais do comércio, num desvio à especialização dos tribunais e muito menos, quando a remessa para os meios comuns se funda na complexidade da questão a resolver, que reclama especialização.”.

A questão que importa decidir é a de saber a quem compete tramitar os presentes autos, que surgem na sequência de inventário pendente para partilha de bens entre autor e ré, na sequência de divórcio entre ambos e que foi remetida para os meios comuns, pela Ex.ma Notária, onde corriam os autos de inventário para separação de meações subsequente a divórcio.

É pacífico o entendimento de que a competência de um tribunal se afere ou é determinada em função dos termos em que a acção é configurada pelo autor.

Não há dúvida que, independentemente do mérito dos pedidos formulados, a autora moveu a acção por suspensão do inventário, pendente em Cartório Notarial, e da remessa para os meios comuns relativamente ao objecto da presente acção.

Nos termos do disposto no artigo 40.º, n.º 1, da LOSJ “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

A competência material dos Juízos centrais cíveis está regulada no seu artigo 117.º, cabendo-lhe a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50 000,00 – cf. seu n.º 1.

Por seu lado, a competência em razão da matéria dos Juízos de família e menores, está fixada no seu artigo 122.º, nos termos do qual, no que aqui interessa, lhe compete a preparação e julgamento das acções de separação de pessoas e bens e de divórcio (n.º 1, al. c), cabendo-lhes, ainda, de acordo com o seu n.º 2:

“as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

De ter, ainda, em linha de conta o disposto no artigo 1083.º, n.º 1, al. b), do CPC, de acordo com o qual, o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais, sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial.

E, segundo seu artigo 1133.º, n.º 1, decretado divórcio, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.

Verifica-se, pois, uma conexão entre o inventário para separação de meações e a acção de divórcio que o precedeu, como decorre do disposto no artigo 206.º, n.º 2, do CPC.

Dúvidas inexistem, assim, que o inventário para separação de meações, subsequente a acção de divórcio, corre termos nos Juízos de família e menores – neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, de 14 de Julho de 2020, processo n.º 99/16.6T8CSC-D.L1-7, disponível no respectivo sítio do Itij e o desta Relação, de 23 de Fevereiro de 2021, Processo n.º 435/20.2T8PBL-A.C1, disponível no mesmo sítio do anterior.

Como se refere no Código GPS, Vol. II, Almedina, pág. 527:

“Agora, que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário, faz todo o sentido que o processo de inventário subsequente a sentenças declarativas de divórcio ou de separação, ou de anulação do casamento, proferidas no âmbito de processos judiciais seja tramitado nos tribunais judiciais e que, ademais, corra por apenso a tais processos (competência por conexão), nos termos do art. 206.º, n.º 2.”.

Acrescentando (pág.s 527 e 629) que esta relação de dependência é extensível a outro tipo de processos que não apenas o de inventário, v.g., prestação de contas do cabeça de casal (art.º 947.º), atribuição da casa de morada de família (art.º 990.º, n.º 4); autorização para a prática de actos (art.º 1014.º, n.º 4) e nomeação judicial de titulares de órgãos sociais (art.º 1054.º, n.º 2), entre outros, ali referidos.

A mesma solução é defendida por Pedro Pinheiro Torres, in Cadernos do CEJ “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, pág. 31, que ali refere ser competente para a instauração do inventário para partilha de bens comuns subsequente a divórcio “o órgão em que tiver ocorrido o processo de divórcio, sendo competente para o inventário subsequente ao divórcio decretado judicialmente, o tribunal em que este foi decretado, devendo o processo de inventário correr por apenso àquele, de que é dependente, nos termos do n.º 2 do artigo 206.º do CPC”.

Ora, cabendo a competência aos Juízos de família e menores para a tramitação dos autos de inventário para partilha dos bens comuns, subsequente a divórcio, o que se justifica pela relação de dependência e conexão entre ambos os processos, justificada por razões de economia processual, atento a que no processo de divórcio constarão – ou poderão constar – elementos relevantes para a determinação da partilha a efectuar no inventário subsequente, não vemos razões para que assim deixe de ser no caso de se tratar de uma acção intentada na sequência da suspensão do processo de inventário, motivada pela remessa da decisão de uma concreta questão para os meios comuns.

Não deixa, por isso, de se tratar de uma questão que tem que ver com a partilha a efectuar, não relevando, salvo o devido respeito por contrário entendimento, para a determinação da competência em apreço, que a questão seja decidida no próprio processo de inventário ou em acção própria para tal intentada, que só o foi por decisão tomada no processo de inventário.

Realce-se que o n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ atribui aos Juízos de família e menores “as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de … divórcio”.

Ora, se o legislador pretendesse estabelecer qualquer diferenciação entre as questões a resolver no processo de inventário, designadamente, que a competência dos Juízos de família e menores ficava limitada aos termos estritos do processo de inventário e não já às acções instauradas na sequência deste, por remessa para os meios comuns, tê-lo-ia dito, o que não fez.

Ao invés, estabelece, em termos gerais, as competências dos Juízos de família e menores, no que respeita à tramitação dos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens ou divórcio.

Assim, concluindo, é materialmente competente para a tramitação dos presentes autos, o Juízo de Família e Menores de Pombal, não podendo, por isso, subsistir a decisão recorrida.

Consequentemente, tem o recurso de proceder.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, em função do que se revoga a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara ser materialmente competente para a tramitação e decisão dos presentes autos, o Juízo de Família e Menores de Pombal, onde os autos deverão prosseguir os seus ulteriores termos.

Sem custas (o presente recurso).

Coimbra, 04 de Maio de 2021


Arlindo Oliveira

Emídio Francisco Santos


Declaração de voto da 2.ª Adjunta

Entendo, salvo o devido respeito pela posição que fez vencimento, que a decisão recorrida está correcta e deveria ser confirmada.

Na verdade, o que se determina no nº 2 do art. 122º da LOSJ é que os juízos de família e menores exercem as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário ali discriminados. Tal competência restringe-se, portanto, aos processos de inventário.

Ora, no caso, não está em causa um processo de inventário, mas sim uma normal acção com total autonomia relativamente ao inventário e que, como tal, está submetida às regras gerais e legalmente estabelecidas, em função da sua natureza, seja quanto à determinação da acção e forma de processo adequados, seja ao nível da competência para a sua apreciação.

É certo que a presente acção foi instaurada na sequência de decisão proferida no âmbito de um processo de inventário que remeteu os interessados para os meios comuns com vista à apreciação e decisão da questão ali suscitada. Mas a decisão que remete os interessados para os meios comuns não significa – em lado nenhum isso vem estabelecido – que o meio a utilizar para dirimir e resolver a questão tenha que correr perante a mesma entidade/tribunal que tem competência para o inventário.

A decisão que remete os interessados para os meios comuns significa, naturalmente, que a questão fica excluída do processo de inventário, devendo os interessados obter a resolução da questão através dos meios (acção ou procedimento) que se revelem adequados e perante o tribunal que, em face da lei, detenha competência material para dirimir o concreto litígio e as questões nele envolvidas (competência que poderá – ou não – pertencer à mesma entidade/tribunal perante quem corria o processo de inventário).

Nem faria sentido - penso eu - que os tribunais de família tivessem competência para acções de todo o tipo (contratos, reais, etc.) que têm total autonomia relativamente ao inventário, sendo certo que nem sequer correm por apenso. Os tribunais de família terão competência para apreciar e decidir essas questões quando elas devam ser decididas no processo de inventário a título incidental (cfr. art. 91º do CPC); quando isso não acontece - designadamente porque os interessados foram remetidos para os meios comuns no que toca a essas questões - essa competência deixa de existir e passa a pertencer ao tribunal que, nos termos da lei, tem competência para a concreta acção que vem a ser instaurada na sequência daquela remessa para os meios comuns.

Confirmaria, portanto, a decisão recorrida.

(Maria Catarina Gonçalves)