Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
125/10.4TBFVN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARROLAMENTO
INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.384, 385, 387, 421, 422, 423 CPC, 1817, 1847, 1871, 1873 CC
Sumário: 1. O arrolamento é uma medida cautelar de carácter conservatório destinada a assegurar a manutenção de bens litigiosos no período em que persistir a discussão da titularidade do direito no âmbito da acção principal.

2. À luz do actual regime jurídico continua a ser admissível o procedimento cautelar de arrolamento por apenso à acção de investigação de paternidade proposta depois da morte do pretenso pai, desde que o requerente tenha interesse na conservação dos bens que integram o correspondente acervo hereditário e exista justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie, oculte ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens.

2. O decretamento do arrolamento na dependência de acção de investigação de paternidade depende, além do mais, do apuramento de factos que permitam afirmar a probabilidade da procedência da acção principal.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


            I. M L (…) intentou contra Herança Jacente de C (…) representada pela cabeça-de-casal, L (…), no Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos e por apenso à respectiva acção de investigação de paternidade (125/10.4TBFVN), o presente procedimento cautelar de arrolamento tendo por objecto os bens discriminados nos art.ºs 32º e 45º a 47º petição inicial.

            Alegou para o efeito, em síntese, ser filha, não reconhecida, de C (…), falecido a 01.10.2009, factos de que só recentemente teve conhecimento, intentando de imediato a referida acção de investigação; foi realizada a escritura de habilitação de herdeiros por óbito de C (…) e existe justo receio de que a “requerida” dissipe parte dos bens ainda existentes.[1]

            Foi dispensada a audição da requerida, por se entender que poderia colocar em causa a eficácia da providência.

            Inquiridas as testemunhas arroladas e verificada a regularidade da instância, o Tribunal indeferiu a requerido arrolamento, considerando, por um lado, que no caso em apreço falta o requisito da dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas e, por outro, ficou por comprovar indiciariamente que a requerente é filha biológica de C (…).

            Desta decisão recorreu a requerente que, mantendo o peticionado, formulou as conclusões que assim vão sintetizadas:

            1ª - Com a prolação da sentença foram violadas as normas do art.º 421° do CPC.

            2ª - Não restam dúvidas de que C (…) é pai de M L (…), ainda que de acordo com a presunção estabelecida nos termos do n.º 1 al. e) do artigo 1871°, n.º 1, do Código Civil, conforme depoimentos de:

            I (…) — sessão de 3 de Agosto: com início às 10:41:35 a 10:49:30, passagem 01:35 a 06:37;

            E (…) — sessão de 3 de Agosto: com início às 10:51:18 a 11:03:36 passagem 3:20 a 8;

            M (…) — sessão de 3 de Agosto: com início às 11:07:40 a 11:19:47, passagem 2:05 a 5:30.

            3ª - Existe erro na apreciação da prova, pois que provado está o justo receio e a paternidade, pelo que a requerente em toda a legitimidade para interpor este procedimento, bem como a acção principal que tem como objecto o reconhecimento da paternidade.

            4ª - A requerente, presumível filha do autor da herança (herdeira universal de C (…)s), tem legitimidade para intentar a acção principal, existindo entre a mesma e o procedimento cautelar uma relação de dependência ou conexão.           

            5ª - Da prova testemunhal não restam dúvidas relativamente à procedência da acção principal, tendo sido requerida prova pericial [exumação de cadáver para sujeição a exames de ADN].

            6ª - O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens, in casu, da acção de investigação de paternidade.

            7ª - No âmbito do arrolamento, o que determina e justifica o processo cautelar é o perigo da insatisfação do direito em consequência de mora na situação definitiva.

            8ª - Os únicos factos não provados em nada poderiam interferir na decisão a proferir pela Mm.ª Juíza do Tribunal “a quo”, pois nem era necessário para o êxito da mesma que a relação amorosa e de namoro testemunhada pelas 2ª, 3ª e 4ª testemunhas tenha durado mais de dois anos - foi referido pelas testemunhas que foi o único/primeiro namorado e que não a viam com outro homem; todas os viram juntos em condição de namorados, todas souberam da gravidez e todas atribuíram a paternidade da requerente a C (…).

            9ª - Entre os factos dados como provados e não provados existe uma discrepância.   10ª - Deu-se como facto assente que em data anterior ao nascimento da requerente, a mãe da requerente e C (…) mantiveram um relacionamento amoroso, mantendo relações sexuais entre os dois, conforme depoimento das referidas testemunhas, e que à mãe da requerente não era conhecido, na época, qualquer outro relacionamento amoroso.

            Perante estes factos e a prova testemunhal, não se entende como se dá como não provado na “alínea c)” que na sequência dos actos de cariz sexual mantidos entra a mãe da requerente e C (…) surgiu a gravidez da mãe da requerente. Se a mãe da requerente tinha unicamente este relacionamento amoroso, que saltava à vista de todos os habitantes de Figueiró e até da Bairrada, como poderia ter nascido a requerente?

            11ª - A sentença deveria ter sido preferida no sentido de julgar procedente o procedimento cautelar e, em consequência, decretado o arrolamento dos bens descritos nos art.ºs 32º, 45º, 46º e 47º da petição inicial.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil[2], com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8, aplicável ao caso vertente), colocam-se duas questões fundamentais: se a prova produzida em audiência implica diversa decisão de facto; se estão ou não demonstrados os requisitos do pretendido arrolamento.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como indiciariamente provado:

            a) A requerente nasceu a 14.12.1947, constando do seu assento de nascimento que a mesma é “filha de pai incógnito”.

            b) Durante a sua vida a requerente tentou saber junto da sua mãe e de familiares próximos qual a sua ascendência biológica por parte do pai.

            c) Segundo “falatório” na localidade de Figueiró dos Vinhos, o pretenso pai da requerente havia ido para Lisboa ou para África.

            d) Em data anterior ao nascimento da requerente, a mãe da requerente e C (…) mantiveram um relacionamento amoroso.

            e) À mãe da requerente não era conhecido, na época, qualquer outro relacionamento amoroso.

            f) C (…)faleceu no dia 01.10.2009, na Santa Casa da Misericórdia de Alhos Vedros.

            g) A requerente instaurou uma acção de investigação de paternidade contra a Herança Jacente de (…), à qual os presentes autos se encontram apensados.

            h) No dia 09.12.2009 foi lavrada a escritura de habilitação de herdeiros, por óbito de C (…).

            i) Do acervo hereditário fazem parte os seguintes bens:

            - Bem imóvel, sito na Rua ...., da freguesia 110632, artigo ....;

            - Contas bancárias na .....;

            - Aplicações existentes no I.G.C.P. - Instituto de Gestão de Tesouraria e do Crédito Público;

            - Apólices de Vida na Companhia de Seguros .....

            j) A requerida já requereu ”a emissão” das apólices de vida.

            k) A requerida já tentou proceder ao levantamento de certificados de aforro.

            2. O Tribunal recorrido julgou como indiciariamente não provado:

            a) A relação amorosa estabelecida entre a mãe da requerente e C (…) Dias durou mais de dois anos, tendo ambos mantido relações sexuais.

            b) O referido relacionamento teve início em finais de 1945 e perdurou até Dezembro de 1947.

            c) Na sequência dos actos de cariz sexual mantidos entre a mãe da requerente e C (…) surgiu a gravidez da mãe da requerente.

            Esta materialidade foi alegada, sobretudo, sob os itens 15º e 16º da petição inicial: “A data deste relacionamento amoroso teve início em finais de 1945, e perdurou até ao nascimento da Autora, até Dezembro de 1947, não tendo tido outro relacionamento amoroso” (15º); “Em consequência destes actos de cariz sexual, surgiu a gravidez da mãe da requerente” (16º).

            3. Entende a recorrente que a prova testemunhal produzida em audiência permite concluir que C (…) é seu pai, ainda que de acordo com a presunção estabelecida na alínea e) do n.º 1 do art.º 1871°, do Código Civil[3], pelo que houve erro na apreciação da prova por parte do tribunal a quo, que importa reparar.

            Sabemos que a alteração, pela Relação, da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, só pode verificar-se se ocorrer alguma das situações (excepcionais) contempladas no n.º 1 do art.º 712º e que são as seguintes: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º-B[4], a decisão com base neles proferida; b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.

No caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do número anterior, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados (n.º 2 do referido art.º).

No nosso direito processual civil acha-se consagrado o princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova de facto jurídico, qualquer formalidade especial, pois neste caso esta não pode ser dispensada (art.º 655º).

O princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções judiciais) vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento) (art.º 389º CC), da prova por inspecção (art.º 391º CC) e da prova por testemunhas (art.º 396º CC), sendo a prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom senso, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais.[5]

Aquele princípio situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.[6]

As provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência do facto[7], sendo que, nos termos do art.º 396º do CC, a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.

Daí que a Relação só possa alterar a decisão sobre a matéria de facto e anular a decisão, excepcionalmente, nas situações acima descritas.

Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção:

- Considerado, desde logo, o preâmbulo do DL 39/95, de 15.02[8], o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador[9].

- Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, maxime, os referidos princípios da livre apreciação da prova e da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência.

- O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância, a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.[10]

- O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.
     4. Procedeu-se à audição integral dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento.

            Afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que se justifica modificar a decisão de facto, atendendo ao que resulta dos depoimentos e às regras da experiência.

            Invocado o erro de julgamento da matéria de facto atentos os depoimentos das aludidas três testemunhas (as restantes não se pronunciaram directamente quanto à matéria em causa…), vejamos o que de relevante nos trouxeram tais testemunhos:

            (….)

            Daí que, quer pela prova testemunhal efectivamente produzida, quer atentas as regras da experiência no contexto que se deixa explicitado, se entenda dever acrescentar o seguinte facto aos indiciariamente apurados pelo Tribunal da 1ª instância:

            “l) – O referido relacionamento amoroso desenvolveu-se, pelo menos, durante vários meses, no período que antecedeu o nascimento da requerente, surgindo a gravidez da mãe da requerente na sequência de relações sexuais que esta manteve com o falecido C (....).”

            5. Nos termos do art.º 421º, havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles, sendo o arrolamento dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (art.º 421º).            

            O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos (art.º 422º, n.º 1).

            O requerente fará prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação. Se o direito relativo aos bens depender de acção proposta ou a propor, tem o requerente de convencer o tribunal da provável procedência do pedido correspondente. (art.ºs 423º, n.º 1 e 384º, n.º 1).

                 O Juiz ouvirá o requerido, excepto quando a audiência puser em risco sério o fim da providência (art.º 385º, n.º 1) e, produzidas as provas requeridas ou oficiosamente determinadas pelo Juiz (art.º 386º, n.º 1), a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão, de que o interesse do requerente corre risco sério (art.ºs 387º, n.º 1 e 423º, n.º 2).

            6. O arrolamento é uma medida cautelar de carácter conservatório. Apresenta-se, em geral, como medida destinada a assegurar a manutenção de bens litigiosos no período em que persistir a discussão da titularidade do direito no âmbito da acção principal de que o arrolamento é instrumental. Se uma pessoa tem ou pretende ter direito a determinados bens e mostra que certos factos ou circunstâncias fazem nascer o justo receio de que o detentor ou possuidor deles os extravie ou dissipe antes de estar judicialmente reconhecido, de forma definitiva, o seu direito aos mesmos bens, estamos perante a ocorrência que justifica o uso (...) do arrolamento.[11]

            Tendo em conta a latitude dos bens que podem constituir o seu objecto e o modo de execução da medida, o arrolamento assemelha-se ao arresto, do qual difere quanto à situação de periculum in mora que visa prevenir, pois que, em lugar do risco de perda da garantia patrimonial que o arresto visa esconjurar (art.º 406º, n.º 1), tende a eliminar ou a atenuar o perigo de extravio, de ocultação ou de dissipação de bens litigiosos.

            Tal como ocorre com a generalidade das providências não especificadas, também o arrolamento dispensa a formulação de um juízo seguro quanto à titularidade do direito, bastando que o tribunal, com base em factos que considere provados, se convença da sua existência, de acordo com um critério de verosimilhança ("probabilidade séria", segundo o art.º 387º, n.º 1), sendo que tratando-se de direitos de natureza potestativa, se exige adicionalmente a verificação da probabilidade de procedência da acção principal, nos termos do art.º 423º, n.º 1, solução justificada para evitar que o arrolamento seja posto ao serviço de pretensões manifestamente inviáveis, de pretensões claramente infundadas ou de pretensões que não apresentam probabilidade alguma de êxito.[12]

            7. Atento o descrito factualismo poder-se-á afirmar a elevada probabilidade da existência do direito em que se funda o arrolamento, invocado na acção principal, qual seja, que a requerente é filha do falecido C (…)[13] e, na qualidade de herdeira legítima (art.ºs 2131º, 2132º, 2133º, n.º 1, alínea a) e 2139º, do CC), tem interesse directo na conservação dos bens que integram o respectivo acervo hereditário, a arrolar, e que pretende pôr a coberto do risco de extravio ou dissipação.[14]

            Da materialidade apurada [maxime, II. 1, alíneas j) e k)] decorre também suficientemente indiciada a situação de perigo de extravio ou de dissipação dos bens, o justo receio de extravio ou dissipação dos bens cujo arrolamento se pretende obter[15].

            Concluindo: visto, por um lado, a provável procedência do pedido da acção principal (ao qual subjaz ou está normalmente associada a discussão em torno do direito a determinados bens materiais, tal como sucede no caso em apreço), por outro lado, que, sem a providência requerida, o interesse da requerente corre sério risco, e, por último, que o seu decretamento não deixará de conciliar todos os interesses em presença[16], não se vê razão para não atender a pretensão da requerente.


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III. Pelo exposto, acorda-se em dar provimento ao recurso, revogando-se a decisão impugnada e determinando-se o arrolamento dos bens indicados em II. 1. i) [itens 32º e 45º a 47º da petição inicial].

Custas conforme o disposto no art.º 453º, n.º 1, do CPC.


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Fonte Ramos ( Relator )
Carlos Querido
Emídio Costa

[1] A petição inicial foi completada/aperfeiçoada na sequência do despacho de fls. 25, que aqui se reproduz:

                “Vem a requerente intentar providência cautelar de arrolamento, invocando ser filha, não reconhecida do falecido C (…).

                Alega que propôs acção de reconhecimento de paternidade, sendo que, no caso, a procedência da presente providência depende do convencimento do Tribunal do sucesso da acção que se destina ao reconhecimento do direito de que a requerente se arroga.

                Nestes termos, deverá invocar os fundamentos daquela acção.

                Ora, perante um procedimento cautelar, não é expectável que sejam efectuados para já os exames de DNA destinados a comprovar com alguma segurança a relação de filiação que a requerente invoca, pelo que deverá a mesma, pelo menos lançar mão de alguma das presunções estabelecidas no art. 1871° do CC.

                Neste ponto, invoca a requerente que a sua mãe e o pretenso pai “iam para um barracão, passando horas juntos, tendo uma relação amorosa bastante forte e que durou mais de dois anos, tendo ambos tido relações sexuais”.

                Não alega, porém, em que altura tais relações ocorreram, sendo que o art. 1871°, n.° 1, al. e), do CC, requer que tais relações ocorram no período legal de concepção, sendo que tal não foi concretizado pela requerente.
                Nestes termos, convida-se a requerente para, em 10 dias, querendo, vir esclarecer o supra referido.”
[2] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[3] Segundo o referido normativo, a paternidade presume-se quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção.
     Refere-se no n.º 2 do mesmo art.º que a presunção (resultante de qualquer das cinco situações típicas descritas nas cinco alíneas do n.º 1) considera-se ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.

[4] Reza o art.° 685°-B do CPC que “Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa de recorrida.” (n.º 1) “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos (...) incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.” (n.º 2)
[5] Cf., de entre vários, o acórdão do STJ de 30.12.1977, in BMJ, 271º, 185.
[6] Vide J. Lebre de Freitas, e outros, CPC Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 635.
[7] Vide Antunes Varela, e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, pág. 455 e, designadamente, os acórdãos da RL de 20.4.1989 e de 19.11.1998, in CJ, XIV, 2, 143 e CJ, XXIII, 5, 97, respectivamente.
[8] Diploma que veio consagrar, na área do processo civil, a possibilidade da documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, assim se permitindo um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.

[9] Refere-se no preâmbulo do referido diploma: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.

Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.

    Cf., sobre a mesma problemática, entre outros, o acórdão do STJ de 11.7.2006-processo 06A2009, publicado no “site” da dgsi.

[10] Vide Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4ª edição, 2004, pág. 266.

    Refere o mesmo autor: “Além do mais, todos sabem que por muito esforço que possa ser feito na racionalização do processo decisório aquando da motivação da matéria de facto sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos. (...) Carecendo o Tribunal da Relação destes elementos coadjuvantes e necessários para que a justiça se faça, correm-se sérios riscos de a injustiça material advir da segunda decisão sobre a matéria de facto” (ibidem, pág. 267).

    Cf. ainda, entre outros, os acórdãos do STJ de 20.9.2005-processo 05A2007 e da RC de 13.01.2009-processo 4966/04.3TBLRA, publicados no “site” da dgsi, onde se pode ler: «De salientar (...) que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade. Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (...)”.

[11] Vide Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1981, págs. 104 e seguinte.
[12] Vide J. Lebre de Freitas, e outros, ob. e vol. cit., pág. 35; Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 113 e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume, 3ª edição, Almedina, 2006, págs. 275 e seguinte.
     Cf. ainda, entre outros, o acórdão da RL de 16.12.2003-processo 8877/2003-7, publicado no “site” da dgsi.
[13] Ainda que se considere que não há aqui que tecer especiais considerações sobre a actual discussão à volta da problemática do “prazo para a proposição da acção” de investigação da paternidade - eventualmente tratada e a tratar no âmbito dos autos principais (cf. art.ºs 1817º e 1873º do CC) -, sempre se dirá estarmos com aqueles que concluem pela existência de um direito fundamental (conhecimento da ascendência biológica por banda do investigante), personalíssimo e imprescritível.
     Cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 08.6.2010-processo 1847/08.5TVLSB-A.L1.S1 e de 21.9.2010-processo 495/04 – 3TBOR.C.1.S.1, publicados no “site” da dgsi.
[14] No acórdão invocado na fundamentação da sentença recorrida [acórdão da RE de 10.5.2007-processo 1046/07-3, publicado no “site” da dgsi] o progenitor do autor da acção de investigação de paternidade encontrava-se ainda vivo, pelo que era evidente a falta de legitimidade do requerente/filho para instaurar procedimento cautelar de arrolamento sobre os bens que constituíam o património do pretenso pai.

     Já quanto à demais argumentação do dito acórdão [nomeadamente, quando refere que “destinando-se a acção de investigação da paternidade ao reconhecimento do filho nascido ou concebido fora do matrimónio (art. 1847° do C. Civil), não faz parte do seu escopo a especificação ou a prova da titularidade de quaisquer bens”], e sendo certo que se teve aí em vista caso bem diverso do que aqui importa analisar e não foi sequer hipoteticamente considerado enquadramento fáctico susceptível de se aproximar do caso vertente, pensamos que a mesma - ainda que possa ser tida como ajustada no contexto de uma primeira e imediata abordagem teórica e formal - não determina a sua exclusão do domínio de aplicação do regime jurídico do arrolamento que se acha actualmente consagrado, perspectiva esta que se considera reforçada pela evolução e vicissitudes da legislação, doutrina e jurisprudência do século passado.

     Na verdade, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, afigura-se-nos que outra deverá ser a posição a adoptar em situações de procedimento cautelar de arrolamento por apenso a acção de investigação de paternidade proposta depois da morte do pretenso pai, desde que se demonstre o interesse na conservação dos bens e o justo receio (de extravio, ocultação ou dissipação dos mesmos).

     Assim, reportando-nos ao caso sub judice, apesar de ser eventual o direito da requerente aos bens, o interesse na conservação deles é inegável, face à materialidade indiciariamente provada, sendo que, caso não fosse lícito requerer o arrolamento como acto preparatório ou incidente da acção de investigação de paternidade, podia suceder que, vencida esta acção, quando se apresentasse a reclamar a entrega dos bens da herança paterna já nada encontrasse em poder da demandada.
     Este entendimento foi vertido no art.º 431º, parágrafo 2º, do CPC de 1939, exigindo-se, tão-somente, que o requerente do arrolamento, além dos requisitos gerais (interesse na conservação dos bens e justo receio de extravio ou dissipação), fizesse prova da viabilidade da acção, isto é, demonstrasse que a acção tinha probabilidades de sucesso, que podia proceder.
     [Vide, sobre esta problemática, Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., págs. 102 a 106 e 113 e seguintes, que nos elucida a propósito da aludida evolução legislativa, doutrinal e jurisprudencial e que assim discorria à luz do CPC de 1939, e J. Lebre de Freitas, ob. e vol. cit., págs. 157 e seguintes].
     Pensamos, pois, face ao preceituado no art.º 423º do CPC vigente (com uma redacção/formulação mais abstracta ou menos concretizadora que a do dito normativo do Código de 1939), que estamos perante uma disposição com um campo de aplicação similar ao daquele art.º do CPC de 1939, mormente estando em causa procedimento cautelar de arrolamento por apenso a acção de investigação de paternidade proposta depois da morte do pretenso pai, no assinalado enquadramento fáctico, não se vendo quaisquer razões de ordem substantiva ou material para que assim o não seja.

[15] Note-se que no caso vertente, atento o alegado na petição inicial, foi dispensada a audição da requerida - por se considerar que poderia colocar em risco sério o fim da providência (cf. fls. 36 e art.º 385º, n.º 1).
[16] Vide, a propósito, Alberto dos Reis, ob. e vol. cit., pág. 124.