Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1/14.1T8VLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL
CONHECIMENTO DA MATÉRIA DE FACTO PELA RELAÇÃO
RESPONSÁVEL PELA INFRACÇÃO ESTRADAL
Data do Acordão: 10/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CONTRAORDENACIONAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 66.º E 75.º DO RGCOC; ARTS. 135.º E 171.º DO CE
Sumário: I - Em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do R.G.C.O. .
II - No caso em apreço, não tendo os agentes de autoridade identificado o autor da infracção - excesso de velocidade -, o auto foi levantado contra o arguido por o veículo se encontrar registado em seu nome.

III - Tem-se entendido que a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo resulta de uma presunção que apenas pode ser ilidida quando se provar a utilização abusiva do veículo ou for identificado o condutor nos termos legais.

IV - A presunção em causa pode ser ilidida na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa.

V - O titular do documento de identificação do veículo, apesar de não ter oportunamente identificado o condutor, não fica inibido de, em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, invocar e provar que não era ele o condutor do veículo no momento da infracção, logrando, desse modo, afastar a presunção legal.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I – Relatório

No recurso de contra-ordenação n.º 1/14.1T8VLF, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – V. N. Foz Côa – Inst. Local – Sec. Comp. Gen. – J1, por sentença proferida em 17/3/2015, depositada no mesmo dia, foi decidido julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido A... e manter a decisão da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária que o condenou pela prática da contra-ordenação prevista no artigo 28.º, n.º 1, b) do Código da Estrada e punida pelos artigos 27.º, n.º 2, a), 28.º, n.º 5, 138.º e 145.º, b) do mesmo diploma, na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 (trinta) dias, suspensa na sua execução pelo período de 180 (cento e oitenta) dias.

Inconformado com a decisão, o arguido dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, retirando da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«1 - A decisão recorrida é nula porquanto, salvo o devido respeito, não conheceu da questão principal que fora colocada pelo arguido, relativa à tempestividade da impugnação em causa nos termos do douto Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/2009, de 4-5-2009, violando assim o artº 379º c), do C.P.P. ou,

2 - A não se entender assim, a decisão recorrida, padece de errada fundamentação ou erro de julgamento, porquanto, ao invocar o artº 155º do Código da Estrada e respectiva jurisprudência consentânea, invocou e fundamentou-se em lei revogada, bem como respectiva jurisprudência ultrapassada e proibida, violando a actual jurisprudência obrigatória, firmada e uniforme do referido Acórdão Constitucional.

3 - A decisão recorrida redundou, assim, num qui pro quo que não relevou a prova do arguido por considerar que, por presunção inilidível, já não podia fazer a prova do não cometimento da infracção em causa, decaindo no absurdo de continuar condenado quem não a praticou.

4 - O arguido, só quando recebeu a carta de notificação da decisão de inibição de conduzir, depois de paga a coima, é que estranhou "tal segunda carta para a mesma multa" e, consequentemente, agiu em conformidade, defendendo-se da imputação de infracção que não cometera, sendo que,

5 - Salvo o devido respeito, a forma de notificação do arguido ou qualquer declaratário normal, para pagamento da colma e advertência de sanção acessória, não é própria para dar efectivo e eficaz conhecimento do seu conteúdo, ex vi da utilização de abreviaturas e expressões ininteligíveis e em formato reduzido e inferior ao normal.

6 - Todos os ditos fundamentos pretensamente relevantes da ora decisão recorrida são anteriores e estão ultrapassados face aos fundamentos ponderados na dita e douta decisão do Tribunal Constitucional, pelo que, invoca-los na decisão recorrida é manifestamente uma afronta violadora da força obrigatória geral de douta jurisprudência obrigatória, firmada e uniforme e/ou a melhoria da aplicação do direito.

7 - Deve assim a decisão recorrida ser alterada ou anulada nos termos do artigo 75º do Regime Geral das contra-ordenações e em conformidade com a douta jurisprudência obrigatória, firmada e uniforme do Tribunal Constitucional referida no sentido do conhecimento e procedência da pretensão do arguido.

8 - Afinal, o arguido está em tempo de reclamar clemência para a sua inocência e JUSTIÇA!».

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O Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.

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Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, acompanhando a resposta apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder.

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No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.

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Foram colhidos os vistos e realizou-se a conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão recorrida configura a factualidade provada e não provada, assim como a respectiva motivação da seguinte forma (transcrição):

«Dos factos provados

6. Resultam provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

1) No dia 6 de Abril de 2012, pelas 11h22m, no km 84 do IP2, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com matrícula Y (...) , tendo circulado á velocidade de 134km/h deduzido o valor do erro máximo admissível, correspondente á velocidade registada de 127km/h, sendo a velocidade permitida naquele local de 90km/h.

2) A velocidade foi verificada através de Radar da Marca Multanova, modelo 6F-MR-6FD, n.º 848.

3) O arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado.

4) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

5) O arguido procedeu ao pagamento voluntário do valor da coima.

6) Do registo individual de condutor do arguido não constam quaisquer antecedentes contra-ordenacionais.

      

Dos factos não provados

7. Não se logrou provar nenhum outro facto, com relevo para a boa decisão da causa, ou que esteja em contradição com os dados como provados.

a) Que no dia 6 de Abril de 2012, pelas 11h22m, no km 84 do IP2, B... conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com matrícula Y (...) , tendo circulado á velocidade de 134km/h deduzido o valor do erro máximo admissível, correspondente á velocidade registada de 127km/h, sendo a velocidade permitida naquele local de 90km/h.

exame crítico da prova

8. O Tribunal norteou a sua convicção quanto à matéria de facto provada com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência.

Desde logo, o Tribunal atendeu à prova documental que consta dos autos, porque inequívoca e pertinente para a decisão, e porque quer a autenticidade, quer a veracidade do seu conteúdo, de nenhum modo foram postas em causa pelos sujeitos processuais, designadamente o auto de contra-ordenação de fls. 1, a prova fotográfica de fls. 2, a notificação de fls. 7 e 7v o pagamento da coima a fls. 21 e ainda o registo individual do condutor de fls. 23.

O Tribunal deu a restante matéria como não provada, porquanto as declarações da testemunha B... , filha do arguido, não são suficientes, nesta fase para afastar a presunção que impende sobre o proprietário do veículo e respectivos documentos de identificação. Decorrido o prazo previsto no artigo 171.º do Código da Estrada, é facto que surge intempestivamente, e ao qual não se pode atender.»

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2. Apreciando

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.

Como resulta do disposto nos artigos 66.º e 75.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10 (doravante designado de R.G.C.O., com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17/10, pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/9, pelo Decreto-Lei n.º 323/2001, de 17/12 e pela Lei n.º 109/2001, de 24/12), em matéria de recurso de decisões relativas a processos por contra-ordenações, a 2.ª instância funciona como tribunal de revista e como última instância.

Com efeito, o n.º 1 do mencionado artigo 75.º estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá de matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.

Assim, está efectivamente limitado o poder de cognição deste tribunal à matéria de direito, funcionando o Tribunal da Relação como Tribunal de revista ampliada, ou seja, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por força do disposto nos artigos 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do R.G.C.O., já que os preceitos reguladores do processo criminal constituem direito subsidiário do processo contra-ordenacional.

Antes de mais, ainda que com um diferente enquadramento, importa conhecer da questão suscitada pelo recorrente, ao alegar que a decisão recorrida não conheceu da questão principal por si colocada relativa à tempestividade da impugnação em causa, nos termos do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2009, de 18/3, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 4/5.

No recurso de impugnação judicial da decisão administrativa alegou o arguido que está em tempo de apresentar a sua defesa relativamente à existência da infracção em causa e respectiva sanção acessória de inibição de conduzir, invocando o citado acórdão.

Na sentença recorrida, na motivação de facto, considerou-se que, decorrido o prazo previsto no artigo 171.º do Código da Estrada, as declarações da testemunha B... , filha do arguido, não são suficientes, nesta fase, para afastar a presunção que impende sobre o proprietário do veículo e respectivos documentos de identificação, sendo facto que surge intempestivamente e ao qual não se pode atender.

O artigo 135.º, n.º 3 do Código da Estrada (com a redacção introduzida pela Lei n.º 72/2013, de 3/9) estabelece que a responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:

«a) Condutor do veículo, relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução;

b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às in-fracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor; (...)»

Por sua vez, preceitua o artigo 171.º do mesmo diploma:

«1 - A identificação do arguido deve ser efectuada através da indicação de:

a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social;

b) Domicílio fiscal;

c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor e número de identificação fiscal;

d) Número do título de condução e respectivo serviço emissor;

e) (Revogada.)

f) Número e identificação do documento que titula o exercício da actividade, no âmbito da qual a infracção foi praticada.

2 - Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.

3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.

4 - O processo referido no n.º 2 é arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo.

5 - Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa colectiva, deve esta ser notificada para, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, ou, no caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, do locatário, com todos os elementos constantes do n.º 1 sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2.

6 - A pessoa colectiva, sempre que seja notificada para tal, deve, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação de quem conduzia o veículo no momento da prática da infracção, indicando todos os elementos constantes do n.º 1, sob pena do processo correr contra a pessoa colectiva.

7 - No caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, quando for identificado o locatário, é este notificado para proceder à identificação do condutor, nos termos do número anterior, sob pena de o processo correr contra ele.

8 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado nos termos do n.º 2 do artigo 4.º»

No caso em apreço, não tendo os agentes de autoridade identificado o autor da infracção - excesso de velocidade -, o auto foi levantado contra o arguido por o veículo se encontrar registado em seu nome, sendo que, como resulta dos autos, o arguido não procedeu, no prazo legal, à identificação do condutor do veículo.

Não sendo possível identificar o condutor, a responsabilidade pelas infracções que respeitem ao exercício da condução recai no «titular do documento de identificação do veículo» nos termos da alínea b) do n.º 3 do citado artigo 135.º.

Tem-se entendido que a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo resulta de uma presunção que apenas pode ser ilidida quando se provar a utilização abusiva do veículo ou for identificado o condutor nos termos legais.

Acerca de disposição semelhante constante do artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada, na versão anterior ao Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23/2, o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de dever ser interpretada como estabelecendo uma presunção ilidível, realçando-se que a existência de presunções, mesmo em direito penal (e por maioria de razão em direito contra-ordenacional), não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis([1]).

A questão que agora se coloca é a de saber em que prazo e condições pode ser ilidida a presunção de forma a afastar a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo.

A decisão recorrida aderiu à corrente jurisprudencial seguida nos Acórdãos desta Relação de 6/3/2002 e de 12/12/2007, segundo a qual, o titular do documento de identificação do veículo que, notificado expressamente para os termos do artigo 171.º do Código da Estrada, não tenha identificado o condutor no prazo que lhe foi fixado, já não o poderá fazer na fase de impugnação judicial da decisão administrativa de aplicação de coima e sanção acessória([2]).

Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que assiste razão ao recorrente quando sustenta que está em tempo de apresentar a sua defesa relativamente à existência da infracção em causa, isto é, perfilhamos o entendimento que admite que a presunção em causa seja ilidida na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa([3]).

Assim, o titular do documento de identificação do veículo, apesar de não ter oportunamente identificado o condutor, não fica inibido de, em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, invocar e provar que não era ele o condutor do veículo no momento da infracção, logrando, desse modo, afastar a presunção legal.

Tratando-se de uma presunção juris tantum e, portanto, ilidível mediante prova em contrário, torna-se necessário alegar e provar que o autor da contra-ordenação é um determinado cidadão, devidamente identificado, e não o «titular do documento de identificação do veículo».

Por isso, «(...) não bastará ao proprietário do veículo que foi utilizado na prática de determinada contra-ordenação, alegar e mesmo provar que não era ele o condutor do veículo na ocasião. Necessário será que identifique quem era o condutor do veículo nessa mesma ocasião, e se essa indicação só for feita em sede de impugnação judicial, necessário será que faça prova de tal facto»([4]).

Sem que esteja não só provado que era outro o condutor do veículo, mas também a sua correcta identificação, a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo subsiste por força do estatuído no artigo 171.º, n.º 2 do Código da Estrada.

Este entendimento, que se figura mais conforme aos ditames da Constituição, saiu reforçado com o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/2009, de 18 de Março, o qual declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, nºs 1 e 5 e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 175.º, n.º 4 do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3/5, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23/2, interpretada no sentido de que, paga voluntariamente a coima, ao arguido não é consentido, na fase de impugnação judicial da decisão administrativa que aplicou a sanção acessória de inibição de conduzir, discutir a existência da infracção.

Como se salienta no referido aresto, não se questionando a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria sancionatória, estabelecer presunções, fazendo presumir a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, é intolerável a inidibilidade desta presunção, ao impedir-se que o arguido faça prova, perante o tribunal, da sua irresponsabilidade, acrescentando-se que, ainda que sejam menos intensas as preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o processo criminal, aquelas não podem, contudo, ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efectividade da tutela jurisdicional e as exigências de um processo equitativo.

Daí que, no caso em apreço, o arguido possa discutir que o veículo automóvel em causa era conduzido por outrem e que, consequentemente, este é o autor da contraordenação, o que lhe foi vedado ao considerar-se que o arguido ficou privado de discutir a existência da infracção por ter decorrido o prazo previsto no artigo 171.º do Código de Estrada.

Sendo entendimento deste tribunal de recurso que o arguido pode, em sede de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, discutir a existência da infracção, o depoimento da testemunha B... devia ter sido valorado, conjuntamente com os demais meios de prova produzidos, à luz do princípio da livre apreciação da prova, o que não sucedeu, sendo certo que da ponderação que dele tivesse sido feita, independentemente do seu sentido, poderia resultar, eventualmente, uma diferente valoração probatória e, consequentemente, um resultado diverso no que respeita à prova da responsabilidade da contraordenação imputada ao arguido.

A circunstância de não ter integrado o processo de formação da convicção do tribunal a quo um meio de prova validamente adquirido para o processo, no contexto dos autos, não constitui omissão de pronúncia, nem violação do dever de fundamentação da sentença – a sentença recorrida apreciou a defesa apresentada pelo arguido e fundamentou a sua posição quanto à desconsideração do depoimento da testemunha – devendo assim concluir-se pelo cometimento de uma irregularidade que pode ter afectado o valor do acto praticado, impondo-se, por isso, a sua reparação, nos termos do n.º 2 do artigo 123.º do Código de Processo Penal. 

Por conseguinte, deve ser declarada a invalidade e consequente anulação da sentença recorrida e determinada a elaboração de uma nova decisão pela mesma Sra. Juíza que proceda à valoração, independentemente do sentido, do depoimento da testemunha B... no processo de formação da sua convicção de facto. 

Em consequência fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso do arguido (artigo 660.º, n.º 2 do CPC ex-vi artigo 4.º do CPP).

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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em anular a sentença recorrida e determinar a elaboração de uma nova sentença, pela mesma Sra. Juíza, na qual seja valorado, no processo de formação da sua convicção de facto, e independentemente do sentido da valoração, o depoimento da testemunha B... .

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Sem tributação.

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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)

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Coimbra, 7 de Outubro de 2015

(Fernando Chaves - relator)

(Orlando Gonçalves - adjunto)


[1] - Cfr. Acórdão n.º 276/04, de 20.04.2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[2] - Acórdão de 6/3/2002, publicado na CJ, Ano XVIII, tomo II, pág. 37 e Acórdão de 12/12/2007, Proc.º n.º  213/06.1TBMMV.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.
[3] - Esta é a posição seguida nos Acórdãos desta Relação de 5/7/2006, Proc.º n.º 1511/06 e de 20/9/2006, Proc.º 1302/06, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jtrc.
[4] - Acórdão da Relação de Coimbra de 5/7/2006, Proc. n.º 1511/06, já citado.