Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
22/15.7PACVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: CÚMULO JURÍDICO
PENAS DE DIFERENTE ESPÉCIE
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (INSTÂNCIA LOCAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.77.º DO CP
Sumário: I - Substituída a pena de prisão por pena de multa, a pena principal continua a ser a pena de prisão.
II - Sendo aplicadas ao arguido duas penas: a pena de prisão (como pena principal pelo crime de ofensa à integridade física) e a pena de multa (como pena principal pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez), foram aplicadas duas penas de distinta natureza.

III - Sendo estas penas de distinta natureza entre elas não poderá ser realizado cúmulo jurídico, por violação do n.º 3 do art.77.º do CP.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

No processo comum acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou procedente a acusação e em consequência condenou o arguido A... como autor material e em concurso real de:

a) Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292 n.º 1 do C. Penal , na pena de 72 dias de multa;

b) Um crime de ofensas à integridade física qualificada previsto e punido pelo art.º 132/2/l, 143/145/1/a do C. Penal na pena de seis meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa ou seja 180 dias.

Em cúmulo, condena-se o arguido na pena única de 216 dias de multa à taxa diária de 6 euros.

c) Mais o condenou na proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses, (art.º 69 n.º 1 al. a) do Código Penal) devendo entregar a carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença (Cfr. art.º 69 n.º 3 do Código Penal) com a advertência de, não o fazendo, incorrer na prática de crime de desobediência.

Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, sendo que na respectiva motivação conclui:

1 - Por sentença proferida em 02/10/2015, o Tribunal a quo procedeu ao cúmulo jurídico da pena de 180 dias de multa - aplicada em substituição da pena de seis meses de prisão - e da pena de 72 dias de multa, na pena única de 216 dias de multa, nos termos do disposto no art.77º, nº 3 do Código Penal.

2 - É desta decisão de realização de cúmulo jurídico de que ora se recorre, porquanto, em nosso entendimento, no será de efectuar cúmulo das penas aplicadas ao arguido, como efectuado pelo Tribunal a quo, por clara violação do disposto no art.77º, nº 3 do Código Penal.

3 - De acordo com o nº 3 do art.77º do Código Penal, se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4 - No caso subjudice ao arguido foram aplicadas duas penas de distinta natureza: a pena de prisão (como pena principal pelo crime de ofensa à integridade física qualificada), que foi substituída por 180 dias de multa, e a pena de multa (como pena principal pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez).

5 - Sendo as penas aplicadas ao arguido de distinta natureza, deverá o arguido ser condenado em cúmulo material de penas, nos termos do citado do nº 3 do art.77º do Código Penal.

6 - Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão datado de 12/03/2014, onde estipulou para se proceder ao cúmulo jurídico de penas é necessário que estas, além de estarem em concurso, sejam da mesma espécie. Quando pela prática de um dos crimes em concurso o tribunal aplique pena de multa como pena principal e pela prática de outro ou outros crimes, aplique pena de prisão ou de multa em substituição da pena de prisão, as penas em concurso devem ser cumuladas materialmente, pois têm diferente natureza. (..) Quando o nº 3 do artº 77º do Cód. Penal manda aplicar os critérios referidos nos números anteriores refere-se obviamente ao cúmulo que houver de ser feito entre cada uma das diferentes espécies de penas - ou seja, no cúmulo jurídico de diversas penas de multa e no cúmulo jurídico de diversas penas de prisão, o juiz deverá observar os critérios definidos nos nº s 1 e 2 do mesmo preceito. (...)

7- Sendo a pena principal (prisão) substituída por outra (multa) - designada por pena substitutiva - verificando-se os pressupostos para a realização de cúmulo jurídico, o que prevalecerá para este efeito não são a penas de substituição, mas sim as penas principais aplicadas.

8 - A sentença de que ora se recorre viola o disposto no art.77º, nº 3 do Código Penal, pelo que deverá ser revogada, e substituída por outra, que não proceda ao cúmulo jurídico entre as penas - de diferente natureza - aplicadas ao arguido, mas antes condene o arguido nas penas que lhe foram aplicadas, em cúmulo material.

Termos em que, e em suma, deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que condene o arguido nas penas que lhe foram aplicadas, em cúmulo material.

Este é o entendimento que perfilhamos.

Vossas Excelências, porém, farão a costumada JUSTIÇA!

   O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, pela procedência do recurso.

 Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso é restrito à matéria de direito, sendo que o acórdão proferido não padece de qualquer um dos vícios constantes do nº 2 do art 410 do Código Processo Penal, nem o processo enferma de quaisquer nulidades.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:

a) No dia 05/07/2015, pelas 06,30 horas, na Av.ª Frei Heitor Pinto, Covilhã, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, matrícula (...)LR, quando foi fiscalizado.

b) Submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue, efectuado na esquadra da PSP, Covilhã verificou-se que o arguido conduzia com uma taxa de álcool de pelo menos 1, 919 grs./l;

c) Ao tomar conhecimento da sua situação de detido, adoptou uma atitude agressiva, ao mesmo tempo que prendia abandonar as instalações policias, esmurrou no peito o Sr. Agente da PSP D... que se intrometeu no seu caminho de fuga;

d) O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que não lhe era permitida a condução sob a influência de álcool, conduzindo, apesar de tudo, o seu veículo nas condições descritas;

e) O arguido agiu como descrito em c)de forma voluntária, consciente e com intenção de sair da esquadra, embora sabendo que para o fazer teria que afastar o agente policial, o que fez, esmurrando-o no peito.

f) O arguido deslocou-se ao CHCB, tendo-o sido observado traumatismo no punho esquerdo e dor na apófise do rádio do grande extensor do punho – tendão.

g) O arguido é militar , auferindo 580 euros mensais;

h) Não tem antecedentes criminais
*

Não provado:

a. O arguido tenha praticado os factos descritos com intenção directa de agredir o agente da PSP

b. Não foi facultado ao arguido qualquer talão demonstrativo do resultado do teste de pesquisa de álcool no sangue;

c. Todavia, foi-lhe dito ser esse o resultado, pelo que declarou, de imediato, querer a efectuar contraprova

d. O agente respondeu-lhe, de imediato, dizendo que estava cansado de ali estar, que queria ir para casa e que era melhor o arguido assinar as notificações que lhe estava a dar, porque não estava para o aturar.

e. Perante a insistência do arguido pela contra-prova o agente deu-lhe um murro na barriga e atirou-o contra uma cadeira, na qual o obrigou a sentar-se; de seguida atitou-o ao chão, obrigando-o a ficar de barriga para baixo e algemou-o com as mãos atrás das costas.

f. Só quando o arguido disse que assinava tudo e que não apresentava queixa é que foi desalgemado;
*

Motivação:

O arguido confessou a condução sob o efeito de álcool; sendo que, tal factualidade colhe-se, ainda, do talão emitido pelo equipamento onde foi efectuado o teste de fls. 4, certificado de verificação de fls. 5; mais se valoraram as suas declarações sobre a sua situação profissional e vencimento;

Sobre toda a sequência da fiscalização valoraram-se, ainda, os depoimentos do agente da polícia B... que, de forma clara, relatou que o arguido fez o teste, assinou o talão e declarou prescindir da contraprova; que foi, de seguida elaborado o expediente que o arguido assinou; que até aí tudo decorreu normalmente; que o arguido, entretanto, fez uma chamada telefónica; após, tudo começou a correr mal; ou seja, começou a dizer, ao contrário do anteriormente declarado e aceite, que queria a contra-prova; foi-lhe explicado que não o não podia fazer; o arguido tornou- mais agressivo, começou a bater nas cadeiras, tendo, de seguida dado um murro no peito ao seu colega C... : que, de seguida, porque o arguido quisesse abandonar as instalações da esquadra o algemaram

A testemunha C... , explicou que no âmbito de operação programada , foi fiscalizado o veículo conduzido pelo arguido; que este fez, no local, teste de despistagem; tendo acusado álcool no sangue foi conduzido à Esquadra; que o arguido fez o teste, aceitou o resultado declarando não pretender contra-prova; assinou as notificações; que depois disso começou a dizer querer contraprova; foi-lhe explicado que não podia; Ficou exaltado; começou a dirigir-se para a porta; a testemunha colocou-se entre o arguido e a porta; foi nessa altura que o arguido o empurrou; Pensa que lhe deu um murro não querendo aleijá-lo antes fugir; A intenção seria desviá-lo para poder fugir, não de o agredir;

A testemunha E... disse não ter visto o arguido ser agredido, antes com o sue depoimento reforçou os prestados pelos Sr. Agentes ao relatar que o arguido estava exaltado; não obedecia às ordens do agente; recusava sentar-se; o arguido foi algemado; que o viu no chão;

Face a tais depoimentos e sequência de actos ilustrados nos documentos de fls. 5 e 6, não se valoraram as declarações do arguido de ter agredido pelo agente, sendo que as lesões apresentadas são compatíveis com o facto de ter sido algemado e, ainda, não provada a restante factualidade alegada.

As restantes testemunhas nada sabiam dos factos.

Com efeito, testemunha H..., disse nada ter presenciado pro ter ficado a aguarda no exterior da Esquadra; igualmente a testemunha F... , disse não assistiu a nada; a testemunha G... apenas referiu ter ouvido discussão, nada mais sabendo.

Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questão a decidir:

- Se houve violação do disposto no artº 77º nº 3 do Cod. Penal;

Após a realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal a quo condenou o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artº.s 143, nº l, 145, nº s 1 e 2, por referência ao disposto no art.132, nº 2, al. l) todos do Código Penal, na pena de seis meses de prisão, que substituiu por 180 dias de multa.

Mais condenou, o Tribunal a quo, o arguido na pena de 72 dias de multa, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo art.292º, nº 1, e 69, nº 1, al. a) todos do Código Penal.

O Tribunal “a quo” ao abrigo do disposto no art.77º do Código Penal, efectuou cúmulo jurídico das duas penas aplicadas, condenando o arguido na pena única de 216 dias multa, à taxa diária de 6,00€.

Dispõe o art.77º, nº 1 do Código Penal que, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

E o nº 3 dispõe que se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

O Tribunal a quo condenou o arguido, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo art.143, nº1 e 145, nº 1, al.a) e nº 2, por referência ao disposto no art.132º, nº 2, al. l), todos do Código Penal, na pena de seis meses de prisão.

No entanto, considerando o disposto no art.43º do Código Penal e ponderando a condição pessoal do arguido, o Tribunal a quo decidiu, substituir a pena de prisão por pena de multa. Significa, portanto, que a pena principal no que respeita ao crime de ofensa à integridade física qualificada é a pena de prisão.

No que respeita ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, o tribunal “a quo" decidiu condená-lo na pena de 72 dias de multa.

Portanto, ao arguido foram aplicadas duas penas de distinta natureza: a pena de prisão (como pena principal pelo crime de ofensa à integridade física) e a pena de multa (como pena principal pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez).

Assim, sendo estas penas de distinta natureza entre elas não poderá ser realizado cúmulo jurídico como o fez o Tribunal a quo, por violação do nº 3 do art.77º do Código Penal.

A circunstância de o Tribunal a quo ter substituído a pena de prisão por pena de multa, não transforma a pena de multa em pena principal - mantendo esta a sua condição de pena de substituição - e por isso não permite o cúmulo jurídico das duas penas - por serem de distinta natureza.

Portanto, uma vez que estamos perante penas de espécies diferentes as mesmas não podem ser objecto de cúmulo jurídico entre si. Tal resulta do nº 3 do artº 77  do Cod Penal.

Como refere o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque «Em caso de concurso de crimes punidos com penas de natureza diversa, a diferente natureza das mesmas mantém-se na pena única. Assim, havendo concurso de crimes punidos com pena de prisão e crimes punidos com pena de multa ou concurso de crimes punidos com pena de prisão e crimes punidos com pena de multa em cumulação com pena de prisão, ou concurso de crimes punidos com pena de prisão e crimes punidos com pena de prisão subsidiária resultante de multa não paga nem executada, verifica-se uma verdadeira cumulação material das penas, mantendo-se autonomamente as penas de multa, de multa em cumulação com prisão e de prisão subsidiária da multa, o que tem particular relevância prática para efeitos da extinção da pena de multa pelo pagamento (apontando já neste sentido, Cavaleiro de Ferreira, 198: 160). Portanto, as penas de multa são sempre acumuladas materialmente com a de prisão e quando não seja paga a pena de multa, a execução da prisão em que venha a ser convertida, seguir-se-á à execução da prisão directamente aplicada.»

Por conseguinte, para se proceder ao cúmulo jurídico de penas é necessário que estas além de estarem em concurso sejam da mesma espécie.

Do exposto julga-se procedente o recurso e, em consequência, condena-se o arguido, A... , como autor material e em concurso real de:

a) Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art.º 292 n.º 1 do C. Penal, na pena de 72 dias de multa;

b) Um crime de ofensas à integridade física qualificada previsto e punido pelo art.º 132/2/l, 143/145/1/a do C. Penal na pena de seis meses de prisão que se substitui por igual tempo de multa ou seja 180 dias.

Em cúmulo material, condena-se o arguido na pena única de 252 dias de multa à taxa diária de 6 euros.

No mais mantém-se a decisão recorrida.

Sem custas.

Coimbra, 27-04-2016

(Alice Santos - relatora)

(Abílio Ramalho - adjunto)