Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1931/06.0TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
CADUCIDADE DO DIREITO
ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 3º DA LEI Nº 14/2009, DE 01/04; AC. DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Nº 23/2006, DE 10/01.
Sumário: I – Em consequência do Ac. do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10/01, publicado no D.R. nº 28, Série I-A, de 08/02/2006, no qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artº 1817º do C. Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 16º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, todos da Constituição, qualquer pessoa passou a poder exercitar a todo o tempo, durante toda a sua vida, o direito a ver judicialmente reconhecida a sua paternidade, desde que essa acção tenha sido instaurada até à data de entrada em vigor da Lei nº 14/2009, de 01/04.

II – Deve entender-se como inconstitucional a norma constante do artº 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artº 1817º, nº 1 do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código.

III - Apesar da entrada em vigor da citada Lei nº 14/2009, de 01/04, na pendência de uma acção de investigação da paternidade, alterando (essa Lei) a redacção do artº 1817º do C. Civil (em cujo nº 1 se passou a dispor que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”- dispositivo aplicável às acções de investigação da paternidade, por força do artº 1873º C. Civil.) e com dispositivo (artº 3º) a mandar aplicá-la às acções então pendentes (seu artº 3º), deve pelo menos entender-se que o citado artº 3º da Lei nº 14/2009 é materialmente inconstitucional.

IV - A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas no pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento do Ac. Tribunal Constitucional nº 23/2006.

V – Tendo ficado provado que o Réu frequentou a casa da mãe do aqui autor antes do nascimento deste e que tiveram relações sexuais entre ambos, com cópula completa, no período dito de legal concepção do autor, em consequência do que veio a nascer o aqui autor, presume-se a paternidade do Réu em relação ao Autor, nos termos do artº 1871º, al. e) do C. Civil (na sua redacção decorrente da Lei nº 21/98, de 12/05), disposição segundo a qual “a paternidade se presume quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção”, presunção esta que apenas se considera ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado (nº 2 do citado artº 1871º), o que não é manifestamente o caso.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

No Tribunal Judicial da Comarca de Pombal, A…, residente em Rua de …, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra G…, residente na Rua da …, pedindo que o Réu seja condenado a reconhecer a sua paternidade em relação ao Autor.

Para tanto e muito em resumo alega que o Réu é o seu pai, apesar de este se recusar a aceitar esse facto, pois que o A. nasceu do relacionamento sexual ocorrido entre a sua mãe, J… (já falecida em 19/06/1984) e o Réu, facto de que só teve conhecimento no ano de 2006, por tal lhe ter sido então dito por terceira pessoa.

Que a mãe do A., entre os meses de Fevereiro e de Outubro de 1952, juntamente com outras mulheres e homens de todo o país, trabalhou nas campanhas da apanha e plantação de arroz que aconteciam nas terras baixas do rio Tejo, mais propriamente nos arredores de Vila Franca de Xira, onde também o Réu trabalhava.

Que ambos trabalharam na mesma plantação, onde então se conheceram e desenvolveram um relacionamento amoroso, durante o qual tiveram relações sexuais um com o outro, de forma reiterada, o que era do conhecimento de todos quantos então aí trabalhavam.

Que desse trato sexual nasceu o Autor, em 28/02/1953, pelo que é filho do Réu, o qual reconheceu, na ocasião, o Autor como seu filho, perante amigos dele.

Porém, sempre o Réu se eximiu a assumir a sua paternidade relativamente ao Autor.

Que ao A. sempre foi dito, por sua mãe, que o pai havia morrido, razão pela qual o A. nunca antes fez qualquer diligência no sentido de saber quem era o seu pai, tendo apenas em 2006 sabido que o seu pai – o Réu – estava vivo e quem era/é, o que lhe foi dito por um idoso da terra, em conversa então tida entre ambos e a quem o Réu confidenciou ser pai do Autor.

Razões pelas quais instaura a presente acção, já que o Réu continua a não querer assumir a sua paternidade em relação ao A..


II 

Citado o Réu na sua pessoa, conforme fls. 20 a 27, não foi por ele apresentada contestação.


III

Foi, de seguida, proferido despacho saneador, no qual foi reconhecida a regularidade processual da causa, sem nulidades nem excepções dilatórias, conforme fls. 30.

Não se procedeu à selecção da matéria de facto alegada pelo Autor, devido à não apresentação de contestação – ver fls. 31.

Pelo Autor foi então requerida a realização de um teste hematológico, de compatibilidade, a realizar ao A. e ao Réu, teste esse que apesar de ter sido agendado por diversas vezes no Instituto de Medicina Legal de Coimbra, nunca pôde ser realizado, dado que o Réu sempre se recusou a assim proceder, apesar de terem sido colocados meios de transporte à sua disposição para o efeito.

Nesse entretanto foi pelo Réu junta procuração forense aos autos, conforme fls. 70 e 71, na sequência do que pela ilustre mandatária por ele constituída foi apresentado o requerimento de fls. 75 a 77, solicitando que se declara a nulidade processual do anteriormente processado após a citação do Réu.

Foi, nessa sequência, proferido o despacho de fls. 89 a 91, indeferindo esse dito requerimento.


IV

                Foi, então, pelo Réu interposto recurso de tal despacho – ver fls. 97 -, o qual foi admitido como agravo, com subida diferida e com efeito devolutivo – ver fls. 101.

                Nas alegações oportunamente apresentadas pela Réu/Recorrente – ver fls. 104 a 111 – foram formuladas as seguintes conclusões:
….
        Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso.

V
Seguiu-se a realização da audiência de discussão e julgamento, conforme actas de fls. 143 A, 143 B, 261 a 265, no decurso da qual foram ordenadas duas novas diligências de exame hematológico nas pessoas do A. e do Réu, o que voltou a não ser possível, por não comparência do Réu a ambas – ver fls. 144 a 147, 151, 152, 153, 154, 155, 161, 218, 219, 220, 221, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 235, 238 e 240.
Terminada a realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida decisão sobre a matéria de facto constante da base instrutória, com indicação da respectiva fundamentação – ver acta de fls. 261 a 265.

                Proferida a sentença sobre o mérito da causa, nela foi decido julgar procedente a acção, declarando-se que o Réu, G…, é pai do Autor, A…, e este filho daquele, determinando-se o correspondente averbamento, incluindo a avoenga paterna, no assento de nascimento do Autor.


VI

                Desta sentença interpôs recurso o Réu – ver fls. 278 -, o qual foi admitido como apelação e com efeito suspensivo – ver fls. 280.

                Nas alegações que então apresentou, o Réu/Apelante formulou as seguintes conclusões:

...

                Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso de apelação.


VII


                Nesta Relação foram aceites ambos os recursos supra referidos, tal como foram admitidos em 1ª instância.

                Procedeu-se à recolha dos necessários “vistos” legais, sem qualquer observação, pelo que nada obsta a que se conheça dos objectos dos ditos recursos.

                Nos termos do artº 710º, nº 1 do CPC, importa conhecer já do recurso de agravo, cujo objecto se resume ao conhecimento da questão da alegada nulidade processual subsequente à citação do Réu, por este não ter constituído advogado no prazo que processualmente lhe foi facultado para contestar.

                Essa nulidade foi suscitada pelo Réu logo aquando da junção aos autos de procuração forense por ele outorgada, conforme fls. 71 e 72, requerimento no qual diz que “é obrigatória a constituição de advogado nos presentes autos, o que só agora constitui, não tendo sido para tal especificamente notificado nem lhe tendo sido entregues os duplicados da petição inicial aquando da sua citação, pelo que é nula essa citação, a qual deve, por isso, ser repetida”.

                Esse requerimento foi objecto de apreciação pelo despacho de fls. 89/91, onde se argumenta que o Réu foi devidamente citado, não se verificando qualquer irregularidade na dita, face ao que foi indeferida a arguida nulidade processual.

                Ora, conforme resulta, do artº 233º, nº 2, als. a) e b) do CPC (redacção do D.L. nº 38/2003, de 8/03), a citação pessoal é feita mediante entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção… ou mediante contacto pessoal do solicitador de execução ou do funcionário judicial com o citando.

                No presente caso procurou-se a via da carta registada com A/R, mas sem resultado, conforme fls. 17, 18 e 19, uma vez que o Réu recusou receber essa carta.

                Foi então solicitada a citação do Réu através de solicitador de execução, o que ocorreu, conforme fls. 20 a 24, diligência na qual o Réu recusou receber e assinar essa citação e até recusou receber os documentos que então lhe foram apresentados, tendo, nessa sequência, sido informado que os mesmos e a nota de citação ficavam à sua disposição na secretaria judicial - ver fls. 24-verso

    Dessa nota de citação constava expressamente a indicação do prazo disponível para contestar e que para o efeito é obrigatória a constituição de advogado, além de conter informações complementares referentes a um eventual pedido de apoio judiciário.

                Isto é, deu-se inteiro cumprimento às regras processuais relativas à citação, conforme artºs 235º, nºs 1 e 2, e 239º, nºs 1, 2, 3 e 4 do CPC (redacção do D. L. nº 38/2003, de 8/03 e anterior à Lei nº 52/2008, de 28/08, já que tal citação teve lugar em Junho de 2007).

                E também foi dado cumprimento ao nº 5 do artº 239º (notificação do citando pelo secretaria judicial, enviando-lhe carta registada com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição), conforme despacho judicial nesse sentido de fls. 25 e fls. 26 e 27, carta essa que o Réu não levantou nos CTT.

Logo, foram cumpridas todas as formalidades processuais inerentes à citação do Réu, o qual apenas e tão só recusou receber a dita citação, pelo que tem de se entender que o Réu foi regularmente citado em 15/06/2007, através de solicitador de execução, pelo que não se verifica qualquer nulidade nessa diligência nem sequer falta de citação, nos termos dos artºs 195º e 198º do CPC, como também foi entendido pela 1ª instância.

E não é a circunstância de o Réu não ter contestado e o processado ter seguido sem que o Ré tenha então constituído mandatário forense que põe em causa a regularidade dessa citação, porquanto essa constituição apenas é obrigatória para o caso de o Réu pretender contestar (mesmo que seja através de apoio judiciário para o efeito), como decorre dos artºs 32º, 33º e 40º do CPC.

Face ao que se nega provimento ao dito agravo, confirmando o despacho recorrido – de fls. 89 a 91 -, sendo certo que o Réu já teve patrono constituído aquando das diligências de julgamento e subsequentes, não tendo, por isso, sido afectado na sua defesa, tanto mais que não foram tidos como confessados quaisquer factos dos alegados pelo autor.

Além de que em sede de julgamento foram ordenadas diligências periciais – exame hematológico -, as quais teriam servido ao Réu para afastar a alegação do autor, se assim o tivesse querido fazer, mas relativamente ao que entendeu não querer fazer tais exames, a tal se tendo recusado, pelo que em nada foi afectado quanto à sua defesa.

Termos em que se nega provimento a este recurso de agravo.


***

                Prosseguindo com a apreciação do recurso de apelação interposto da sentença final, é seu objecto o conhecimento das duas seguintes questões (tendo-se em conta que nas alegações e conclusões aqui apresentadas o Recorrente repete as razões e conclusões que oportunamente apresentou em relação ao recurso de agravo antes apreciado, pelo que já foram, nessa sede, apreciadas tais razões e decidida a questão a propósito invocada pelo Recorrente, conforme supra consta):

A – Eventual caducidade do prazo de propositura da presente acção;

B – Reapreciação da decisão de mérito, designadamente se está ou não provada a paternidade do Réu em relação ao Autor.

                Começando, nesta apreciação, pela questão A e tendo em conta que a presente acção foi instaurada em Agosto de 2006, portanto anteriormente à Lei nº 14/2009, de 01/04, o que se nos afigura dizer é que estamos em total acordo com a decisão da 1ª instância, isto é, que em consequência do Ac. do Tribunal Constitucional nº 23/2006, de 10/01, publicado no D.R. nº 28, Série I-A, de 08/02/2006, no qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artº 1817º do C. Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artºs 16º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, todos da Constituição, qualquer pessoa passou a poder exercitar a todo o tempo, durante toda a sua vida, o direito a ver judicialmente reconhecida a sua paternidade – ver, neste sentido, p. ex., o Ac. Rel Coimbra de 23/05/2006, Procº nº 776/06, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.

                E apesar da entrada em vigor da citada Lei nº 14/2009, de 01/04, na pendência da presente acção, alterando a redacção do artº 1817º do C. Civil (em cujo nº 1 se passou a dispor que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”- dispositivo aplicável às acções de investigação da paternidade, por força do artº 1873º C. Civil.), com dispositivo a mandar aplicá-la às acções então pendentes (seu artº 3º), deve pelo menos entender-se que o citado artº 3º da Lei nº 14/2009 é materialmente inconstitucional, nos mesmos termos do citado acórdão do Tribunal Constitucional, como foi já entendido em vários arestos, designadamente pelo relator, 1º e 2º adjuntos do presente colectivo nos seus acórdãos que se passam a reproduzir, em parte (no que interessa):

 A - Acórdão proferido na Apelação nº 503/08.9TBSEI, do qual se passa a transcrever a respectiva fundamentação:               

“Tribunal da Relação de Coimbra

 Apelação nº 503/08.9TBSEI.C1

 Relator: Des. Jaime Carlos Ferreira

 Adjuntos: Des. Jorge Arcanjo

               Des. Isaías Pádua

Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


VI

            Esse objecto passa pela apreciação das seguintes questões:

            A – ...

            B – Apreciação da invocada caducidade do direito da Autora a instaurar esta acção.

            C – ...

            Prosseguindo com a questão B - Apreciação da invocada caducidade do direito da Autora a instaurar esta acção, devemos desde já referir que nem as partes invocaram tal questão em sede de articulados, nem a dita foi abordada/apreciada na sentença recorrida.

            Porém, nada obsta a que se conheça só agora de tal questão, dado que o conhecimento de tal excepção é oficioso, nos termos dos artºs 660º, nº 2, in fine do CPC, e 333º, nº 1 do C. Civil.

                …

…, pois também vem sendo entendimento jurisprudencial, designadamente desta Relação, que “A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas no pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento do Ac. Tribunal Constitucional nº 23/2006.

Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei;

O chamado “direito à historicidade pessoal”, enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), constitui uma dimensão do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP”, conforme se pode ver nos Acórdãos desta Relação de 23/06/2009 (Teles Pereira) e de 06/07/2010 (Jorge Arcanjo), ambos disponibilizados em www.dgsi.pt/jtrc e dos quais passamos a citar algumas passagens:

B-

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1000/06.2TBCNT.C1
Nº Convencional:JTRC
Relator:TELES PEREIRA
Descritores:INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL
Data do Acordão:23-06-2009
Votação:UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:CANTANHEDE – 2º JUÍZO
Texto Integral:S
Meio Processual:AGRAVO
Decisão:CONFIRMADA
Legislação Nacional:ARTºS 1817º E 1873ºDO C. CIV. (REDACÇÃO DA LEI Nº 14/2009, DE 1 DE ABRIL)
Sumário:I - A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do CC, aplicável ex vi do artigo 1873º do CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ, como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, com o fim da sujeição deste a prazos;
II – Esta circunstância conduziu ao intentar, subsequentemente à publicação do Acórdão contendo essa declaração (08/02/2006), de diversas acções de investigação de paternidades assentes na inexistência de qualquer prazo de caducidade;

III – A posterior aplicação retroactiva às acções intentadas neste pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento referido em I;

IV – Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei;

V – O chamado “direito à historicidade pessoal”, enquanto direito à investigação e estabelecimento do respectivo vínculo biológico (paternidade ou maternidade), constitui uma dimensão do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1 da CRP;

VI – O legislador ao referir-se expressamente, no artigo 1801º do CC, a métodos científicos comprovados de prova do vínculo de derivação biológica, acentua o valor e sublinha a preferência por um estabelecimento da filiação alicerçado na verdade biológica alcançada através destes métodos;

VII – A intromissão no direito à incolumidade física de alguém (como compressão sobre um valor constitucionalmente relevante), representada pela sujeição aos testes em que se consubstanciam os métodos científicos de investigação da filiação (concretamente os testes de ADN), no confronto com o direito à investigação dessa filiação (na dimensão constitucional referida em V) apresentam-se como intromissões pouco significativas, que, numa lógica de ponderação dos direitos em confronto, deve ceder, com a consequente obrigação, para os sujeitos relevantes, de se submeterem a esses testes;

VIII – Tal obrigação de sujeição pode, nos termos do artigo 519º do CPC, incidir sobre terceiros relativamente ao vínculo de filiação, designadamente sobre os filhos do investigado, no caso de decesso deste.

Decisão Texto Integral:Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa




II – Fundamentação


2.1. (1)
A potencial relevância na presente situação da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, decorre da circunstância, já antes sublinhada, desse Diploma conter uma norma de direito transitório (o artigo 3º) estabelecendo a aplicação do mesmo – rectius, das alterações por ele introduzidas nos artigos 1817º e 1842º do CC – “[…] aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”. Tal aplicação, cujo sentido de projecção retroactiva da lei (nova) relativamente a um tipo específico de situações passadas (aquelas em que já se encontre pendente uma acção visando a constituição do vínculo de filiação), tal aplicação, dizíamos, significaria, desde logo, e basta aqui movermo-nos no quadro de uma corriqueira “interpretação declarativa”[9], que a presente acção de investigação de paternidade viesse, supervenientemente, a perder muito do seu sentido.

É certo que os Agravantes fazem, no requerimento de fls. 266/267, uma (discutível) separação no seio da causa de pedir, projectando-a na permanência da utilidade da acção, entre a questão da pretensão do estabelecimento da filiação biológica (para a qual interessariam os testes) e a do estabelecimento do mesmo vínculo com base nas presunções elencadas no artigo 1871º do CC[10], para as quais os testes já seriam – dizem-no os Agravantes – espúrios. Discordamos totalmente desta asserção. De qualquer forma, mesmo tendo presente que o artigo 1817º do CC (tanto na nova como na antiga redacção) contém, no confronto entre o nº 1 e os restantes números, não tanto prazos distintos mas formas diversas de contar o prazo de propositura de uma acção de investigação de paternidade em situações particulares (as previstas nos nºs 2 a 4 desse artigo 1817º), situações que se expressam na presença de circunstâncias instrumentais (as presunções) dotadas de um valor especial, mesmo tendo isto presente, dizíamos, a questão da aplicação da lei nova a situações passadas, representadas estas pelas acções já propostas à data da entrada em vigor da Lei nº 14/2009, permanece como uma questão operante neste processo e relativamente a este recurso, implicando ela que se determine – e isso só pode passar pela aplicação em concreto do artigo 3º da Lei nº 14/2009 – o sentido que aqui apresenta a projecção retroactiva de um (novo) prazo de exercício do direito de acção que, algo paradoxalmente, projectaria, também retroactivamente, uma extinção superveniente desse prazo.

Lembramos que isto só sucede – só sucederia, a aplicarmos o artigo 3º da Lei nº 14/2009 – passando por cima daquilo que resultaria da aplicação do critério geral da nossa lei substantiva, estabelecido no artigo 297º do CC, para as situações de sucessão de leis no tempo nos casos – e seguimos aqui a formulação de J. Baptista Machado – em que o decurso dum prazo funciona “[…] como pressuposto da aquisição ou da perda dum direito subjectivo”[11]. Com efeito, aplicando à presente situação a tal regra geral (no caso a que se extrairia da mensagem teleológica contida no artigo 297º, nº 1 do CC[12]), o efeito dessa aplicação só poderia consistir na salvaguarda, considerando-o tempestivamente exercido, do direito de acção aqui plasmado em 2006, ou, dizendo o mesmo por outras palavras, considerando não ter caducado o direito de acção aqui exercido. E esta asserção, no efeito pretendido alcançar pelo Legislador da Lei nº 14/2009, encerra o completo absurdo da situação: tratar-se-ia de dizer, aplicando a nova redacção do artigo 1817º, nº 1 do CC aos processos pendentes, como pretende o legislador, que um direito de acção exercido tempestivamente[13] no passado caducaria, por intempestividade, no futuro.

Seja como for, temos o artigo 3º da Lei nº 14/2009, e este é claro no intuito de projectar as alterações introduzidas pelo Diploma nos processos pendentes, sendo sua vocação substituir-se às tais regras gerais antes enunciadas. Ora, tal disposição, enquanto dado jurídico de facto, constitui um dado interpretativamente inultrapassável, sendo certo que a letra da lei é, na consequência directamente visada, inequívoca – repetimo-la mais uma vez: “[aplicar-se a lei nova] aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

Sublinhamos este facto pois entendemos não existir na norma em apreço espaço interpretativo algum que se abra a qualquer entendimento-outro que não passe, pura e simplesmente, por uma leitura concordante com o sentido gramatical óbvio do texto: a todos os processos pendentes em que se investigue uma paternidade (para nos cingirmos à hipótese aqui em causa) “aplicam-se” os novos prazos para a propositura dessa acção, retirando-se o efeito do respectivo esgotamento quando, ao tempo da propositura dessa acção, esse prazo – verifica-se agora – já se mostrasse transcorrido.

É que, tem aqui pleno sentido a regra decorrente do artigo 9º, nº 2 do CC, “[n]ão pode[ndo] […] ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. E esta asserção constitui uma questão de direito constitucional aplicado, reportando-se ao papel do juiz, num Estado de direito democrático, traduzindo uma aplicação prática do princípio da separação de poderes (artigos 2º e 203º da CRP). Vale aqui a máxima interpretativa clássica, formulada nos anos quarenta do século passado pelo Juiz do Supremo Tribunal Federal norte-americano Felix Frankfurter: “ainda que os tribunais não estejam subjugados pela letra da lei, têm nela o seu limite”[14]. É neste sentido, aliás, que o respeito pela letra da lei constitui, em si mesmo, um problema de natureza constitucional, como o caracteriza Aharon Barak: “[a] asserção de que a linguagem estabelece o limite inultrapassável da interpretação traduz uma asserção constitucionalmente relevante […]. De acordo com o princípio da separação de poderes, o papel constitucional do juiz como intérprete é o de «interpretar» um texto criado por quem (o legislador) dispõe desse poder. Na sua qualidade de intérpretes os juízes não dispõem de poder ou autoridade para «criar» novos textos legais”[15]. Aliás, tudo isto se poderia resumir na caracterização feita por J. Baptista Machado da letra da lei como limite inultrapassável da interpretação:


“[…]
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do artigo 9º, nº 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) «que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso». Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto «falhado» se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjectivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador.
[…]”
[16]

Aqui, com efeito, o legislador foi tão claro – disse tão claramente aquilo que queria –, que ninguém pode ter dúvidas quanto ao efeito por ele pretendido.

Sublinhar este aspecto apresenta neste caso uma intencionalidade muito particular, sendo certo que a norma a que nos vimos referindo (o artigo 3º da Lei nº 14/2009) coloca, como veremos de seguida, importantes problemas de conformidade constitucional (consideramo-la inconstitucional), valendo a expressividade da sua letra, enquanto exclusão de uma possível alternativa assente naquilo que usualmente se qualifica como opção pela interpretação conforme à Constituição, enquanto manifestação de uma preferência pela conservação (salvação) das normas. Com efeito, como refere J. J. Gomes Canotilho, “[…] a interpretação das leis em conformidade com a Constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei […]”[17]. Nestes casos, acrescenta o mesmo Autor, sendo esse “[…] sentido objectivo claramente recognoscível da lei […]” antagónico de normas ou princípios constitucionais, o caminho que se impõe ao intérprete – ao intérprete juiz – é, pura e simplesmente, o da recusa da aplicação da norma, no quadro do acesso à Constituição facultado a todos os tribunais, desconcentradamente, pelo artigo 204º da CRP.

2.1.1. Coloca-se, pois, a questão da desconformidade à Constituição do artigo 3º da Lei nº 14/2009, importando equacionar aqui o problema.

A nossa jurisprudência constitucional foi confrontada, desde o final dos anos 80 do século anterior (concretamente desde 1988), em sede de fiscalização concreta, com suscitações de questões de inconstitucionalidade referidas aos prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, previstos no artigo 1817º do CC, norma aplicável em função do disposto no artigo 1873º do mesmo Código. A primeira resposta fornecida pelo Tribunal teve lugar através do Acórdão nº 99/88 (Cardoso da Costa)[18], que decidiu, com um voto de vencido (Luís Nunes de Almeida), não julgar inconstitucional o estabelecimento desses prazos, vendo-os como elementos condicionadores e não restritivos dos direitos fundamentais invocados em apoio dessa imputação de desconformidade constitucional (muito centrada, então, no princípio da igualdade entre filhos nascidos dentro e fora do casamento)[19].

Resumindo, em traços muito largos, o caminho percorrido, posteriormente ao Acórdão nº 99/88, pela nossa justiça constitucional, detectamos uma paulatina aproximação ao entendimento do prazo limite de propositura de uma acção de investigação de paternidade previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC (dois anos após a maioridade do investigante – 20 anos de idade), como comportando uma violação dos princípios constitucionais decorrentes da conjugação dos artigos 26º, nº 1 (direito à identidade pessoal), 36º, nº 1 (direito de constituir família) e 18º, nº 2 (princípio da proporcionalidade) da CRP. Essa aproximação culminou com a prolação do Acórdão nº 486/2004 (Paulo Mota Pinto)[20], julgando inconstitucional o referido artigo 1817º, nº 1, decisão esta posteriormente confirmada, no Plenário do Tribunal (num recurso ao abrigo do nº 1 do artigo 79º-D da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), pelo Acórdão nº 11/2005 (Paulo Mota Pinto)[21].

Seguiram-se a este aresto diversas decisões sumárias positivas de inconstitucionalidade, todas elas remetendo para o citado Acórdão nº 11/2005, que formaram o bloco das três decisões positivas que originaram, interposto pelo Ministério Público, o recurso que desencadeou a fiscalização abstracta sucessiva (artigo 281º, nº 3 da CRP) do artigo 1817, nº 1 do CC, aplicável (já que sempre estiveram em causa investigações de paternidade) ex vi do disposto no artigo 1873º do CC, recurso este que originou a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral plasmada no mencionado (v. nota 14, supra) Acórdão nº 23/2006.

Importa recordar aqui o pronunciamento decisório emitido pelo Tribunal Constitucional nesse aresto, sublinhando ter sido ele publicado (rectius, publicitado) na I Série do Diário da República do dia 8 de Fevereiro de 2006:


“[…]

[O] Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa
.
[…]”

Um traço marcante desta decisão – poderíamos mesmo dizer da linha decisória que lhe subjaz –, cujo sentido se colhe inequivocamente na respectiva fundamentação, consistiu na assumida subtracção do Tribunal a um pronunciamento que abrangesse no juízo de desconformidade constitucional da norma em questão, a existência de prazos ou o estabelecimento de qualquer prazo – fosse ele qual fosse, se excedente dos dois anos posteriores à maioridade do investigante – de caducidade do direito de acção: o Tribunal nunca disse – repete-se e sublinha-se –, que a fixação de qualquer prazo seria inconstitucional, apenas considerou constitucionalmente inadequado o prazo dos dois anos subsequentes à maioridade. Com efeito, disse a tal respeito o Tribunal:


“[…]
Importa começar por deixar bem vincado que, na averiguação da conformidade constitucional da solução limitativa, actualmente consagrada na norma ora em apreço, o que está em questão não é qualquer
imposição constitucional de uma «ilimitada (…) averiguação da verdade biológica da filiação». Pese embora a tese defendida pelo recorrente, de que qualquer caducidade da acção de investigação de paternidade é inconstitucional, no presente recurso está apenas em questão o concreto limite temporal previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, de dois anos a contar da maioridade ou emancipação (portanto, no máximo, os vinte anos de idade do investigante). Não constitui, assim, objecto do presente processo apurar se a imprescritibilidade da acção corresponde à única solução constitucionalmente conforme. Antes o que está em causa é, apenas, a constitucionalidade da específica limitação prevista nesta norma, que (salvo casos excepcionais, como o da existência de «posse de estado») exclui o direito a averiguar a paternidade depois dos 20 anos de idade: a acção «só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação». É este limite temporal de «dois anos posteriores à maioridade ou emancipação», e não a possibilidade de um qualquer outro limite, que cumpre apreciar – e, consequentemente, só sobre aquele específico limite temporal, previsto actualmente no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, se poderá projectar o juízo de (in)constitucionalidade a proferir.
[…]”
[22]
[sublinhado acrescentado]

A consequência para a norma em causa nesta decisão do Tribunal Constitucional, resulta, para dizer-mos o óbvio, do texto da Constituição (artigo 282º, nº 1) e traduziu-se na produção de “[…] efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional […] determina[ndo] a repristinação das normas que ela haja eventualmente revogado”. Remete-se aqui para a caracterização deste efeito, feita por José Manuel Cardoso da Costa:


“[…]
Como se infere [do artigo 282º, nº 1], a Constituição não prevê propriamente a declaração de «nulidade» da norma; a simples declaração de inconstitucionalidade […] tem, porém, um efeito equivalente, pois que opera, em princípio, com eficácia
ex tunc (artigo cit. nºs 1 e 2), eliminando ab initio do universo jurídico a norma inconstitucional […] e os seus efeitos.
[…]”
[23]

O efeito normal – chamemos-lhe assim – da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral contida no Acórdão nº 23/2006, traduzir-se-ia, pois, na repristinação da norma antecessora do artigo 1817º, nº 1 do CC. Ora, sendo certo que o prazo nesta previsto foi desde logo introduzido pela versão inicial do Código Civil de 1967 (Decreto-Lei nº 47344, de 25 de Novembro de 1966)[24], seríamos remetidos, por via do efeito repristinatório, para uma “recuperação” do regime do Código de Seabra, no trecho temporal deste posterior à chamada “Lei da protecção dos filhos” da I República (Lei nº 2 de 25 de Dezembro de 1910, publicada no Diário do Governo, nº 70, de 27 de Dezembro de 1910)[25].

Note-se que a crítica deste regime foi assumida, no âmbito dos trabalhos preparatórios do actual Código Civil, no final dos anos 50 do século passado, por Manuel Gomes da Silva, nos seguintes termos:


“[…]
Deixando-se o reconhecimento da filiação à simples iniciativa dos interessados […] e permitindo-se as acções de filiação mesmo depois da morte dos pais, acontece que na grande maioria dos casos os filhos ilegítimos crescem ao abandono sem qualquer educação e amparo e, só quando suspeitam terem provindo de um pai rico, procuram, geralmente já em adultos e depois da morte dele, investigar a paternidade.
Este sistema conduz ao resultado de anular por completo aquilo que constitui verdadeiramente o núcleo das exigências da justiça acerca dos filhos ilegítimos – a atenuação, na medida do possível, dos efeitos da ilegitimidade sobre a formação da personalidade – e conduz, como resultado positivo, apenas àquilo que menos se justifica e mais prejudica a família legítima; a exigência tardia de bens materiais que já não concorrem para modificar a situação moral e social dos filhos ilegítimos e são extorquidos, quiçá muitas vezes com fraude, àqueles que desde há muito tinham legítima expectativa sobre esses bens.
[…]
Impõe-se inverter os termos do problema, quer para assegurar a protecção dos pais à grande maioria dos filhos ilegítimos, quer para proteger a família legítima contra investigações feitas em momento em que já não têm verdadeiro interesse social e em que a defesa da família é, na prática, muito difícil.
[…]

Paralelamente procurámos condicionar a investigação de paternidade com maior cautela do que a lei presente
.
A orientação foi em tudo sempre a mesma: estimular as investigações nas idades inferiores, não só por ser nessas idades que o reconhecimento tem real interesse social, mas também por nos parecer que as possibilidades de prova são tanto mais esbatidas, quanto mais remoto é o nascimento; encarando o problema por este último aspecto, fomos, até, levados a dosear os prazos de caducidade das acções por forma variável, segundo o maior ou menor valor que atribuímos à prova indiciária, contida nas respectivas condições de admissibilidade
.
[…]”
[26]
[sublinhado acrescentado]

E foi este regime de prazos de propositura das acções de investigação de paternidade, assim fundamentado aquando da preparação do Código Civil, que foi incluído em 1967 no texto do artigo 1854º, nº 1. Foi este regime que posteriormente transitou no essencial para o artigo 1817º, nº 1, na revisão de 1977 do Código, sendo que o legislador desta Reforma, nas palavras de Guilherme de Oliveira, considerou tal regime de prazos “[…] uma «restrição proporcional» do direito de investigar a paternidade, para defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a «segurança jurídica», a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais – porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir «segurança» aos pretensos pais, do perigo de «envelhecimento das provas» e do uso do direito de investigar só para obter heranças”[27]. Foi este, enfim, o regime que se deparou ao Tribunal Constitucional no processo que culminou com a prolação do Acórdão nº 23/2006.

Ora, seria a recuperação serôdia do sistema anterior a este, antecedente do Código Civil (a recuperação do sistema que vigorou entre 1910 e 1967), que a ideia de repristinação introduziria, após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Cabe sublinhar, todavia, que a aceitação incondicional dos efeitos repristinatórios neste caso não se afiguraria uma solução particularmente feliz, no sentido de adequada à realidade presente: traduziria a reintrodução de um regime de complicada compatibilização prática com o actual, encarado este na sua unidade estrutural, dado que assentava e pressupunha (o sistema anterior a 1967) conceitos de difícil transposição para o presente, prefigurando-se neste caso a repristinação como uma solução pouco razoável, desfasada do nosso tempo (que não é o 1967, mas também não é o de 1910) exterior ao espírito do sistema e que não contribuiria para a unidade lógica deste[28]. Isso mesmo, aliás, foi intuído e afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), quando foi confrontada com a questão das consequências da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 1817º, nº 1 do CC. É este o sentido, com efeito, da afirmação contida no Acórdão do STJ de 17/04/2008 (Fonseca Ramos)[29], de que “[a] questão decidida pelo Tribunal Constitucional, no sentido da inconstitucionalidade do prazo de caducidade, não repristina qualquer norma, apenas deixa sem prazo tais acções”.

Claro que existiria, para o intérprete aplicador, uma outra alternativa de resposta ao efeito de desaparecimento do prazo do nº 1 do artigo 1817º do CC, decorrente da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Referimo-nos à supressão dessa falta de prazo – tendo presente que o Tribunal, como se disse antes, não inviabilizou a fixação de todo e qualquer prazo –, através da criação, “[…] dentro do espírito do sistema […]” (integrado este à luz do pronunciamento do Tribunal Constitucional) de um (outro) prazo de caducidade das acções de investigação de paternidade que, alargando substancialmente os dois anos subsequentes à maioridade (que correspondem hoje em dia aos 20 anos de idade), criasse um espaço temporal de equilíbrio e viabilidade, referidos à maturidade do investigante, para o exercício do direito a ver judicialmente estabelecida a respectiva paternidade. Tratar-se-ia de uma opção assente na detecção de uma lacuna, enquanto incompletude (uma situação que deixou de estar prevista) de um sistema que na sua essência postularia uma regulação daquela situação, através do estabelecimento de um prazo[30]. Agir-se-ia, assim, num quadro de integração de uma lacuna, com base no nº 3 do artigo 10º do CC, ou seja, “criando” o próprio intérprete a norma (contendo o prazo) como “[…] se [este] houvesse de legislar dentro do espírito do sistema”.

Constituiria este um caminho possível – sublinhamos aqui o adjectivo “possível” –, face ao Acórdão nº 23/2006, caminho este que reputamos de perfeitamente conforme às legis artis interpretativas[31].

2.1.1.1. Não foi este, todavia – e trata-se de um dado de facto a reter –, o caminho invariavelmente seguido pela nossa jurisprudência, concretamente a do STJ, quando confrontada com o problema de extrair consequências, em casos concretos, da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo até aí previsto no nº 1 do artigo 1817º do CC. Corresponderam esses casos concretos, maioritariamente, a situações em que foram propostas acções de investigação de paternidade, por quem já não preenchia o (desaparecido) pressuposto temporal previsto na referida norma: trataram-se de acções propostas para além (muito para além) dos dois anos posteriores à maioridade do investigante.

Com efeito, e trata-se de um dado invariavelmente presente na jurisprudência do STJ, posteriormente ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, sempre foi afirmada – e foi-o enfaticamente e como concreta ratio decidendi da consideração de um exercício tempestivo do direito de acção – que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo previsto naquele nº 1, suprimia todos os prazos, deixava, enfim, de sujeitar a qualquer prazo a propositura de uma acção de investigação de paternidade.

Esta asserção – e constitui este um outro elemento marcante do entendimento pelo STJ da decisão do Tribunal Constitucional – apareceu, também invariavelmente, associada à de que “[o] direito a conhecer a paternidade […] é um direito inviolável e imprescritível” (trecho do sumário do Acórdão do STJ de 17/04/2008, citado na nota 30).

Esta compreensão do problema havia recebido um importante contributo doutrinário, ainda antes do Acórdão nº 23/2006 (e quando o entendimento do Tribunal Constitucional ainda não se mostrava perfeitamente definido), através de um importante texto de Guilherme de Oliveira (o estudo citado na nota 28, supra), no qual este Autor anunciava, isto em 2004, a sua mudança de entendimento[32], quanto à questão da compatibilidade constitucional dos prazos previstos no Código Civil para a instauração de acções de investigação de paternidade:


“[…]
A circunstância de a lei prever um prazo de caducidade para a acção de investigação tem por consequência que, por vezes, um pretenso filho não dispõe da possibilidade de constituir um vínculo de maternidade ou de paternidade. Este regime é sentido como uma injustiça da lei, sobretudo quando um pretenso filho está muito convencido de que ganharia a acção se o deixassem promovê-la. Daí os pedidos de declaração de inconstitucionalidade que foram apresentados ao Tribunal Constitucional.
Estes pedidos não tiveram provimento e, de certo modo, eu tive alguma responsabilidade nestas decisões, pois publiquei, em 1983, afirmações que foram usadas na sustentação da tese vencedora […].
Hoje tenho as maiores dúvidas em defender isso.
[…]”
[33]

O entendimento de Guilherme de Oliveira quanto ao caminho a seguir, nos termos justificados ao longo desse texto, era o da imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade (no sentido de existência de fundamento constitucional para não as sujeitar a qualquer prazo de caducidade), terminando com a seguinte síntese conclusiva:


“[…]
Julgo, em suma, que se tornou sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos artigos 1817º e 1873º do CC.
[…]”
[34]

E, antevendo as consequências dessa inconstitucionalidade, caracterizava-a esse mesmo Autor nos seguintes termos:


“[…]
O que, a ser admitido, tornaria o regime inaplicável pelos tribunais. O direito do filho deveria então poder ser exercitado a todo o tempo, durante a sua vida – contra o suposto pai ou contra outros legitimados em seu lugar.
[…]”
[35]

Foi esta antevisão dos efeitos da inconstitucionalização do artigo 1817º do CC que, em certo sentido, guiou a nossa jurisprudência quando, mais tarde, foi confrontada pelo problema real resultante da supressão na ordem jurídica portuguesa, mercê da declaração de inconstitucionalidade, dos prazos previstos nessa norma, concretamente do prazo previsto no nº 1 dela.

Esta linha foi seguida, e não conhecemos posições divergentes, pelos Acórdãos do STJ (e seguimos uma ordem cronológica) de 14/12/2006 (Alves Velho)[36], 31/01/2007 (Borges Soeiro)[37], 23/10/2007 (Mário Cruz)[38], 17/04/2008 (Fonseca Ramos)[39] e de 03/07/2008 (Pires da Rosa)[40]. Em todos estes colhemos uma afirmação expressa da imprescritibilidade das acções de investigação da paternidade, na sequência da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral:


“[…]
Se bem interpretamos a declaração de inconstitucionalidade não contendo nem prevendo qualquer restrição nem aludindo a cláusulas de salvaguarda, elimina completamente a norma no que respeita à subsistência do termo estabelecido no prazo-regra para o exercício do direito de investigar.
[…]
E, assim sendo, perante o acolhimento da ideia da inconstitucionalidade de qualquer prazo, assente na de imprescritibilidade do direito de investigar, essencialmente fundada na «diminuição do alcance do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à identidade pessoal e a constituir família» e na desproporcionalidade de restrições, afigura-se-nos que não podem deixar de estar abrangidas pela mesma declaração de inconstitucionalidade as normas que, como a do nº 4, se limitam a alargar prazos em razão do concurso de pressupostos que a norma geral dispensa.
[…]”
[Acórdão de 14/12/2006]



“[…]
O respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do de impugnar.
[…]”
[Acórdão de 31/01/2007]



“[…]
O Tribunal Constitucional já declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1 para a propositura da acção de investigação com base na investigação biológica pura, referindo que a acção pode ser proposta a qualquer momento independentemente do prazo. […] Devem também considerar-se inconstitucionais os demais números do mesmo artigo, uma vez que no seu núcleo está precisamente o mesmo direito constitucional à identidade e dignidade pessoal […].
[…]”
[Acórdão de 23/10/2007]



“[…]
O direito ao conhecimento da ascendência biológica, deve ser considerado um direito da personalidade e, como tal, possível de ser exercido em vida do pretenso progenitor e continuado se durante a acção morrer, correndo a acção contra os seus herdeiros, por se tratar de um direito personalíssimo, imprescritível, do filho investigante. […] Esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito de personalidade é um direito inviolável e imprescritível.
[…]”
[Acórdão de 17/04/2008]



“[…]
O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 […], que declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do nº 1 do artigo 1817º do CC […], acentua claramente a ideia de imprescritibilidade das acções de reconhecimento de um estado pessoal, por um indeclinável respeito pelo direito fundamental à identidade pessoal […].
[…]”
[Acórdão de 03/07/2008]

2.1.1.2. A valoração deste entendimento jurisprudencial uniforme apresenta uma enorme relevância, quando se trata (e é o que aqui sucede) de apreciar a incidência do artigo 3º da Lei nº 14/2009 nas acções (acções pendentes) intentadas posteriormente à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do nº 1 do artigo 1817º do CC, nos casos em que o investigante, constata-se agora em função da aplicação desse artigo 3º[41], “não dispunha” no passado, segundo a lei nova, de prazo para a propositura da acção (10 anos posteriores à sua maioridade ou emancipação). A projecção retroactiva desta lei nova aos processos pendentes à data da entrada em vigor da mesma, frustra intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da acção – confiança que precisamente o levou a propor essa acção – num entendimento perfeitamente consolidado e indiscutível, segundo o qual a propositura dessa acção não estaria sujeita a qualquer prazo.

Esta consequência valorativa, que de tão evidente quase nem necessita de ser explicitada, induz, através da aplicação a um caso como este (acção proposta em 19/07/2006) da disposição transitória constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, uma evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança ínsitos no princípio do Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2º da CRP.

Com efeito, não se pode, com uma expressividade tão intensa quanto a acima caracterizada, criar uma situação de efectiva tutela de uma expectativa de se dispor de uma faculdade expressa num direito de acção, determinar-se (em função dessa expectativa) o desencadear dessa faculdade e, a posteriori, retirar-se retroactivamente essa faculdade, projectando-se para trás a caducidade dessa faculdade concretizada num direito de acção já exercido.

De tão evidente no seu carácter absurdo, por referência ao senso comum e ao princípio constitucional antes citado, nem necessitaria esta asserção de inconstitucionalidade da invocação de muitos precedentes justificativos. Sublinhar-se-á, porém, que o Tribunal Constitucional, desde o órgão seu antecessor, a Comissão Constitucional, vem conferindo ao princípio da confiança a natureza de norma de controlo da retroactividade de normas (da projecção retroactiva ou retrospectiva de normas), fora dos casos previstos nos artigos 29º, nº 3 e 103º, nº 3 da CRP, quanto a frustração de expectativas legítimas criadas ao abrigo de um regime legal anterior, sejam destruídas de forma manifesta, arbitrária ou opressiva (v. o Parecer da Comissão Constitucional nº 14/82[42]). Resumindo a essência da jurisprudência do Tribunal Constitucional nestas situações, remetemos para a síntese feita no Parecer do Conselho Consultiva da Procuradoria Geral da República de 29/04/1992 (Henriques Gaspar)[43]:


“[…]
A retroactividade das leis (ou a produção de efeitos retrospectivos), embora não excluída directamente pela Constituição, fora das hipóteses previstas nos artigos 18º, nº 3 e 29º, pode, todavia, afectar o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição.
[…] A lei retroactiva, ou que produza efeitos quanto a situações ou relações constituídas no passado e ainda subsistentes no momento em que entra em vigor, viola o princípio da confiança ínsito no Estado de Direito quando a produção de tais efeitos se revele opressiva, intolerável e inadmissível, por afectar em medida acentuada a confiança que os cidadãos têm o direito de depositar na continuidade das relações jurídicas constituídas e seus efeitos.
[…]”

E isto mesmo foi sublinhado por Armindo Ribeiro Mendes, a propósito do regime transitório estabelecido na Reforma do Processo Civil de 1995, ao caracterizar o entendimento da nossa jurisprudência constitucional sobre tal matéria:


“[…]
[E]m acórdãos de 1987 e de 1990, na esteira da jurisprudência [constitucional] alemã, o Tribunal Constitucional português julgou serem inconstitucionais normas que previam – ao menos na interpretação judicial das mesmas – a extinção de recursos pendentes, se estes não estivessem inscritos em tabela em certa data, e a aplicação imediata dos novos valores das alçadas aos processos pendentes […].
Em especial no Acórdão nº 287/90, o Tribunal Constitucional considerou que, face à tradição nacional decorrente de dados legislativos acolhidos de diferentes diplomas que se sucederam no tempo, a aplicação imediata do novo valor das alçadas aos processos pendentes, constante do artigo 106º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987, seria susceptível de afectar expectativas das partes com que elas podiam razoavelmente contar, sendo tal afectação excessiva e extraordinariamente onerosa, o que conduzia à inconstitucionalidade da solução.
[…]”
[44]

E este entendimento da indevida projecção retroactiva de leis (fora das proibições específicas atinentes à lei criminal e tributária), permanece presente na jurisprudência recente do Tribunal Constitucional, quando essa retroactividade, afirma-o o Tribunal, “[…] acarreta o efeito perverso de permitir a aplicação do novo regime a factos ocorridos anteriormente à sua publicação”, como se disse no Acórdão nº 615/2007 (Ana Guerra Martins)[45], particularizando-se numa declaração de voto (Maria Lúcia Amaral) que o princípio da confiança é afectado quando o legislador “[elege], como critério de aplicação da lei nova, um facto totalmente alheio à manifestação de vontade dos particulares (ao tempo e ao modo dessa mesma manifestação) [lesando] de forma excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária, as expectativas legítimas que os particulares depositavam na continuidade da Ordem Jurídica e na previsibilidade do seu devir”.

Não temos dúvidas quanto à aplicação de todas estas considerações (no sentido da inconstitucionalidade) à situação criada pelo artigo 3º da Lei nº 14/2009, ao projectar retroactivamente, nos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (02/04/2009, v. o respectivo artigo 2º), as alterações (fixação) dos prazos de caducidade das acções de investigação de paternidade, quando essas acções tenham sido intentadas anteriormente à Lei nº 14/2009 e posteriormente à publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (08/02/2006) e conduzam, em sede de aplicação do referido Diploma, à constatação do esgotamento (no “passado”) desse prazo e à consequente inviabilização do prosseguimento dessas acções pendentes à data da entrada em vigor desse mesmo Diploma.

Esta constatação conduz, inexoravelmente, à inconstitucionalidade material desse artigo 3º da Lei nº 14/2009, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da CRP, e à consequente recusa de aplicação dessa norma (o referido artigo 3º), nos termos do artigo 204º da CRP.

É o que adiante, na parte decisória deste Acórdão, se fará expressis verbis, retirando-se por agora, em função de tal entendimento, a consequência da subsistência da utilidade da apreciação deste recurso, nos exactos termos configurados ao tempo da sua subida a esta instância, ou seja, por referência à decisão recorrida e às conclusões transcritas no item 1.5. deste Acórdão, com base na situação que se configurava posteriormente ao Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional e anteriormente à lei nº 14/2009. Perdem, pois, qualquer sentido as pretensões veiculadas pelos Agravantes a este Tribunal no requerimento de fls. 266/268[46].

Permanecendo a utilidade do recurso em todos os seus elementos e vertentes, designadamente na não caducidade do respectivo direito de acção referido à data da propositura, em 19/07/2006, da presente investigação de paternidade, importa apreciar, agora, a questão dos exames determinados no despacho agravado.

 […]

decide-se:

A) Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 Abril, enquanto norma de direito transitório que manda aplicar, no que respeita ao prazo de propositura de uma acção de investigação de paternidade, retroactivamente, a redacção introduzida por essa Lei no artigo 1817º do Código Civil (aplicável por força do disposto no artigo 1873º do CC), a uma acção que (como esta) foi proposta subsequentemente à publicação (em 08/02/2006) do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional[74], e que se encontrava pendente à data da entrada em vigor (em 02/04/2009) dessa Lei nº 14/2009;

B) Fundar tal recusa de aplicação na violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, previsto no artigo 2º da Constituição;



***

C -

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
651/06.0TBOBR.C1
Nº Convencional:JTRC
Relator:JORGE ARCANJO
Descritores:ACÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE CADUCIDADE
Data do Acordão:06-07-2010
Votação:MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso:COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE OLIVEIRA DO BAIRRO
Texto Integral:S
Meio Processual:APELAÇÃO
Decisão:REVOGADA
Legislação Nacional:ARTºS 1817º, Nº 1, 1842º, Nº 1, AL. C), DO CC (REDACÇÃO DA LEI Nº 14/2009, DE 1/04)
Sumário:I – Quanto à caducidade da acção de investigação de paternidade, o artº 1817º do CC, aplicável por força do artº 1873º CC (redacção do DL nº 496/77, de 25/11), estabelece um prazo-regra (nº 1) e prazos especiais (nºs 3, 4 e 5), consoante a causa de pedir seja directamente o vínculo biológico ou as presunções legais.

II – Assim, no nº 1 estatui-se que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

III – No nº 4 estatui-se que se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.

IV – Com a publicação da Lei nº 14/2009, de 14/04, foram alterados os artºs 1817º e 1842º CC, aumentando-se os prazos de caducidade, cujo artº 3º impõe a aplicação dessa lei aos processos pendentes – o artº 1817º prevê, agora, o prazo-regra de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação (nº 1) e prazos especiais (nº 3, als. a), b) e c)).

V – Contudo, é dogmaticamente mais consistente a tese da imprescritibilidade deste tipo de acções, por estar em causa o direito à identidade pessoal, no qual se insere o chamado “direito ao conhecimento da ascendência biológica”, enquanto direito fundamental – artº 26º, nº 1, CRP -, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.

VI – Assim, deve entender-se que, nesta matéria, os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, sendo, por isso, inconstitucionais as normas dos artºs 1817º e 1842º CC, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1/04, com o alargamento dos prazos.

VII – As acções de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade presumida, instauradas pelo filho, não estão sujeitas a prazos de caducidade.

Decisão Texto Integral:Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I – RELATÓRIO

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II – FUNDAMENTAÇÃO

2.2. - Estamos perante acção de estado, acção complexa em que se pede simultaneamente o reconhecimento da paternidade, com base na presunção legal ( arts.1847 e 1871 nº1 a) CC ) e a impugnação da paternidade presumida, instaurada pelo filho (arts. 1828 e 1842 nº1 c) CC), sendo que ambos os direitos estão sujeitos pela lei ordinária a prazos se caducidade ( arts.1817, por remissão do art.1873, e 1842 CC).

Quanto à caducidade da acção de investigação de paternidade, o art.1817, aplicável por força do art.1873 CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) estabelece um prazo - regra ( nº1) e prazos especiais ( nºs 3, 4 e 5 ), consoante a causa de pedir seja directamente o vínculo biológico ou as presunções legais.

Assim, no nº1 estatui-se que a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

E no nº nº4 que se o investigante for tratado como filho pelo pretenso pai, sem que tenha cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano posterior à data da morte daquele; tendo cessado voluntariamente o tratamento como filho, a acção pode ser proposta dentro de um ano a contar da data em que o tratamento tiver cessado.

O Tribunal Constitucional, por acórdão nº 23/2006 ( Paulo Mota Pinto) de 10/1/2006 ( DR I Série de 8/2 ) declarou - “ a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817 do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873 do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26 nº1, 36, nº 1, e 18, nº2, da Constituição da República Portuguesa”.
No Acórdão nº 626/2009 (Cura Mariano), de 2/2/2009 (em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional decidiu – “Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 26, nº1, e 18 nº 2, da Constituição, a norma constante do nº 3, do artigo 1817, do Código Civil, na redacção conferida pelo Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, quando interpretado no sentido de estabelecer um limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade, para o exercício do direito de investigação da paternidade”.
E posteriormente, no Acórdão nº 65/2010 ( Sousa Ribeiro ), de 4/2/2010 ( www tribunal constitucional.pt ), o Tribunal decidiu:
“ Julgar inconstitucional, por violação dos arts.26 nº1 e 18 nº2 da Constituição, a segunda parte da norma constante do nº4 do art.1817 do Código Civil ( redacção a Lei nº 21/98 de 12 de Maio), aplicável por força do art.1873, do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho”.

Sobre a caducidade da acção de impugnação da paternidade presumida, o art.1842 do CC estabelece no nº1 c) que “ a acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo filho, até um ano depois de haver atingido a maioridade ou ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de um ano a contar da data em que teve conhecimento das circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.

Tem-se discutido se a doutrina do Acórdão do TC nº 23/2006 é aplicável às acções de impugnação de paternidade, também sujeitas a diversos prazos de caducidade, consoante sejam proposta pelo marido, pela mãe, ou pelo filho (art.1842 nº1 a), b) e c) CC ).

A este propósito, verifica-se ser divergente a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

No Acórdão nº 609/07 (Borges Soeiro) de 11/12/2007 ( www.tribunalconstitucional.pt) o TC, partindo do argumento essencial de que não se podem colocar desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, sustentou que “ as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817, nº1, do Código Civil estão, outrossim para a disposição contida no artigo 1842, nº 1 alínea c), do mesmo Código”, acabando por decidir pela “ inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 1842, nº 1, alínea c), do Código Civil, na medida em que prevê, para a caducidade do direito do filho maior ou emancipado de impugnar a paternidade presumida do marido da mãe, o prazo de um ano a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, por violação dos artigos 26, nº1, 36, nºs 1 e 18, nº 2 da Constituição da República Portuguesa”.

No Acórdão nº 179/10 ( Pamplona de Oliveira) de 12/5/2010, ( wwwtribunalconstitucional.pt) decidiu-se - “Não julgar inconstitucional, por violação do art.26 da Constituição, a norma do art.1842 nº1 alínea a) do Código Civil, quando, ao fixar um prazo de 2 anos, limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”.

Considerou-se, para tanto, existir diferença entre a investigação da paternidade, em que “o que está em causa é o direito à identidade pessoal do investigante ( e relativamente à qual a imposição de um limite temporal pode implicar violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores )” e a impugnação em que o que importa é “ a definição do estatuto jurídico do impugnante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal “.

Não se crê que, à luz dos direito fundamental à identidade pessoal, se deva fazer tal diferença entre os dois direitos ( de investigação e de impugnação), pois sendo complexo o conteúdo do direito fundamental ao conhecimento das origens genéticas, isso “ implica também um direito “à eliminação da mentira” relativamente à historicidade pessoal, o qual pode traduzir-se na consagração de mecanismos legais ( maxime processuais) que permitam ao filho esclarecer a sua condição biológica relativamente ao progenitor juridicamente reconhecido como tal ( é o exemplo que nos chega do direito alemão, como vimos), e/ou a tutela da possibilidade de impugnação pelo filho dos vínculos jurídicos da filiação estabelecidos, se eles não corresponderem à verdade biológica” ( VALE E REIS, “Direito ao conhecimento das origens genéticas”, RMP, ano 29, nº 116, pág.199).

Entretanto, já na pendência da acção, foi publicada a Lei nº 14/2009 de 14/4 que alterou os arts.1817 e 1842 do CC, aumentando os prazos de caducidade, cujo art.3º impõe a aplicação da lei aos processos pendentes.

O art.1817 prevê agora o prazo-regra de 10 anos posteriores à maioridade ou emancipação ( nº1 ) e prazos especiais ( nº3 a), b) e c) ).

Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente, quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai, a acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores ( nº3 b) ).

Estatui o art.1842 nº1 c) – “A acção de impugnação de paternidade pode ser intentada pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe”.

A norma de direito transitório do art.3º da Lei 14/2009, no que toca à aplicação retroactiva, tem sido julgada materialmente inconstitucional por violação do princípio da confiança, quando aplicada às acções de investigação intentadas posteriormente à publicação do Acórdão do TC nº 23/2006 ( cf., por ex., Ac RC de 23/6/2009 ( Teles Pereira), de 9/1/2010 ( Carlos Gil), de 16/3/2010 ( Gregório de Jesus ), em www dgsi.pt ).

Contudo, independentemente disso, adere-se, por ser dogmaticamente mais consistente, à tese da imprescritibilidade, tanto da acção de investigação de paternidade, como de impugnação da paternidade.

Argumenta-se, no essencial, em que ambas as acções assentam no “direito à identidade pessoal“, no qual se insere o “direito ao conhecimento da ascendência biológica”, enquanto direito fundamental ( art.26 nº1 da CRP ), tratando-se de um direito de personalidade imprescritível.

Foi nele que assentou a decisão de inconstitucionalidade proferida no Acórdão do TC nº 23/06:

“ O parâmetro constitucional mais significativo para aferição da legitimidade das limitações ao direito de investigar a paternidade encontra-se, porém, no “direito à identidade pessoal”, com que abre logo o n.º 1 do artigo 26.º da Constituição.

Importa notar, efectivamente, que a tese segundo a qual a norma em questão não é inconstitucional não se baseia na inexistência de um direito fundamental ao conhecimento da paternidade biológica, ou na exclusão deste direito do “âmbito de protecção” do direito fundamental à identidade pessoal, reconhecendo-se, antes, que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão deste direito fundamental. Assim, na jurisprudência deste Tribunal não tem sido posta em questão a existência de um interesse do filho, constitucionalmente protegido, a conhecer a identidade dos seus progenitores, como decorrência dos direitos fundamentais à identidade pessoal (e, também, do direito à integridade pessoal – artigos 25.º, e 26.º, n.º 1, da Constituição)”.

(…)

“ (…) o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compromisso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26.º, n.º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante)”.

Como se justificou no Ac RC de 23/6/2009 ( Teles Pereira), em www dgsi.pt, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do nº1 do art.1817 do CC, ex vi art.1873 CC, constante do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, foi generalizadamente interpretada, designadamente pela jurisprudência do STJ ( cf. por ex., Ac de 14/2/2006 ( Alves Velho ), de 31/1/2007 ( Borges Soeiro ), de 17/4/2008 ( Fonseca Ramos ), de 3/7/2008 ( Pires da Rosa ), disponíveis em www dgsi.pt ), como significando a imprescritibilidade do direito de investigar a paternidade, ou seja, com o fim da sujeição a qualquer prazo.

E esta posição é extensível, por idênticas razões, ao direito de impugnação da paternidade ( cf., por ex., Ac STJ de 7/7/2009 ( Oliveira Rocha), Ac RP de 24/11/2008 ( Anabela de Carvalho ) disponíveis em www dgsi.pt ).

Efectivamente – escreve-se no Ac STJ de 7/7/2009 - “ a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação “.

Já depois das alterações introduzidas pela Lei nº 14/2009 de 1/4, a jurisprudência continuou a manter a mesma orientação, argumentando-se que os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, pelo que também são inconstitucionais as normas dos arts.1817 e 1842, na redacção introduzida pela referida lei, com o alargamento dos prazos ( cf, neste sentido, Ac STJ de 25/3/2010 ( Helder Roque ), de 8/6/2010 ( Serra Baptista ), Ac RL de 9/2/2010 ( Maria do Rosário Morgado ), Ac RP de 15/3/2010 ( Pinto Ferreira ) em www dgsi.pt ).

Na verdade, as razões justificativas do estabelecimento de prazos de caducidade para as referidas acções ( segurança jurídica do pretenso pai e herdeiros, o perecimento das provas, as finalidades egoístas ) assumem hoje menos peso no confronto com a nova dimensão do “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal”, sobretudo devido aos desenvolvimentos da genética e ao movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens.

Por isso, sobre o balanceamento dos direitos, e em jeito de síntese, elucida GUILHERME DE OLIVEIRA - “ Nesta balança em que se reúnem argumentos a favor do filho e da imprescritibilidade da acção, e os argumentos a favor da protecção do suposto progenitor e da caducidade, creio que os pratos mudaram de peso”.

Depois de rebater o valor dado à garantia de “segurança jurídica”, designadamente com o dever de o suposto progenitor assumir as suas responsabilidades e com o facto de o sistema não revelar uma absoluta preocupação com a segurança social dos herdeiros ( qualquer herdeiro preterido pode intentar, a todo o tempo, uma acção de petição da herança ), de que a ideia de evitar a “caça às heranças” tem de se entender de outro modo e de que o argumento do “envelhecimento das provas “ perdeu consistência com a eficácia e generalização das provas científicas, sustenta, no entanto, o insigne Professor que em casos-limite, o direito imprescritível possa ser neutralizado através do abuso de direito ( art.334 do CC) – “ É razoável pensar que, nesses casos-limite, o autor possa ser tratado como se não tivesse o direito que invoca – porque nunca o quis usar quando podia fazê-lo, porque se guardou para um momento em que o suposto pai organizou a sua vida em favor de outros herdeiros, porque o autor não pretende mais do que facturar no seu activo patrimonial” – para concluir que – “ os progressos técnicos e os movimentos sociais de valorização das origens e de responsabilidade individual estão contra a limitação de investigar que resulta do prazo de caducidade “ (“ Caducidade das acções de investigação”, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, pág49 e segs. ).

Também no direito comparado a regra é a da imprescritibilidade das acções, como no direito italiano ( art.270 CC), brasileiro ( art.1606 CC ), espanhol ( art.133 CC), alemão ( art.1600 CC) e de Macau ( art.1677 nº1 ).

Neste contexto, conclui-se pela inconstitucionalidade material das normas dos arts.1817 nº1 e 4 ( redacção da Lei nº 21/98 de 12/5) e 1842 nº1 c) do CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) e dos arts.1817 nº1 e 3 b) e 1842 nº1 c) CC ( redacção da Lei nº 14/2009 de 1/4, que estabelecem novos prazos de caducidade para a acção de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade, respectivamente), por violação do art.26 nº1 da CRP.

Por isso, não se verifica a caducidade da acção, o que implica a revogação do despacho recorrido.



2)


Recusar a aplicação, por inconstitucionalidade material das normas dos arts.1817 nº1 e 4 (redacção da Lei nº 21/98 de 12/5) e 1842 nº1 c) do CC ( redacção do DL nº 496/77 de 25/11) e dos arts.1817 nº1 e 3 b) e 1842 nº1 c) CC (redacção da Lei nº 14/2009 de 1/4, que estabelecem novos prazos de caducidade para a acção de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade, respectivamente), por violação dos art.26 nº1 e 18 nº2 da CRP.


 


               


***

Donde a conclusão de que, no presente caso, não se verifica a caducidade do direito do Autor a propor a presente acção (como o próprio defende nas suas alegações de recurso).

                Também no apontado sentido, entre outros, pode ver-se “Direito da Família – 3ª Bienal de Jurisprudência”, vol. 11, Coimbra Editora, pg. 21 a 27; Ac. STJ de 14/12/2006, in C.J. STJ ano XIV, tomo III, pg. 161; Ac. Rel. Coimbra de 23/05/2006, Proc.º nº 776/06 (in www.dgsi.pt/jtrc); Ac. Trib. Constitucional nº 65/2010, in DR, 2ª série, de 8/03/2010.

E mais recentemente, podem ver-se os Ac.s do STJ de 21/09/2010 e de 6/09/2011 (Proc.º nº 1167/10.5TBPTL.C1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt/jstj, sendo que o sumário do último também se pode ver in “Col. Jur. STJ, ano XIX – tomo III/2011, pg. 274”.

                Estamos, pois, pelo menos em parte, de acordo com a sentença recorrida a este propósito, da qual passamos a transcrever a respectiva fundamentação (na parte em causa).

“Questão a decidir: Atento o objecto do processo, importa decidir, depois de verificar da existência ou não de caducidade por força de decurso de qualquer prazo de propositura da acção, se o Autor é ou não filho do Réu.

II. Fundamentação:

A. Factos provados:

1. J… nasceu no dia 10/10/1927 e faleceu em 19/06/1984 (docs. de fls. 4 e 8 dos autos).

2. O Autor nasceu no dia 28/02/1953 (doc. de fls. 7 dos autos), não tendo sido averbada no assento de nascimento a menção de paternidade.

3. O Réu frequentava a casa da mãe do Autor antes do nascimento deste (provado em julgamento).

4. O Autor nasceu em consequência de relacionamento sexual, de cópula completa, ocorrido no período legal da concepção do Autor, entre o Réu e J… (provado em julgamento).

5. O Réu tem-se recusado a assumir-se como pai do Autor (provado em julgamento).

*

B. Fundamentação de Direito:

1. Com a presente acção é pretendido pelo Autor que o Réu reconheça ser seu pai.

Estamos, pois, no âmbito de uma acção de investigação da paternidade, com a particularidade de ter sido proposta quando o Autor tinha já mais de cinquenta anos de idade, tendo já falecido mesmo a sua mãe, o que nos remete, desde já, para a questão da caducidade ou não da acção, por decurso de prazo, por ser esta de conhecimento oficioso.

Centrada desde já a análise no essencial, a questão única é apreciar neste domínio é a de saber se, declarado inconstitucional o prazo de 2 anos para a caducidade do direito de acção de investigação da paternidade do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, é constitucional o novo prazo de caducidade de 10 anos estabelecido pelo artigo 3.º da Lei 14/09 de 1 de Abril.

Começando pela declaração de inconstitucionalidade referida, importa recordar que por acórdão do Tribunal Constitucional (n.º 23/06) de 10 de Janeiro foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, porque violadora dos artigos 16.º n.º 1, 36.º n.º 1 e 18.º n.º 2 da Constituição, a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, sendo que a presente acção foi já proposta depois dessa decisão, ainda que no mesmo ano.

Estava em causa, como sabemos a norma (aplicável por força do disposto no artigo 1873.º) que estabelecia que o direito de investigar a paternidade caducava nos dois primeiros anos posteriores à maioridade do investigante, razão pela qual, com aquela declaração de inconstitucionalidade, a mesma deixou de vigorar, deixando assim de existir qualquer prazo para a propositura da acção. Ou seja, citando a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2010 , quando a presente acção deu entrada em juízo não existia na nossa ordem jurídica norma em vigor sobre a caducidade da acção.

Porém, posteriormente, já na pendência da causa, entrou em vigor em 2 de Abril de 2009 a Lei n.º 14/09, de 1 de Abril, que, dispondo que se aplica aos processos pendentes – seu artº 3º -, deu nova redacção ao n.º 1 do citado artigo 1817º do Código Civil, passando essa a ser a de que “a acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”.

Assim, com este novo estabelecimento de prazo, ainda que alargado em relação ao que havia sido declarado inconstitucional, coloca-se a questão de saber se aquele novo prazo deve ser aplicado, até porque o referido Acórdão n.º 23/06 do Tribunal Constitucional apenas se pronunciou, por ser nesse momento o único em apreciação, pela inconstitucionalidade do prazo de dois anos após a maioridade.

E, diga-se, reveste tal questão relevância efectiva no caso que se decide pois que no momento da propositura da acção há muito que tinha também já decorrido esse novo prazo de dez anos, do que poderia resultar, se nada impedisse a sua aplicação, a caducidade do direito de o Autor propor a acção.

E digo poderia porque, tal como aliás tem sido afirmado por parte significativa da jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça, cujos argumento acompanho por manifesta concordância, o que está em causa, e sobressai do citado acórdão do Tribunal Constitucional, é a ideia de que não prescrevem estas acções em que se pretende reconhecer um estado pessoal por respeito ao direito fundamental à identidade pessoal.

Com a agravante de, tal como ocorre no caso em apreço, porque a acção foi instaurada após tal declaração de inconstitucionalidade e antes da entrada em vigor da citada Lei n.º 14/09, citando de novo aqui o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2010 (supra citado), torna-se “inteiramente ajustada a posição assumida de que a aplicação retroactiva desta lei aos processos pendentes à data da entrada em vigor da mesma, frustra a confiança depositada” pelo autor – confiança que o levou a propor a acção – “num entendimento consolidado, segundo o qual o direito não estaria sujeita a prazo de caducidade”. Assim, seguindo de muito perto o mesmo Aresto, a aplicação do artigo 3º da Lei 14/09 a uma acção de investigação de paternidade instaurada antes da sua entrada em vigor mas já depois de ter sido declarado inconstitucional o prazo antes estabelecido, “constituirá uma evidente violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança legítima ínsitos no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da Constituição da República” (…), protecção de confiança essa “que radica no direito dos cidadãos tomarem decisões e haverem feito planos de vida com fundamento em expectativas de continuidade de comportamentos dos poderes públicos, fundadas e ou justificadas em boas razões, e logo não poderem ser confrontados com súbitas mudanças de rumo a menos que exigíveis por um interesse público que pelo seu valor ou importância sobreleve aquelas expectativas privadas como sintetizado por Maria Lúcia Amaral in “ A Forma da Republica”, 182 -184.”. Como ainda, circunstância que mais uma vez é mencionada no mesmo Acórdão, afigura-se-me legítimo concluir que as razões que estiveram subjacentes à declaração de inconstitucionalidade e que foram referidas no citado acórdão do Tribunal Constitucional se mantêm inteiramente válidas, como o é a consagração constitucional, que deve ser dada por adquirida, como dimensão do direito à identidade pessoal, tido por consagrado no artigo 26.º, do direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade.

E, tidos os referidos direitos nas suas vestes constitucionais de direitos fundamentais, forçoso é concluir que mesmo a estipulação de um prazo de caducidade mais alargado, como o é o constante do artigo 1817.º na redacção da nova lei, se traduz, nesse sentido, como o estabelecimento de uma efectiva restrição ao seu exercício, pelo que, face agora ao imperativo do artigo 18.º n.º 2 da Constituição, se imporá afirmar que só serão admissíveis restrições aos mesmos direitos quando necessárias para salvaguardar direitos e interesses constitucionalmente protegidos, impondo-se ainda que revistam carácter geral e abstracto, não tenham efeitos retroactivos e que não diminuam a extensão e o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Não se esquece, diga-se, que anteriormente o Tribunal Constitucional se pronunciara pela constitucionalidade do prazo de caducidade da lei civil – primeiro relativamente ao artº 1817º, nºs 3 e 4 e depois relativamente ao artº 1817º, nº 1 - em nome do princípio da segurança jurídica e de uma ponderação dos direitos contrapostos do filho ao reconhecimento da paternidade e do pretenso progenitor a não ver protelada uma situação de incerteza, importando ainda não esquecer a própria circunstância de existirem dificuldades de prova decorrentes do passar do tempo. Porém, a verdade é que, fruto da natural evolução da sociedade e das alterações daí decorrentes ao nível da ponderação dos interesses em jogo, com uma crescente valorização do direito de cada um a saber as suas origens genéticas e raízes familiares e culturais, bem como também, agora sobre as referidas dificuldades de prova, da evolução científica que permite obter resultados com um grau de certeza antes impensável, acabam por justificar, na senda do já defendido de entre outros por PEREIRA COELHO -  in “Curso de Direito da Família”, Vol II, Tomo 1, 247 a 254 -, o mencionado desenvolvimento da doutrina do Tribunal Constitucional que veio a culminar com a aludida declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade do citado artigo 1817.º n.º 1 do Código Civil.

Assim, o que se considera é afinal que a valorização dos direitos fundamentais da pessoa supra referidos prevalecem sobre o estabelecimento de prazos de caducidade para as acções em que esteja em causa o estabelecimento da filiação.

E, porque assim é, não pode também na minha opinião o estabelecimento de um qualquer prazo para a propositura da acção afectar aquele direito fundamental à identidade pessoal e de livre desenvolvimento da personalidade (6), por se traduzir aquele afinal numa restrição não justificada, desproporcionada e não admissível, do direito de uma pessoa saber em vida de quem descende.

Desta forma, tal como aliás tem sido repetido em variados Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, precisamente pelo facto de estar em causa o estabelecimento da paternidade de alguém, com o ocorre na presente acção com o Autor, também o prazo agora previsto no artigo 1817.º, n.º 1, na redacção da nova Lei, é materialmente inconstitucional, por ser também ele limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, pois que, face ao novo paradigma do direito fundamental à identidade pessoal e de livre desenvolvimento da personalidade, supra referenciado, acaba por se traduzir, como se disse, numa efectiva restrição, não justificada, desproporcionada e não admissível daquele direito.

Impõe-se, pois, recusar a aplicação, nos termos do artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa, do novo normativo da Lei n.º 14/09, sobre o prazo de caducidade da acção de investigação da paternidade movida neste caso pelo Autor na acção.”.

E dizemos que estamos em parcial acordo com a dita tese, na medida em que pensamos dever-se continuar a entender que “a posterior aplicação retroactiva às acções intentadas no pressuposto do prazo de caducidade constante da redacção introduzida no artigo 1817º do CC, operada pela Lei nº 14/2009 e decorrente do artigo 3º desta (determinando a aplicação da nova redacção aos processos pendentes à data da entrada em vigor do Diploma) ofende ostensivamente as expectativas fundadamente criadas ao abrigo do entendimento do Ac. Tribunal Constitucional nº 23/2006.

Essa aplicação retroactiva viola, em tais situações, o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático decorrente do artigo 2º da CRP, acarretando a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei nº 14/2009, quando aplicado a acções intentadas posteriormente à publicitação do Acórdão nº 23/2006 e anteriormente à entrada em vigor (02/04/2009) desta Lei”, conforme nosso acórdão antes citado e bem assim o acórdão do Relator Teles Pereira também antes citado.

E isto com o aval do Tribunal Constitucional, embora tal aval/entendimento não seja aí uniforme, conforme bem resulta, designadamente, dos seus Acórdãos nºs 164/2011, de 24/03/2011 (no qual foi decidido “julgar inconstitucional, por violação do nº 3 do artº 18º da Constituição, a norma constante do artº 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redacção do artº 1817º do C. Civil, aplicável por força do artº 1873º do mesmo Código), 285/2011, de 7/06/2001 (não julgou a referida norma inconstitucional); e 24/2012, de 17/01/2012 (este publicado no D.R., 2ª série – nº 41 – 27 de Fevereiro de 2012), da autoria do plenário do T. C., pelo qual se procurou dirimir a referida divergência jurisprudencial do T. C. (decidindo-se no sentido de “julgar inconstitucional a norma constante do artº 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redacção do artº 1817º, nº 1 do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873º do mesmo Código”, pese embora o conjunto de votos de vencido aí manifestado…

                Pelo que concluímos nos citados termos, assim improcedendo o recurso interposto pelo Réu/Apelante a propósito da questão da caducidade do prazo de propositura da acção, por ele suscitada.


***

                Prosseguindo com a questão B, supra elencada, já antes deixámos enunciados os factos dados como apurados, e que não foram objecto de impugnação por parte do Recorrente.

                O que este defende é que tais factos não são relevantes para que pudesse (possa) ser julgada procedente a acção, como foi, isto é, que tais factos não são suficientes para o reconhecimento do Réu como pai do Autor.

                Os referidos factos são os seguintes (que reproduzimos):

  1. J… nasceu no dia 10/10/1927 e faleceu em 19/06/1984 (docs. de fls. 4 e 8 dos autos).

2. O Autor nasceu no dia 28/02/1953 (doc. de fls. 7 dos autos), não tendo sido averbada no assento de nascimento a menção de paternidade.

3. O Réu frequentava a casa da mãe do Autor antes do nascimento deste.

4. O Autor nasceu em consequência de relacionamento sexual, de cópula completa, ocorrido no período legal da concepção do Autor, entre o Réu e J...

5. O Réu tem-se recusado a assumir-se como pai do Autor.

                Sendo estes os factos, manifesto se torna que ficou provado que o Réu frequentou a casa da mãe do aqui autor antes do nascimento deste e que tiveram relações sexuais entre ambos, com cópula completa, no período dito de legal concepção do autor, em consequência do que veio a nascer o aqui autor.

                Assim sendo, presume-se a paternidade do Réu em relação ao Autor, nos termos do artº 1871º, al. e) do C. Civil (na sua redacção decorrente da Lei nº 21/98, de 12/05), disposição segundo a qual “a paternidade se presume quando se prove que o pretenso pai teve relações sexuais com a mãe durante o período legal de concepção”, presunção esta que apenas se considera ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado (nº 2 do citado artº 1871º), o que não é manifestamente o caso.

                Assim sendo, torna-se claro que está presumida a paternidade do aqui Réu em relação ao aqui Autor, com base nos factos apurados, pelo que importa confirmar a sentença, que assim o decidiu, improcedendo, pois, o recurso interposto.

Ainda a propósito da dita matéria de facto, o Recorrente sustenta que “(39ª) O Mº Juiz a quo não deu observância ao disposto no nº 2 do artigo 653º do C.P.C., aquando da prolação do respectivo despacho, o qual não preencheu as suas exigências – proceder à análise critica das provas produzidas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”.

Ora, basta analisar a decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto – fls. 261 a 265 – para constatar não ter sido assim, já que não só foram indicados os factos tidos como provados – tenha-se em atenção que não fora elaborada base instrutória em sede de despacho saneador -, como foi indicada a fundamentação da convicção do Tribunal, o que assentou em prova documental junta aos autos, prova testemunhal e inferência tirada da conduta do Réu em se ter recusado, por várias vezes, em ser submetido a exame hematológico, apesar das diligências (várias) havidas nesse sentido e de se terem proporcionado ao Réu meios de transporte para se poder deslocar ao IML de Coimbra, o que sempre recusou fazer.

Não foi, pois, violado o artº 653º, nº 2 do CPC, sendo certo que o Recorrente não impugna a decisão da 1ª instância proferida em matéria de facto, como bem resulta quer da sua alegação de recurso quer das conclusões que apresentou, designadamente tendo em conta o disposto no artº 690º, nºs 1, als. a) e b) e 2 do CPC (na redacção anterior ao Dec. Lei nº 303/2007, de 24/08).

 

                Concluindo, improcede o presente recurso, impondo-se a confirmação da sentença recorrida, o que se decide.


VIII

                Decisão:

                Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo interposto e supra conhecido e em julgar improcedente o recurso de apelação, ambos interpostos pelo Réu, confirmando-se a sentença recorrida, nos seus exactos e precisos termos.

                Custas pelo Réu/recorrente.


Jaime Carlos Ferreira (Relator)

Jorge Arcanjo

Teles Pereira