Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1242/14.7TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: CAUSA DE PEDIR
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
Data do Acordão: 12/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS.664 CPC, 408 CC, DL Nº 149/95 DE 24/6
Sumário: I – A «causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe» [artigo 552.º, n.º 1, al. d) do Código de Processo Civil], pelo que não existe alteração da causa de pedir quando o tribunal altera essa qualificação jurídica mantendo-se os mesmos factos.

II – O contrato de locação financeira [DL n.º 149/95, de 24 de Junho] pode conferir ao locador a aquisição do direito de propriedade sobre edifícios construídos pelo locatário em imóveis rústicos objeto do contrato.

Decisão Texto Integral:





I. Relatório ([1])

a) O Banco (…) instaurou a presente ação declarativa de condenação contra a ré P (…), Lda., com o fim de obter, no confronto com esta, sentença que o reconheça como:

«a) …dono e legítimo proprietário dos prédios rústicos: i) X (...) com a área de 6.600m2, confrontado do norte com estrada, do sul com (...) , do Nascente com Herdeiros de (...) e do Poente com (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) , sob a ficha n.º xxx(...) , freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o art. yyy(...) , e

ii) Y (...) – terra de semeadura com a área de 5.800m2, confrontado do norte com (...) , do sul com (...) ; do nascente com (...) e do poente, com (...) e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º www(...) , freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz rústica sob o artigo zzz(...) » e que condene «b) … a Ré a restituir ao Autor os prédios rústicos melhor identificados em a) i) e ii) completamente devolutos e desocupados de pessoas e bens», condenando-se ainda a «c) … Ré na acessão industrial imobiliária de boa-fé, nos termos do n.º 3 do art. 1340.º do Código Civil, vendo reconhecido o direito do Autor em receber as edificações que aí se encontrem, uma vez que também já as pagou, pelo valor de € 923.878,52, a título de indemnização, sendo os ditos terrenos, propriedade do Autor, a si restituídos».

Alegou, em síntese, que celebrou em 1999 um contrato de locação financeira com a empresa P (…(, Lda., que teve por objeto os dois prédios rústicos da Autora, contrato que foi resolvido por mútuo acordo em 28 de dezembro de 2004, nos termos do qual, a sociedade «P (…), Lda.» restituiria ao Autor os imóveis objeto do contrato de locação financeira, livre de bens e pessoas ou encargos, e no estado em que ou recebeu, e receberia do Autor, como recebeu, a quantia de EUR 923.878,52, a título de indemnização «por força da valorização do imóvel» correspondente a uma edificação que a sociedade P (…) fizera de uma fábrica e respetivo armazém.

Mais tarde, o Autor celebrou um outro contrato de locação financeira, incidente sobre os mesmos prédios rústicos, com a ora Ré, contrato que foi resolvido pelo Autor, por carta de 16 de Novembro de 2006 porque a Ré não pagou as rendas.

Juridicamente, sustenta que a Ré se recusa a entregar-lhe os prédios e daí a necessidade da presente ação.

A Ré contestou sustentando que o Autor litiga com má fé, abuso de direito e pretende enriquecer sem causa uma vez que as construções têm um valor de EUR 1.629.250,00, quantia que a Autora não pagou.

Deduziu reconvenção que foi considerada sem efeito conforme despacho de fls. 307.

A Autora replicou, concluiu pela improcedência das exceções e ampliou o pedido de modo a ser reconhecido o seu direito de propriedade sobre os edifícios.

No final foi proferida a seguinte decisão nestes termos:

«1. Declara-se que o Autor é dono e legitimo proprietário dos seguintes prédios rústicos:

i) X (...) com a área de 6.600m2, confrontado do norte com estrada, do sul com (...) , do Nascente com Herdeiros de (...) e do Poente com (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) , sob o n.º xxx(...) /19931129, freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o art. yyy(...) , e

ii) Y (...) – terra de semeadura com a área de 5.800m2, confrontado do norte com (...) , do sul com (...) ; do nascente com (...) e do poente, com (...) e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º www(...) /19940126, freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz rústica sob o artigo zzz(...) .

2. Condena-se a Ré a restituir ao Autor os referidos prédios rústicos;

3. Absolve-se a Ré do que, no mais, contra si vinha peticionado.

4.Condenam-se Autora e Ré nas custas processuais, na proporção do decaimento, fixando-se a responsabilidade em partes iguais».

b) É desta decisão que recorre a Autora, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

c) A recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

(…)

II. Objeto do recurso

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar pelas questões processuais, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e por fim com as atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes ([2]):

1 - Em primeiro lugar cumpre resolver as questões relativas à impugnação da matéria de facto, isto é:

a) Facto provado n.º 3.

O Banco pretende que se declare provado que o objeto do negócio celebrado entre as partes não se reduziu apenas aos referidos prédios rústicos, mas também e, essencialmente, ao financiamento à construção dos edifícios aí implantados pela primitiva locatária, P (…), Lda.

b) Facto provado n.º 5.

  O Banco sustenta que existiu um erro de julgamento ao considerar-se como provado que o valor acordado de € 923.878,52 foi ponderado e calculado tendo por base a edificação que a primitiva locatária fez nos referidos prédios rústicos e o valor dos créditos que a mesma detinha sobre o Autor.

Pretende que se declare provado que tal valor resulta da diferença entre o valor da avaliação do imóvel (€1.450.000,00) à data da resolução e o montante do capital locado á data da operação.

c) Facto provado n.º 6.

O Banco pretende que se declare provado que o contrato que foi celebrado em 22/05/2005 com a sociedade P (…), Lda., não incidiu apenas sobre os prédios rústicos, mas também, sobre as construções já aí edificadas pela primitiva locatária.

d) Factos não provados sob a al. B).

O Banco, pelas razões que indica pretende que se declare provada a seguinte factualidade:

(I) No âmbito da resolução por acordo do referido Contrato de Locação Financeira Imobiliária, a sociedade P (…), Lda., veio a reconhecer o Banco (…) como dono e legítimo proprietário das referidas edificações;

(II) Na referida data, a P (…), Lda., procedeu á entrega quer dos prédios rústicos, quer das construções aí implantadas completamente devolutas de pessoas e bens ao ora Recorrente;

(III) A P (…) Lda. através do recebimento da indemnização veio a reconhecer-se como totalmente ressarcida pela valorização do imóvel, declarando nada mais ter a receber, seja a que título for, pela referida resolução contratual;

(IV) A P (…), Lda. obteve um benefício efectivo ao ser ressarcida pelo valor de €923.878,52 (novecentos e vinte e três mil oitocentos e setenta e oito euros e cinquenta e dois cêntimos), correspondente à valorização do referido imóvel.

2 - Em segundo lugar, colocam-se as questões jurídicas, cumprindo verificar:

a) Se entre o Banco autor e a Ré recorrida P (…) Lda., foi celebrado um contrato de Locação Financeira Imobiliária, no âmbito do qual, foi acordada a aquisição dos referidos prédios rústicos e das construções ai implantadas pelo montante global de €1.450.000,00 a liquidar no prazo de 15 (quinze) anos, de onde resulta que a Ré não tinha previamente a este contrato qualquer direito de propriedade sobre as edificações.

b) Se o Regime Jurídico da Locação Financeira possibilita ao locador a possibilidade de financiar a construção de determinados empreendimentos em terrenos rústicos seus, construções essas, que ao serem implantadas em terreno pertencente ao locador lhe pertencem, exceto se o respetivo contrato de locação for integralmente cumprido e no seu termo, o locatário vier a adquirir as mesmas.

Cumprindo, ao mesmo tempo, verificar se poderá ser analisada a presente questão por importar, como alegou a Ré, invocação de causa de pedir nova.

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto

(…)

b) Matéria de facto provada

1. Por escritura pública de celebrada no dia 18 de dezembro de 1998, no Cartório Notarial de M (…), o ora Autor, à data com a denominação «M (…), S.A.», declarou comprar a «E (…), Limitada», que declarou vender-lhe os seguintes prédios rústicos:

i) X (...) com a área de 6.600m2, confrontado do norte com estrada, do sul com (...) , do Nascente com Herdeiros de (...) e do Poente com (...) , descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) , sob o n.º xxx(...) /19931129, freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz predial rústica sob o art. yyy(...) , e

ii) Y (...) – terra de semeadura com a área de 5.800m2, confrontado do norte com (...) , do sul com (...) ; do nascente com (...) e do poente, com (...) e outro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob a ficha n.º www(...) /19940126, freguesia de (...) – (...) , inscrito na matriz rústica sob o artigo zzz(...) .

2. O ora Autor, ainda com a denominação «M (…), S.A.», celebrou, em 22 de julho de 1999, um contrato de Locação Financeira Imobiliária com a referida «E (…), Limitada» a qual, posteriormente, passou a sua denominação para «P (…), Lda.».

3. O objeto do negócio celebrado entre o Autor e a sociedade «P (…) Lda.», foram os prédios melhor identificados em “1.” e o  financiamento à construção dos edifícios aí implantados por esta primitiva locatária.

4. Em 28 de dezembro de 2004, o Autor e a sociedade «P (…) Lda.», por instrumento particular, resolveram o contrato de locação financeira, acordando, nos seguintes termos:

I) A sociedade «P (…), Lda.», declarou restituir ao Autor o imóvel objeto contrato, livre de bens e pessoas ou encargos, e no estado em que recebeu;

II) A sociedade «P (…), Lda.», declarou «que recebeu, a título de indemnização por força da valorização do imóvel, o montante de € 923.878,52, declarando nada mais ter a receber, seja a que título for, pela presente resolução contratual».

5. O referido valor de € 923.878,52 foi acordado tendo por base a ponderação entre uma edificação que a sociedade P (…) fez, nos prédios rústicos, de uma fábrica e respetivo armazém, e o valor dos créditos que sobre a mesma detinha o Autor.

6. Com data de 22.05.2005, o Autor celebrou com a sociedade «P (…) Lda.» um contrato de locação financeira imobiliária, incidente sobre os identificados prédios rústicos e sobre as construções já aí edificadas pela primitiva locatária, face ao qual a Ré deixou de pagar as rendas de dezembro de 2005 a dezembro de 2006, tendo o Autor, em 16.11.2006, mediante carta registada dirigida à Ré, procedido à resolução contratual.

7. A Ré não restituiu até hoje ao Autor os imóveis.

8. Por sentença transitada em julgado em 31.12.2007, proferida no seio do procedimento cautelar n.º 356/07.4TVLSB que correu termos no então 3.º Juízo do Tribunal Judicial de (...) , por força da resolução de contrato de locação financeira, a Ré, aí requerida, foi condenada a entregar ao autor, aí requerente, os descritos prédios rústicos.

9. Nos prédios rústicos existe uma edificação feita pela anterior locatária P (…), Lda., feita com o consentimento e financiamento do Autor, composto por nave industrial e instalações de apoio sociais, administrativas e zona de exposição, o qual, tinha sido edificado para os fins comerciais.

10. Tal edificação é composta pela zona industrial com estrutura metálica porticada, com paredes de alvenaria de tijolo e vãos envidraçados com caixilharia de alumínio ou em chapa acrílica, com pavimento em betão afagado.

11. A zona de apoio tem estrutura em betão armado, com paredes em alvenaria com grandes áreas envidraçadas e pavimentos cerâmicos.

12. O edifício construído nos prédios rústicos, tem de áreas cerca de 5.200m2 de zona industrial e de 593m2 de zona de apoio e não se encontra licenciado e assim inscrito na matriz ou sequer descrito na Conservatória do Registo Predial.

13. O valor da edificação feita pela anterior locatária nos prédios rústicos do Autor tem o valor de €1.508,00,00 (reportado ao ano de 2003).

14. O valor dos dois prédios rústicos do Autor era, em 2003, de €185.500,00.

Factos Não Provados

- quanto ao acordo de resolução datado de 28.12.2004 e à relação existente entre o valor aí acordado e o valor da edificação, nada mais se provou além do que consta do teor literal da sua cláusula 1ª (cfr. fls. 129) e do ponto provado em 5.;

- não se provou que que não tenha havido algum pagamento ou benefício efetivo da Ré (designadamente abatimento de débitos) relativamente ao valor de €923.878,52 aposto em tal cláusula;

- igualmente não se provou que o Autor não tivesse conhecimento da existência dessa edificação ou que não tivesse dado prévio consentimento à sua construção (artsº 32º, 38º e 42º da douta petição).

c) Apreciação das restantes questões objeto do recurso.

Antes de iniciar a análise das questões colocadas pelo recurso cumpre referir que nos autos são feitas pelas partes e pelo tribunal, com alguma frequência, afirmações que imputam à Ré recorrida P (…) Lda., a execução as edificações que existem nos prédios que foram objeto do contrato de locação financeira

Na sentença é feita essa referência, por exemplo, na página 9, linha 3 a contar do fim e na página 10, linha 1, linha 6 e linha 3 a contar do fim.

Não só a Ré não procedeu à execução das edificações como entrou na posse delas através do contrato de locação financeira celebrado em 22 de maio de 2005, já extinto, por resolução declarada pela Autora, mediante carta registada dirigida à Ré.

Por conseguinte, é líquido que a Ré não tem qualquer título que lhe permita ocupar as edificações e recusar a sua entrega.

Passando à análise das questões colocadas.

1 – Vejamos se se entre o Banco autor e a Ré recorrida P (…) Lda., foi celebrado um contrato de locação financeira imobiliária, no âmbito do qual, foi acordada a aquisição dos referidos prédios rústicos e das construções ai implantadas pelo montante global de €1.450.000,00, a liquidar no prazo de 15 (quinze) anos.

A resposta a esta questão é afirmativa e resulta do contrato de locação financeira celebrado, bem como do facto provado n.º 6, do qual consta que o contrato de locação financeira imobiliária incidiu sobre os identificados prédios rústicos e sobre as construções já aí edificadas pela primitiva locatária.

Resulta do exposto que a Ré não tinha previamente a este contrato qualquer direito de propriedade sobre as edificações.

2 – Vejamos agora se o Regime Jurídico da Locação Financeira possibilita ao locador a possibilidade de financiar a construção de determinados empreendimentos em terrenos rústicos seus, construções essas, que ao serem implantadas em terreno pertencente ao locador lhe pertencem, exceto, se o respetivo contrato de locação for integralmente cumprido e no seu termo, o locatário vier a adquirir as mesmas.

Cumprindo, ao mesmo tempo, verificar se poderá ser analisada a presente questão por importar, como alegou a Ré, invocação de causa de pedir nova.

Começando por este último aspeto, desde já se adianta que não assiste razão à Ré.

Sobre o conceito de causa de pedir, vejamos o que referiu o Prof. Alberto dos Reis:
«Temos várias vezes acentuado que a causa de pedir nada tem que ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe.
Essa valoração é simples apreciação ou ponto de vista mental; se a parte ou o tribunal modificar a qualificação ou valoração, nem por isso se dirá que houve mudança na causa de pedir.
Isto equivale a dizer com Chiovenda: a causa petendi não é a norma abstracta da lei invocada pela parte, mas o facto que se alega como expressão de vontade concreta da regra legal; de sorte que a simples mudança de ponto de vista jurídico, isto é, a invocação de norma legal diversa, não significa diversidade de causa de pedir. Essa mudança é lícita à parte e ao juiz; quando muda somente o ponto de vista jurídico, não se evita a excepção de caso julgado (Chiovenda, Instituciones cit.,Tomo1.ª, págs 380 e 371) ([3]).
E, mais à frente:
«Uma mulher casada, tendo conhecimento de que o marido se exibia, no cinema e na rua, em companhia de outra mulher e passeava com ela de braço dado, propôs contra ele acção de divórcio. Alegou, como fundamento, os factos apontados e considerou como revelação do adultério do réu; enquadrou, por isso, a acção no n.º 2 do art. 4.º do Dec. De 3-11-1910.
O juiz da 1.ª instância julgou provados os factos articulados; mas porque viu neles, não a revelação de adultério, mas injúria grave praticada pelo réu contra a autora, decretou o divórcio com fundamento, não no n.º 2 do art. 4.º, invocado pela autora, mas no n.º 4 do mesmo artigo.
(…)
A causa de pedir da acção eram os factos apontados pela autora e não a qualificação jurídica que ela entendera dar-lhes. A autora pediu o divórcio com o fundamento no adultério do marido. O que significa isto, em rigorosa técnica processual?
Significa que, ao fazer o enquadramento legal dos factos imputados ao marido, viu neles a manifestação de adultério, qualificou-os como expressão de relações adulterinas entre o réu e a mulher em companhia da qual se exibia em público. Catalogou-os, por isso, no n.º 2 do art. 4.º do Dec. De 3-11-910.
Estava o tribunal adstrito a tal qualificação jurídica?
É evidente que não. O art. 664.º vincula o tribunal aos factos fornecidos pelas partes; mas não o vincula à aplicação, que as partes façam, das regras de direito. Quer dizer, o juiz não podia decretar o divórcio com base em factos diversos daqueles que a autora lhe oferecia; mas podia perfeitamente aplicar a esses factos norma de lei diferente da que a autora invocara.
A Autora dissera: os factos que exponho caem sob o império do n.º 2 do art. 4.º; o tribunal tinha plena liberdade de declarar: os factos apresentados pela autora caem sob o domínio, não do n.º 2 do art. 4.º, mas do n.º 4 do art. 4.º.Com isto, o tribunal mantinha-se fielmente dentro da causa de pedir alegada pela parte (os factos atribuídos ao marido); o que sucedia era que, não concordando com o ponto de vista jurídico exposto pela autora, como era seu direito, submetia os factos a outro enquadramento legal, dava-lhes qualificação jurídica diferente» ([4]).

Vejamos o caso dos autos.

O Autor alega na petição inicial, entre outras afirmações, o seguinte:
No artigo 4.º:
Que celebrou, em 18 de dezembro de 1998, o contrato de locação financeira com a «E (…)Limitada» a qual, posteriormente, passou a sua denominação para «P (…) Lda.».
No artigo 5.º
Que o objecto do contrato de locação financeira «foram os prédios melhor identificados em docs. 2 e 5», sendo o documento 5 o contrato celebrado em 18 de dezembro de 1998.
No artigo 6.º
Refere o acordo de resolução celebrado em 28 de Dezembro de 2004, nos termos do qual o contrato de locação financeira de 18 de dezembro de 1998 foi resolvido nos seguintes termos:
(I) A sociedade “P (…), Lda.“ restituiu ao Autor os imóveis objecto do contrato de locação financeira de doc. 4, livre de bens e pessoas ou encargos, e no estado e que os recebeu, mediante o pagamento de €923.878,52, a título de indemnização, por força da valorização do imóvel;
ii) O Autor, para receber os referidos imóveis, pagou o montante de €923.878,52, a título de indemnização, por força da valorização do imóvel.
No artigo 7.º:
O Banco autor diz que «…o valor pago pelo Autor o valor de € 923.878,52, a título de indemnização à sociedade P (…) deveu-se, à edificação efectuada, por esta última, de uma fábrica e respectivo armazém».
Nos artigos 13.º e 14.º:
Afirma que a resolução do contrato de locação financeira imobiliária, impunha à Ré a obrigação de restituir ao Autor os prédios rústicos locados, o que esta não fez.
E no artigo 19.º:
«Aliás, tal construção já referida supra, foi devidamente paga pelo Autor à sociedade “P (…)t“, devendo-se considerar tal construção como sua».

Verifica-se que nestas afirmações, como se vê pelo teor do artigo 7.º e 19.º acabados de mencionar, o Banco autor afirma que é proprietário das edificações com fundamento no primeiro contrato de locação financeira e das relações aí estabelecidas com a empresa «P (…), Lda.».

Cumpre, por conseguinte, concluir que o Banco autor alegou como fundamento para a aquisição do direito de propriedade sobre as edificações, não só a acessão imobiliária, como também o contrato de locação financeira celebrado em 18 de dezembro de 1998 com a empresa P (…), Lda.» e a sua posterior resolução.

Cumpre apenas referir que, quer o contrato de 18 de dezembro de 1998, quer a sua resolução constam de documento escrito com as assinaturas reconhecidas presencialmente por notário, consoante exigência, relativa à forma contratual mencionada no n.º 2, do artigo 3.º do DL n.º 149/95, de 24 de Junho ( Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira) ([5]).

Vejamos então se o Banco adquiriu a propriedade dos edifícios através do contrato de locação financeira.

A resposta é afirmativa.

Nos termos do n.º 1 do artigo 408.º do Código Civil, «A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções previstas na lei» ([6]).

Por conseguinte, o contrato de locação financeira celebrado entre as partes é um modo válido para constituir direitos reais sobre edificações, mormente quando o terreno onde estão implantadas pertence já àquele que nos termos do contrato adquire a propriedade dos edifícios.

O próprio regime jurídico la locação financeira dá cobertura a esta possibilidade, que já resulta, como se disse, do disposto no artigo 408.º, n.º 1 do Código Civil.

Com efeito, nos termos do artigo 7.º (Destino do bem findo o contrato», «Findo o contrato por qualquer motivo e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro».

E na al. c), do n.º 2, do artigo 9.º (Posição jurídica do locador», determina-se que «2 - Para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação que não se mostrem incompatíveis com o presente diploma, assistem ao locador financeiro, em especial e para além do estabelecido no número anterior, os seguintes direitos:

a) […]; b) […]; c) Fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados no bem pelo locatário».

Conclui-se, por conseguinte, que o contrato de locação financeira constitui um modo válido de constituir direitos reais sobre a coisa locada ou construída no âmbito deste contrato.

Vejamos agora o caso concreto.

Consta do contrato de locação financeira celebrado em 18 de dezembro de 1998 com a empresa P (…), Lda.», do n.º 7, do seu artigo 6.º, relativa a «Obras, reparações e benfeitorias», o seguinte:
«Quaisquer obras, instalações e construções incluindo as que sejam impostas por disposições legislativas ou regulamentares, efetuadas pelo locatário no imóvel, durante o presente contrato, passarão a integrá-lo, tornando-se propriedade do locador, quer no caso de resolução do contrato, quer no de não exercício da opção de compra adiante prevista, sem que por elas o locatário possa exigir qualquer indemnização ou compensação ou exercer o direito de retenção».

Esta cláusula está de resto, como já se disse, em harmonia com o disposto no artigo 7.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, onde se dispõe que findo o contrato e não exercendo o locatário a faculdade de compra, o locador pode dispor do bem, nomeadamente vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro.

Verifica-se, por conseguinte, de acordo aliás com o princípio da liberdade contratual, estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, que face à declaração de vontade constante do n.º 7, do artigo 6.º, do contrato celebrado entre Banco autor e a empresa P (…) Lda.», relativa a «Obras, reparações e benfeitorias», as partes quiseram atribuir a propriedade das edificações ao locador (Banco autor) «quer no caso de resolução do contrato, quer no de não exercício da opção de compra adiante prevista, sem que por elas o locatário possa exigir qualquer indemnização ou compensação ou exercer o direito de retenção».

Procede, pelo exposto, o recurso.

3 – Cumpre, por conseguinte, condenar a Ré a entregar ao banco Autor não só os terrenos, como os edifícios que neles estão implantados relativamente aos dois imóveis referidos nos autos (artigos matriciais yyy(...) e zzz(...) ).

Este pedido é formulado não só na alínea b) do petitório («b) Condenar-se a Ré a restituir ao Autor os prédios rústicos melhor identificados em a) i) e ii) completamente devolutos e desocupados de pessoas e bens»), pois pedir a entrega dos prédios rústicos, desocupados de pessoas e bens, implica necessariamente a entrega de tudo o que está construído nesse terrenos e a ausência neles de qualquer elemento pessoal atinente à Ré.

Aliás, como se referiu já, a Ré não tem qualquer título que justifique a sua presença nos imóveis em questão, pois o contrato de locação financeira que lhe deu acesso aos imóveis está extinto e liquidado.

Tal pedido é também formulado na al. c) do petitório, embora a propósito da acessão: «c) Condenar-se a Ré na acessão industrial imobiliária de boa-fé, nos termos do n.º 3 do art. 1340.º do Código Civil, vendo reconhecido o direito do Autor em receber as edificações que aí se encontrem, uma vez que também já as pagou, pelo valor de €923.878,52, a título de indemnização, sendo os ditos terrenos, propriedade do Autor, a si restituídos».

O Banco autor não carecia de referir nesta alínea do pedido a acessão imobiliária, bastando pedir a entrega das edificações com base nas causas de pedir já invocadas nos fundamentos da ação.

Tendo aludido à acessão, o Banco autor não excluiu a outra causa invocada, o contrato de locação financeira imobiliária, sendo certo que não há qualquer dúvida que é a entrega completa dos imóveis (terreno e edifícios) que o Banco autor pretende pedir e obter com a ação.

Cumpre, pelo exposto, passar a decisão, dando procedência ao recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto:

1 - Julga-se o recurso procedente, revoga-se parcialmente a sentença recorrida e condena-se a Ré P (…) Lda., a restituir ao Banco (…), S.A., os dois prédios identificados na matéria de facto, incluindo as edificações neles implantadas, desocupados de pessoas e bens.

2 – Custas da ação e do recurso pela Ré.


*

Coimbra, 19 de dezembro de 2017

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Segue-se o relatório da sentença recorrida com pequenas alterações.
[2] A sequência das questões pressupõe que cada uma delas, ao ser resolvida, não irá prejudicar o conhecimento das seguintes.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3.ª edição. Coimbra, 1981, pág. 127.

[4] Ob. cit,. pág. 128.

[5] Artigo 3.º (Forma e publicidade), n.º 2: «No caso de bens imóveis, as assinaturas das partes devem ser presencialmente reconhecidas, salvo se efetuadas na presença de funcionário dos serviços do registo, aquando da apresentação do pedido de registo».

[6] «Não sendo a única fonte das obrigações, o contrato é a mais importante entre elas. Mas o contrato não se limita a constituir, modificar ou extinguir relações de obrigação; dele nascem também relações de família (cfr. arts. 1576.º e 1577.º) e direitos sucessórios (arts. 1700.º e segs.). E dele podem nascer ainda direitos reais: “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada, diz o artigo 408.º, dá-se por mero efeito do contrato”» - Antunes Varela. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição. Coimbra: Livraria Almedina, 1980, pág. 245.