Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
712/07.8TBTMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/03/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.309, 316 E 317 CC
Sumário: 1.As presunções presuntivas são imperfeitas, e não verdadeiras presunções no sentido de implicarem a extinção da obrigação, pelo que apenas originam a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre o credor o convencimento do não pagamento, a efectivar apenas pela confissão do devedor.

2. O objectivo de tais presunções consiste apenas na protecção do devedor não traquejado em termos económicos, lato sensu, e sem uma estrutura e organização imanentes a tal actividade, contra o risco de se ver obrigado a pagar duas vezes, decorrente da dificuldade de prova do pagamento por dívidas que normalmente se pagam em prazos curtos e que não é costume pedir ou guardar recibo ou que, elas próprias, habitualmente não constam de documento, o que, por via de regra, apenas sucede com as de pequeno montante.

3. Assim, considerando que aquela inversão vai contra os princípios gerais da distribuição do ónus probatório, afectante da desejada igualdade de armas dos litigantes e porque a verdade, presumida e conceptual de tais presunções, deve ceder perante a verdade material e a efectiva realidade das coisas, importa que se opere uma interpretação restritiva no atinente à presença dos seus requisitos.

4. Quanto à presunção prevista no artº 317º al.b) do CC, é mais razoável e justo considerar que ela não pode ser invocada pelo devedor que, mesmo não podendo rigorosamente ser qualificado como industrial ou comerciante, exerce a actividade de que dimanou a dívida com alguma regularidade e no âmbito das suas funções de índole pública e é suposto que tenha uma estrutura e organização que obste ao perigo que a lei quis evitar com a presunção, como é o caso de um Município que contratou os serviços de empresa para produzir, montar e realizar concertos, cujo custo ascendeu, em 2001, a cerca de 4.000.000$00.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇAO DE COIMBRA

1.

A (…) Ldª intentou contra o Município de ..., acção declarativa, de condenação, com processo comum na forma ordinária.

 Pediu:

A condenação do réu a pagar-lhe  a quantia de 36 766,39 € acrescida de juros no montante de 20 017,2 € .

Alegou para tanto:

 Que é uma sociedade comercial que exerce a actividade de produção e montagem de espectáculos musicais, formação musical e serviços conexos.

 O réu contactou a autora para produzir, montar e realizar o Concerto de Apresentação da Orquestra de Câmara P..., assim como o Concerto de Ano Novo de 2002.

 O réu solicitou que nos referidos espectáculos interviessem artistas de renome internacional, dando plena liberdade à autora, quanto às composições que deveriam ser executadas.

 Cada um dos espectáculos deveria ter uma duração média de 45 minutos. Para o Concerto de Ano Novo de 2002 o réu especificou que deveria ser realizado pela Orquestra de Câmara P..., com a intervenção de um pianista de renome.

 Solicitou que o Concerto fosse gravado ao vivo. O preço estipulado pelas partes foi para o primeiro espectáculo mencionado 3.276.000$00 (16 340,62 €) e para o segundo 4 095 000$00 (20 475,77 €).

Na sequência dessa solicitação a autora realizou a favor do réu os serviços próprios preparatórios para a realização daqueles eventos, nomeadamente: reuniu os músicos da Orquestra mencionada, seleccionou as músicas a executar, procedeu aos respectivos ensaios, obteve a colaboração de maestro para dirigir a Orquestra, contratou com um pianista de renome, elaborou graficamente os documentos para os convites e o programa dos concertos e executou os concertos nas datas previstas.

 O concerto de apresentação da Orquestra de Câmara P... teve lugar no dia 20 de Outubro de 2001 na Igreja ... em .... Foram interpretadas peças de Carlos Seixas, Heitor Villa Lobos, Braga Santos e António Vivaldi, conforme tinha sido acordado com o réu.

Intervieram entre outros os maestros concertinos DR..., primeiro violino do “The Amsterdam ...” e concertino principal da Orquestra ... e AL.... O concerto de Ano Novo de 2002 teve lugar no dia 12 de Janeiro de 2002 na sé de ..., a antiga igreja do seminário.

Interveio o pianista AR.... Foram interpretadas peças de Amadeus Mozart na primeira parte e de Vianna da Mota e Grieg na segunda parte, conforme tinha sido acordado com o réu. Este concerto foi gravado ao vivo, por meio de um sistema de som que foi custeado pela ora autora.

O fornecimento dos serviços mencionados, originou a emissão das facturas nºs 103 e 116 com os valores acordados e com vencimento nos dias de emissão das mesmas, respectivamente a 20 de Outubro de 2001 e a 12 de Setembro de 2001 as quais que foram entregues ao réu na data da emissão.

Apesar de interpelado o réu ainda não pagou aquelas facturas.

Contestou o réu.

Invocando, para além do mais, que a quantia peticionada já se encontra paga e que está prescrita nos termos dos artºs 303 e 317º nº1 al.b) do CC.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que:

 Julgou procedente por provada a excepção da prescrição e em consequência absolveu o réu do pedido.

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. Houve manifesto erro na apreciação da prova constante dos autos, nomeadamente, da prova documental e da prova testemunhal, bem como não só foram violadas normas jurídicas como não foi o melhor o sentido que as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.

I — Da matéria de facto

1.O nosso entendimento vai no sentido de ter sido produzida em audiência de julgamento, por prova testemunhal, a factologia necessária e suficiente para que as respostas aos artigos 4º e 5º tivesse sido positiva. São estes os concretos pontos de facto que consideramos incorrectamente julgados.

2.Em relação ao artigo 5º não foi tomado em consideração o depoimento da testemunha (…) violando dessa forma o disposto no artigo 653/2 CPC.

3.Em relação ao artigo 4º a decisão no que diz respeito aos factos (não) provados no quesito 4, a fundamentação enferma de nulidade, da qual decorrerá a nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 668º, 1, b) do CPC, porquanto o Tribunal fundamenta a sua posição não na prova produzida mas no direito que considera aplicável à situação em questão.

II– Do Direito

1–Face à matéria de facto agora considerada provada, e efectuado o enquadramento da questão sub iudice, simples é concluir que estamos perante um contrato de empreitada, celebrado entre a AA e RR., porquanto a primeira se obrigava a produzir dois espectáculos de música, o Concerto de Apresentação da Orquestra de Câmara P... e o Concerto de Ano Novo de 2002, nos termos encomendados pelo RR, e contra o pagamento do montante total de 3.276.000$00.

2– Contrato de empreitada esse que o RR não cumpriu, pois não demonstrou o pagamento do preço nos termos contratados.

3– Sendo o contrato celebrado entre AA. e RR. um contrato de empreitada, não se aplicam as regras do artigo 317/b do Código Civil, seguindo–se as regras da prescrição ordinária estabelecidas no artigo 309 do Código Civil.

II — Normas jurídicas violadas

Quanto à matéria de facto, o tribunal a quo violou as seguintes disposições legais:

— Art. 653/2 e art. 659.º, CPC, por força da violação do disposto no art. 490.º, idem;

— a decisão de facto quantos aos pontos 4º e 5º da decisão que determinou a matéria de facto e da sentença deve ser anulada, porque contraditória entre si (art. 712.º, 4, CPC).;

— a sentença deve ser declarada nula por violação do disposto no artigo 668/b CPC.

Quanto à matéria de direito, o tribunal a quo fez uma errada interpretação das seguintes disposições legais: arts. 317/b e 313 e 314 todos Código Civil.

Invocando–se erro na determinação das normas aplicáveis ao caso. As normas aplicáveis deveriam ter sido os artigos 1207 e ss e 309º do Código Civil.

Inexistiram contra-alegações.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 690º do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, as questões essenciais decidendas são as seguintes:

Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Prescrição do direito da autora.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

 (…)

Na verdade a causa decide-se com uma simples pergunta nuclear, conforme se entenda - como infra se dilucidará -  se a presunção invocável é, ou não, atendível, a saber: não pagou (com ónus da prova a incidir sobre a autora) ou pagou (com o ónus a incidir sobre a ré) a demandada a dívida impetrada pela demandante?

5.1.7.

Decorrentemente os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, ou seja, os seguintes:

A) A autora é uma sociedade comercial que exerce a actividade de produção e montagem de espectáculos musicais, formação musical e serviços conexos. – al A) dos factos assentes.

B) O réu contactou a autora para produzir, montar e realizar o Concerto de Apresentação da Orquestra de Câmara P.... – al B) dos factos assentes.

C) Assim como o Concerto de Ano Novo de 2002. – al C) dos factos assentes

D) O réu solicitou que nos referidos espectáculos interviessem artista de renome internacional, dando plena liberdade à autora, quanto às composições que deveriam ser executadas. – al D) dos factos assentes.

E) Cada um dos espectáculos deveria ter uma duração média de 45 minutos. – al E) dos factos assentes.

F) Para o Concerto de Ano Novo de 2002 o réu especificou que deveria ser realizado pela Orquestra de Câmara P..., com a intervenção de um pianista de renome. – al F) dos factos assentes.

G) Solicitou que o Concerto fosse gravado ao vivo. – al G) dos factos assentes.

H) O preço estipulado pelas partes foi para o primeiro espectáculo mencionado 3.276.000$00 (16 340,62 €) e para o segundo 4 095 000$00 (20475,77 €). – al H) dos factos assentes.

I) Fazia parte da administração da Orquestra P..., o Presidente da Câmara Municipal, (…). – al I) dos factos assentes.

J) Na sequência dessa solicitação a autora realizou a favor do réu os serviços próprios preparatórios para a realização daqueles eventos, nomeadamente: reuniu os músicos da Orquestra mencionada, seleccionou as músicas a executar, procedeu aos respectivos ensaios, obteve a colaboração de maestro para dirigir a Orquestra, contratou com um pianista de renome, elaborou graficamente os documentos para os convites e o programa dos concertos e executou os concertos nas datas previstas. – al J) dos factos assentes.

L) O concerto de apresentação da Orquestra de Câmara P... teve lugar no dia 20 de Outubro de 2001 na Igreja ... em .... – al L) dos factos assentes.

M) Foram interpretadas peças de Carlos Seixas, Heitor Villa Lobos, Braga Santos e António Vivaldi, conforme tinha sido acordado com o réu. – al M) dos factos assentes.

N) Intervieram entre outros os maestros concertinos DR..., primeiro violino do “The Amsterdam ...” e concertino principal da Orquestra ... e AL.... – al N) dos factos assentes.

O) O concerto de Ano Novo de 2002 teve lugar no dia 12 de Janeiro de 2002 na sé de ..., a antiga igreja do seminário. – al O) dos factos assentes.

P) Interveio o pianista AR.... – al P) dos factos assentes.

Q) Foram interpretadas peças de Amadeus Mozart na primeira parte e de Vianna da Mota e Grieg na segunda parte, conforme tinha sido acordado com o réu. – al Q) dos factos assentes.

R) Este concerto foi gravado ao vivo, por meio de um sistema de som que foi custeado pela ora autora. – al R) dos factos assentes.

S) O fornecimento dos serviços mencionados nas alíneas A) a R) originou a emissão das facturas nºs 103 e 116 com os valores acordados e com vencimento nos dias de emissão das mesmas, respectivamente a 20 de Outubro de 2001 e a 12 de Setembro de 2001. – al S) dos factos assentes.

Da base instrutória.

T) A autora por várias vezes interpelou telefonicamente o réu para proceder ao pagamento das referidas facturas. – r q 2

U) Pelo menos no dia 31.3.2007 a autora, por intermédio do seu mandatário interpelou por escrito o réu para efectuar o pagamento das referidas facturas. – r q 3.

5.2.

Segunda questão.

5.2.1.

O Sr. Juiz julgou procedente a invocação da prescrição com o seguinte discurso argumentativo:

«… Alegada a prescrição ordinária será esta atendida desde que se prove o decurso do tempo, independentemente do não cumprimento do contrato.

Na prescrição de curto prazo, ilidida a presunção, o decurso do prazo é irrelevante e o devedor terá de pagar a prestação.

Se a prescrição é extintiva o devedor não necessita de alegar que nunca deveu ou que já pagou, bastando-lhe alegar o decurso do prazo.

Completado o prazo de prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – artigo 304º, nº.1 do Código Civil.”

Se a prescrição é presuntiva (prescrição de curto prazo) o devedor só pode beneficiar dela alegando que pagou ou que por outro motivo a obrigação de extinguiu, não lhe bastando alegar o decurso do prazo.

Assim, nas prescrições desta natureza, o decurso do prazo legal não extingue a obrigação, mas apenas faz presumir o pagamento, libertando desta forma o devedor do ónus da prova do pagamento, mas não do ónus de alegar que pagou.

As prescrições presuntivas não são verdadeiras prescrições; se se tratasse de verdadeiras prescrições, elas teriam de ser atendidas, desde que invocadas pelo devedor, mesmo que este jurasse (ou confessasse) que não pagou”…

A presunção de cumprimento pelo decurso do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor, expressa ou tácita.

A confissão expressa pode ser judicial ou extrajudicial, no entanto esta para ser válida tem de ser feita por escrito – artigo 313º e 355º, nº.1 do Código Civil.

Na confissão tácita, considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no Tribunal, ou praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção de cumprimento. – artº 314 do Cód Civil.

Enquanto nas prescrições verdadeiras, mesmo para o devedor confesso que não pagou, não deixa, por isso, de funcionar a prescrição, nestas prescrições presuntivas, parece que não pode ser assim: se o devedor confessa que deve, mas não paga, é condenado da mesma maneira e a prescrição não funciona, embora ele a invoque. Na prescrição presuntiva, além do decurso do prazo de 2 anos, é necessário alegar que pagou. Isto no pressuposto de que o autor não ilide a presunção, pelo modo que acima se deixou dito.

Assim, provado o decurso do prazo (bem como os demais factos descritos nos artigos 316º e 317º do Código Civil, relativos nomeadamente à natureza do crédito, à qualidade dos contraentes e à ligação entre o crédito e as respectivas actividades profissionais), presume-se o cumprimento, recaindo sobre o credor o ónus de ilidir a presunção».

Concluindo que, in casu:

«A realização dos Concertos de Apresentação da Orquestra de Câmara P... e Concerto de Ano Novo, cabem na actividade normal da autora e o pagamento destes serviços, processa-se em regra dentro de curto prazo, donde enquadrar-se esta actividade no artº 317 al b) do Cód Civil.»

(sublinhado nosso)

5.2.2.

Mostram-se acertadas, em tese geral,  a maioria destas  considerações.

Mas o quid essencial decisório, aliás na sequencia do alegado pelos recorrentes, passa por concluir se o caso pode integrar-se - como entendido pelo julgador - ou não, numa hipótese legal de prescrição presuntiva de curto prazo, rectius na previsão do artº 317º al.b) do CC.

Estatui este segmento normativo que:

Prescrevem no prazo de dois anos:

…b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam profissionalmente uma industria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que a prestação se destine ao exercício industrial do devedor».

Vejamos.

Na verdade encontramo-nos perante um contrato de prestação de serviços, lato sensu, que se pode integrar na específica modalidade da empreitada.

E, como é mencionado pela recorrente, há quem defenda que este contrato, pelas suas características, não se coaduna com as exigências e requisitos das prescrições presuntivas de curto prazo, vg. a consignada na al.b) do artº 317º do CC – cfr, para além dos arestos mencionados no recurso, o Ac. do STJ de 29.11.2006, dgsi.pt,  p. 06A3693.

5.2.3.

Não obstante entendemos que a questão pode e deve ser analisada em termos mais abrangentes.

Como é referido na sentença e constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, as prescrição presuntiva não tem a mesma natureza, efeito e finalidade da prescrição extintiva.

A sua ratio e teleologia, radicam em, pressupostos diferentes.

 A prescrição extintiva explica-se por razões de segurança jurídica e assenta na sanção da inércia do credor.

 A prescrição presuntiva, ou imperfeita, tem por objectivo proteger o devedor da dificuldade de prova do pagamento e corresponde em regra a dívidas que normalmente se pagam em prazos curtos e, muitas vezes, sem que ao devedor seja entregue documento de quitação, ou relativamente às quais, pelo menos, é corrente que se não conserve tal documento.

 Pretende a lei, ao fim e ao cabo, nos casos que inclui no regime, proteger o devedor contra o risco de se ver obrigado a pagar duas vezes dívidas de que não é costume pedir ou guardar recibo ou que, elas próprias, habitualmente não constam de documento -   cfr. entre outros, Acs. do STJ de 29.11.2006, de 22.01.2009 e de 09.02.2010, in dgsi.pt, ps. 06A3693,08B3032 e 2614/06.6TBMTS.S1, citando, o primeiro aresto, Vaz Serra, BMJ 106º - 45 e ss. e  Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., p. 964.

Assim sendo não é qualquer credor ou qualquer devedor que podem invocar tal prescrição.

Interpretando teleologicamente aquele preceito verifica-se que no lado activo da relação invocada deve encontrar-se uma entidade que exerça profissionalmente o comércio ou uma industria.

Ainda que o conceito de industria deva ser interpretado em sentido amplo de sorte  a nele se  integrar o exercício de trabalhos, a gestão de negócios alheios ou uma outra qualquer actividade económica, especialmente se lucrativa -  Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, 2ª ed. p. 264 e Ac. do STJ de 09.04.2003,  dgsi.pt. p. 03B3336.

Já no lado passivo deve encontrar-se, pelo menos por via de regra, um sujeito que não encerre aquelas qualidades de comerciante ou industrial, ou, mesmo que as encerre, a prestação não se destine ao exercício de tal indústria ou comércio.

Conceitos estes que devem, outrossim, ser latamente considerados nos termos supra referidos.

O, se bem interpretamos, bem se compreende.

Na verdade alicerçando-nos  nos elementos relevantes da hermeneutia jurídica, maxime a letra da lei e ratio legis, parece ser de concluir que a mens legislatoris desta figura jurídica  vai no sentido da protecção do devedor, evitando que ele não consiga provar o pagamento e, assim, podendo pagar duas vezes.

Todavia não  é a protecção de um qualquer devedor.

Na verdade: «os créditos dos comerciantes (comerciantes, industriais...etc, ou seja, em geral, os profissionais de certo ramo de actividade económica lucrativa), só estão compreendidos na alínea b), desde que as coisas vendidas ou os serviços prestados, se não destinem a essa actividade económica do devedor, ou porque ele não se dedique a tal actividade, ou porque dedicando-se, destine a coisa ou o serviço para o seu uso pessoal, próprio.»

 Já o devedor não podendo invocar este normativo se: «estamos perante uma dívida assumida por um devedor profissional num desempenho profissional e por causa dele, seja esse desempenho um comércio, ou uma indústria, ou uma outra qualquer actividade económica, especialmente, se lucrativa...» - Ac. do STJ  de 09.04.2003, supra cit.

Assim, a interpretação mais curial e consonante com a letra e a ratio de tal segmento normativo passa por entender que ele, apenas ou, pelo menos, tendencialmente,  acoberta ou se reporta ao normal cidadão, ao devedor individual ou singular, assim, presumivelmente, não traquejado e versado em negócios, que assumiu a dívida para efeitos particulares ou pessoais, que não profissionais.

 E, normalmente, por reporte a dívidas de pequenos montantes, que, destarte, é suposto poderem ser satisfeitas em curto lapso de tempo e relativamente às quais nem sequer é usual pedir e emitir factura e recibo de quitação, pelo que, a prova do seu pagamento poderia revelar-se difícil

Exactamente com relação e por contraponto aquele credor que, em geral, no tráfego industrial e comercial, e, consequentemente,  em particular, na relação jurídica concreta, se apresenta mais sabedor e com uma  estrutura e organização adequadas à sua actividade e, assim, decorrentemente, numa posição de alguma superioridade  para a defesa dos seus direitos e interesses.

Consequentemente se, ao invés, o devedor  pauta a sua actividade ou actuação, com alguma periodicidade, congruência ou relevância, através do exercício comercial ou industrial -  lato sensu, como supra explanado -, e recebe a prestação do credor por referencia ou no âmbito de tal actividade, já se não justifica tal protecção, mesmo que, no rigor dos princípios, não possa ser qualificado como industrial ou comerciante.

Pois que, por virtude de tal actividade ou actuação é suposto que ele tenha um saber e experiencia acumulados e uma estrutura organizacional – vg. registo da actividade, contabilidade organizada, etc - que lhe permite obviar aos riscos, outrossim supra aludidos, para os quais, e exclusivamente para os quais, a prescrição de curto prazo foi estabelecida.

5.2.3.

No caso sub Judice não nos parece que se verifiquem os pressupostos de tal segmento legal, antes se podendo concluir que se encontra presente a excepção à sua aplicação prevista na sua parte final.

Certo é que não se pode dizer que o Município se pode considerar, tout court, uma pessoa ou entidade que tenha como escopo primordial uma actividade industrial ou comercial.

Mas não pode negar-se que, na prossecução da defesa dos interesses dos munícipes, ele desenvolve, com maior ou menor regularidade e intensidade, tais actividades.

Aliás a constituição de Empresas Municipais com actividades deste jaez são um dado do conhecimento público.

No caso vertente é inequívoco que os serviços prestados pela autora se destinaram à prossecução de uma actividade se não de índole estritamente comercial, pelo menos de cariz económico – lato senso – pois que, mesmo se essencialmente de índole sócio-cultural, não deixa de encerrar aspectos económicos e financeiros mensuráveis, de deve e haver.

 E sendo certo que, mesmo entes da natureza da ré, não podem descurar o lucro ou a perca que a sua actividade pode acarretar, sob pena de, se estas perdas predominarem e se mantiverem reiteradamente, a sua insolvência poder ocorrer e poderem os seus agentes serem responsabilizados dentro da estrutura e orgânica do Estado.

Precisamente por isto é obvio que é suposto que o réu tenha uma estrutura e organização que registe contabilisticamente a sua actividade de índole estritamente económica que acarrete receitas e despesas, como é a presente que ora nos ocupa, de sorte a que exista o  legal e necessário controlo da mesma.

Efectivamente e como expende a recorrente: «um Município, uma Câmara Municipal, ao contrário de um particular, é uma pessoa colectiva de direito público, que tem a obrigação legal de exigir recibos de quitação em relação aos montantes dispendidos, e documentar as saídas e entradas de dinheiro junto dos seus serviços administrativos e financeiros.»

Consequentemente o réu se pagou, como alega, naturalmente que poderá fazer prova deste facto.

Por outro lado não pode conceder-se que o resultado da actividade do réu tenha sido para o seu uso pessoal, próprio, privado, mas antes se consubstanciaram em espectáculos musicais destinados ao publico em geral.

Não obstante é evidente que a autora algum interesse teve ou prosseguiu, quanto mais não fosse pela elevação da sua imagem de entidade que cultiva e protege a vertente cultural. O que, directa ou indirectamente, mais cedo ou mais tarde, acarreta ou pode acarretar benefícios, quer de índole mais ou menos imaterial, quer de natureza económico-financeira.

Ou seja, bem vistas as coisas tem de concluir-se, razoável e sensatamente, que no caso vertente, não podem considerar-se presentes os requisitos para a invocação da prescrição presuntiva de curto prazo do artº 317º al. b) porque emergente a excepção nele consagrada in fine.

Sendo, aliás, este entendimento que melhor se coaduna com a descoberta da verdade e a realização da justiça.

 Efectivamente se o réu pagou, como invoca, é suposto, face aos elementos que tem ou devia ter na sua posse, que facilmente prove tal pagamento. Afinal não estamos a falar de uma quantia insignificante ou irrisória mas de um valor significativo

Não pode é acobertar-se, cómoda e formalmente, na invocação de uma figura jurídica que dificulta grandemente a posição do credor, já que para este devolve o ónus da prova do não pagamento  a operar apenas por confissão do devedor.

Pois que, na verdade e como se viu, a ré pode, em termos de normalidade, praticar actos de cariz industrial ou comercial, o acto em causa assume esta natureza e ela  não se encontra, ou é suposto não encontrar-se – antes pelo contrário -  numa posição desconhecimento, fragilidade ou dificuldade probatória que implique a postergação dos eminentes princípios gerais de direito atinentes, vg. ao ónus da prova.

 Os quais, naturalmente, se assumem como os mais apropriados à salvaguarda dos basilares princípios da justa repartição dos ónus probatórios, necessária à defesa da igualdade de armas dos litigantes.

 E considerando ainda  os interesses  em litigio que, afinal,  são apenas de índole económico financeira e sendo certo que  o réu actuou despojado de qualquer poder de jus imperii, ou seja, em paridade com a autora numa situação negocial meramente  de cariz jurídico privado.

Não podendo, assim, corroborar-se a posição do julgador quando conclui pela verificação da prescrição pois que a realização dos Concertos cabe na actividade normal da autora e o pagamento destes serviços, processa-se em regra dentro de curto prazo, donde enquadrar-se esta actividade no artº 317 al b) do Cód Civil.

Na verdade o cerne da questão não passa, ou não passa determinantemente, pela constatação de que a realização dos concertos cabe na actividade normal da autora.

 Mas antes passa por saber se ela se pode inserir numa actividade do réu, que, se não se pode taxar de actividade normal, no sentido de actividade mais frequente, pelo menos ela se pode aceitar como uma sua actividade possível  e mais ou menos regular e cujos efeitos práticos e benefícios não colhem e se contêm numa óptica estritamente particular ou privada, mas a extravazam, e alcançam, outrossim, o campo ou aspectos de cariz mais geral e com benefícios para o réu daí advenientes.

E a resposta é positiva no sentido desta última hipótese, pois que concedendo que a realização dos concertos  não se pode considerar como prototípica da actividade normal do réu, ela cabe na sua actividade funcional a efectivar com alguma regularidade e, directa ou indirectamente, com recolha de benefícios, de cariz estritamente económico ou mais imaterial, mas, ainda assim, do interesse do réu.

 Destarte, não se pode defender que tal actividade seja nova para ele, pelo que não se pode entender que à mesma não esteja habituado de sorte a organizar-se e precaver-se no sentido de salvaguardar a defesa dos seus direito e interesses, e, bem assim, a poder cumprir - e provar o cumprimento - dos seus deveres, vg. o pagamento do preço dos serviços.

O que, se bem que não estritamente necessário, como supra se tentou demonstrar, mais facilmente permite excluir o caso da previsão da al.) do artº 317º.

Por outro lado, não temos por mais curial a conclusão de que, nestes serviços, é comum o pagamento efectuar-se em curto prazo.

 Não podendo, em todo o caso, tal presunção ser transportada para o caso vertente, até porque nos encontramos perante um valor de mais de 20 mil euros, mais de quatro milhões de escudos na altura da realização do contrato, o qual é de boa monta -  maxime se reportado a 2001- e podendo, por vários motivos, não ser pago em curto lapso de tempo.

Em conclusão final.

A  invocada presunção presuntiva do pagamento não pode relevar porque a ré não reúne no caso  não estão reunidos os seus legais requisitos.

O processo tem de prosseguir pois que a dívida não está prescrita, por virtude de se lhe aplicar o prazo geral de 20 anos – artº 309º do CC.

E prosseguir com a elaboração da base instrutória segundo as regras gerais do ónus da prova, ou seja, formulando-se quesito onde se pergunte se o réu já pagou a dívida em causa, com o ónus da sua prova a cargo deste.

Na verdade: «Ainda que afaste a aplicação da prescrição presuntiva, o tribunal deve facultar aos réus o ensejo de provar que cumpriram a obrigação se tiverem alegado expressamente a excepção do pagamento» - Ac. do STJ de 24.05.2005, dgsi.pt, p. 05A1471.

Procede o recurso, nos termos em com os efeitos aludidos.

6.

Sumariando.

I_ As presunções presuntivas são imperfeitas, e não verdadeiras presunções no sentido de implicarem a extinção da obrigação, pelo que apenas originam a inversão do ónus da prova fazendo recair sobre o credor o convencimento do não pagamento a efectivar apenas pela confissão do devedor.

II- O fito de tais presunções consiste apenas na protecção do devedor não traquejado em termos económicos, lato sensu, e sem uma estrutura e organização imanentes a tal actividade, contra o risco de se ver obrigado a pagar duas vezes, decorrente da dificuldade de prova do pagamento por dívidas que normalmente se pagam em prazos curtos e que não é costume pedir ou guardar recibo ou que, elas próprias, habitualmente não constam de documento, o que, por via de regra, apenas sucede com as de pequeno montante.

III-  Assim, considerando que aquela inversão vai contra os princípios gerais da distribuição do ónus probatório, afectante da desejada igualdade de armas dos litigantes e porque a verdade, presumida e conceptual,  de tais presunções dimanante,  deve ceder perante a verdade material e a efectiva realidade das coisas, importa que se opere uma interpretação restritiva no atinente à presença dos seus requisitos.

IV- Destarte, e no que tange à presunção prevista no artº 317º al.b) do CC, é mais razoável e justo considerar que ela não pode ser invocada pelo devedor que, mesmo que, summo rigore, não possa ser qualificado como industrial ou comerciante, exerce a actividade de que dimanou a dívida com alguma regularidade e no âmbito das suas funções de índole publica e é suposto que tenha uma estrutura e organização que obste ao perigo que a lei quis evitar com a presunção; o que é o caso de um Município que contratou os serviços de empresa para produzir, montar e realizar  concertos, cujo custo ascendeu, em 2001,  a cerca de 4.000.000$00.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, e, em consequência, ordenar a anulação do julgamento, determinar a formulação de quesito onde se pergunte se o réu já pagou a dívida em causa, e prosseguindo os autos os seus legais termos.

Custas pelo vencido a final ou na proporção da sucumbência.


Carlos Moreira ( Relator )
Moreira do Carmo
Alberto Ruço