Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
416/10.4JACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: NULIDADE
PRODUÇÃO DE PROVA
HOMICÍDIO PRIVILEGIADO
INCAPACIDADE SUCESSÓRIA
INDIGNIDADE
AÇÃO CÍVEL ENXERTADA
Data do Acordão: 02/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: ALTERADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 71º, 120º Nº 2 D) E 340º Nº 1 CPP, 129º E 133º CP, 2034º Nº 1 A), 2035º Nº 1, 2036º E 2037º Nº 1 CC
Sumário: 1.- A violação do artº 340º, nº 1 do C. Processo Penal e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento da renovação de prova pericial, só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do nº 2, do art. 120º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo;

2.- - Tendo o arguido e a sua defensora estado presentes na audiência de julgamento em que foi proferida a decisão e não tendo reagido até ao termo da mesma arguindo o vício, nem tendo recorrido atempadamente da decisão, sanou-se o vício o que, juntamente com o caso julgado formal entretanto verificado, impede que no recurso interposto do acórdão condenatório se conheça do acerto do ali decidido.

3.- O bem jurídico tutelado pelo homicídio privilegiado é a vida humana, sendo o fundamento da atenuação especial da pena aqui tipificada, uma cláusula de exigibilidade diminuída de comportamento distinto;

4.- - A compreensível emoção violenta pode definir-se como um forte estado de afeto, que desencadeia uma reação agressiva, causado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado, e à qual o homem normalmente “fiel ao direito”, o homem médio, não deixaria de ser sensível;

5.- A existência, nos quatro anos que precederam os factos, de um relacionamento pouco harmonioso entre o arguido, por um lado, e o seu pai e madrasta, por outro, devido a desentendimentos entre aquele e esta, não configura uma situação de desespero, por humilhação prolongada;

6.- Uma discussão entre o arguido e a madrasta, cuja origem e conteúdo se não apurou, a que se seguiu, sem mais, o início das agressões a esta por parte daquele que culminaram, na morte das duas vítimas, ainda que conjugada com aquele relacionamento familiar desarmonioso, não pode ser qualificada como compreensível emoção violenta;

7.- A incapacidade sucessória por indignidade é apenas uma consequência civil de uma condenação penal, não se confundindo com os danos eventualmente causados pela conduta do condenado;

8. - A ação cível para declaração de indignidade, prevista no art.º 2036º do C. Civil, tem como termo inicial o trânsito da condenação penal, o que significa que só pode ser proposta depois daquele trânsito;

9. - Por isso, a declaração de incapacidade sucessória por indignidade não pode ser deduzida, como pedido autónomo, na ação cível enxertada no processo penal que tem por objeto o crime fundamento da indignidade.

Decisão Texto Integral: No 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Tondela, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, a quem era imputada a prática, em autoria material e concurso real, de dois crimes de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) e c) do C. Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nºs 1, c), e 2 a 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio.

O assistente B... e C... deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento, da quantia de € 215.000, por danos não patrimoniais.
A assistente D... deduziu pedido de indemnização contra o arguido com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 130.000, por danos não patrimoniais.

Por acórdão de 12 de Setembro de 2011, rectificado por despacho de 13 de Setembro de 2011, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a), do C. Penal, na pena de vinte e um anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, c), do C. Penal, na pena de vinte e três anos de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nºs 1, c), e 2 a 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro [redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio], com referência aos arts. 2º, nº 1, ar) e 3º, nº 6, c), da mesma lei, na pena de um ano e dois meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de vinte e cinco anos de prisão.
Mais foi o arguido declarado incapaz de suceder, por indignidade, a seu pai E..., condenado no pagamento aos demandantes B... e C... da quantia de € 115.000 por danos não patrimoniais, e condenado no pagamento à demandante D... da quantia de € 60.000 por danos não patrimoniais.
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Inconformado com a decisão dela recorre o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1 – O objecto do presente recurso assenta, fundamentalmente, no erro da apreciação da factualidade dada como provada, na qualificação jurídica dos crimes pelos quais o Arguido foi condenado e na medida da pena aplicada.
2 – Assim, e salvo o devido respeito e melhor opinião, os pontos 2, 3, 4, 18, 20, 21 dos factos provados não podem ser assim considerados, pois a prova produzida na audiência de julgamento e os diversos relatórios juntos aos autos, não poderiam fundar a convicção do Tribunal a quo, tal como é descrita ao longo do douto Acórdão.
3 – Pelos motivos que se expuseram e devido às concretas declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, não podia o Tribunal ter considerado provado que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente e que os crimes que cometeu integram o tipo de homicídios qualificados.
4 – Ao dar como provados todos os factos relativos aos crimes de homicídio qualificado, nos precisos termos constantes da douta acusação, o Tribunal a quo andou mal e violou as regras de apreciação da prova, pois ignorou partes do depoimento do Arguido, das testemunhas e as regras da experiência comum, bem como os relatórios médico (realizado pelo médico assistente do Arguido), sobre a personalidade, sócio-económico e médico-legal.
5 – O Tribunal a quo ao não permitir que se renovasse a perícia médico-legal para se aferir em que medida a vulnerabilidade ao stress condicionou a conduta e a vontade do Arguido no momento da prática dos crimes, impediu que se descobrisse a verdade e violou o disposto nos artigos 158º e 163º do C.P.P.
6 – O Tribunal a quo não teve em consideração que o Arguido confessou e demonstrou arrependimento.
7 – Violou o Tribunal a quo assim, o disposto no Código Penal, pois valorou de forma desadequada as condições pessoais do arguido bem como a sua conduta anterior aos factos em questão e posterior a estes.
8 – O Tribunal a quo deveria ter levado em conta que o arguido foi cooperante com a policia desde o primeiro momento, tendo confessado sempre os factos centrais que integram os ilícitos de que vinha acusado, permitindo assim ao Tribunal dar a acusação como provada, o de outro modo não seria possível, uma vez que não houve testemunhas oculares do que se passou dentro de casa.
9 – Deveria ainda o Tribunal ter tido em consideração os factos que imediatamente antecederam o crime, naturalmente não desgarrados do passado porque, só assim, na sua globalidade, serão totalmente compreensíveis e capazes de provocar reacção, pelo que diminuem a culpa do Arguido.
10 – O presente recurso assenta também, no errado enquadramento jurídico dos factos, que, salvo melhor opinião, apontam para o homicídio privilegiado – art.º 133.º do Cód Penal, tal como atrás se demonstrou.
11 – No entanto se assim, se não entender, deve decidir-se pela aplicação ao arguido do disposto na atenuação especial, prevista nos art.ºs 71.º a 73.º do Cód. Penal, impondo uma redução das penas aplicadas para limite mínimo.
12 – Do elenco factual, relevante para a aplicação do tipo de homicídio privilegiado, importa convocar os elementos essenciais, que possam conduzir a um efeito diminuidor da culpa, no que ao caso concreto do recorrente respeita.
13 – Será, pois, de apurar, desde logo, o nexo causal, entre a circunstância e a prática dos crimes, já que, se impõe saber da conexão entre os estados e motivos, com uma concreta situação de exigibilidade diminuída, por eles determinada, tendo actuado debaixo daquele domínio.
14 – Qualquer homem comum, perante o quadro envolvente, sujeito, todos os dias e de novo no dia da prática dos crimes, a ter por perto, quem o perturbava (a madrasta) que lhe condicionava os passos e a própria liberdade individual, atrás de si, aos gritos, gesticulando, com os braços no ar, dirigindo-lhe insultos, só poderia sentir pavor, aflição, angústia e ausência total de esperança.
15 – Esta humilhação prolongada, de que se sentiu vítima por parte da madrasta, causou no Arguido notória impotência, decorrente do estado emocional, que, de si se apoderou.
16 – O privilegiamento, que se invoca, deve-se ao estado de consciência alterado invocado ao longo deste recurso e consequente culpa diminuída, pelo que se julga poder imputar-se ao aqui recorrente a prática de crimes de homicídio privilegiado, previsto e punido pelo artigo 133º do C.P..
17 – E por isso pensamos ter havido erro de julgamento, ao imputar-se ao Arguido a prática dos crimes de homicídio previsto e punido artº 131.º e 132.º nºs 1 e 2 al. a) e c) do C. Penal.
18 – Ficou provado que Arguido, estava integrado, social e familiarmente, era socialmente aceite, sempre com boa conduta, com princípios rígidos, era reconhecidamente um bom homem, amigo do seu amigo, solidário e fiel.
19 – Tendo estes aspectos em conta, a conduta do Arguido só poderá ser compreensível, à luz de factores externos, que lhe terão provocado tamanho desespero e emoção violenta.
20 – Estes factores especialmente atenuadores da culpa, não foram ponderados pelo Tribunal a quo.
21 – Portanto, mal andou o Tribunal a quo, ao não julgar como deveria que o Arguido cometeu os crimes de homicídio privilegiado, previsto e punido pelo artigo 133º do C.P.
22 – Violou ainda o Tribunal a quo, por erro de interpretação e aplicação, os art.ºs 40.º, 71.º, 72.º,73.º todos do Código Penal.
TERMOS EM QUE,
- Deve dar-se provimento ao presente Recurso, e em consequência,
o Acórdão recorrido ser revogado, substituindo-se por nova decisão, que acolha as motivações e conclusões do Arguido,
condenando-o por dois crimes de homicídio privilegiado previsto e punido pelo artigo 133º do C.P.;
- caso assim não se entenda, deve aplicar-se ao arguido uma pena concreta fixada no limite mínimo, proporcional, equilibrada e justa;
- Quanto à parte da decisão vertida no Acórdão recorrido que respeita à indignidade do Arguido, a mesma deve ser revogada.
assim se fazendo JUSTIÇA.
(…)”.
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Responderam ao recurso os demandantes B... e C..., invocando os exames psiquiátricos que concluíram pela imputabilidade do recorrente, pela justeza da qualificação jurídica e adequação das medidas das penas aplicadas, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Respondeu também ao recurso a assistente D..., formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1ª – O arguido não é inimputável, conforme perícias realizadas;
2ª – O arguido agiu a titulo de dolo directo, porquanto, nos termos do artigo 14 nº. 1 do CP, representou a morte do pai e da madrasta, actuando com a intenção do resultado morte destes, propósito que vinha mantendo conforme referiu momentos depois da prática dos factos: "Já está, Já está".
3ª – O arguido não relatou circunstâncias exteriores que justificassem ou até atenuassem a prática dos seus actos, já que limitou-se a referir que haviam discussões, e desprezo por parte da madrasta, já quanto ao pai, ainda que houvessem discussões tudo ficava logo resolvido, tudo relatado de forma genérica e abstracta, não permitindo que o Tribunal pudesse apurar a gravidade ou futilidade das mesmas, e formar uma convicção sobre a motivação das discussões;
4ª – Em sede de Audiência ficou demonstrado que a relação entre o arguido e pai não era meramente de reconhecimento na certidão de nascimento, viviam juntos, foi o pai que ficou a cuidar deste, "o arguido era o menino do pai", o pai sempre se empenhou na ajuda do filho, nomeadamente no que concerne à vida escolar, já que foi o pai quem custeou todas as despesas no ingresso ao ensino superior, mesmo sem rendimentos escolares.
5ª – A decisão do arguido em matar o pai assentou em pressupostos absolutamente inaceitáveis, Mata o pai como forma de se vingar porque ficava do lado da madrasta, e sempre que discutiam (pai e filho) tudo ficava resolvido, deixando-se motivar por factores completamente desproporcionados, o que aumenta a intolerância perante tal acto típico e ilícito, revelador de perversidade.
6ª – Como se refere no Ac. do STJ de 16/01/1996 "1 – O art. 133 do CP de 1982 define o crime de homicídio privilegiado como o comportamento daquele que for levado a matar outrem dominado por compreensível emoção violenta ou qualquer causa determinante de relevante valor social ou moral, que diminuía sensivelmente a culpa. 2 – Necessário é ainda que ocorra nexo de causalidade entre as aludidas causas e a prática do crime e uma proporcionalidade entre uns e outros", o que não se verifica no caso dos autos;
7ª – A defesa requereu a realização da segunda perícia, tendo a mesma sido negada, mas mantendo a oportunidade de pedir esclarecimentos aos peritos e de apresentar e requerer outras provas, já que tal faculdade pode ser exercida em qualquer altura do processo, tendo, inclusive, o Meritíssimo Juiz a quo sugerido, a quando do indeferimento da realização da segunda perícia tal hipótese.
8ª – Facilmente se conclui quem é que deu azo às discussões, pois, do relatório à personalidade do arguido consta como indiciadores de um personalidade obsessiva e muito centrada em si, não sendo capaz de ser flexível à influência dos outros. "Vê o mundo de uma forma individualista e rígida, numa perspectiva autocentrada, tendo os outros que se adaptar à sua forma de funcionar."
9ª – O facto de o arguido ter ficado no local após a prática dos crimes nada tem a ver com a falta de vontade em praticá-los, já que nem todos os criminosos têm que sair em fuga, o que releva é o estado de alívio por ter alcançado o seu auguro, sujeitando-se depois ás consequências que advêm do acto praticado.
10ª – Do relatório consta que o arguido demonstra ansiedade visível mas é o mesmo a referir que "quer ultrapassar as dificuldades sem depender da medicação". Portanto é o arguido que não pretende recorrer a medicação e a defesa que requer o contrário.
11ª – Não poderá em caso algum ser aplicada uma medida de segurança, porquanto a inimputabildade é um estado patológico da qual não se insere a simples vulnerabilidade ao stress, e que não acarreta a falta de capacidade de culpa, já que o arguido tem a possibilidade de conhecer as exigências do direito e pautar o seu comportamento de harmonia com essas exigências.
12ª – Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir.
13ª – O recorrente coloca o assento tónico na pretensão a uma atenuação especial na existência de arrependimento, visto o disposto no artigo 72º, nº 2, al. c) do Código Penal, porém desde logo se impõe afirmar que motiva contra factos provados. Dito de outra forma, em lado algum se prova a existência de arrependimento do arguido. E dessa fundamentação resulta claro o processo lógico seguido pelo Tribunal recorrido, quer por referência a meios de prova especificamente indicados, quer por apelo às regras de experiência comum.
14ª – Ora, o arrependimento relevante para efeitos de atenuação especial não é um simples "arrependimento declarado", sim um arrependimento objectivado em actos demonstrativos, como o impõe o citado preceito, actos que se não vislumbram no acervo factual.
15ª – A norma do Cód. Penal (artigo 132 nº.2 alínea a.), conjugada com a constante da alínea a) do artigo 2034 do Cód. Civil, enquadra o arguido na incapacidade sucessória, por indignidade, daí ter sido pedida pela ora recorrida a declaração de tal incapacidade sucessória por indignidade, o que foi deferido. Pois,
16ª –O princípio da suficiência do processo penal, previsto no artigo 7°., tem aqui plena aplicação.
17ª – Acrescendo a este princípio, o da celeridade e o da economia processual, que também pugnam para que o Colectivo possa apreciar a parte crime e a civil em simultâneo.
18ª – Sendo certo que o princípio da segurança e o da garantia da defesa são maiores se o julgamento se fizer em Colectivo do que com apenas um Juiz, que até pode vir a ser o mesmo que compõe o presente Colectivo. Portanto, no caso dos autos, o arguido está a pugnar por uma opção que diminuiria a segurança e a garantia da defesa.
19ª – Não consta do artigo 2034 alínea a) do Cód. Civil que tal pedido tenha que ser formulado após o trânsito em julgado da sentença penal, pois a incapacidade sucessória por indignidade declarada em conjunto com a condenação penal só irá transitar no preciso momento em que a parte penal transitar no processo crime.
20ª – É de salientar que havendo recurso interposto pelo responsável civil aproveita ao arguido mesmo para efeitos penais (artigo 402 nº.2 alínea C. do Cód. Proc. Penal), o que não aconteceria se primeiro transitasse o processo crime e depois fosse instaurado o processo civil, já que o recurso posterior no civil não lhe iria aproveitar para efeitos penais, salvo no caso de recurso de revisão.
21ª – Daí que, tendo havido declaração de incapacidade sucessória por indignidade do requerido, bem andou a requerente não só naquela formulação, mas também no mais que resulta do disposto no artigo 496 nºs, 2 e 4 do Cód. Civil.
Nestes termos, deve negar-se provimento ao recurso, mantendo o Acórdão recorrido.
(…)”.
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Respondeu igualmente ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:
“ (…).
1 – O exame médico-legal de psiquiatria forense efectuado ao arguido é exaustivo e meticuloso, fornecendo todos factos indispensáveis à sua compreensão, e as conclusões, nele vertidas, estão devidamente fundamentadas.
2 – Decorrente de uma bem ponderada e descrita discussão psiquiátrico-forense, conclui-se, no Relatório dessa Perícia Médico-Legal, não estar, o arguido-recorrente, no momento da prática dos factos, afectado por qualquer doença mental ou patologia do foro psíquico, nosologicamente reconhecida enquanto tal, que haja afectado as suas faculdades de entendimento, discernimento e avaliação dos seus actos.
3 – O Tribunal a quo aderiu ao juízo científico formulado e deixou clara a inexistência de qualquer dúvida em considerar o arguido plenamente imputável para responder pela prática dos factos imputados, não ficando por apreciar ou estabelecer qualquer factual idade relevante.
4 – O decidido indeferimento de nova perícia médico-legal não consubstancia omissão de qualquer diligência imprescindível ou, sequer, contribuinte para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, como o demonstram os fundamentos dessa decisão o facto dela não haver merecido, prontamente ou, pelo menos, no decurso da audiência de julgamento, a arguição de qualquer vício processual, e, ainda (e não menos elucidativo e relevante) não haver, antes ou depois, justificado, por parte da defesa, um pedido de esclarecimentos, pelo perito-médico, nessa fase processual e ao abrigo do disposto no artigo 158°, alínea a), do C.P.P.
5 – Por último e ainda relativamente ao decidido, em matéria de facto, pelas razões desenvolvidas nesta resposta, não se vislumbra que enferme de qualquer dos vícios elencados no artigo 410º, n.º 2, do C.P.P., e, concretamente, de contradição insanável de fundamentação e ou de erro notório na apreciação da prova, invocados pelo recorrente.
6 – A factualidade assente como provada preenche todos os elementos, objectivos e subjectivos, constitutivos dos dois crimes de homicídio qualificado e do crime de detenção de arma proibida que, em concurso real de infracções, se imputam ao arguido A... e pelos quais este foi penalmente censurado.
7 – As penas parcelares impostas, ao arguido, são adequadas (e, no caso das impostas pelos crimes de homicídio qualificado, justificando maior severidade, a sua respectiva medida queda-se mesmo no limiar mínimo do patamar de adequação) à sua elevada culpa, à extrema ilicitude dos factos e às necessidades de prevenção, não deixando de reflectir a completa ponderação do conjunto de circunstâncias que depõem do a favor ou contra o agente.
8 – A pena única determinada, identificada com o limite máximo aplicável, apenas se queda nesse limite, por força desse imperativo legal.
9 – O douto acórdão recorrido, embora podendo ter mais grave e adequadamente fixado as penas parcelares pelos crimes de homicídio qualificado (e, nesse perspectiva e apenas nessa, poderia ter feito melhor aplicação do disposto nos artigos 40º, nºs 1 e 2, 71º, n.º 1, do Código Penal), não fez errónea interpretação de quaisquer outros dispositivos legais e, designadamente, dos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alíneas a) e c) todos desse Código, e 86º, nº 1, alínea c), 2 a 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/2, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, por referência aos artigos 2.º n.º 1 alínea a) e 3.º n.º 6 alínea c) do mesmo diploma legal, que, com o recurso interposto, são colocados em crise.
Nestes termos e pelos mais que, Vossas Excelências, senhores Juízes Desembargadores, segura e sabiamente não deixarão de suprir, negando-se provimento ao recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o acórdão condenatório proferido, far-se-á Justiça.
(…)”.
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O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Na vista a que refere o art. 416º, nº 1, do C. Processo Penal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo aos fundamentos da contramotivação apresentada pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, pronunciando-se no sentido de que não se mostra preenchido o tipo do homicídio privilegiado, de que não se verificam os pressupostos da atenuação especial da pena, e de que as penas concretamente aplicadas se mostram justas e adequadas, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Assim, as conclusões da motivação constituem, como é unanimemente entendido, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Ed., pág. 335, e Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, pág. 103).
Por isso, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:
- A nulidade decorrente do indeferimento de renovação da perícia médico-legal psiquiátrica;
- A contradição insanável entre os pontos 2, 3 e 4, por um lado, e o ponto 21, todos dos factos provados, e o erro notório na apreciação da prova;
- A incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto [pontos 2, 3, 4, 18, 20 e 21 dos factos provados], e a inconstitucional interpretação feita do art. 127º do C. Processo Penal, por violação do art. 32º, nºs 1, 2 e 5, da Lei Fundamental;
- A qualificação jurídica dos factos como homicídios privilegiados;
- A atenuação especial das penas e a sua medida excessiva;
- A indevida declaração de indignidade sucessória do recorrente relativamente à herança aberta por óbito de seu pai.

Oficiosamente, ex vi art. 424º, nº 3, do C. Processo Penal, haverá que conhecer da qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de detenção de arma proibida e do preenchimento ou não do respectivo tipo.

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Para a resolução das questões enunciadas importa ter presente o que de relevante consta da decisão recorrida. Assim:
A) No acórdão foram considerados provados os seguintes factos:
“ (…).
1. O arguido A... é filho da vítima E... e enteado da vítima F....
2. O arguido e as vítimas coabitavam na mesma casa, com quartos distintos, mas no mesmo piso, e utilizavam os mesmos espaços comuns da residência sita na Rua … , área desta comarca.
3. Nos últimos quatro anos, eram frequentes as desavenças entre o arguido e as vítimas, designadamente por não haver entendimento entre o arguido e a sua madrasta F....
4. Devido a esses desentendimentos, no dia 27 de Julho de 2010, pelas 11.00h, o arguido A…, no âmbito de nova discussão com a sua madrasta, na cozinha das traseiras da referida residência, retirou de uma gaveta do armário da cozinha uma machada de cortar e picar carne, em aço inoxidável cromado, com lâmina em forma de meia-lua, com o comprimento de 7,5 cm e maço de picar com 3,5 cm de diâmetro e cabo cilíndrico em madeira de pinho com 8,5 cm de comprimento (melhor identificada e analisada a fls. 148 e 73), e desferiu vários golpes na cabeça daquela, bem como um golpe que a atingiu na mão esquerda, até partir o cabo da dita machada.
5. A vítima F..., ensanguentada, saiu para o exterior, vindo a gritar por ajuda para o patamar das escadas traseiras da residência, o que levou a vítima E..., que se encontrava no exterior da residência, dentro da viatura marca Audi, modelo A3, com a matrícula … , de cor branca, fosse em seu auxílio.
6. A vítima E..., ao aperceber-se do sucedido, dirigiu-se ao telefone para pedir ajuda, ao que o arguido disse em voz alta que a F...era muito má para ele, dirigindo-se a um quarto devoluto, no mesmo piso, de onde retirou de um armário a espingarda de dois canos sobrepostos de marca "Fias Gardone", com o n.º de série 197586, propriedade de seu pai.
7. Acto contínuo, retirou dois cartuchos da marca "Mirato Dispersor", calibre 12, carregados com chumbo n.º 5, que se encontravam na gaveta da cómoda que se encontrava ao lado do armário onde estava guardada a espingarda e introduziu-os na arma.
8. De seguida, dirigiu-se à vítima E... que se encontrava na cozinha e ao telefone, apontou-lhe a arma a cerca de 1m/1,5m de distância e premiu o gatilho, mas a arma encravou.
9. A vítima E..., ao aperceber-se do sucedido, agarrou o cano da arma e foi nesse momento que o arguido efectuou um disparo para direcção e local não concretamente apurado, que, no entanto, não atingiu a vítima.
10. De seguida, o arguido voltou ao referido quarto, retirou da arma o cartucho percutido e o que não deflagrou, colocou -os em cima da referida cómoda e voltou a municiar a arma com dois cartuchos com as mesmas características.
11. Após, dirigiu-se à cozinha onde se encontrava a vítima E... ao telefone, apontou-lhe novamente a arma a cerca de 1 metro de distância, visando-lhe a cabeça, e efectuou um disparo que o atingiu no pescoço e face, fazendo-o cair de imediato ao chão.
12. O arguido voltou ao quarto e municiou novamente a arma e foi no encalço da vítima F..., que saíra pelas escadas traseiras em direcção ao portão de saída.
13. O portão encontrava-se fechado e a vítima F..., ao aperceber-se do arguido, fugiu para debaixo de uma laranjeira.
14. Quando o arguido se encontrava a cerca de 1,5 metros da vítima, apontou a arma à cabeça daquela, que se encontrava de frente para si, e efectuou dois disparos, atingindo-a na cabeça, ao que esta caiu de forma instantânea no chão.
15. Em seguida, o arguido foi guardar a arma no mesmo sítio de onde a tinha retirado, meteu o referido veículo automóvel na garagem e sentou-se à entrada da porta de casa.
16. Em consequência da conduta do arguido, sofreu a vítima E... ferida perfurante na face lateral direita do pescoço, com orla de contusão, apresentando uma direcção de frente para trás, debaixo para cima e da direita para a esquerda, com destruição do osso hióide, traqueia e tiróide, provocadas pela entrada de chumbos, que foram causa directa e necessária da sua morte, conforme descrição do relatório de autópsia de fls. 300 a 304, que se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
17. Em consequência da conduta do arguido, a vítima F... sofreu ferida lacero-contusa na hemiface direita, na região malar direita, do supracílio e cavidade orbitaria, com 15 cm de comprimento e 4 cm de afastamento de bordos; ferida lacero-contusa na base do nariz com 3,5 cm de comprimento e 2 cm de afastamento de bordos; ferida lacerante linear no lábio superior à esquerda com 3,5 cm de comprimento e 1 cm afastamento de bordos; destruição maxilar posterior; e dez feridas corto-contundentes no couro cabeludo de traçado linear sendo a maior com 8 cm na região parietal direita e a menor na região frontal com 1,5cm; amputação do indicador esquerdo pela base da 1ª falange suspensa apenas por retalho da pele; lesão equimótica na face anterior do terço distal da coxa esquerda; fractura tangencial da calote; traço fracturante na região parietal; infiltração dos músculos temporais e tecido celular subcutâneo e hemorragia sobredural, provocadas pela entrada de chumbos que foram causa directa e necessária da sua morte, conforme relatório de autópsia de fls. 337 a 341, que se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
18. Com as machadadas desferidas contra a vítima F... e os disparos que efectuou contra esta e o seu pai E..., visava o arguido atingi-los em zonas vitais com é a cabeça, o pescoço e o tronco, e assim provocar-lhes a morte, o que conseguiu fazer.
19. Mais sabia o arguido que a vítima E... era seu pai e que a F...apresentava uma deficiência, pois não possuía o antebraço direito, usando uma prótese apropriada, o que a tornava particularmente indefesa, o que não o demoveu de lhes tirar a vida.
20. O arguido usou a referida caçadeira, bem sabendo que a não podia trazer consigo ou utilizar.
21. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
[Mais resultaram provados os seguintes factos:]
22. O malogrado E... faleceu intestado e não tinha, para além do arguido, outros filhos biológicos ou adoptados, não tendo deixado cônjuge sobrevivo ou ascendentes vivos.
23. E... teve 6 irmãos, a saber:
- G...;
- G 1...;
- G 2...;
- a demandante D...;
- G 3...; e
- G 4....
24. O falecido E... era uma pessoa saudável e muito trabalhadora; tratava do amanho das suas leiras de terra, consumindo os produtos agrícolas no seio do seu agregado familiar.
25. Antes de falecer, E... experimentou fortes dores, sendo que a sua morte violenta e brutal causou em todos os seus entes familiares ainda vivos enorme desgosto e choque emocional.
26. Os demandantes B... e mulher C... são os pais da falecida F....
27. F... não deixou quaisquer descendentes.
28. F... era uma pessoa bem disposta, sensível, pacífica avessa a violências e conflitos, vivendo com o seu marido uma vida tranquila e harmoniosa, de mútuo respeito, admiração e grande afecto.
29. F... participava em iniciativas de cariz social, sendo responsável pela liturgia das missas realizadas no Santuário… , fazendo também parte do Grupo Coral; por vezes, contribuía com dádivas a algumas instituições, traduzindo o seu espírito de ajuda para com toda a gente da sua terra, que muito a estimavam e respeitavam.
30. Antes de falecer, F... experimentou dores horríveis, na angústia e terror de ver fugir-lhe a vida, pressentindo a morte que se consumou em duas fases temporais; antes de ter sido fatalmente atingida, percebeu que também o seu marido tinha sido atingido pelo arguido.
31. Os demandantes B... e mulher C... sofreram intensamente com toda esta tragédia, assistindo à morte da sua filha, por quem nutriam grande afecto e amor e com quem privavam quase diariamente.
32. Após a morte da sua filha, perderam muito do gosto pela vida, sofrendo depressões, sendo que têm muita dificuldade em aceitar o sucedido, algo que irá acompanhá-las para o resto das suas vidas.
33. O arguido é solteiro; a sua mãe faleceu quando ele tinha 18 anos de idade.
34. O arguido completou o 12º ano; ingressou no curso de … , que frequentou em Lisboa e Viseu entre os anos de 1992 e 1995, mas não obteve aproveitamento escolar, pelo que resolveu abandonar os estudos; dedicou -se à agricultura e acabou por ingressar no Hospital … .
35. Antes de ser preso, o arguido era Administrativo Principal no Hospital, auferindo mensalmente cerca de € 800,00.
36. O arguido não possui antecedentes criminais conhecidos.
(…)”.

B) Foram considerados não provados os seguintes factos:
“ (…).
No que concerne ao requerimento junto à contestação, não resultou provado que, no momento da prática dos factos, o estado de consciência do arguido tenha sido alterado por causa de um distúrbio de personalidade.
Quanto ao pedido cível formulado por B... e mulher C..., não resultou provado que E... tenha falecido momentos antes de F....
No mais e para o que interessa, inexistem factos não provados.
(…)”.

C) Dele consta a seguinte motivação de facto:
“ (…).
A convicção do tribunal resultou da ponderação de todas as declarações e depoimentos prestados, bem como de toda a documentação junta aos autos.
E a verdade é que, não obstante a gravidade do sucedido, o apuramento da factualidade acabou por se revelar uma tarefa sem dificuldades de maior, tal a evidência das provas carreadas para o processo.
Assim, é desde logo o arguido que, mostrando-se embora algo titubeante nas respostas que foi dando às perguntas que lhe foram feitas sobre alguns dos pormenores do sucedido, começa por apresentar uma confissão integral, confirmando desta forma todos e cada um dos factos descritos na acusação pública.
O arguido afirma que tirou efectivamente a vida ao seu pai e madrasta, não conseguindo contudo apresentar uma qualquer justificação para o sucedido, refugiando-se em respostas algo evasivas, dizendo que não sabe o que lhe passou na cabeça para fazer o que fez; ainda assim, consegue explicar que o seu relacionamento com a sua madrasta e mulher do seu pai seria pautada por alguma conflitualidade, com a existência de algumas discussões e azeda troca de palavras; quanto ao seu pai, colocar-se-ia por vezes ao lado da sua mulher nas críticas que esta lhe dirigia.
Sobre as suas condições de vida, esclarece que, não obstante alguns desaguisados, nunca ponderou em sair de casa; afirma que completou o 12º ano; ingressou no curso de … , que frequentou em Lisboa e Viseu entre os anos de 1992 e 1995, mas não obteve aproveitamento escolar, pelo que resolveu abandonar os estudos; dedicou-se à agricultura e acabou por ingressar no Hospital em 1996.
A mãe faleceu quando o arguido tinha 18 anos de idade, o que o deixou profundamente transtornado, mas acabou por aceitar a relação do seu pai com a sua madrasta, iniciada em 2000; apenas mais tarde, começaram os problemas e os azedumes; nunca procurou ajuda médica, nunca se sentindo inferiorizado relativamente aos colegas ou amigos.
Prosseguindo com as testemunhas da acusação e/ou pedidos cíveis, temos H..., tia do arguido, que estava sentada cá fora, num espaço que tem à frente da cozinha (a sua casa fica situada em frente), quando ouviu dois tiros; passado um pouco (5 ou 10 minutos), viu o INEM e começou a pensar nos tiros; falou com a sua cunhada e foram lá a casa; viram o A...e ele disse-lhe que "já está", acabaram-se 20 anos de tortura física e psicológica; estava aparentemente calmo e elas ainda não se tinham apercebido do sucedido, mas viram sangue à porta; falaram então com a equipa do INEM e constataram a morte dos dois; o arguido estava como se tivesse matado duas formigas, como se nada fosse; confrontou-o e ele repetiu-lhe que já estava, chegando a parecer-lhe satisfeito com o sucedido.
No início, o A...mostrou -se feliz pelo facto do pai se ter juntado novamente, chegando a dizer que aquela mulher era a mãe que ele nunca tinha tido; porém, as coisas foram-se alterando com o decurso do tempo; refere que a falecida F... tinha medo de falar sobre o que se passava dentro de casa, com receio de que a depoente pudesse contar ao seu marido e eles não queriam que se falasse do assunto; uma vez, viu a F... a chorar e ela disse-lhe que o A...que lhe tinha deitado as mãos à garganta e que a tinha tentado matar (isto ter-se-á passado cerca de um mês antes); ela dizia que ele lhe chamava nomes e que era o diabo em casa; quando se apercebeu das desavenças, chegou a perguntar à F... porque razão eles, que se davam tão bem, não saiam de casa, ao que ele lhe disse que o pai não iria deixar o filho sozinho; tem ideia que ela fazia tudo por tudo para resolver os problemas.
Mais diz que o falecido foi professor e ainda amanhava as terras;
I… foi tirar batatas para o seu terreno que fica em frente da casa (só fica a estrada pelo meio); não viu ninguém entrar e sair; foi a casa buscar uma carrinha para transportar as batatas; quando regressou ao loca, ouviu tiros um pouco ocos; ouviu então os gritos da D. F... a pedir ajuda; foi ao seu encontro e deparou com o portão fechado; saltou o muro e correu pela propriedade acima; vinha para baixo a F... ensanguentada e disse-lhe que tinha sido o A...com uma machada; disse também para acudirem ao marido; a depoente disse-lhe para ela se sentar e descansar enquanto ela ia chamar a polícia e foi quando viu o A...a vir na sua direcção e dar dois tiros na F...; ela caiu e a depoente fugiu com medo de ser também apanhada; não tem ideia de troca de palavras entre o arguido e a F..., duvidando até que ela se tenha apercebido da aproximação do arguido; após, foi chamar socorro a casa de uns senhores e telefonou ao INEM; nada sabe sobre relacionamentos entre a família, sabendo sim que o falecido era uma homem trabalhador.
J..., GNR do Posto de W..., afirma que foram chamados ao local; quando lá chegaram, já lá estava o INEM, mas o portão estava fechado; saltaram o muro e abeiraram-se do arguido; estava um pouco nervoso, sentado/encostado à vivenda; ele estava consciente e ia respondendo às perguntas que lhe eram feitas, mas pouco dizia, sendo quase nulas as manifestações de sentimentos.
K..., enfermeiro, diz que, à data dos factos, estava de serviço, quando foram contactados para prestar auxílio a uma pessoa que tinha sido agredida com uma arma de fogo; chegados ao local, depararam com uma vivenda fechada; recolheram informações junto de uma pessoa que estava num terreno agrícola ali próximo; tocaram à campainha, mas da primeira vez nada aconteceu; numa segunda tentativa, o portão foi aberto; entraram e avistaram uma pessoa ao cimo, tendo então reconhecido o arguido (trabalhavam ambos no Hospital de W...), o que lhe deu alguma tranquilidade; o A...afastou-se e colocou uma viatura na garagem; foram dentro de casa e verificaram a existência de um cadáver; o telefone estava fora do descanso; foi à fala com o arguido, verificando que o mesmo estava translúcido, nervoso, ansioso, dizendo: "eu já aguentava mais, chamem a polícia, façam o que quiserem que eu já não aguentava mais"; pareceu-lhe que ele estava consciente do que tinha acabado de fazer.
L..., GNR do Posto de W..., refere que, quando abordaram o arguido, não denotaram qualquer reacção da sua parte, respondendo-lhes este apenas de uma forma algo nervosa.
M..., comerciante e proprietário do café na …, afirma que já conhecia o arguido, bem como o seu pai, parecendo-lhe um bom rapaz (foi catequista dos seus filhos); a D. F... frequentava o seu estabelecimento, onde se encontrava com as suas amigas; mostrava-se uma pessoa bem apresentada e aparentemente feliz; era uma pessoa bem vista, sempre pronta a ajudar, socialmente activa; contribuía com algumas dádivas; tinha espírito de bem-fazer; eram pessoas que se davam mesmo muito bem e eram muito chegados; relativamente ao relacionamento com o arguido, nada sabe.
Os pais da F... andam muito transtornados com o sucedido; o falecido era reformado de professor e era um homem bem visto e bem relacionado, socialmente bom e inserida; era uma pessoa activa, desconhecendo contudo o que fazia em concreto, sabendo apenas que estava na Assembleia Municipal.
N... refere que lhe pediram para ir buscar umas batatas; a I... ouviu alguém a gritar, tendo então saltado o muro e falaram com a F..., que vinha ensanguentada com as mãos na cabeça; ela disse-lhes para acudirem ao marido; entretanto, viram o arguido com uma arma caçadeira empunhada na mão, a passo rápido (mais a correr do que a caminhar); sem mais, viu-o a disparar em direcção à F...e eles fugiram.
O..., tia por afinidade do arguido, diz que nunca presenciou qualquer discussão entre eles, mas sabe por conversas que tinha com a F...e até com o E...que o A...andava diferente, mais agressivo, tendo chegado a empurrá-la pelas escadas da cozinha (estes factos ter-se-iam passados há alguns meses), mas ela não quis apresentar queixa, procurando desculpabilizá-lo; eles tinham maneiras de ser diferentes; ela e a sua cunhada H... entraram na propriedade a seguir ao INEM; falaram com o A...e ele apresentou-se calmo e frio, consciente, como se nada tivesse acontecido - "já está, já está, acabou -se a pressão psicológica, toda a gente se preocupa com eles e ninguém se preocupa comigo", dizia ele.
O pai sempre defendeu o seu filho; mesmo a F... tinha uma relação compreensiva e moderna com o A...(não era uma madrasta à maneira antiga); ela participava activamente na sociedade, era muito prestável; eram vistos como um casal muito unido; ia a casa deles e eles à sua; eram amigos próximos que conviviam regularmente; o falecido sempre procurou manter um bom relacionamento com o filho mesmo depois de casar segunda vez; era um homem leal, brincalhão, aberto no trato, tanto com a família, como com os amigos; ele já estava reformado e ocupava-se com as terras; tinha uma relação muito estreita com a irmã, tendo ficado ela e os outros irmãos muito desolados; o arguido é um bocado calado, mas era uma criança bem disposta; ficou surpreendida com tudo isto.
P... esteve um dia antes com os falecidos, tendo combinado ir tomar café com eles; esteve com a F...na parte da manhã; conversaram sobre os problemas da depoente; ela disse-lhe que o A...tinha entrado de férias naquele dia; transmitiu-lhe que o psiquiatra lhe tinha receitado medicamentos, dizendo-lhe contudo que quem precisava de ajuda médica não era ela, referindo-se ao A..., que era uma pessoa isolada e tinha um feitio complicado; ela dizia-lhe que fez vários esforços junto de terceiras pessoas para tentar ajudá-lo, porque ele tinha uma personalidade na rua e outra em casa; o ambiente entre os dois não seria o melhor; dizia-lhe que quando fazia a comida ele ia comer fora de casa; lembra-se dela lhe ter comprado uma t-shirt para procurar agradá-lo; o pai procurava defender o filho; era uma pessoa querida por todos (deixou saudades a toda a gente), tendo uma relação especialmente próxima com a irmã Zaida.
Q... afirma que existia um bom relacionamento entre o casal, mas o mesmo já não dirá entre a F...e o arguido; a falecida F...era como se fosse uma irmã para si; no próprio dia dos factos, esteve com ela de manhã a tomar café e ela disse-lhe que tinha medo dele; por vezes, ela telefonava-lhe a dizer que ele a tratava mal; há cerca de 2 anos que ela começou a desabafar consigo; dizia que tinha pena deles e queria fazer alguma coisa com o A..., mas ele fechava -se e não deixava; o pai dava-lhe muito apoio e procurava conciliar as coisas.
Como pessoas, formavam um casal exemplar; era uma casa cheia, com muita harmonia e estima um pelo outro; boas relações com as pessoas de fora; eram amigos de ajudar os outros; ela era muito interventiva, empenhada e muito dedicada; seguramente que sofreu ao perceber que o marido tinha sido alvejado; o falecido era um bom homem e querido por todos;
R... já conhecia o arguido antes destes factos, pessoa que descreve como algo introvertido e pouco conversador; já conhecia o falecido desde o primeiro casamento, salientando igualmente as boas relações mantidas com a falecida F...(brincavam um com o outro como uns miúdos); ela queixava-se de que pretendia ser uma mãe, mas nem sequer conseguia ser uma amiga; dizia que existiam situações de agressões físicas, como seja o atirar com um comando, ou injúrias; refere que, no dia 10 ou 11 de Janeiro de 2010, a F...foi empurrada pelas escadas abaixo e foi refugiar-se em casa do irmão; quando o marido vinha para as reuniões da Câmara, ela ficava em casa da depoente, porque tinha medo de ficar em casa com o A..., afirmando que ele não olhava para ela com bons olhos, desprezando quaisquer mimos que ela lhe quisesse dar; ela procurava a aproximação, mas sem sucesso; ela terá começado a procurar a ajuda de um psiquiatra por causa do A..., tendo ido a uma consulta em Viseu; já o A..., apesar de instado, nunca aceitou submeter-se a qualquer tratamento médico.
Os pais da F...sofreram um impacto muito grande e perderam muito gosto pela vida; até lá na aldeia, ainda não conseguiram ultrapassar a morte daquelas pessoas; pese embora a prótese que tinha no braço, era uma mulher muito positiva e optimista; frequentavam palestras ou passeios religiosos; do primeiro para o segundo casamento, sempre o falecido manteve o mesmo carinho pelo arguido (sempre o tratou pelo "meu menino"); cuidava das terras e estava fisicamente capaz.
A D. … ia quase todos os Domingos almoçar lá a casa deles; a F...até tratava a cunhada carinhosamente por "minha sogra"; a morte dela foi uma perda muito grande e foi sentida pela generalidade das pessoas.
S..., irmão da falecida, diz que a sua irmã e o marido eram excelentes pessoas e que lhe fazem muita falta, a si e aos seus pais; ela participava em diversas actividades, como seja catequese, associações de solidariedade, pertencia à Irmandade do Santuário (até mandou fazer toalhas propositadamente para isso); dava-se com toda a gente e era alguém muito generoso com os outros; chegou a estar em sua casa durante 4 dias por causa de problemas em casa com o A...(afirma que ele não conseguia vê-los felizes); não deixava que ela lhe lavasse a roupa; às vezes, recusava-se a comer a comida dela, mas ela continuava a preparar-lhe a comida (o falecido E...chegou a confidenciar consigo que a F...era tão boa ou melhor para o A...do que tinha sido a própria mãe biológica); também os seus pais privavam intensamente com eles (quase diariamente) e ficaram profundamente abalados com tudo isto.
T..., primo afastado da falecida, refere os pais da F...estão depressivos, choram frequentemente, vivendo intensamente com a morte da filha, sendo muito difícil ultrapassar esta situação; eles viviam em harmonia.
U… cuida de idosos e não hesita em afirmar que os falecidos formavam um casal exemplar, eram pessoas muito bondosas e queridos de toda a gente, socialmente muito bem vistas; relata um episódio em que o arguido desmaiou e ela se preocupou com ele; ele estava em coma e ela provavelmente salvou-lhe a vida; estava sempre preocupada com ele, designadamente com as horas das refeições; nos últimos tempos, ela andava assustada com o A..., por causa da agressividade deste; ele gostava de a "massacrar", dizia -lhe ela, com quem falava quase diariamente, já que a depoente toma conta dos pais dela.
Relativamente às testemunhas de defesa, temos AA..., empregada fabril, que conhece o arguido lá da aldeia; diz que é uma pessoa reservada e que dava catequese; nunca ouviu o pai a dizer mal do filho; trocava livros sobre a catequese; era uma pessoa bem vista.
BB..., ajudante de cozinha, esclarece que o arguido é padrinho da sua filha; conhece-o há cerca de 20 anos e tem o arguido por boa pessoa; ele dizia que, nos últimos tempos, o ambiente não era o melhor; tinham discussões e, apesar de não falar muito, sentia que ele andava triste e em baixo; a relação com o pai nunca foi muito boa.
CC..., comerciante, conhece o arguido desde miúdo; cresceu num lar sem amor; acompanhou a doença da mãe do foro cancerígeno, quando o A...teria 13 ou 14 anos; ela desabafava e queixava-se da falta de apoio; ela fazia tudo em casa; os pais entravam por vezes em conflito e o A...cresceu neste ambiente; sempre o viu triste; antes de morrer, a mãe confidenciou-lhe que gostaria que ele entrasse para o Seminário, local onde poderia encontrar alguma paz; uma vez, ouviu o pai a dizer, referindo-se ao filho: "esse gajo, anda para lá"; o A...era uma doçura a falar com a depoente, como que a pedir carinho; porém, tudo que sabe, reporta-se aos momentos em que a mãe do A...era viva, sendo certo que, depois disso, pouco falou com o A..., apesar de desconfiar que ele andava triste.
Ora, retomando aquilo que inicialmente se disse, considerando a confissão do arguido e todos estes depoimentos, facilmente se corroboram os factos objectivos descritos na acusação; da mesma forma, ninguém duvidará das dores sofridas pelas vítimas ou do enorme desgosto vivido pelos respectivos familiares.
Aliás, o relatório de exame da Polícia Judiciária (fls. 60 a 81) está bastante bem elaborado, com fotografias pormenorizadas e bem explícitas que fornecem rapidamente uma perspectiva global do sucedido.
Também o auto de apreensão (fls. 56/57), o exame tanatológico aos cadáveres (fls, 88 a 94), os relatórios de autópsia (f1s. 300/304 e 337/341), O relatório pericial de vestígios biológicos (fls. 240/242) e os relatórios de exame pericial aos resíduos de disparo e à arma (fls. 244/246, 343/352 e 356/405, respectivamente) contribuem decisivamente para a formação da convicção do tribunal.
Mais se atenderam às declarações do arguido sobre as suas condições sócio-económicas ou ao relatório de perícia sobre a personalidade (fls. 666/672), bem como ao Certificado do Registo Criminal (fls. 21).
O tribunal focará apenas mais dois pontos:
Um prende-se com o elemento subjectivo dos tipos de ilícito.
Como se teve já oportunidade de afirmar no decurso do processo, veio a defesa equacionar a possibilidade de, ao actuar da forma descrita, estar o arguido em estado de "alterado da consciência", com o que entramos no domínio da eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída para a prática dos crimes de que é acusado; nesta sequência, determinou -se a realização de uma perícia médico-legal em psiquiatria forense, a qual teve por objectivo determinar a consciência e capacidade do arguido para perceber, entender e compreender o alcance e ilicitude dos seus actos.
E o relatório junto a fls. 740/748, baseado igualmente no relatório de avaliação psicológica de fls. 749/752, é muito claro na fundamentação e conclusões que extrai do exame realizado, afastando por completo qualquer cenário de inimputabilidade ou sequer imputabilidade diminuída.
Como é sabido, os juízos técnicos ou científicos inerentes a esta prova pericial presumem-se subtraídos à livre apreciação do julgador, o qual deverá sempre fundamentar uma qualquer divergência (art, 163.º do Código de Processo Penal).
Assim e depois de descrever os elementos em que se baseou, afirma o Sr. perito que "a consciência e a capacidade do examinado para perceber, entender e compreender o alcance e a ilicitude dos seus actos, à data da alegada prática dos mesmos, se encontravam plenamente conservadas." E remata dizendo que "o examinado não apresentava, à data da alegada prática dos factos, clínica compatível com o diagnóstico de qualquer doença mental ou patologia do foro psíquico, nosologicamente reconhecia como tal; não se apurou, à data da alegada prática dos factos, qualquer comprometimento decorrente de anomalia psíquica, da capacidade do examinado na avaliação da ilicitude dos actos de que vem acusado (…) ou em se determinar de acordo com esta avaliação".
O tribunal não ignora que quando alguém pratica actos com semelhante crueldade, para mais contra o próprio pai, estará seguramente inundado de uma raiva inimaginável para o comum dos cidadãos; todavia, se tal estado de espírito fosse a bitola para aferir da inimputabilidade de um qualquer arguido, então dificilmente se encontrariam pessoas conscientemente capazes de responder pelos seus actos.
O tribunal não tem pois qualquer reserva em considerar o arguido totalmente imputável para responder pela prática dos factos que lhe são imputados.
Um segundo ponto prende-se com a exacta hora da morte das vítimas.
Como facilmente se compreende, para efeitos sucessórias, assume inequívoca relevância perceber se, no momento em que morreu E..., F... ainda estava viva, ou o inverso, porquanto neste caso poderiam estes assumir a qualidade de herdeiros do seu cônjuge.
Ora, pese embora a leitura dos factos poder inculcar a ideia de que F... foi morta depois do seu marido (o arguido disparou num primeiro momento contra o seu pai e só depois veio ao quintal acabar com a vida daquela), a verdade é que, em consciência, ninguém pode afirmar que F...faleceu 5, 10, 60 ou 120 segundos antes ou depois; os relatórios de autópsia limitam-se a dizer que o óbito dos dois foi confirmado pelo INEM às mesmas 11 horas daquele dia, nada mais podendo todavia acrescentar – e o tribunal também não.
Por outras palavras, os factos dizem-nos que, no momento em que o arguido dispara em direcção a F..., já o seu pai tinha sido alvejado, pelo que o mais provável é que este já estivesse morto, mas este raciocínio queda-se pelas conjecturas e probabilidades, já que pode o pai do arguido ter perdido a vida apenas alguns minutos volvidos. Ou seja, seria sempre necessária a existência de alguma prova suplementar que permitisse retirar conclusões seguras – por exemplo, diferente seria se, no hiato entre os disparos, alguém, mesmo que não fosse pessoal médico, pudesse ter confirmado que, dentro de casa, já o pai do arguido tinha perdido a vida; porém, ninguém observou o corpo do pai nestes instantes, crendo-se inclusive que, em virtude do receio sentido pelos populares, terão sido os elementos do INEM os primeiros a entrar na casa.
Nesta medida, funciona aqui a presunção de comoriência a que adiante se voltará a fazer referência, motivo pelo qual afirma o tribunal que o falecido E... não deixou cônjuge sobrevivo.
(…)”.

D) Dele consta a seguinte fundamentação quanto ao não privilegiamento dos crimes de homicídio:
“ (…).
Como também não colhe de forma alguma a ideia de que estaríamos sob a alçada do homicídio privilegiado previsto no art. 133.º, porquanto não se vê, nem ao de leve, qual a compreensível emoção violenta ou desespero debaixo da qual tivesse agido o arguido e que pudesse diminuir sensivelmente a sua culpa.
Atente-se que é o próprio arguido a não apresentar qualquer justificação para os seus actos, afirmando que não sabe o que lhe passou pela cabeça para fazer o que fez, com a certeza de que não será seguramente o mau relacionamento com a sua madrasta ao longo dos anos que poderá constituir compreensível motivo para semelhante comportamento – ainda que nunca tal tenha sido dito em audiência de julgamento, o tribunal não pode deixar aqui de assinalar que o único motivo apresentado pelo arguido para iniciar naquele momento tamanha barbárie foi aquele que transmitiu ao Sr. perito médico, ou seja, que estiveram uma vez mais a discutir e que a vítima F...lhe terá dado com uma colher de pau …
E se assim é com a vítima F..., no caso de E... é ainda pior, já que a única coisa que este tentou fazer foi dissuadir o seu filho de continuar com aquela atrocidade, procurando pedir auxílio.
(…)”.

E) Dele consta a seguinte fundamentação de direito quanto à determinação da medida concreta das penas:
“ (…).
1. Determinação da sanção – fixação da moldura penal abstracta
Nos termos dos já citados normativos legais, importa atender às seguintes molduras penais abstractas:
- 2 crimes de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts, 131.º e 132.º n.ºs 1 e 2 als. a) e c) – pena de 12 a 25 anos de prisão;
- 1 crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º n.º 1 al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro – pena de 1 a 5 anos de prisão.
No entanto e por força da referida agravação de 1/3 prevista no n.º 3 do art. 86.º do Regime Jurídico das Armas, o limite mínimo passa de 12 para 16 anos de prisão, mantendo-se todavia o máximo em 25 anos – note-se que o n.º 5 do art. 86.º proíbe que se excedam os 25 anos de prisão, mandamento que de resto já resultava claramente do art. 41.º n.ºs 2 e 3 do Código Penal.
A moldura penal abstractamente aplicável para cada um dos crimes de homicídio qualificado é então de 16 a 25 anos de prisão.
2. Determinação da sanção – fixação das penas concretas
Encontradas as molduras penais abstractas, cabe determinar a medida concreta da pena, atendendo, para tanto, ao critério global contido no art. 71.º n.º 1 do Código Penal, segundo o qual, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Considerando que o processo de medida da pena é (e só pode ser) um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas, face à norma profundamente inovadora do citado art. 40.º do Código Penal, afigura-se inquestionável que é o modelo da "moldura da prevenção" aquele que melhor se adequa ao seu espírito (proposto por FIGUEIREDO DIAS, in As consequências jurídicas do crime, pág. 229).
Segundo aquele modelo, através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo – art. 40 n.º 2 do Código Penal) – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela dignidade da pessoa do agente – ao passo que, com o requisito da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização, in casu, das finalidades da pena.
Ou seja, serão considerações de prevenção geral (tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida), que limitarão o limite mínimo, sendo considerações de prevenção especial, viradas para a ressocialização e reintegração do delinquente na comunidade, que determinarão, a final, a medida da pena.
Tendo presente o modelo adoptado, importa de seguida eleger a totalidade das circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a culpa e para a prevenção, determinando o substrato da medida da pena, tendo em conta os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida concreta da pena referidos no n.º 2 do art. 71.º do Código Penal. Preceitua este normativo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Resultam da verdade processualmente adquirida os seguintes factores:
As exigências de prevenção geral são elevadíssimas, sendo quase desnecessário dizer que este tipo de crimes provoca na comunidade um inigualável sentimento de receio e, concomitantemente, de repulsa, tornando-se por conseguinte absolutamente essencial que a sociedade sinta que determinados comportamentos sofrem uma adequada punição, mantendo-se assim a confiança geral no ordenamento jurídico.
Relativamente à prevenção especial, dir-se-á que milita a favor do arguido o facto de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais e de ter mantido ao longo da sua vida uma postura aparentemente consentânea com o direito; no mais, todavia, é realmente de lamentar a sua postura em todo este processo, com permanentes respostas evasivas, o que se fez de resto igualmente notar no relatório de avaliação médico-legal em psiquiatria forense.
O arguido, já em sede de declarações finais e em jeito de resposta às alegações feitas pelo Ministério Público, afirma que está arrependido pelo sucedido. O processo de arrependimento é algo do foro íntimo de cada um de nós, mas, com excepção daquelas parcas declarações, o arguido não demonstrou qualquer acto de contrição ao longo de todo o julgamento, chegando o tribunal colectivo a duvidar se, ainda hoje, tem o arguido exacta noção da profunda gravidade dos seus actos.
O arguido é uma pessoa claramente solitária, a que a morte da sua mãe não será alheia, e que vive fechado no seu mundo, recordando aquele fatídico dia com uma evidente anestesia afectiva, o que não pode deixar de causar perplexidade. Aliás, a forma como, logo naquele dia, encarou o sucedido, é bem demonstrativo que os actos por si praticados mais não são do que o culminar de um processo de crescente ira que foi desenvolvendo dentro de si ao longo de muito tempo, disso sendo reflexo o estado de aparente acalmia em que algumas pessoas o encontraram, como se nada tivesse acabado de fazer e repetindo a expressão "já está, já está", como que se de o aliviar de um fardo se tratasse – esta expressão denota um evidente processo evolutivo na formação da intenção de matar.
As afirmações produzidas pelo arguido e transpostas para o relatório de avaliação psicológica apenas vêm corroborar esta ideia: quanto à culpa pelo sucedido, diz-nos o arguido que "opa sei lá... o ambiente era tenso... claro que o culpado sou eu mas o ambiente tenso ajuda, o computador parou"; e se pudesse voltar atrás, mais acrescenta o arguido o seguinte: "boa pergunta, se eu pudesse voltar atrás... pois não sei... talvez sair... sinceramente não sei" – qualquer pessoa verdadeiramente arrependida pelos inenarráveis actos praticados demonstra uma outra atitude, tanto bastando pensar que tirou a vida às duas pessoas, uma delas o próprio pai, que consigo diariamente conviviam e que certamente lhe queriam bem.
O arguido procura encontrar no ambiente tenso um mínimo de explicação para um cenário de horror que é inexplicável.
E o tribunal utiliza a palavra horror, porque outra expressão não encontra para descrever o cenário factual vivido por aquelas infelizes pessoas:
- o arguido pega numa machada de cortar e picar carne e desata a agredir repetidamente a sua madrasta na cabeça e noutras partes do corpo, provocando-lhe graves ferimentos, como sejam dez golpes no couro cabeludo e a amputação quase total do indicador da sua mão esquerda, num primeiro episódio de inegável brutalidade;
- as agressões foram de tal forma violentas que conseguiu partir o cabo de madeira da machada;
- entretanto, o pai do arguido apercebe-se do alarido e vem em socorro da sua mulher, procurando chamar auxílio pelo telefone;
- depois de instado a parar, o arguido poderia ter efectivamente parado para pensar, mas não – vai buscar uma arma, que municia com dois cartuchos, dirige-se para junto do seu pai e prime o gatilho; a arma encravou e o pai agarrou o cano da arma, evitando que um novo disparo o atingisse;
- o arguido poderia ter parado para pensar, mas não – vai outra vez junto dos cartuchos e carrega novamente a arma; chega junto do seu pai e dispara a matar em direcção ao pescoço e cabeça;
- o arguido poderia ter parado para pensar, mas não – vai uma vez mais carregar a arma e vem para o exterior, com o firme propósito de perseguir a sua madrasta e acabar com a sua vida;
- no quintal da casa, encontravam-se já outras pessoas junto de F..., mas nem isso foi o bastante para demover o arguido, que disparou mais dois tiros em direcção à sua cabeça;
- no final de tudo isto, o arguido vai arrumar a arma no sítio de onde a tinha retirado e, pasme-se, tem ainda a calma necessária para estacionar o veículo do seu pai na garagem.
O arguido só descansou depois de ceifar a vida dos dois, manifestando desta forma um dolo assaz intenso, pelo que, com sinceridade, é difícil encontrar maior frieza emocional...
Por outro lado, dir-se-á que a atitude evidenciada perante a vítima F...consegue ser ainda mais grave, já que a deliberada intenção de acabar com a sua vida perdurou por mais tempo.
Termos em que, ponderados os factos e a personalidade do agente, consideram-se proporcionais e adequadas as seguintes penas:
- 21 anos de prisão para o homicídio de E...; e
- 23 anos de prisão para o homicídio de F....
No que concerne ao crime de detenção de arma proibida, as exigências de prevenção geral positiva são também muito elevadas, visto que as armas são por todos consideradas como potenciadoras de receios e grave criminalidade, sendo urgente combater a crescente proliferação das mesmas. Com efeito, veja-se por exemplo que, não há muito tempo, se estimava existirem em Portugal cerca de 1,5 milhões de armas ilegais, o que, associado a um aumento do comércio de armas ilegais de guerra e de armas transformadas, acabam por explicar o aumento da prática de crimes com recurso a armas de fogo.
Aliás, importa não olvidar que a última alteração do regime jurídico das armas e munições se ficou a dever precisamente ao resultado do aumento da criminalidade com recurso a este tipo de armas, procurando o legislador, além do mais, agravar as penas de detenção de arma proibida e dos crimes cometidos com recurso a arma, prevendo ainda a detenção, em ou fora de flagrante delito, dos agentes de crimes de detenção de arma proibida ou de crimes cometidos com recurso a arma, bem como a aplicabilidade da prisão preventiva em todos os casos de crimes de detenção de arma proibida e de crimes cometidos com recurso a arma.
Relativamente às exigências de prevenção especial, temos que, neste caso, ainda que destinada à prática de crimes de extrema gravidade, a utilização da arma foi momentânea, não lhe sendo conhecidos quaisquer antecedentes, decidindo o tribunal fixar a pena perto do limite mínimo, ou seja, I ano e 2 meses de prisão.
3. Cúmulo jurídico
Nos termos do art. 77.º n.º 1 do Código Penal, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.
Assim e atendendo às regras de punição do concurso enunciadas no seu n.º 2, o limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, enquanto o limite máximo é constituído pela soma daquelas mesmas penas, pelo que, para efeitos de cúmulo jurídico, teríamos uma moldura de 23 anos a 45 anos e 2 meses de prisão; no entanto e por força do n.º 3 do art. 41.º do Código Penal, em caso algum a pena de prisão poderá ultrapassar os 25 anos, pelo que a moldura penal abstracta a atender é de 23 a 25 anos de prisão.
Ponderados os factos, todo o circunstancialismo descrito e a diferença entre os limites mínimo e máximo "esmagada" a apenas 2 anos, não se vê que de que forma poderá o tribunal afastar-se da pena máxima – o arguido manifestou total indiferença pela vida do seu pai e da sua madrasta, com a certeza de que ninguém se sentirá seguro e dificilmente subsistirá qualquer sociedade se a punição das actuações homicidas ficar aquém da necessidade ou for inadequada na defesa e salvaguarda da vida humana.
Nestes termos, considera-se proporcional e adequada uma pena única de 25 anos de prisão.
(…)”.

F) E dele consta a seguinte fundamentação de direito quanto à declaração de indignidade:
“ (…).
Os demandantes convergem na ideia de que o arguido pode, e deve, já no âmbito dos presentes autos, ser declarado indigno para suceder ao seu pai.
A este propósito, riposta o arguido, afirmando que um dos pressupostos para a declaração de indignidade é a condenação do arguido pela prática de um crime doloso contra o autor da sucessão, pelo que o pedido é prematuro.
Nos termos do art. 2034.º al. a) do Código Civil, carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado.
Por seu turno, estabelece o art. 2036.º do mesmo diploma que a acção destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada dentro do prazo de dois anos a contar da abertura da sucessão, ou dentro de um ano a contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento das causas de indignidade previstas nas alíneas c) e d) do artigo 2034".
Se bem se compreendem os argumentos utilizados pelo arguido, as objecções por si levantadas prendem-se com o facto de ainda não ter sido condenado, mas crê-se que esta linha de raciocínio não procede.
Ou seja, é hoje mais ou menos pacífico que a indignidade exige efectivamente a condenação em processo penal pela prática do crime de homicídio doloso, pelo que não basta a existência de indícios ou a prova dos factos em processo civil, nem tão pouco está autorizada a sua aplicação analógica ou extensiva (vejam-se, a propósito, o Ac. do STJ, de 27/3/2007, proc. n.º 07PS69, ou o Ac. da RL, de 23/9/2010, proc. n.º 1280/09.1TBMTA.L1-8, ambos em dgsi.pt).
No entanto, o que se discute neste caso é muito diferente e consiste em perceber se a indignidade sucessória do arguido pode desde logo ser declarada na acção cível enxertada no processo penal – a verdade é que, ressalvando o devido respeito por diferente opinião, não se vislumbram motivos para deixar de o fazer, até a coberto do princípio da suficiência do processo penal expressamente plasmado no art. 7.º do Código de Processo Penal.
A condenação penal do arguido acarreta uma verdadeira consequência autónoma no plano civil, pelo que, sendo o arguido condenado, nenhuma razão existe para que, em simultâneo, possa ser declarado indigno de suceder ao homem a quem tirou a vida; aliás, veja-se que, com excepção dos casos previstos no art. 377.º do Código de Processo Penal, todas as decisões do foro civil proferidas no âmbito do processo penal dependem necessariamente da respectiva condenação do arguido, o que é feito no mesmíssimo processo – também em todos aqueles casos, tal como no caso que presentemente nos ocupa, qualquer hipotética revogação da sentença condenatória tem, regra geral, imediatos reflexos na condenação civil.
Assim, se porventura vier a ser interposto recurso da sentença penal e se esta vier a ser revogada, facilmente se percebe que também a declaração de indignidade não produz qualquer efeito, o que significa que o arguido em nada é prejudicado, mantendo este salvaguardados todos os seus direitos.
O arguido é pois indigno de suceder a seu pai E..., pelo que, não deixando este cônjuge sobrevivo, ascendentes ou outros descendentes, são os seus irmãos (e, representativamente, os descendentes destes) os respectivos herdeiros – cfr. os arts. 2133.° n.º 1 al, c) e 2145.º do Código Civil.
(…)”.
*
*
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Questão prévia

O ponto 18 dos factos provados tem a seguinte redacção:
- Com as machadas desferidas contra a vítima F... e os disparos que efectuou contra esta e o seu pai E..., visava o arguido atingi-los em zonas vitais com é a cabeça, o pescoço e o tronco, e assim provocar-lhes a morte, o que conseguiu fazer.
Este ponto de facto está directamente relacionado com o ponto 4 dos factos provados do qual consta, além do mais, que o arguido retirou de uma gaveta do armário da cozinha uma machada de cortar e picar carne, (…), e desferiu vários golpes naquela cabeça daquela [a sua madrasta, F...], bem como um golpe que a atingiu na mão esquerda.

É manifesta a existência de um erro de escrita no ponto 18 referido pois, onde consta «machadas» deveria constar, «machadadas».
A eliminação do erro apontado não importa modificação essencial do decidido e muito menos, agravamento da posição do arguido.
Assim, nos termos do art. 380º, nºs 1, b) e 2, do C. Processo Penal, procede-se à correcção do acórdão no sentido apontado, passando o ponto 18 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
- Com as machadadas desferidas contra a vítima F... e os disparos que efectuou contra esta e o seu pai E..., visava o arguido atingi-los em zonas vitais com é a cabeça, o pescoço e o tronco, e assim provocar-lhes a morte, o que conseguiu fazer.

Consigna-se que a correcção operada consta já da transcrição dos factos provados atrás efectuada.
*

Da nulidade decorrente do indeferimento de renovação da perícia médico-legal psiquiátrica

1. Alega o recorrente, na conclusão 5 da motivação, que o tribunal a quo, ao impedir a renovação da perícia médico-legal para aferir em que medida a sua vulnerabilidade ao stress condicionou a sua conduta e vontade no momento da prática dos crimes, impediu a descoberta da verdade e violou os arts. 158º e 163º do C. Processo Penal.
Completando o conteúdo desta conclusão com o que com ele se relaciona no corpo da motivação, podemos dizer que o recorrente, dizendo que uma das questões objecto do recurso é o indeferimento da por si requerida segunda perícia médico-legal, discorda de se ter considerado provado que agiu de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de matar o pai e a madrasta, pretendendo demonstrar, através da renovação da perícia, que se encontrava numa situação de especial vulnerabilidade ao stress que lhe alterou o estado de consciência, tendo agido sob tensão psicológica configuradora de uma compreensível emoção violenta pelo que o tribunal a quo, ao indeferir o por si requerido, violou o princípio da imediação e o princípio da investigação.
Balizada a questão, se bem interpretámos a argumentação expendida, nos termos pretendidos pelo recorrente, vejamos agora se lhe assiste razão.
1.1. O princípio da imediação, considerado num sentido formal, traduz-se na relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição 1974, Reimpressão, pág. 232) ou seja, a autoridade que profere a decisão tem que ter assistido à produção das provas e à sua discussão por acusação e defesa (cfr. art. 355º, nº 1, do C. Processo Penal).
Nesta perspectiva, não vemos como o indeferimento da requerida renovação da perícia – precisamente porque o meio de prova não foi produzido – possa ter violado tal princípio processual.

Em sentido material, o princípio da imediação é entendido como prescrevendo ao julgador a utilização dos meios de prova imediatos isto é, a utilização dos meios de prova que mais directamente se encontrem relacionados com os factos probandos (cfr. ob. e loc. citados e ainda Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Direito Processual Penal, I, 4ª Edição, pág. 90).
Ora, também nesta perspectiva não vemos que tenha sido violado o princípio processual em questão pois que a perícia e a renovação da perícia, enquanto meios de prova, se situam no mesmo grau de imediação, se assim podemos dizer, relativamente ao tribunal e aos factos probandos que constituíam o seu objecto.

1.2. O princípio da investigação ou da verdade material consiste no poder-dever atribuído ao tribunal de, por sua iniciativa e com autonomia relativamente às iniciativas da acusação e da defesa, proceder à realização das diligências probatórias que entender necessárias e pertinentes para o esclarecimento dos factos e descoberta da verdade material.
Trata-se de um princípio geral de produção de prova que tem assento no art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal, que dispõe:
O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.”.
Porém, o princípio da investigação sofre as limitações impostas pelos princípios da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade – da legalidade – só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei – e da adequação – não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios.

Aqui chegamos, atentemos nas incidências processuais imediatamente anteriores e posteriores ao requerimento apresentado pelo recorrente, solicitando a renovação da perícia médico-legal.
Assim:
- Com a contestação onde, relativamente à acusação pública, se limitou a oferecer o merecimento dos autos, o arguido requereu, além de outras provas, a realização de uma perícia médico-legal com vista à determinação da sua imputabilidade, inimputabilidade ou eventual imputabilidade diminuída, uma vez que, de acordo com relatório médico por si junto (fls. 615 a 616), sofreria de distúrbio de personalidade de tipo Esquizoide ou eventualmente Paranoide, doença que teria perturbado e alterado o seu estado de consciência e que o levou ao desfecho verificado;
- Por despacho proferido na audiência de julgamento de 11 de Maio de 2011 foi ordenada a realização da requerida perícia médico-legal em psiquiatria forense, tendo por objecto «determinar a consciência e capacidade do arguido para perceber, entender e compreender o alcance e ilicitude dos seus actos.»;
- Em 22 de Julho de 2011, deu entrada no Tribunal Judicial da comarca de W..., o Relatório de Exame Médico-Legal em Psiquiatria Forense, de fls. 740 a 748, acompanhado de um Relatório de Avaliação Psicológica (fls. 749 a 752);
- O relatório foi notificado ao arguido por via postal registada, datada de 22 de Julho de 2011;
- Por requerimento com registo postal de 2 de Agosto de 2011, o arguido, invocando a terceira conclusão do Relatório de Avaliação Psicológica [«Indica ser um indivíduo vulnerável ao stress, que quando confrontado com situações de grande tensão emocional tende a reagir com altos índices de ansiedade.»], e um segmento dos resultados obtidos quando submetido à Escala de Ansiedade de Auto-Avaliação de Zung, do mesmo relatório [«Pode concluir-se que o examinado apresenta reacções ansiogéneas, quando confrontado com situações de tensão emocional, contudo não apresenta níveis de ansiedade patológicos.»], e fazendo o contraponto, ao que parece, com o último parágrafo da Discussão e Fundamentação Psiquiátrico-Forenses, do Relatório de Exame Médico-Legal em Psiquiatria Forense [«Assim – face ao objectivo definido para o presente Exame – cumpre concluir que a consciência e a capacidade do Examinado para perceber, entender e compreender o alcance e a ilicitude dos seus actos, à data da alegada prática dos mesmos, se encontravam plenamente conservadas.»], expressando o entendimento de que neste último relatório não foi estabelecido o nexo de causalidade entre o comportamento ansioso, (que considera diagnosticado) e a prática dos crimes, e colocando a dúvida sobre se tal ansiedade, mesmo que não patológica, não o terá psicologicamente perturbado no momento daquela prática, desencadeando a reacção agressiva, potenciada por situações de conflitos com a madrasta que se arrastavam no tempo, veio requerer, com vista ao apuramento do nexo de causalidade entre o seu comportamento, o stress e o desespero em que vivia, e nos termos do art. 158º, nº 1, b), do C. Processo Penal, e renovação da perícia médico-legal psiquiátrica, a ser realizada por outro perito;
- O Ministério Público respondeu ao requerido, pronunciando-se pela clareza e meticulosidade do relatório médico questionado que, em seu entender, deu resposta integral às questões suscitadas na perícia, e inclui pela impertinência do requerimento e seu consequente indeferimento;
- Na audiência de julgamento de 16 de Agosto e 2011, depois de os assistentes se terem pronunciado sobre o requerimento, após deliberação do tribunal o colectivo, o Mmo. Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho:
“ (…).
A fls. 764/768 veio o arguido, a coberto da al. a), do nº 1, do artº 158º, do C. P. Penal, requerer a realização de uma nova perícia, a cargo de outro perito.
Para o efeito, e em muito breve síntese, afirma que a essencialidade da referida renovação encontra a sua justificação no alegado apuramento do nexo de causalidade entre o estado de stress vivido pelo arguido e a prática dos factos que lhe são imputados.
O Tribunal, sufragando a posição sustentada pela Digna Procuradora do Ministério Público, entende que a resposta é manifestamente negativa.
Com efeito, recorrendo à avaliação psicológica junta a fls. 749 a 752 e sobretudo ao exame médico legal de fls. 740 a 748, pode facilmente verificar-se que os mesmos são perfeitamente claros na abordagem que fazem da psiquiatria forense relativamente ao arguido, afastando por conseguinte quaisquer equívocos que dali pudessem resultar.
Aliás, se dúvidas subsistissem sobre um qualquer ponto do mencionado relatório, poderia o arguido requerer a prestação de esclarecimentos por parte do Srº perito médico; se o não fez, foi porque entendeu que o mesmo é, repete-se, claro e objectivo na análise da situação.
Nesta medida, e corroborando uma vez mais a posição defendida pelo Ministério Público, indefere-se a realização da requerida perícia.
Notifique.
(…)”;
- A audiência prosseguiu, com a prestação de declarações pelo arguido quanto às suas condições económicas e pessoais, após o que se passou à fase das alegações e, terminada esta, às declarações finais do arguido, tendo depois sido designada data para a leitura do acórdão;
- O acórdão recorrido foi publicitado, em audiência, em 12 de Setembro de 2011 e dele interpôs recurso o arguido, a 12 de Outubro de 2011.
Posto isto.

O arguido não reagiu contra o despacho de 16 de Agosto de 2011, supra transcrito, quer arguindo a sua nulidade, quer dele recorrendo, e pretende agora, no recurso interposto do acórdão condenatório, a 12 de Outubro de 2011, sindicar o ali decidido.
O despacho cuja bondade o arguido questiona, indeferiu, como se disse, a renovação da perícia médico-legal psiquiátrica por si requerida, por nele se ter entendido que, sendo o relatório da perícia já realizada claro e inequívoco, aquela renovação seria inútil e desnecessária.
Admitindo, mesmo por hipótese de raciocínio, que o despacho violou o art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal e portanto, o princípio da investigação, a consequência daí recorrente não seria a verificação de nulidade insanável ou absoluta, pois que como tal não é cominada na norma citada e não consta, por outro lado, do enunciado do art. 119º do C. Processo Penal. A tratar-se de nulidade, só poderia ser nulidade sanável ou relativa, a enquadrar na alínea d), do nº 2, do art. 120º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo.
O arguido esteve presente na audiência de julgamento, nela a sua Ilustre Defensora efectuou o requerimento de renovação da perícia e ambos estavam presentes quando o Mmo. Juiz Presidente indeferiu tal pretensão.
Se o arguido entendeu que com esta decisão foi cometida uma nulidade, por violação do art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal, impunha-lhe o art. 120º, nº 3, a), do mesmo código que, de imediato isto é, antes do termo da audiência, a arguisse em acta. Não o tendo feito, e não tendo sequer recorrido do despacho que indeferiu a diligência no prazo que para tanto a lei fixa [tendo o despacho sido proferido a 16 de Agosto de 2011, o prazo de vinte dias para recorrer terminou a 5 de Setembro de 2011, podendo o acto ser praticado até 8 de Setembro de 2011, acrescido da sanção legal; mesmo que se entenda que o arguido podia renunciar ao benefício que para si decorre no estabelecido no art. 104º, nº 2, do C. Processo Penal, sendo certo que nada veio dizer aos autos nesse sentido, sempre aquele prazo terminaria a 20 de Setembro de 2011, podendo o acto ser praticado até 23 de Setembro de 2011, acrescido da legal sanção], ficou sanado o eventual vício.
A sanação do vício impossibilita a sua arguição por via do presente recurso, interposto, como se disse, a 12 de Outubro de 2011 e portanto, o seu conhecimento por este tribunal, aqui também por força do caso julgado formado.

Ainda assim, não deixaremos de dizer que o arguido, com o requerimento de renovação da perícia, não pretendeu esclarecer qualquer dúvida suscitada mas antes, renovando os fundamentos do requerimento da primitiva perícia – com abundante argumentação, reconhece-se – obter nova diligência cujas conclusões pudessem, eventualmente, ser opostas às daquela, quanto à sua imputabilidade.
Ora, o relatório da perícia médico-legal realizada é completamente claro e esclarecedor, quer na discussão, quer nas conclusões e o mesmo sucede com o relatório de avaliação psicológica que o complementa, dando resposta cabal à questão da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido, pelo que se verificavam os pressupostos de que o art. 158º, nº 1, do C. Processo Penal faz depender a realização de nova perícia ou renovação da efectuada.

1.3. Em síntese conclusiva do que antecede:
- A violação do art. 340º, nº 1 do C. Processo Penal e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento da renovação de prova pericial, só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do nº 2, do art. 120º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no nº 3 do mesmo artigo;
- Tendo o arguido e a sua Ilustre Defensora estado presentes na audiência de julgamento em que foi proferida a decisão e portanto, na diligência em que foi cometida a eventual nulidade, não tendo reagido até ao termo da mesma arguindo o vício, nem tendo recorrido atempadamente da decisão, sanou-se o vício o que, juntamente com o caso julgado formal entretanto verificado, impede que no recurso interposto do acórdão condenatório se conheça do acerto do ali decidido.
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Da contradição insanável entre os pontos 2, 3 e 4, por um lado, e o ponto 21, todos dos factos provados, e do erro notório na apreciação da prova

2. Apesar de não se encontrar qualquer referência feita nas conclusões do motivação, no corpo desta o recorrente alega a existência de contradição insanável entre os pontos 2, 3 e 4 dos factos provados, por um lado, e o ponto 21 dos mesmos factos provados pois, seguindo diz, deu-se como provado a sua vulnerabilidade ao stress o que determina forte condicionamento da capacidade volitiva retirando-lhe por completo a vontade própria e a capacidade de se auto-determinar, e simultaneamente deu-se como provado, incorrectamente, na sua perspectiva, que agiu de forma deliberada e consciente, tendo capacidade para optar por outro comportamento e sabendo que o seu acto era proibido.
Porque a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão é um dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal, cujo conhecimento é oficioso (Ac. nº 7/95, de 19 de Outubro, DR, I-A, de 28 de Dezembro de 1995), passamos a conhecer do vício.

2.1. O art. 410º, nº 2, do C. Processo Penal estabelece o regime dos vícios da decisão que são, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios intrínsecos à sentença os quais, como estipula a lei, têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ficando portanto arredada a sua demonstração através de elementos a ela [decisão] alheios.

Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b), do nº 2 do artigo citado, na sua manifestação mais evidente, quando existe contradição entre a matéria de facto dada como provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois, factos que estão entre si, em oposição], ou entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto]. Mas existe ainda este vício quando ocorre contradição entre a fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta que, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, seria outra a decisão de facto correcta], ou quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].

2.2. Fixado o conteúdo do vício invocado, e passando à tarefa de verificar se o acórdão em crise dele enferma, antecipando a resposta, ela é necessariamente negativa, como se passa a demonstrar.

Os factos que o arguido entende estarem em oposição têm o seguinte teor:
- [2.] O arguido e as vítimas coabitavam na mesma casa, com quartos distintos, mas no mesmo piso, e utilizavam os mesmos espaços comuns da residência sita na Rua … , área desta comarca;
- [3.] Nos últimos quatro anos, eram frequentes as desavenças entre o arguido e as vítimas, designadamente por não haver entendimento entre o arguido e a sua madrasta F...;
- [4.] Devido a esses desentendimentos, no dia 27 de Julho de 2010, pelas 11.00h, o arguido A..., no âmbito de nova discussão com a sua madrasta, na cozinha das traseiras da referida residência, retirou de uma gaveta do armário da cozinha uma machada de cortar e picar carne, em aço inoxidável cromado, com lâmina em forma de meia-lua, com o comprimento de 7,5 cm e maço de picar com 3,5 cm de diâmetro e cabo cilíndrico em madeira de pinho com 8,5 cm de comprimento (melhor identificada e analisada a fls. 148 e 73), e desferiu vários golpes na cabeça daquela, bem como um golpe que a atingiu na mão esquerda, até partir o cabo da dita machada;
- [21.] O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

Como facilmente se conclui da sua leitura, os pontos 2, 3 e 4 dos factos provados nada têm a ver com a, pelo arguido invocada, vulnerabilidade ao stress, e muito menos, com as conclusões que desta vulnerabilidade extraiu designadamente, o condicionamento da sua capacidade volitiva e completa ausência de vontade própria e a capacidade de auto-determinação.
Aliás, em ponto algum dos factos provados, da motivação de facto ou da fundamentação de direito relativamente à determinação da medida das penas é feita referência a tal vulnerabilidade. Onde ela se encontra é antes no Relatório de Avaliação Psicológica de fls. 749 a 752, na alínea referente à Escala de Vulnerabilidade ao StressTal pressupõe estarmos perante uma pessoa que apresenta vulnerabilidade face a situações de stress.»] e na última conclusão do relatório [«Indica ser um indivíduo vulnerável ao stress, que quando confrontado com situações de grande tensão emocional tende a reagir com altos índices de ansiedade.»], encontrando-se esta última conclusão reproduzida no ponto V – Exames Subsidiários – do Relatório de Exame Médico-Legal em Psiquiatria Forense de fls. 740 a 748, e pelas razões que aí constam.

Temos pois que, não só os três pontos de facto provados que, na perspectiva do arguido, integram um segmento da factualidade que estará em oposição com outro facto provado, não correspondem à invocada vulnerabilidade ao stress – e à derivada conclusão do condicionamento da sua capacidade volitiva – como, não constando dos factos provados, não poderia nunca estar em contradição com algum deles. Sempre se dirá ainda que, mesmo que constasse dos factos provados, nunca a vulnerabilidade ao stress estaria em contradição com a provada conduta voluntária e consciente da respectiva ilicitude, do arguido, que consta do ponto 21 dos factos provados.
Finalmente, nenhuma dúvida subsiste quanto a não existir contradição também entre os pontos 2, 3 e 4 dos factos provados e o ponto 21 dos mesmos factos provados.
Em conclusão, não padece o acórdão recorrido do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão.

3. Também o vício do erro notório na apreciação da prova não se encontra referido em nenhuma das conclusões formuladas pelo recorrente, mas apenas no corpo da motivação, mas dele conheceremos, pelas razões que se deixaram apontadas no ponto 2 que antecede.
Diz o arguido que foi violado o art. 163º do C. Processo Penal pois o tribunal recorrido considerou-o totalmente imputável, sem querer aprofundar se o stress foi provocado pelo mau relacionamento que tinha com a madrasta e se foi ele que condicionou o seu comportamento, uma vez que consta do relatório pericial que no dia dos factos e no decurso de uma discussão, a madrasta atirou-lhe com uma colher de pau. E, continua, ao não acatar tal juízo, o tribunal a quo teria que, ou partir duma base factual diversa daquela em que se baseou o perito, o que não aconteceu, ou renovar a perícia, ordenando uma segunda perícia, como requereu. Não o tendo feito e sendo a prova pericial prova tarifada, existe erro notório na apreciação da prova.

3.1. Ocorre o vício do erro notório na apreciação da prova quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por tão grosseiro e evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Ed., pág. 341). Trata-se portanto, de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., pág. 74).

3.2. Fixado o conteúdo do vício invocado, vejamos agora se assiste ou não razão ao arguido.
Ninguém duvida de que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial está, em regra, subtraído à livre apreciação do julgador. Com efeito, nos termos do art. 163º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal, o julgador não pode apreciar livremente o resultado da perícia tendo que, no caso de divergência com as respectivas conclusões, fundamentar a dissensão, apoiando-se em argumentos da mesma natureza do juízo técnico, científico ou artístico refutado, com ressalva dos casos de erro manifesto (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 209 e seguintes e, Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., II, 3ª Edição, pág. 198).

Aqui chegados, começaremos por notar que a questão proposta vem, ao fim e ao cabo, a reconduzir-se à problemática da não renovação da perícia médico-legal.
Quanto ao mais, consta efectivamente do Relatório de Exame Médico-Legal em Psiquiatria Forense, de fls. 740 a 748, no seu ponto VI. Avaliação Clínico-Psiquiátrica (inclui Descrição Subjectiva dos Factos pelo Examinado, ter o arguido verbalizado ao perito médico o seguinte: «Sei que depois entrei na cozinha ela estava a fazer comida no fogão, aquele ambiente tenso, sempre de trombas… sei que estivemos ali [na cozinha] a discutir. Ela deu-me com uma colher de pau e abri uma gaveta foi o que me veio à mão foi aquilo… [machada de cortar e picar carne referenciada em fls. 374 e 375 do Processo]».
O arremesso de uma colher de pau ao arguido, pela sua madrasta, não consta do relatório pericial como facto histórico, mas apenas como acontecimento por aquele relatado. E este acontecimento relatado não consta, no acórdão recorrido, como facto provado.
Em todo o caso, não vemos como possa o tribunal colectivo ter desrespeitado o art. 163º do C. Processo Penal quando, para efeitos probatórios e como resulta da motivação de facto do acórdão, aceitou integralmente as conclusões formuladas no relatório da perícia médico-legal as quais, sem margens para a mais pequena dúvida, consideram o arguido como plenamente imputável relativamente aos factos.
E, como cremos ser evidente, a violação do art. 163º do C. Processo Penal pelo tribunal recorrido relativamente ao que, na perspectiva do recorrente, poderiam ter sido as conclusões da renovação da perícia que, como sabemos, não chegou a acontecer, é uma absoluta impossibilidade, precisamente porque só se pode concordar ou divergir de algo que existe.

Assim, tendo o tribunal colectivo aceitado integralmente o juízo técnico e científico formulado nas conclusões do relatório da perícia médico-legal de psiquiatria efectuada ao arguido, não foi violado o art. 163º do C. Processo Penal pelo que não existindo nesta aspecto, valoração da prova contra critério legalmente fixado, não se verifica o invocado vício do erro notório na apreciação da prova.
*

Da incorrecta decisão proferida sobre a matéria de facto [pontos 2, 3, 4, 18, 20 e 21 dos factos provados], e da inconstitucional interpretação feita do art. 127º do C. Processo Penal, por violação do art. 32º, nºs 1, 2 e 5, da Lei Fundamental
4. Entende o arguido – conclusões 2 e 3 – que os pontos 2, 3, 4, 18, 20 e 21 dos factos provados não podem como tal ser considerados pois que, e em síntese da argumentação expendida naquelas conclusões e no corpo da motivação, as suas declarações, os depoimentos das testemunhas H…, K…, L…, O..., AA..., BB..., CC..., prestados em audiência, os relatórios, médico, sobre a personalidade e condições sociais e económicas, e de perícia médico-legal, que o tribunal ignorou, e a não renovação da perícia médico-legal, não permitem dar como provado que agiu de forma deliberada, livre e consciente, com intenção de matar, sabedor de que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal. Por outro lado, no corpo da motivação, diz que deve ser dado como provado que andava triste, e que depois da prática dos crimes, estava nervoso, ansioso e apático.

Daqui resulta que, apesar da reverência feita aos pontos 2 a 4 dos factos provados, o arguido questiona verdadeiramente são os pontos 18, 20 e 21 dos factos provados, que contêm matéria relativa ao dolo e à imputabilidade do agente.
Têm estes pontos de facto a seguinte redacção:
- [18] Com as machadadas desferidas contra a vítima F... e os disparos que efectuou contra esta e o seu pai E..., visava o arguido atingi-los em zonas vitais com é a cabeça, o pescoço e o tronco, e assim provocar-lhes a morte, o que conseguiu fazer;
- [20] O arguido usou a referida caçadeira, bem sabendo que a não podia trazer consigo ou utilizar;
- [21] O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

O art. 412º, nº 3, do C. Processo Penal impõe ao recorrente que impugne a decisão da matéria de facto um triplo ónus de especificação, a saber: deverá especificar os concretos factos que considera incorrectamente julgados; deverá especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e; deverá especificar as provas que devam ser renovadas [a conjugar com o art. 430º].
Por sua vez, dispõe o nº 4 do mesmo artigo:
«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.».
Finalmente, nos termos do nº 6 ainda do mesmo artigo, quando as provas tenham sido gravadas, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas pelo recorrente e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.

Nos autos, o recorrente indicou nas conclusões que formulou, os concretos factos considerados provados e que entende incorrectamente julgados, e indicou, se bem que de forma imperfeita e indirecta [remissão implícita para o corpo da motivação], as concretas provas que entende imporem, decisão diversa. Não indicou nas conclusões as concretas passagens, da prova por declarações indicada, em que funda a impugnação, mas dispensou-se o convite previsto no art. 417º, nº 3, do C. Processo Penal, atenta a situação processual do recorrente, e uma vez que aquelas concretas passagens constam do corpo da motivação.
Desta forma, entende este tribunal de recurso que nada obsta ao conhecimento da impugnação ampla da matéria de facto deduzida pelo recorrente, com os limites que por este lhe foram fixados, tudo nos termos dos arts. 412º, nºs 3, 4 e 6 e 431º, b), do C. Processo Penal.

Passemos agora à análise do recurso da matéria de facto, tendo-se em conta que o mesmo passa pelo exame daqueles concretos pontos de facto à luz das concretas provas indicadas pelo recorrente as quais deveriam impor decisão diversa da recorrida (art. 412º, nº 3 do C. Processo Penal), e não, como tantas vezes sucede, e como não deixou também de, em certa medida, aqui acontecer, pela refutação da convicção alcançada pelo tribunal a quo e sua substituição pela convicção do próprio recorrente.

4.1. Depois de transcrever parcialmente algumas das respostas que deu ao Mmo. Juiz Presidente sobre o teor da acusação e o seu relacionamento com o pai e a madrasta, diz o arguido não entender como pôde o tribunal recorrido afirmar que deu respostas evasivas, nem como pôde dar como provado que agiu de forma deliberada e consciente, quando a sua resposta, «Não sei o que me passou pela cabeça» demonstra que não era sua intenção matar, e no mesmo sentido aponta a circunstância de ter ficado no local, depois do cometimento dos factos, esperando que viesse alguém que o identificasse como autor dos mesmos. E, continua, tendo confessado integralmente os factos quando prestou aquelas declarações, não viu a sua colaboração para a descoberta da verdade relevar, quer para a qualificação jurídica, quer para a determinação da medida das penas, tendo ainda o tribunal ignorado, apesar de os dar como provados, que os desentendimentos com a madrasta eram constantes, como aconteceu no dia dos factos, em que provocou a discussão e lhe atirou com um objecto, tendo assim esquecido as circunstâncias em que os crimes aconteceram, se agiu debaixo de tensão psicológica e se esta configura uma compreensível emoção violenta.
Por sua vez, o tribunal colectivo, na motivação de facto, aponta como razões do seu convencimento relativamente aos factos – não só os impugnados mas todos – a confissão do arguido e os depoimentos de várias testemunhas, incluindo todas as indicadas pelo arguido, realçando-se ainda que o específico tratamento dado a dois concretos aspectos a saber, a presunção de comoriência, e o dolo e a imputabilidade, tendo-se ali dito quanto a estes dois últimos: «Um prende-se com o elemento subjectivo dos tipos de ilícito. Como se teve já oportunidade de afirmar no decurso do processo, veio a defesa equacionar a possibilidade de, ao actuar da forma descrita, estar o arguido em estado de "alterado da consciência", com o que entramos no domínio da eventual inimputabilidade ou imputabilidade diminuída para a prática dos crimes de que é acusado; nesta sequência, determinou-se a realização de uma perícia médico-legal em psiquiatria forense, a qual teve por objectivo determinar a consciência e capacidade do arguido para perceber, entender e compreender o alcance e ilicitude dos seus actos. E o relatório junto a fls. 740/748, baseado igualmente no relatório de avaliação psicológica de fls. 749/752, é muito claro na fundamentação e conclusões que extrai do exame realizado, afastando por completo qualquer cenário de inimputabilidade ou sequer imputabilidade diminuída. Como é sabido, os juízos técnicos ou científicos inerentes a esta prova pericial presumem-se subtraídos à livre apreciação do julgador, o qual deverá sempre fundamentar uma qualquer divergência (art, 163.º do Código de Processo Penal). Assim e depois de descrever os elementos em que se baseou, afirma o Sr. perito que "a consciência e a capacidade do examinado para perceber, entender e compreender o alcance e a ilicitude dos seus actos, à data da alegada prática dos mesmos, se encontravam plenamente conservadas." E remata dizendo que "o examinado não apresentava, à data da alegada prática dos factos, clínica compatível com o diagnóstico de qualquer doença mental ou patologia do foro psíquico, nosologicamente reconhecia como tal; não se apurou, à data da alegada prática dos factos, qualquer comprometimento decorrente de anomalia psíquica, da capacidade do examinado na avaliação da ilicitude dos actos de que vem acusado (…) ou em se determinar de acordo com esta avaliação". O tribunal não ignora que quando alguém pratica actos com semelhante crueldade, para mais contra o próprio pai, estará seguramente inundado de uma raiva inimaginável para o comum dos cidadãos; todavia, se tal estado de espírito fosse a bitola para aferir da inimputabilidade de um qualquer arguido, então dificilmente se encontrariam pessoas conscientemente capazes de responder pelos seus actos. O tribunal não tem pois qualquer reserva em considerar o arguido totalmente imputável para responder pela prática dos factos que lhe são imputados.»
Pode pois dizer-se que as provas em que o arguido fundamenta a sua divergência quanto ao decidido serviram ao tribunal colectivo, juntamente com outras, é certo, para fundar a sua convicção quanto aos factos impugnados.

4.1.1. Começamos por registar a manifesta contradição lógica existente na argumentação do recorrente quando se insurge, por um lado, com a não valoração pelo tribunal recorrido da sua confissão integral, e por outro, pretende não ter agido dolosamente. Com efeito, os crimes de que vinha acusado e pelos quais foi condenado são todos tipos dolosos pelo que, aquela confissão posto que significa a adesão à tese da acusação, teria, necessariamente, que englobar os respectivos tipos subjectivos.
Negar a conduta dolosa, num tipo de crime doloso e pretender, ainda assim, beneficiar da confissão integral é uma contradição nos próprios termos que configura ainda uma situação de venire contra factum proprium.

4.1.2. Depois, invocar como razão justificativa do afastamento do dolo nos crime em questão, a circunstância de ter permanecido no local dos factos permitindo a sua fácil identificação como autor dos mesmos, é apenas um argumento, e de bem reduzido valor, diga-se. Em primeiro lugar porque, e contrariamente ao pressuposto pelo arguido, não raras vezes o autor de crime de homicídio doloso permanece no local do seu cometimento, por simples opção. E em segundo lugar porque, ainda que assim não fosse, certamente não ignora o arguido que as testemunhas I... e N... afirmaram em audiência, como consta da motivação de facto e este tribunal de recurso ouviu no CD onde se encontram registados os depoimentos que prestaram na audiência de julgamento [em síntese, e na parte relevante, ambas as testemunhas coincidiram quanto a estarem a apanhar e carregar batatas num prédio da primeira situado diante da casa habitada pelas vítimas e arguido, tendo a I... ouvido dois tiros ocos e depois gritos de pedido de socorro, saltaram o muro da casa pois o portão estava fechado, caminharam em direcção à casa, viram a madrasta do arguido caminhar na sua direcção, ferida na cabeça e num dedo, viram o arguido a aproximar-se desta e a desferir-lhe dois tiros com a espingarda que empunhava, após o que as testemunhas fugiram do local] ter presenciado os dois disparos que fez com a espingarda, atingindo mortalmente a sua madrasta, o que desde logo permitiria a sua imediata identificação como autor dos factos.

4.1.3. Relativamente à crítica do recorrente quanto à afirmação constante da motivação de facto do acórdão em crise de que deu respostas evasivas quando confessou os factos, confissão que ali é expressamente reconhecida [e aqui, o que é sindicada é a valoração que o tribunal a quo fez de um determinado meio de prova], cabe dizer que o tribunal colectivo considerou que o arguido apresentou «uma confissão integral, confirmando desta forma todos e cada um dos factos descritos na acusação pública», mas tendo esclarecido que, relativamente a algumas perguntas feitas sobre pormenores do sucedido, o arguido se mostrou titubeante, designadamente quanto à não apresentação de justificação para a prática dos crimes, «refugiando-se em respostas evasivas, dizendo que não sabe o que lhe passou na cabeça para fazer o que fez».
Ouvido o CD onde se encontram registadas as declarações que o arguido prestou na audiência de julgamento, tornou-se evidente o acerto das afirmações produzidas pelo tribunal a quo. Com efeito, em síntese, o arguido disse:
- [Sessão de 11/05/2011] O que está na acusação, que leu, está correcto, recorda mais ou menos o que aconteceu, há pormenores que não lembra porque bloqueou; [depois, perguntado sobre aspectos mais específicos, disse] ocorreu uma discussão com a madrasta, no calor da discussão pegou na machada e com ela atingiu a madrasta, a situação dos tiros é verdade; [perguntado especificamente sobre os motivos] nem sabe, viveu com o pai e a madrasta dez anos e ao princípio até ficou contente, depois começaram as dissensões e discórdias por causa do feitio irascível dela; isto vinha de há uns cinco anos, havia discussões e o ambiente ficava tenso, foi um avolumar de situações, ela andava meses sem lhe falar, era o desprezo total, mas nunca se colocou a possibilidade de sair de casa; o pai tentava deitar água na fervura mas às vezes punha-se do lado dela; no essencial, era o desprezo que ela lhe dava mas não sabe a razão de as coisas terem começado a correr mal, foi um avolumar, um ambiente tenso; tem consciência da gravidade do que fez mas não sabe como fez; depois dos tiros, sentou-se no quintal a pensar; [directamente perguntado sobre a razão de ter disparado sobre o pai] ele entrou lá dentro (da casa) e fez um berreiro tal que bloqueou (o arguido) completamente; às vezes havia discussões com o pai mas as coisas resolviam-se e ficava tudo bem, com a madrasta não era assim;
- [Sessão de 16/08/2011] O que o levou a discutir com a madrasta no dia dos factos foi o desprezo, o ambiente tenso, nem sabe como fez aquilo, ainda colocou o carro na garagem para não ficar de fora; era administrativo principal e auferia cerca de € 800 mensais, também trabalhava em casa e nas terras; está arrependido desde a primeira hora, o que fez não se faz, mas não sabe como o fez.
É assim claro que o arguido, mostrando alguma relutância em relatar com maior ou menor pormenor os acontecimentos, o que facilmente se compreende, não foi capaz de apresentar ao tribunal, apesar de várias vezes instado pelo Mmo. Juiz Presidente, as razões concretas que terão estado na origem do seu comportamento, recorrendo muitas vezes ao verbo bloquear ou a palavras dele derivadas para significar, segundo cremos, a impossibilidade, real ou não, de encontrar uma explicação para assim ter agido. Na verdade, o arguido nem sequer foi capaz de referir, apesar de repetidamente solicitado, uma concreta situação de conflito que tenha tido com a madrasta, limitando-se à ambiguidade do mau ambiente, do desprezo e do avolumar das situações.
Nesta medida e quanto a este aspecto – justificação da conduta –, a apreciação feita pelo tribunal recorrido às declarações do arguido não merece censura.

4.1.4. Como é sabido, o princípio da culpa em Direito Penal – nulla poena sine culpa – significa que a pena pressupõe sempre uma culpa concreta do agente do facto. A aplicação da pena tem o seu fundamento na censura do agente por ter formado e orientado a sua vontade para o cometimento do facto. Por isso, e nos termos do art. 40º, nº 2, do C. Penal, a pena não pode ultrapassar a medida da culpa.
Este juízo de censura, imprescindível para a imputação do facto típico ao agente, e pressuposto da responsabilidade penal, exige além do mais, a liberdade de decisão isto é, a possibilidade de o agente optar entre, por um lado, a prática do facto e, por outro, o controlo dos seus impulsos, vindo a ser-lhe reprovado a opção pela primeira alternativa.
Ora, é com a liberdade de decisão, com a conduta voluntária, livre e consciente, que se prende a questão da imputabilidade do agente, seja pela menoridade, seja em razão de anomalia psíquica.

Nos termos do art. 20º, nº 1, do C. Penal, é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
Reconhecendo, a requerimento do arguido, que a questão da imputabilidade deste, exigia especiais conhecimentos técnicos e científicos, o tribunal colectivo deliberou realizar uma perícia médico-legal em psiquiatria forense tendo por objecto, tendo por objecto «determinar a consciência e capacidade do arguido para perceber, entender e compreender o alcance e ilicitude dos seus actos.».
Realizada a perícia ordenada – solicitada ao INML, IP, foi por este delegada no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de W... – Viseu, EPE (fls. 654) – do respectivo relatório (fls. 740 a 748) constam as seguintes conclusões:
“ (…).
1. O Examinado não apresentava, à data da alegada prática dos factos, clínica compatível com o diagnóstico de qualquer doença mental ou patologia do foro psíquico, nosologicamente reconhecida enquanto tal.
2. Não se apurou, à data da alegada prática dos factos, qualquer comprometimento, decorrente de anomalia psíquica, da capacidade do Examinado na avaliação da ilicitude dos actos dos quais vem acusado.
3. Não se apurou, à data da alegada prática dos factos, qualquer comprometimento, decorrente de anomalia psíquica, da capacidade do Examinado em se determinar de acordo com a avaliação descrita no número que antecede.
(…)”.

O que se extrai das conclusões do relatório pericial é que o arguido não enfermava, na data em que ocorreram os factos pelos quais foi submetido a julgamento, de anomalia psíquica que afectasse a capacidade de avaliar a ilicitude da conduta e a capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação.
Já sabemos que o juízo técnico e científico inerente à prova pericial se encontra subtraído, em regra, à livre apreciação do julgador (art. 163º, nº 1, do C. Processo Penal). E o tribunal colectivo, em obediência a esta regra, aceitando as conclusões do relatório, considerou o arguido imputável, dando como provado no ponto 21 dos factos provados, além do mais, que aquele, agiu de forma deliberada, livre e consciente.
É claro que as conclusões do relatório pericial divergem da informação clínica de fls. 615 a 616 [foi esta a designação que lhe foi dada pelo médico psiquiatra que a subscreveu], mas não só esta informação não tem a natureza de prova pericial, como os termos em que se encontra redigida apontam para a dúvida sistemática do subscritor, como o demonstram as expressões, «aparente embotamento afectivo», «a relação com a madrasta é aparentemente vivida com tensão», «terá apresentado sintomatologia depressiva», «poderá estar com perturbação do estado de consciência», entre outras, e o parágrafo final, em que se recomenda a sujeição do recorrente a perícia médico-legal no INML, como veio a suceder.

Assim, tendo a prova pericial afirmado, de forma clara e inequívoca, a liberdade de decisão do arguido quando actuou e portanto, tendo afirmado a sua imputabilidade, não existindo razões para fundadamente dissentir deste juízo pericial, a decisão de facto que consta do ponto 21 dos factos provados não merece censura.

4.1.5. Podemos definir facto como o acontecimento, passado ou presente, susceptível de prova. Os factos podem ser vistos como acontecimentos naturais, como acontecimentos a que é alheio o sujeito actuante. E podem ser vistos como acontecimentos humanos, como acontecimentos a que o sujeito actuante confere dimensão humana.
Nos factos humanos, os únicos que agora relevam, podemos distinguir os factos exteriores ou objectivos, entendidos como as acções face ao mundo objectivo, tendentes a modificá-lo ou a transformá-lo, e os factos interiores ou subjectivos, os «meros processos psíquicos de sucessivas abstracções, arquétipos meramente racionais que o sujeito configura esteticamente» (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, 2ª Edição, pág. 64).

O dolo, o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, é um facto humano, interno ou psíquico.
Enquanto facto interno portanto, enquanto facto psíquico que apenas existe na mente do agente, o dolo não pode ser directamente percepcionado ou apreendido por terceiros. Por isso, a respectiva prova só pode ser feita, ou através da sua admissão pelo agente em declarações processualmente valoráveis, portanto, através da confissão, ou por recurso à conjugação de factos exteriores, normalmente os que preenchem o tipo objectivo, com as regras da experiência [presunções naturais ou hominis, ou prova de primeira aparência].

Sintetizando os factos objectivos que se mostram provados temos que:
- No dia 27 de Julho de 2010, pelas 11h, na residência onde habitavam o arguido, o seu pai E... e a mulher deste, F..., no decurso de uma discussão entre o arguido e a madrasta, este agarrou numa machada de aço, de cozinha, destinada a cortar e picar carne, e com ela desferiu vários golpes na cabeça e na mão esquerda da F...;
- Ferida e ensanguentada, a F...saiu de casa pedindo ajuda, e o seu marido, que se encontrava no exterior, apercebendo-se do sucedido, entrou em casa para ir telefonar, pedindo ajuda;
- O arguido, depois de dizer que a madrasta era muito má para si, foi ao quarto onde se encontrava a espingarda de caça, de dois canos, pertencente ao seu pai, municiou-a com dois cartuchos, dirigiu-se à cozinha onde se encontrava o seu pai ao telefone, e a cerca de um metro e meio deste apontou-lhe a espingarda e premiu o gatilho, mas a arma não disparou; o E... agarrou então o cano da espingarda, altura em que o arguido efectuou um segundo disparo que não atingiu o pai;
- O arguido voltou ao quarto com a espingarda ou de a recarregou com dois novos cartuchos e dirigiu-se de novo à cozinha onde se encontrava o pai, ao telefone, apontou-lhe a espingarda à cabeça, e a cerca de um metro, efectuou um disparo cujos projécteis atingiram o E... no pescoço e face, que de imediato caiu no chão;
- O arguido regressou mais uma vez ao quarto com a espingarda, onde a voltou a carregar e saiu de casa em busca da madrasta e quando a encontrou, a cerca de um metro e meio dela, apontou-lhe a espingarda à cabeça e efectuou dois disparos cujos projécteis a atingiram naquela zona corporal, caindo de imediato no chão;
- Em consequência da conduta do arguido, o seu pai e a sua madrasta sofreram lesões que foram causa directa e necessária das respectivas mortes.

É do conhecimento geral que na cabeça humana se encontram alojadas partes essenciais do sistema nervoso central, com particular destaque para o cérebro, o cerebelo e o bolbo-raquidiano, e ainda diversos vasos sanguíneos essenciais à vida. É também do conhecimento geral que no pescoço humano se encontram vasos sanguíneos – carótidas e jugulares – e vias respiratórias – laringe e traqueia –, essenciais à vida.
Finalmente, é do conhecimento geral que o disparo de uma espingarda de caça, carregada com cartuchos de chumbo, a curta distância, visando a cabeça e/ou o pescoço, causará com toda a probabilidade, a morte da pessoa alvo, se atingida nas referidas zonas corporais.
Por isso, perante um agente que, no decurso de uma discussão, desfere várias machadadas – ainda que com um instrumento típico de cozinha – na cabeça de uma das vítimas [são dez as feridas lineares descritas no relatório da autópsia da F..., causadas por instrumento corto-contundente] e depois, visa a sua cabeça com a espingarda de caça e aí a atinge com dois disparos efectuados a um metro e meio de distância, e ainda, perante um agente que, a cerca de um metro e meio do pai, lhe aponta e prime o gatilho da espingarda de caça, não tendo o cartucho deflagrado, que depois de o pai ter agarrado no cano da espingarda, efectua um disparo que não atinge o progenitor, que depois, recarrega a espingarda, regressa ao local onde se encontrava o pai e a um metro e meio deste, aponta a espingarda à sua cabeça e prime o gatilho, vindo os projécteis a atingir a vítima na face e pescoço, a única inferência lógica e razoável a extrair, ao nível dos motivos e de acordo com as regras da experiência supra enunciadas, é a de que, ao assim actuar, o arguido agiu com o claro propósito de causar a morte das vítimas. Agiu portanto, dolosamente, sendo aliás particularmente intenso o dolo directo com que actuou, revelador de elevada energia criminosa.
Não obstante, o tribunal colectivo valorou essencialmente as declarações do arguido no sentido de que produziram uma confissão integral. E, como resulta das declarações que produziu em audiência, supra sintetizadas, o arguido admitiu efectivamente, a prática dos factos imputados. Aliás, convém não esquecer que invoca em seu benefício a confissão integral e sem reservas, como factor a ter em conta na determinação da medida das penas.

Nenhuma censura merecem portanto, os pontos 18 e 20 dos factos provados, enquanto demonstrativos da conduta dolosa do arguido relativamente à morte do seu pai e da sua madrasta, mediante a utilização da espingarda de caça.

4.1.6. À afirmação feita pelo recorrente no corpo da motivação de que deveriam ser considerados provados os factos, o arguido andava triste e, depois da prática dos crimes, estava nervoso, ansioso e apático, não é, no entanto, feita qualquer referência conclusões que formulou pelo que se entende, face ao disposto no 412º, nº 1, parte final, do C. Processo Penal, que deixou cair esta pretensão.

Mas sempre diremos que, para além de não se tratar de factualidade alegada na contestação, é a mesma irrelevante. Isto porque o segundo facto se reporta a um estado posterior ao cometimento dos crimes, e o primeiro não estabelece qualquer relação entre o alegado estado de tristeza e o mau relacionamento e clima de conflito entre o recorrente e o pai e a madrasta [aliás, o arguido não fez qualquer referência a tal estado nas declarações que prestou em audiência, a testemunha CC... Henriques – ouvido o CD onde se encontra registado o seu depoimento – afirmou que o arguido foi sempre um rapaz fechado e triste, e a BB...– ouvido o CD onde se encontra registado o seu depoimento – afirmou que o arguido andava um bocadinho em baixo e que era muito reservado, o que sempre seria insuficiente para demonstrar aquela relação].

4.2. Entende o arguido que foi feita uma interpretação inconstitucional do art. 127º do C. Processo Penal, violadora do art. 32º, nºs 1, 2 e 5, da Constituição da República porque, diz, o tribunal a quo fez uso indevido da prova testemunhal, interpretando aquela norma do C. Processo Penal como permitindo a prova de certos factos, como o «agir de forma deliberada, livre e consciente», através do recurso a presunções naturais, o que viola os princípios da legalidade, das garantias de defesa e do contraditório.
Ressalvado sempre o devido respeito, não cremos que assim seja.

Contrariamente ao referido pelo arguido, a convicção do tribunal a quo quanto à sua actuação livre e dolosa não resultou da prova testemunhal. Aliás, como vimos, apenas duas testemunhas presenciaram a agressão com arma de fogo perpetrada pelo arguido contra a sua madrasta, mas nenhuma delas exprimiu qualquer convencimento quanto à intenção daquele.
Na verdade, e como consta da motivação de facto do acórdão, o que o tribunal fez foi valorar a prova pericial – a perícia médico-legal – quanto à imputabilidade do recorrente, e valorar as declarações por este produzidas na audiência, que conduziram a uma confissão integral dos factos.
Depois, não se vê como pode o recurso à prova por presunções naturais constituir um uso indevido da prova testemunhal.

Por outro lado, e como vimos já, o dolo, in casu, de homicídio, a intenção de matar, corresponde a um estado psíquico, insusceptível de ser apreendido por terceiros e por isso, salvo confissão do agente, a respectiva prova há-de inferir-se dos factos objectivos provados, por recurso a presunções naturais, isto é, às regras da experiência que permitem ao julgador retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido que é a consequência típica daquele.
Em processo penal vigora o princípio da legalidade da prova segundo o qual, são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei (art. 125º do C. Processo Penal). A regra é a da atipicidade dos meios de prova, sendo admissíveis todos os que não forem proibidos, mesmo que não se encontrem previstos nem regulamentados na lei.
A prova por presunções naturais não se encontra regulada no C. Processo Penal mas sendo, como se disse, o resultado das regras da experiência, tais presunções cedem sempre diante da dúvida surgida sobre a sua exactidão no caso concreto, o que significa que o seu limite será o in dubio pro reo (cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, Vol. I, 3ª Edição, 2008, pág. 823).
Assim, a admissão da prova por presunções naturais em processo penal não viola qualquer garantia de defesa designadamente, o princípio da presunção de inocência e o princípio do contraditório. E também não vemos como pode ter sido afectado o princípio da legalidade, sendo certo que o recorrente não indicou os concretos fundamentos em que se baseia a alegação que faz.

Em conclusão:
- Sendo admissíveis todas as provas que não sejam proibidas, nada impede, em processo penal, a prova por presunções naturais;
- A prova por presunções naturais cede sempre perante o in dubio pro reo, pelo que a sua admissibilidade não viola as garantias de defesa do arguido nem a presunção de inocência e portanto, o art. 32º, nºs 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
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Da qualificação jurídica dos factos como homicídios privilegiados

5. Pretende o arguido, nas conclusões 12 a 21, que o quadro envolvente, sujeitando-o diariamente, incluindo o dia dos factos, a ter por perto a madrasta que o perturbava, e condicionava, aos gritos e gesticulando, dirigindo-lhe insultos, humilhando-o ao longo do tempo, só lhe poderia causar pavor, aflição, angústia, desesperança, e uma notória impotência decorrente do estado emocional que de si se apoderou e debaixo do qual actuou, dando origem a uma menor exigibilidade e diminuição da culpa, devendo por isso ser sancionado pela prática de dois crimes de homicídio privilegiado, p. e p. pelo art. 133º do C. Penal, constituindo erro de julgamento a sua condenação como autor de dois crimes de homicídio qualificado.
Completando a argumentação, diz no corpo da motivação que a emoção que o invadiu foi de perturbação, de reacção afectiva, de alguém sujeito a constantes injúrias, ameaças e provocações, que nos momentos que antecederam os factos, recebeu da madrasta gritos, exaltação e o arremesso de uma colher de pau. E, continua, este estado de desespero corresponde sobretudo a estados de afecto ligados à angustia, à depressão ou à revolta, nele se incluindo a humilhação prolongada, e por isso o comportamento da madrasta, considerado na sua globalidade, é provocatório e portanto, apto a provocar a sua reacção, diminuindo a culpa.
Aqui chegados, tendo o recorrente sido condenado como autor material de dois crimes de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a) e c), do C. Penal, vejamos se procede a pretendida modificação da qualificação jurídica dos homicídios.

5.1. Dispõe o art. 133º do C. Penal:
«Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.».

O homicídio privilegiado não se distingue do tipo do homicídio ao nível das exigências de tutela do bem jurídico, a vida humana. O que aqui encontramos é uma atenuação especial da pena, tipificada para o crime de homicídio, que encontra fundamento numa cláusula de exigibilidade diminuída.
São quatro – a enunciação legal é taxativa – as causas do privilégio: a compreensível emoção violenta; a compaixão; o desespero ou; motivo de relevante valor social ou moral. Relativamente a todos elas exige a lei que o crime tenha sido cometido sob o seu domínio e que determinem uma sensível diminuição da culpa. Mas, como ensina o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 47), esta diminuição não pode ficar a dever-se nem a uma imputabilidade diminuída, nem a uma diminuída consciência do ilícito, mas unicamente a uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente. Com efeito, o tipo do art. 133º do C. Penal, é um tipo doloso, o seu preenchimento pressupõe, além do mais, a imputabilidade do agente e a consciência da ilicitude, fundando-se o privilégio na menor exigibilidade de um comportamento conforme ao direito, em função das concretas circunstâncias. Na lição do Mestre citado (ob. cit., pág. 48), o efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena ou exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico-penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções.

A compreensível emoção violenta pode definir-se como um forte estado de afecto, um relevante conflito interior, que desencadeia uma reacção agressiva, causado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado, e à qual o homem normalmente “fiel ao direito”, o homem médio portanto, não deixaria de ser sensível (cfr. Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 50).
Assim, a compreensibilidade da emoção violenta não deriva de uma qualquer relação de proporcionalidade entre a emoção e o facto provocado, a morte. Pelo contrário, a emoção violenta será compreensível quando possa ser estabelecida uma relação não desvaliosa entre os factos que a originaram e ela mesma. Ou seja, a compreensibilidade exige apenas um mínimo de gravidade ou peso da emoção que estorva o cumprimento das intenções normais do agente e determinada por facto que lhe não é imputável (Mestre citado, ob. cit., pág. 51). Note-se que, se a emoção violenta é matéria de facto, a sua compreensibilidade é já matéria de direito.
A compaixão pode definir-se como um estado de afecto causado por um sentimento de solidariedade ou compaixão para com a vítima, em razão da concreta situação desta.
O desespero consiste num estado de afecto relacionado com situações de angústia, depressão e revolta que, não raras vezes, se mantêm ao longo do tempo, aqui se incluindo os casos de humilhação prolongada.
Finalmente, nos outros motivos de relevante valor social e moral só podem incluir-se os que relevam à luz do quadro de valores pressuposto pela ordem jurídica e pela sociedade que ela regula.
Posto isto.

5.2. Podemos concluir da argumentação do recorrente, se bem a entendemos, que é sua pretensão ter actuado dominado por compreensível emoção violenta e também pelo desespero.
Correndo o risco de repetição, na sua perspectiva, os dois elementos privilegiadores invocados resultam, em síntese, dos seguintes aspectos [transcritos do corpo da motivação e da conclusão 14]: o sentimento, a emoção, que o invadiu naquele momento, foi de perturbação, de reacção afectiva, num homem sujeito a constantes injúrias, ameaças e provocação, que, naquele preciso momento recebeu da vítima gritos, exaltação e que lhe foi atirada por esta uma colher de pau; o comportamento da madrasta para com o arguido, diariamente injurioso, por um lado e de total desprezo por outro podem justificar o privilegiamento; o corte radical de relações com a madrasta, não lhe falando durante longos períodos de tempo, a verificação, nesse espaço de tempo, de “episódios vários”, de “gravíssima tensão” entre ambos, sendo manifesta a agressividade da vítima – e patente provocação naquele dia; a conduta da vítima provocou, no arguido, uma constante humilhação e revolta, condicionando-lhe, até, os passos, na sua liberdade … O recorrente, introvertido, vivendo para a família, depois de uma vida intensa e dura … atingiu o limite do desespero; qualquer homem comum, perante o quadro envolvente, sujeito, todos os dias e de novo no dia da prática dos crimes, a ter por perto, quem o perturbava (a madrasta) que lhe condicionava os passos e a própria liberdade individual, atrás de si, aos gritos, gesticulando, com os braços no ar, dirigindo-lhe insultos, só poderia sentir pavor, aflição, angústia e ausência total de esperança.

Não relevando o que de conclusivo consta do alegado, o que sobra quase parece pertencer a um outro processo, dada a quase total falta de correspondência com os factos provados.
Com efeito, o que se provou [pontos 1 a 4 dos factos provados] é que o arguido vivia na mesma casa com as vítimas, seu pai e sua madrasta, que nos últimos quatro anos havia frequentes desavenças entre estas e o arguido designadamente, porque o arguido não se entendia com a madrasta, que no dia 27 de Julho de 2010, na cozinha da casa onde habitavam, o arguido, no decurso de uma discussão com a madrasta, empunhou uma machada de cortar e picar carne e com ela desferiu vários golpes na cabeça e mão esquerda desta, seguindo-se depois a agressão com espingarda de caça, ao pai e madrasta e a morte de ambos.
Não se mostra, portanto, provado – o arguido tão pouco os incluiu no objecto da impugnação ampla da matéria de facto que deduziu – que o arguido era constantemente injuriado, ameaçado e provocado pela madrasta, que esta o perturbava diariamente e lhe condicionava os passos, que a madrasta não lhe falava durante longos períodos de tempo, e que na discussão que precedeu os homicídios a madrasta gritou com o arguido, gesticulou com os braços no ar, insultou-o e atirou-lhe com uma colher de pau.

Dito isto, não vemos que a existência de um ambiente não harmonioso entre o arguido, por um lado, e o pai e a madrasta, pelo outro, nos últimos quatro anos que precederam os homicídios, possa ser entendida uma situação de humilhação prolongada, consubstanciadora do estado de desespero.
Por outro lado, a mesma falta de harmonia familiar, conjugada com a discussão havida entre o arguido e a madrasta nos momentos que precederam o início das agressões mortais, ainda que possa ter causado uma alteração no estado emocional do arguido desencadeadora da sua reacção agressiva, não poderia nunca ser considerada como compreensível emoção violenta, à luz do critério que supra se deixou exposto. Com efeito, o homem normalmente fiel ao direito não fica afectado nas suas decisões e intenções por uma simples discussão e nos autos, nada mais temos provado do que isso, pois desconhecem-se os contornos da discussão havida, sendo certo que o arguido, única pessoa que poderia revelar as respectivas causas e conteúdo, não o quis fazer [como se referiu já, não mencionou igualmente qualquer atitude da madrasta relacionada com o arremesso de um objecto].
Acresce que também não se mostra provado que a conduta homicida do arguido se desenrolou sob o domínio de tal emoção.

Em síntese conclusiva:
- O bem jurídico tutelado pelo homicídio privilegiado é a vida humana, sendo o fundamento da atenuação espacial da pena aqui tipificada, uma cláusula de exigibilidade diminuída de comportamento distinto;
- A compreensível emoção violenta pode definir-se como um forte estado de afecto, que desencadeia uma reacção agressiva, causado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado, e à qual o homem normalmente “fiel ao direito”, o homem médio, não deixaria de ser sensível;
- A existência, nos quatro anos que precederam os factos, de um relacionamento pouco harmonioso entre o arguido, por um lado, e o seu pai e madrasta, por outro, devido a desentendimentos entre aquele e esta, não configura uma situação de desespero, por humilhação prolongada;
- Uma discussão entre o arguido e a madrasta, cuja origem e conteúdo se não apurou, a que se seguiu, sem mais, o início das agressões a esta por parte daquele que culminaram, na morte das duas vítimas, ainda que conjugada com aquele relacionamento familiar desarmonioso, não pode ser qualificada como compreensível emoção violenta;
- Não estando provados factos demonstrativos de ter o arguido agido, no cometimento dos dois homicídios, dominado por qualquer uma das duas causas do privilégio referidas e de que resultou uma culpa acentuadamente diminuída, improcede a pretensão de ver subsumidas as suas condutas à previsão do art. 133º do C. Penal.

Bem pelo contrário, as suas provadas condutas contém uma censurabilidade agravada, bem integrada, como foi na decisão recorrida, no homicídio qualificado.
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Da qualificação jurídica dos factos relativos ao crime de detenção de arma proibida e do preenchimento ou não do respectivo tipo

6. O arguido foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nºs 1, c), e 2 a 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro [redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio], com referência aos arts. 2º, nº 1, ar) e 3º, nº 6, c), da mesma lei, na pena de um ano e dois meses de prisão.

Dispõe o art. 86º, nº 1, c), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro:
«Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias; (…)».
O art. 2º, nº 1, ar) da mesma lei define a espingarda, enquanto tipo de arma, como arma de fogo longa com cano de alma lisa, e o art. 3º, nº 6, c), ainda do mesmo diploma, classifica a espingarda como arma da classe D.
Nos termos do art. 8º, nº 2, b), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, a aquisição, detenção, uso e porte de arma da classe D pode ser autorizada aos titulares de licença de uso e porte de arma da mesma classe.
Finalmente, a licença D para uso e porte de armas ou sua detenção pode ser concedida aos maiores de 18 anos, que reúnam as condições previstas nas diversas alíneas do nº 1, do art. 15º, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Assim, na parte em que agora releva, são elementos constitutivos do tipo deste crime:
[Tipo objectivo]
- Que o agente use espingarda [arma de fogo longa com cano de alma lisa];
- Que este uso seja feito sem autorização, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente [portanto, que o agente não seja titular de licença de uso e porte de arma da classe D];
[Tipo subjectivo]
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto.

Resulta da factualidade provada que consta do acórdão recorrido, na parte em que agora releva e em síntese, que:
- No dia 27 de Julho de 2010, pelas 11h, na residência familiar, na … , o arguido municiou uma espingarda de dois canos sobrepostos, marca Fias Gardone, nº 197586, pertencente ao seu pai [pontos 2 e 6];
- Depois, apontou a espingarda ao pai, premiu o gatilho e a arma não disparou, e efectuou de seguida um disparo que não atingiu o pai, que havia agarrado o cano da arma [8 e 9];
- O arguido recarregou a espingarda, apontou-a de novo ao pai e efectuou um disparo cujos projécteis o atingiram na face e pescoço [10 e 11];
- O arguido recarregou a espingarda, saiu de casa e no exterior, apontou-a à cabeça da madrasta e efectuou um disparo, cujos projécteis a atingiram na cabeça, após o que foi guardar a arma no local de onde a havia retirado [pontos 12, 13 e 14];
- O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, usou a caçadeira sabendo que a não podia utilizar e sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal [pontos 20 e 21].

Sendo inquestionável que o arguido usou uma espingarda portanto, uma arma da classe D, e sendo também inquestionável que este uso foi por si intencionalmente querido, o que a matéria de facto provada não compreende é o elemento do tipo objectivo, uso feito sem autorização, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente. Com efeito, não se mostra provado que o arguido, quando usou a espingarda, não era titular de licença de uso e porte de arma da classe D, sendo este facto negativo essencial para o preenchimento do tipo.
É certo que se considerou provado que o arguido sabia que não podia utilizar a espingarda, mas este conhecimento, enquanto facto interior do agente que integra o dolo, reporta-se a um facto objectivo – sabia que não podia utilizar porque não era titular de licença – que não está provado.
Sucede que esta deficiência da matéria de facto provêm já da acusação pública, onde também não consta o facto negativo em questão – tornando-a manifestamente infundada quanto a este crime, nos termos do art. 311º, nº 3, d), do C. Processo Penal – e não pode, por isso, ser suprida no âmbito do vício previsto no art. 410º, nº 2, a), do C. Processo Penal.

Nestes termos, porque a conduta do arguido não preenche todos os elementos do tipo do crime de detenção de arma proibida, impõe-se a sua absolvição quanto a ele [ficando assim prejudicada a questão suscitada no acórdão recorrido quanto ao concurso aparente entre os crimes de homicídio e o de detenção de arma proibida, abordada no Ac. do STJ de 31 de Março de 2011, proc. nº 361/10.3GBLLE, in www.dgsi.pt).
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Da atenuação especial das penas e da sua medida excessiva

7. Pretende o arguido – conclusão 11 – que, a não se enquadrar a sua conduta no art. 133º do C. Penal, sempre deverá beneficiar da atenuação especial das penas, prevista nos arts. 71º a 73º do mesmo código, fixando-se aquelas perto do limite mínimo aplicável, tendo-se em conta, continua no corpo da motivação, os factos imediatamente antecederam os crimes os quais, conjugados com os factos passados, serão compreensivelmente provocatórios e por isso, aptos a provocarem a sua reacção, com culpa diminuída.
Vejamos se lhe assiste razão.

7.1. Quando o legislador fixa a moldura penal para cada tipo de crime o legislador, leva em consideração que nela terão que caber os diversos graus de cometimento do facto.
Porém, quando existam circunstâncias excepcionais que revelem uma imagem global do facto especialmente atenuada relativamente à normalidade dos casos previstos pelo legislador quando fixou a moldura penal abstracta, razões de justiça, eficácia e necessidade da punição exigem a aplicação de uma moldura penal menos severa, nisto se traduzindo a atenuação especial da pena (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 302).

Nos termos do art. 72º, nº 1, do C. Penal, o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
Assim, o funcionamento da cláusula geral da atenuação especial da pena aqui prevista pressupõe a existência de circunstâncias – anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime – que diminuam acentuadamente a culpa e as exigências de prevenção. Como já se referiu, esta diminuição só pode ter-se por acentuada, quando a imagem global do facto se mostra com uma gravidade tão diminuída que seja razoável supor-se que o legislador não a considerou quando fixou os limites da moldura abstracta do respectivo tipo (cfr. aut. e ob. cit., pág. 306).
Nas diversas alíneas do nº 2 do art. 72º, o legislador tipificou algumas circunstâncias a que atribuiu valor atenuativo especial. Aqui encontramos: a actuação do agente sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; a actuação do agente ter sido determinada por motivo honroso, forte solicitação ou tentação da vítima, por provocação injusta ou ofensa imerecida; ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente e; ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Mas estas circunstâncias não funcionam objectivamente isto é, não basta a sua verificação para que lhes seja atribuído, sem mais, um valor atenuativo especial. Para tal, é ainda necessário que elas determinem a diminuição acentuada da ilicitude do facto, ou da culpa, ou da necessidade da pena.

7.2. O arguido, se bem percebemos, neste ponto, a sua argumentação, que repete o expendido no ponto 5 que antecede, entende que ocorreu uma conduta provocatória da madrasta, quer anterior, quer contemporânea dos crimes, que diminuiu a sua culpa.
Não cremos que assim seja pois não vemos que os quatro anos de relacionamento pouco harmonioso entre o arguido, por um lado, e o seu pai e madrasta, por outro, conjugado com a discussão havida entre o arguido e a madrasta, que antecedeu o início da execução dos crimes de homicídio, possam ser entendidos como provocação injusta ou ofensa imerecida, relativamente a qualquer um dos dois homicídios.

Por outro lado, embora o arguido faça referência ao seu arrependimento, cremos que não o invoca para este concreto efeito jurídico [mas para outro, que trataremos de seguida]. No entanto, deixa-se aqui dito que para a atenuação especial da pena não releva o arrependimento mas antes, o arrependimento sincero, devidamente demonstrado por actos concretos. E este, efectivamente, não se provou.
Por último, nenhuma outra circunstância provada aponta para a referida imagem global do facto especialmente atenuada pelo que o arguido deverá ser sancionado pelas molduras penais normais dos tipos cometidos.

Em consequência, improcede a pretensão do arguido de ser punido com penas especialmente atenuadas.

8. Pretende o arguido – conclusão 6 a 8 e 22 – que o tribunal recorrido não relevou a sua colaboração com as forças policiais, a sua confissão e demonstração de arrependimento, bem como não valorou adequadamente as suas condições pessoais e a sua conduta anterior e posterior aos factos, com a consequente violação dos arts. 40º e 71º do C. Penal. No corpo da motivação acrescenta que, tendo confessado integralmente e sem reservas os factos, tendo manifestado arrependimento, não tendo antecedentes criminais, e sendo um adulto socialmente promissor, as penas a aplicar, para não excluírem a sua reinserção, devem situar-se no limite mínimo.

Como vimos, o arguido foi condenado pela prática, em autoria material e concurso real, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, a), do C. Penal, na pena de vinte e um anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, c), do C. Penal, na pena de vinte e três anos de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nºs 1, c), e 2 a 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro [redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio], com referência aos arts. 2º, nº 1, ar) e 3º, nº 6, c), da mesma lei, na pena de um ano e dois meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares, foi condenado na pena única de vinte e cinco anos de prisão.

Não há já que considerar o crime de detenção de arma proibida.
Os crimes de homicídio qualificado foram cometidos através do uso de uma espingarda de caça, sendo que, em nenhum deles, a qualificação foi feita pela alínea h), do nº 2, do art. 132º do C. Penal. Não sendo o uso ou porte de arma elemento do tipo do crime de homicídio, é aplicável a agravação prevista no nº 3, do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção referida.
Assim, as molduras penais abstractas dentro das quais há que encontrar as penas aplicáveis ao arguido são:
- Para cada crime de homicídio qualificado, prisão de 16 a 25 anos.
Posto isto.

8.1. Prevenção – geral [protecção de bens jurídicos] e especial [reintegração social do agente] – e culpa são, nos termos do art. 40º, nºs 1 e 2, do C. Penal, as balizas a ter em conta para a determinação da medida concreta da pena.
A prevenção reflecte a necessidade comunitária da punição do caso concreto. A culpa, por sua vez, dirigida para a pessoa do agente do crime, constitui o limite inultrapassável daquela (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 214 e ss.).
A medida concreta da pena será então dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] – temperada pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização], mas sempre com o limite inultrapassável da medida da culpa.
Podemos pois dizer, em jeito de conclusão e citando o Prof. Figueiredo Dias que, toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2004, pág. 81).

O critério de escolha da pena encontra-se previsto no art. 70º do C. Penal. Quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal deve dar preferência a esta última sempre que ela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Escolhida a pena, há que fixar a sua medida concreta. A moldura penal abstracta de cada crime é fixada pelo legislador, tendo em conta todas as formas e graus de cometimento do facto típico, fazendo corresponder aos de menor gravidade o limite mínimo da pena e aos de maior gravidade o limite máximo da pena. E a determinação da medida concreta da pena, balizada por estes limites, é feita em função da culpa do agente e das necessidades de prevenção, devendo o tribunal atender, para o efeito, a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (art. 71º do C. Penal).
Entre outras circunstâncias, há que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (nº 2 do art. 71º do C. Penal).

Enunciados, com a brevidade possível, os critérios de escolha e determinação da medida concreta da pena, passemos à análise da sua observância, ou falta dela, como entende, de forma vaga, embora, o arguido.

8.2. Levando em conta, como se impõe, os factos provados, há que reconhecer que o grau de ilicitude dos factos é muito elevado não, obviamente, atendendo ao tipo dos crimes em questão, mas antes, à forma do seu cometimento. Com efeito, o arguido começou por utilizar uma machada de cozinha para agredir repetidamente a madrasta na cabeça mas como tal instrumento se revelou ineficaz para os seus propósitos [a madrasta, ainda que seriamente ferida, logrou fugir de casa], passou a usar uma espingarda de caça instrumento este que, como é de todos conhecido, tem uma enorme perigosidade. É claro que se o arguido pretendia matar, os instrumentos por si usados teriam que ter as características necessárias à realização de tal propósito, mas o que aqui queremos realçar é que os instrumentos utilizados e particularmente, a espingarda de caça com que veio a consumar os homicídios, lhe conferiu uma enorme superioridade em razão do meio – arma – relativamente às vítimas, retirando-lhes qualquer possibilidade de defesa efectiva, tanto mais que os disparos foram sempre efectuados a muito curta distância.

Relativamente à intensidade do dolo, o quadro provado demonstra inequivocamente um dolo directo muito intenso, revelador de uma elevada energia criminosa. Com efeito, depois da primitiva agressão da madrasta à machadada e consequente fuga desta, o arguido foi buscar e municiar a espingarda o que implicou, necessariamente, uns momentos, breves que fossem, de reflexão. Apesar disso, o arguido depois de carregar a espingarda, trouxe-a consigo e quando encontrou o pai, ao telefone, tentou atingi-lo por duas vezes o que não conseguiu. O propósito homicida do arguido não cedeu aqui pois, tendo necessariamente reflectido sobre o que fizera e o que ainda pretendia fazer, voltou ao quarto onde se havia munido da espingarda, recarregou-a, e regressou ao local onde se encontrava o pai, ainda ao telefone, e atingiu-o com dois disparos efectuados a curta distância, causando-lhe a morte. Mas faltava ainda a madrasta e mais uma vez o arguido voltou àquele quarto, municiou a espingarda, saiu de casa, e quando encontrou aquela, atingiu-a também com dois disparos, efectuados a curta distância, causando-lhe a morte.
Como se vê, todo este desenrolar dos acontecimentos proporcionaram ao arguido diversos momentos de reflexão sobre o que se propunha fazer, mas em nenhum deles tal reflexão o levou a inflectir os seus propósitos, deixando-se motivar pelos contra-motivos éticos e consequente abstenção de concretizar os seus intentos, antes tendo mantido sempre uma vontade irredutível de levar a cabo a projectada morte do pai e da madrasta. E tendo o arguido, pelo teor das declarações que prestou em audiência, renunciado, como era aliás, direito seu, a dar ao tribunal uma explicação para o seu comportamento emocionalmente reactivo, através da descrição concretizada dos conflitos que referiu ter com o pai e a madrasta e mais do que isso, das causas e do teor da discussão havida com esta nos instantes que precederam as agressões com a machada [apesar das sucessivas tentativas feitas pelo Mmo. Juiz Presidente, limitou-se a referir apenas, de forma repetida mas vaga, a existência de discussões, do desprezo da madrasta e da ausência de conversas com esta durante períodos de tempo], sendo certo que, quanto a esta última discussão, seria o único apto a fazê-lo, há que inferir, de acordo com as regras da experiência, que nenhuma circunstância ocorreu susceptível de contrabalançar a intensidade do dolo, esbatendo o seu peso específico, assim ficando apenas em evidência a sua insensibilidade face ao valor vida humana.

São elevadas as necessidades de prevenção geral, seja pela frequência com que são cometidos crimes desta natureza, seja pelo seu modo concreto de execução, seja pelo enorme alarme social que a sua prática inevitavelmente acarreta.
Não se fazem sentir as necessidades de prevenção especial pois o arguido não tem antecedentes criminais e estava socialmente inserido.

Relativamente à confissão, que o arguido pretende integral e sem reservas, reconhecendo-se que a mesma, para além de meio de prova – integrada nas declarações do arguido – é também um facto, não consta dos factos provados do acórdão. E neste aspecto, o arguido não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Mas que o arguido confessou os factos não restam dúvidas pois que o próprio acórdão recorrido o diz [lê-se na motivação de facto; « (…). Assim, é desde logo o arguido que, mostrando-se embora algo titubeante nas respostas que foi dando às perguntas que lhe foram feitas sobre alguns dos pormenores do sucedido, começa por apresentar uma confissão integral, confirmando desta forma todos e cada um dos factos descritos na acusação pública. O arguido afirma que tirou efectivamente a vida ao seu pai e madrasta, não conseguindo contudo apresentar uma qualquer justificação para o sucedido, refugiando-se em respostas algo evasivas, dizendo que não sabe o que lhe passou na cabeça para fazer o que fez; ainda assim, consegue explicar que o seu relacionamento com a sua madrasta e mulher do seu pai seria pautada por alguma conflitualidade, com a existência de algumas discussões e azeda troca de palavras; quanto ao seu pai, colocar-se-ia por vezes ao lado da sua mulher nas críticas que esta lhe dirigia. (…). Ora, retomando aquilo que inicialmente se disse, considerando a confissão do arguido e todos estes depoimentos, facilmente se corroboram os factos objectivos descritos na acusação; da mesma forma, ninguém duvidará das dores sofridas pelas vítimas ou do enorme desgosto vivido pelos respectivos familiares. (…)»].
Tal confissão foi integral e contribuiu, se bem que não decisivamente, para a formação da convicção do tribunal colectivo na medida em que ninguém, para além do arguido e das duas vítimas, presenciou os factos ocorridos no interior da residência, no dia em que ocorreram os homicídios. E portanto, foi com base na confissão do arguido, que muitos pormenores relevantes constantes da acusação foram considerados provados.
A confissão é uma circunstância que deve ser considerada favoravelmente, embora sempre com um peso relativo, em função do caso concreto, e o que é verdade é que no ponto em que o acórdão recorrido se debruçou sobre a «Determinação da sanção – fixação das penas concretas», nenhuma referência lhe é feita.

Por último, no que ao arrependimento concerne, ele não consta dos factos provados enquanto tal, e também quanto a este aspecto o arguido não impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Naturalmente que aqui não cuidamos do arrependimento sincero a que alude a alínea c), do nº 2, do art. 72º do C. Penal, enquanto facto de atenuação especial da pena, mas antes da manifestação de arrependimento afirmada pelo arguido na audiência de julgamento, que é coisa bem diferente.
A este respeito escreveu-se no acórdão recorrido: «O arguido, já em sede de declarações finais e em jeito de resposta às alegações feitas pelo Ministério Público, afirma que está arrependido pelo sucedido. O processo de arrependimento é algo do foro íntimo de cada um de nós, mas, com excepção daquelas parcas declarações, o arguido não demonstrou qualquer acto de contrição ao longo de todo o julgamento, chegando o tribunal colectivo a duvidar se, ainda hoje, tem o arguido exacta noção da profunda gravidade dos seus actos.».
Como se vê, o tribunal colectivo analisou a declaração de arrependimento proferida pelo arguido e concluiu, nos termos do excerto que se transcreveu [e cuja parte final do segundo parágrafo sempre seria dispensável] que a mesma não tinha qualquer relevância, sendo certo que as razões ali apontadas não permitem outra conclusão.

Aqui chegados, ponderadas as circunstâncias que depõem a favor – aqui se incluindo a confissão – e contra o arguido, entendemos que estas sobrelevam àquelas.
Por outro lado, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, e ressalvado sempre o devido respeito que é muito, não encontramos razões para distinguir na medida da pena a aplicar a cada um dos homicídios. Com efeito, se a resolução de matar a madrasta perdurou por mais tempo, não só era com esta que existia o principal problema de relacionamento, como a energia criminosa do arguido deu-lhe coragem para matar o próprio pai, que nem tinha sido interveniente na discussão, e que foi morto quando apenas telefonava procurando ajuda.

Assim, tudo ponderado, atenta a moldura penal abstracta aplicável, mantém-se a pena de 21 anos de prisão para o homicídio de E... e reduz-se para 21 anos de prisão a pena para o homicídio de F....

8.3. Cumpre agora fixar a pena unitária.
Dispõe o art. 77º, nº 1 do C. Penal:
Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido.”.
Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo artigo:
A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.”.

Começando pela determinação da moldura abstracta aplicável ao concurso, e tendo em conta o que atrás se decidiu, a moldura abstracta a considerar para a fixação da pena unitária é a de prisão de 21 a 25 anos,
Decorre do nº 1 do art. 77º do C. Penal que o elemento aglutinador dos crimes em concurso e que vai determinar a pena única é a personalidade do agente. Vale isto dizer que se impõe a relacionação de todos os factos entre si, obtendo-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles e de todos com a personalidade do agente, a fim de se determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, estamos apenas perante uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do agente. E aqui, como nota o Prof. Figueiredo Dias, cuja lição vimos seguindo de perto (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 291 e seguintes), de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Sendo uma evidência o relacionamento mais do que próximo entre o cometimento dos dois homicídios, e não nos estamos a referir apenas ao elemento cronológico, o que a conduta do arguido revela é uma quase absoluta insensibilidade ao valor vida humana.
No entanto, o concreto circunstancialismo em que são cometidos os crimes – ambiente familiar – a inexistência de antecedentes criminais e a inserção social do arguido não permite concluir pela existência de uma personalidade com tendência para a prática de factos típicos pelo que a acumulação de infracções não deve funcionar como elemento agravante na determinação da pena conjunta.

Em todo o caso, atento o reduzido arco de variação permitido pelos limites mínimo e máximo, a pena única a aplicar será a de 25 anos de prisão.
*

Da indevida declaração de indignidade sucessória do recorrente relativamente à herança aberta por óbito de seu pai

9. Pretende o arguido – no segmento que podemos designar pelas conclusões das conclusões – a revogação da declaração de indignidade, alegando no corpo da motivação que o princípio da suficiência do processo penal não é absoluto e que, sendo pressuposto da declaração de indignidade a condenação por homicídio doloso contra o autor da sucessão, nesta fase processual está apenas indiciado da sua prática, deve presumir-se a sua inocência até ao trânsito da sentença condenatória.
No acórdão recorrido entendeu-se que nada impedia a declaração de indignidade no processo penal, atento o princípio da suficiência, em simultâneo com a condenação penal do arguido por ter tirado a vida ao seu progenitor, até porque a eventual revogação da sentença penal implicará também a revogação da sentença na parte civil, em nada ficando aquele prejudicado.
E pelo mesmo diapasão do acórdão em crise alinhou a demandante D..., na contramotivação apresentada.
Vejamos então, a quem assiste razão.

9.1. Os dados da questão:
-A assistente D... deduziu pedido de indemnização contra o arguido, invocando a sua qualidade de irmã do falecido E..., pai do demandado, alegando que aquele morreu intestado, sem deixar outros filhos, cônjuge sobrevivo, ascendentes ou adoptados, sendo por isso seus herdeiros, face à incapacidade sucessória do demandado por indignidade, a demandante, os seus irmãos G 1… e G 4..., e os seus sobrinhos, em representação de irmãos pré-defuntos, O..., E…, , L…, , G 3... . Fundada nesta sua qualidade sucessória, decorrente da indignidade do arguido, a demandante quantificou o dano morte de E... em € 40.000 e o dano não patrimonial pelo sofrimento antes da morte em € 15.000, e o seu dano próprio, bem como o dano próprio de cada uma das irmãs e, em conjunto, o dano próprio dos sobrinhos que representam cada um dos três irmãos pré-defuntos, em € 12.500, no total de € 75.000. E assim, concluiu, formulando dois pedidos, a saber: que fosse declarada a incapacidade sucessória do arguido, por indignidade, relativamente à herança do pai e; que o arguido fosse condenado a pagar-lhe a si e aos demais herdeiros, a indemnização de € 130.000, acrescida de juros legais até integral pagamento.
- No acórdão recorrido entendeu-se que a demandante carecia de legitimidade para peticionar danos não patrimoniais próprios em nome dos seus irmãos e sobrinhos, e considerou-se que quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido, podia qualquer dos herdeiros, por si próprio, peticionar o respectivo pagamento para a herança, sendo depois o dinheiro dividido entre todos, de acordo com as regras da sucessão. Depois, o acórdão fixou os danos não patrimoniais próprios da demandante em € 12.500, o dano morte em € 45.000 e os danos não patrimoniais pelo sofrimento antes da morte do E... em € 15.000.
Finalmente, no Dispositivo do acórdão, relativamente à parte civil, consta:
“ (…).
1. Declarar o arguido/demandado A... incapaz de suceder, por motivo de indignidade, à herança aberta por óbito do seu pai E....
(…).
3. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante D... e, em consequência, condenar o arguido/demandado a pagar-lhe, a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 12.500 (doze mil e quinhentos euros), a título de danos morais próprios.
4. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante D... e, em consequência, condenar o arguido/demandado a pagar aos herdeiros do falecido E..., a título de danos não patrimoniais, a quantia global de € 60.000 (sessenta mil euros), tal como se discrimina:
- € 45.000, pela perda do direito à vida do falecido; e
- € 15.000, pelos danos morais do falecido resultantes do sofrimento e percepção da morte.
(…)”.
Posto isto.

Vigora no processo penal pátrio o princípio da adesão segundo o qual, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71º do C. Processo Penal).
Por sua vez, dispõe o art. 129º do C. Penal que a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.
Podemos definir dano como toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica (Prof. M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 8º Edição, pág. 533), sendo uma das suas mais comuns classificações a que o distingue entre dano patrimonial – o que é susceptível de avaliação pecuniária – e dano não patrimonial – o que não é susceptível de tal avaliação e que, por esta mesma razão, apenas pode ser compensado.

A lei sanciona a prática de determinados actos graves praticados por alguém contra o autor da herança, o seu cônjuge ou familiares directos através da indignidade, que configura como uma causa especial de incapacidade sucessória.
Assim, o nº 1, alínea a) do art. 2034º do C. Civil, com a epígrafe «Incapacidade por Indignidade» estabelece:
Carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade:
a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado; (…)”.
Em regra, para este efeito, só releva o cometimento de crime anterior à abertura da sucessão, embora a respectiva condenação possa ser posterior (art. 2035º, nº 1, do C. Civil).
Sendo a indignidade concebida como uma pena civil, o art. 2037º do C. Civil, com a epígrafe «Efeitos da indignidade» pune o indigno, nos termos do seu nº 1, da forma seguinte:
Declarada a indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente, sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respectivos bens.”.

Dúvidas não subsistem pois, de que a indignidade é apenas uma consequência autónoma de natureza civil, da condenação penal, e não, um dano decorrente da prática do crime respectivo.
Por isso, atentas as previsões dos arts. 71º do C. Processo Penal e 129º do C. Penal, fácil é concluir que no âmbito de um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, não pode ser formulado, a título principal, a declaração de indignidade do arguido, uma vez que ela não constitui um dano.

Por outro lado, cremos que a lei se opõe à opção feita pelo tribunal colectivo. Com efeito, deixando de lado a questão, que tem dividido a doutrina, de saber se a indignidade só opera depois de declarada judicialmente (neste sentido, Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, Volume VI, pág. 41, Pereira Coelho, Direito das Sucessões, 1992, pág. 220, Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, Lex, Volume I, pág. 207 e seguintes, Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 2ª Edição, pág. 179 e seguintes, e Jorge Duarte Pinheiro, Direito da Família e das Sucessões, Volume IV, AAFDL, 2005, pág. 22) ou se, pelo contrário, opera automaticamente, apenas sendo necessária a interposição da acção quando o indigno esteja na posse efectiva de bens da herança (neste sentido, Profs. Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 1981, pág. 152 e seguintes e Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 3ª Edição, pág. 262 e seguintes), temos por certo que a acção de declaração de indignidade é diferente e não se confunde com a acção penal de condenação pelos crimes que constituem o seu fundamento.
Como atrás vimos, no que respeita aos factos de natureza criminosa fundamento da indignidade, o art. 2034º, nº 1, a) do C. Civil, exige a condenação do indigno como autor ou cúmplice do crime de homicídio doloso, contra, entre outros, o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge. Trata-se, como não pode deixar de ser, de condenação no processo penal próprio, e com trânsito.
Por seu turno, o art. 2036º do C. Civil, com a epígrafe, «Declaração de indignidade», dispõe:
A acção destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada dentro do prazo de dois anos a contar da abertura da sucessão, ou dentro de um ano a contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento das causas de indignidade previstas nas alíneas c) e d) do artigo 2034.º.”.
Aqui se fixa portanto, como terminus a quo da acção de declaração de indignidade, a condenação com trânsito na acção penal, o que vale dizer não ser legalmente admissível que aquela corra em simultâneo com esta. A condenação penal transitada constitui um pressuposto da propositura da acção declarativa de incapacidade por indignidade.
E neste sentido ensinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela quando dizem, nem é possível a prova do crime em acção cível, nem se prevê a condenação do réu como indigno de suceder na acção penal contra ele instaurada (ob. cit., pág. 38), e mais adiante acrescentam, a declaração de indignidade, como causa de incapacidade sucessória, só pode ser proferida por via judicial, nalguns casos só depois de condenação em acção penal, mas em qualquer caso mediante acção cível ad hoc (ob. cit., pág. 40).

Em síntese conclusiva:
- A incapacidade sucessória por indignidade é apenas uma consequência civil de uma condenação penal, não se confundindo com os danos eventualmente causados pela conduta do condenado;
- A acção cível para declaração de indignidade, prevista no art. 2036º do C. Civil, tem como termo inicial o trânsito da condenação penal, o que significa que só pode ser proposta depois daquele trânsito;
- Por isso, a declaração de incapacidade sucessória por indignidade não pode ser deduzida, como pedido autónomo, na acção cível enxertada no processo penal que tem por objecto o crime fundamento da indignidade.

9.2. Assente que a declaração de incapacidade sucessória por indignidade não pode ser proferida nestes autos, cuidemos agora das implicações decorrentes.
Se bem entendemos o raciocínio da assistente quando deduziu o pedido de indemnização civil, a declaração de indignidade do arguido visou assegurar a legitimidade substantiva da demandante relativamente à indemnização peticionada na parte respeitante ao dano morte e ao dano não patrimonial pelo sofrimento antes da morte.
E a percepção das dificuldades que se adivinhavam conduziu à invocação do princípio da suficiência do processo penal. Este princípio, previsto no art. 7º do C. Processo Penal, significa, brevitatis causa, que a promoção do processo penal é independente de qualquer outro processo, e que nele se resolvem todas as questões que interessam à decisão da causa crime.
As questões não penais ou seja, as questões prejudiciais – as questões de natureza não penal que, como antecedentes lógico-jurídicos autónomos, constituem pressupostos substantivos da questão prejudicada, a decisão penal – que, porque relevantes para a decisão da causa crime, devem, ao abrigo deste princípio, ser previamente decididas no processo penal, são-no apenas, incidenter tantum, apenas valem para efeitos da decisão penal, não produzindo efeitos fora do processo (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição, pág. 113 e 121).

Nos termos do nº 2, do art. 7º, do C. Processo Penal, o conhecimento da questão prévia não penal parece limitar-se à necessidade da sua prévia resolução para o conhecimento da existência do crime.
Admitindo, por hipótese de raciocínio, que a questão prejudicial a decidir ao abrigo do art. 7º do C. Processo Penal podia respeitar, não a um qualquer elemento, essencial ou não, do crime, mas apenas e exclusivamente, a um pressuposto da legitimidade substantiva da assistente para deduzir o pedido nos termos em que o fez, não concordamos porém, e ressalvado sempre o devido respeito, com a solução dada pelo tribunal recorrido escolheu. Explicando.

Dispõe o art. 496º do C. Civil, com a epígrafe, «Danos não patrimoniais»:
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.”.
Não tem sido pacífica a interpretação dos nºs 2 e 3 deste artigo no que respeita à natureza do direito à indemnização pelos danos aí previstos especialmente, do comummente designado dano morte, tendo-se por certo ser este indemnizável.
Mas é hoje maioritariamente entendido, na doutrina e na jurisprudência do nosso mais Alto tribunal, que a lei atribui aos diversos grupos de pessoas previstos no nº 2, sucessivamente, um direito próprio à indemnização, tornando-as titulares directos e originários do direito à indemnização dos danos não patrimoniais causados à vítima mortal, ficando desta forma afastada a via da aquisição derivada de tal direito através das regras do fenómeno sucessório (cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, C. Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, pág. 500, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, pág. 503 e seguintes e Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 123º, pág. 189 e seguintes, Rabindranath Capelo de Sousa, ob. e loc. cit., pág. 292 e seguintes, e Pereira Coelho, ob. cit., pág. 171 e seguintes, e Acs. do STJ de 24 de Fevereiro de 1997, CJ, S, V, II, pág. 186, de 29 de Janeiro de 1998, CJ, S, VI, I, 46, de 10 de Fevereiro de 1998, CJ, S, VI, I, 65, de 16 de Janeiro de 2002, CJ, S, X, I, 165 e de 22 de Junho de 2010, proc. nº 3013/05.2TBFAF.G1.S1, in www.dgsi.pt). E é precisamente esta a posição que seguimos, pela simples razão de não ser possível o nascimento de um direito – o direito à indemnização pela perda do direito à vida – com o facto jurídico que determina a incapacidade para o adquirir – a morte da vítima. Nesta situação, como afirma o Prof. Antunes Varela, «atribuir o direito de indemnização ao morto, integrá-lo na herança, para daí o fazer correr sobre as esferas do direito sucessório, cheira a artificialismo jurídico, a puro conceptualismo lógico-formal (…)» (RLJ, cit., pág. 252).
Assim, não se transmitindo o direito de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima iure hereditario, antes pertencendo, iure proprio, às pessoas mencionadas no art. 496º, nº 2, do C. Civil, fácil é concluir, afastadas que ficam as regras aplicáveis ao fenómeno sucessório, que a pretendida declaração de incapacidade sucessória por indignidade se tornou irrelevante.
É que a titularidade do direito nas pessoas que integram cada um dos grupos previstos neste preceito legal, só ocorre, quando não exista qualquer pessoa que integre o grupo imediatamente anterior. A assistente, enquanto irmã da vítima, integra o último grupo ali previsto, sendo certo que existe uma pessoa que integra o primeiro grupo, o próprio arguido [aliás, neste aspecto, a matéria de facto provada é também insuficiente, na medida em que o ponto 22 dos factos provados – O malogrado E... faleceu intestado e não tinha, para além do arguido, outros filhos biológicos ou adoptados, não tendo deixado cônjuge sobrevivo ou ascendentes vivos. – é omisso quanto a não ter o falecido outros descendentes, para além dos filhos biológicos designadamente, netos]. A existência de um filho da vítima afasta a assistente da titularidade do direito à indemnização pelos danos não patrimoniais.
Mas será também assim, quando o filho da vítima é o autor intencional da lesão mortal? O legislador não estabeleceu para esta situação que não é, infelizmente, incomum, um qualquer mecanismo que afaste do regime de titularidade sucessiva o familiar autor da lesão mortal. E a esta situação não é, seguramente, aplicável o regime da indignidade, quer porque estamos fora do âmbito do direito sucessório, quer porque o legislador não deixaria de o dizer, se tal pretendesse [na verdade, em situações como a dos autos, estarão sempre em causa, muito melindrosas questões familiares e afectivas].

Tudo isto para agora concluirmos que, não sendo a assistente, nos termos do art. 496º, nº 2, do C. Civil, titular do direito à indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, incluindo o dano morte, não pode nesta parte, ser-lhe arbitrado qualquer montante compensatório.
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DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

A) Absolvem o arguido A... da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nºs 1, c), e 2 a 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro [redacção da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio], com referência aos arts. 2º, nº 1, ar) e 3º, nº 6, c), da mesma lei.
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B) 1. Revogam a pena de 23 (vinte e três) anos de prisão imposta ao arguido A... pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, c), do C. Penal, na pessoa de F..., e substituem-na pela pena de 21 (vinte e um) anos de prisão, em que agora vai condenado.

2. Em cúmulo jurídico das duas penas parcelares de 21 (vinte e um) anos de prisão, pela prática de dois crimes de homicídio qualificado, condenam o arguido A... na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.
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C) 1. Revogam a declaração de incapacidade sucessória, por indignidade, do arguido A... relativamente à herança aberta por óbito de seu pai.
2. Revogam a condenação do arguido A... no pagamento da quantia global de € 60.000, aos herdeiros de E..., para compensação da perda do direito à vida e pelos sofrimentos e percepção da morte.
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D) Confirmam, quanto ao mais, o acórdão recorrido.
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Sem custas na parte crime, atento o decaimento parcial (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal).

Custas do pedido civil deduzido por D..., pelas partes respectivas, na proporção do decaimento.
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Heitor Vasques Osório (Relator)

Jorge Dias