Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
272/09.5.TBTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO
PARTICIPAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DA INICIATIVA E DA INSTRUÇÃO
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 54º DO RGCO
Sumário: 1.- O processo de contraordenação inicia-se oficiosamente mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denúncia particular à autoridade administrativa competente para a investigação e instrução do processo, com vista à eventual aplicação da coima;
2.- Com a entrada em vigor do Dec. Lei nº 433/82 de 27 de Outubro (RGCO) não existe nem se exige atualmente, para dar início ao procedimento contraordenacional, qualquer auto de notícia, com a natureza e significado que este já teve anteriormente;
3.- Daí que o “auto de notícia” não tenha a natureza de uma acusação como esta é definida no processo penal para o processo-crime.
Decisão Texto Integral:

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1. Nos autos de recurso de contra-ordenação nº 272/09.5.TBTND em que é arguido
A...

por decisão proferida pela Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, foi aplicada ao mesmo a coima de € 2000,00 (dois mil euros) pela prática de uma contra-ordenação p.p. pelos artigos 36º a 40 e 86º, nº1 alínea g) e nº 2, alínea b), do Decreto - Lei n.º 46/94, de 22 de Fevereiro.
2. O arguido impugnou a decisão, recorrendo para o tribunal de comarca competente, no caso, o Tribunal Judicial de Tondela que decidiu/julgou absolver o recorrente da coima que lhe tinha sido aplicada.

3. Desta decisão judicial recorre agora O Ministério Público formulando as seguintes conclusões:

I - O auto de notícia tem como finalidade dar a conhecer ao infractor a infracção cometida pelo mesmo.

II - Foram cumpridas as exigências atribuídas ao auto de notícia.

III - A decisão proferida pela entidade administrativa preencheu o formalismo legal exigido pelo artigo 58°, do RGCO.

IV - O arguido não apresentou testemunhas que pudessem por em causa a decisão administrativa.

VI - A coima aplicada de 2.000,00 €, em nosso entender, mostra-se adequada e proporcional à infracção cometida.

V - A decisão administrativa não padece de nenhuma nulidade, devendo a sentença ser substituída por outra que mantenha a decisão proferida pela entidade administrativa que condenou o arguido A..., na coima de 2.000,00 E.

Vªs. Exªs. farão a costumada JUSTIÇA.


4. O arguido não respondeu.

5. Nesta instância, a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso deve proceder.

6. Colhidos os vistos legais teve lugar a conferência.


II
1. O tribunal a quo deu como provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados:
Procedeu-se a julgamento tendo sido apurados os seguintes factos:
1. Uma brigada da EPNA da GNR em 02-05-2007, pelas 9:00 horas, no lugar … , concelho de Tondela, constatou que numa plantação
de eucaliptos com alguma idade havia sido feita uma descarga de resíduos de aviário em
vários montes.
2. Tais resíduos já permaneciam no local há algum tempo.
3. Devido à grande quantidade de precipitação na forma de chuva que ocorreu no ano de
2007 e ao declive do terreno, houve escorrências em direcção a uma linha de água que
dista aproximadamente 20 metros do eucaliptal.
4. A cerca de 350 metros de distância e na linha de água, há uma captação de água que
abastece duas habitações em Cortiçada.
5. O terreno onde se encontravam o depósito de estrume de aviário é propriedade do
recorrente.
6. O estrume de aviário ronda 40 toneladas.
Factos não provados:
Não se provou que foi o recorrente ou alguém a seu mando que despejou os resíduos
de aviário.
Não se provou que o recorrente tenha agido com o cuidado a que se encontrava
adstrito e de que era capaz.
Não se provou que tenha sido B... quem procedeu á
descarga dos resíduos.
2. Por sua vez, é o seguinte o teor da decisão recorrida que determinou a absolvição do arguido:

A primeira questão a ser tratada é a de saber se a decisão tomada nos presentes autos
padece de algum vício, quando confrontada com o auto de notícia.
Pois, como refere o recorrente a descrição fáctica do auto de notícia não é coincidente
com a da decisão. Em especial a descrição dos elementos subjectivos do tipo contra
ordenacional.
No âmbito do direito contra ordenacional, regulamentado pelo seu regime geral das
contra ordenações pelo DL 443/82 enquanto direito delitual não penal, remete, tanto na
estrutura dos elementos como na estrutura do procedimento para o Código Penal e para o
Código de Processo Penal – cfr. artigos 32º e 41º nº 1.
No diploma supra citado não existe qualquer norma específica sobre o auto de notícia
nem sobre os elementos que o mesmo deve conter, e por análise do disposto no artigo 50º do
RGCO conjugado com o artigo 283º do Código de Processo Penal, ter-se-á que concluir que o
auto de notícia deverá conter os elementos mínimos de acusação, sendo este que irá fixar o
objecto do processo, sob pena de haver violação do artigo 50º do RGCO, ou seja deverá
conter os factos concretos que são imputados ao arguido, a modalidade da culpa, as normas
incriminadoras e respectivas sanções possíveis.
Ora da descrição fáctica do auto de notícia não decorrem factos passíveis de
integrarem o tipo de ilícito que é imputado ao arguido que se consubstancia no artigo
86.º do DL 46/94 cuja redacção é a seguinte:
(…)
Estabelece o artigo 43º DL nº 433/82 de 27 de Outubro que “O processo das contra-ordenações obedecerá ao princípio da legalidade”.
Consubstancia-se este princípio na obediência à lei e ao direito, não se limitando ao
dever de acatamento da lei em sentido estrito, abrangendo também a subordinação a valores
jurídicos, normativos ou não, como as normas de princípios de direito internacional e
comunitário, as normas regulamentares, as situações definidas judicial ou administrativamente
e as obrigações contratualmente assumidas – cfr. Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, pág. 272.
As contra ordenações encontram-se sujeitas ao princípio da tipicidade, como resulta
do artigo 1º do RGCO, que se consubstancia em que a qualificação como contra-ordenação
depende do preenchimento por um facto de um tipo legal no qual se comine uma coima.
Este princípio da legalidade é traduzido, relativamente ao direito criminal, no brocado
latino “nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege praevia, certa et scripta”, tem carácter
garantístico, na medida em que tutela e protege os direitos fundamentais do cidadão face à
tendência expansiva do Estado de punir. Dele decorre que, para a conduta humana assumir a
dignidade de uma infracção é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita
numa norma legal que preveja, directa ou indirectamente, a aplicação de uma coima.
Pretende, pois, o princípio da legalidade ou da reserva legal, impor a regra de que «só
à lei compete fixar os limites que destacam a actividade delituosa da actividade legítima».
Tem este princípio da legalidade, tem como corolário, o princípio da tipicidade, segundo o
qual cabe à lei, e só a ela, especificar quais os factos ou condutas que constituem crime e
quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma medida de segurança, optando o
legislador por o fazer através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitectado pelo legislador. - cfr. Simas Santos e Lopes de Sousa, in Contra-ordenações, Anotações ao Regime Geral, pág. 48 e ss..
Ora, ao alterar os factos descritos no auto de notícia, que como é sabido cumpre a
função da acusação em processo penal, a quando da fixação dos mesmos na decisão
administrativa, está-se a proceder a uma alteração do objecto do processo e consequentemente
a proferir uma decisão sem que o arguido tenha possibilidade de sobre ela se pronunciar.
Questiona-se, ante a remissão para o Código de Processo Penal, se tal situação poder-se-
a qualificar como uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, como é descrita no artigo 1º, nº 1, al. f) do Código de Processo Penal.
Ante a tipicidade legal e a descrição fáctica constante no auto de noticia, ter-se-á que concluir que, efectivamente, há uma alteração que permite o preenchimento dos elementos do tipo, quando antes não sucedia.
Assim, e porque a alteração não foi provocada por factos levados para os autos pela defesa, ter-se-á que aplicar o disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41º do RGCO.
Ou seja a decisão administrativa terá que ser declarada nula.
Acresce que, o auto de notícia não contém factos relativos aos elementos subjectivos
da acção, dolo ou negligência.
O ilícito administrativo é ele também delimitado pela acção típica, ilícita, culposa e punível. Querelas doutrinárias à parte, sendo o dolo definido como conhecimento e vontade de realização de um facto típico e a negligência uma omissão de um dever de cuidado, não se poderá concluir que o auto de notícia contenha elementos de onde se possa concluir pela existência de dolo, sendo que para se afirmar a negligência ter-se-á que afirmar o conhecimento, por parte do agente, do dever que sobre ele impendia e a não observância do mesmo.
Ora, não havendo nem dolo nem negligência, não é possível também preencher qualquer tipo.
A adição em sede de decisão de: A arguida agiu com culpa, conhecendo da ilicitude do seu comportamento, é, também ela, uma alteração substancial da acusação.
Além do mais, porque tal questão é de tal forma ostensiva que não se poderá deixar de
apontar, em nenhum momento do auto de notícia concretiza o autor dos factos, ou seja quem
efectivamente procedeu à descarga dos resíduos no solo, em que condições.
Desde logo ter-se-á que concluir que não foi possível preencher o elemento da autoria
do facto, sendo que também tal comportamento terá que ser imputado a uma pessoa concreta.
Pelo que neste aspecto o recurso terá que proceder, ficando, por isso, prejudicado o
conhecimento das restantes questões.
Decisão:
Por tudo o exposto, julgo procedente o recurso apresentado pelo recorrente Aníbal
Gonçalo Henriques Rodrigues e, consequentemente, declaro nula a decisão proferida pela
Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, datada de 7/10/2008, que o
condena numa coima de €2.000,00, nos presentes autos, com todas as consequências legais, e
por isso absolvo a recorrente da coima que lhe foi aplicada.
III
Questão a apreciar:
A (não) nulidade da decisão administrativa.

IV
Cumpre decidir:
1. A decisão recorrida apoia-se, em síntese, no seguinte para determinar a nulidade da decisão administrativa e absolver o arguido da coima:
- Uma vez que no Dec. Lei nº 433/82 (que institui o ilícito de mera ordenação social) não existe qualquer norma específica sobre o auto de notícia nem sobre os elementos que o mesmo deve conter, e por análise do disposto no artigo 50º do RGCO conjugado com o artigo 283º do Código de Processo Penal, ter-se-á que concluir que o auto de notícia deverá conter os elementos mínimos de acusação, sendo este que irá fixar o objecto do processo, sob pena de haver violação do artigo 50º do RGCO, ou seja deverá conter os factos concretos que são imputados ao arguido, a modalidade da culpa, as normas incriminadoras e respectivas sanções possíveis.
- Da descrição fáctica do auto de notícia não decorrem factos passíveis de integrarem o tipo de ilícito que é imputado ao arguido que se consubstancia no artigo 86.º do DL 46/94.
- Ao alterar os factos descritos no auto de notícia, que como é sabido cumpre a função da acusação em processo penal, a quando da fixação dos mesmos na decisão administrativa, está-se a proceder a uma alteração do objecto do processo e consequentemente a proferir uma decisão sem que o arguido tenha possibilidade de sobre ela se pronunciar.
- Tal situação poder-se-á qualificar como uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, como é descrita no artigo 1º, nº 1, al. f) do Código de Processo Penal.
- Ante a tipicidade legal e a descrição fáctica constante no auto de noticia, ter-se-á que concluir que, efectivamente, há uma alteração que permite o preenchimento dos elementos do tipo, quando antes não sucedia.
- Assim, e porque a alteração não foi provocada por factos levados para os autos pela defesa, ter-se-á que aplicar o disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal, ex vi artigo 41º do RGCO.
- Ou seja a decisão administrativa terá que ser declarada nula.
- Acresce que, o auto de notícia não contém factos relativos aos elementos subjectivos
da acção, dolo ou negligência.
- Ora, não havendo nem dolo nem negligência, não é possível também preencher qualquer tipo.
- A adição em sede de decisão de: A arguida agiu com culpa, conhecendo da ilicitude do seu comportamento, é, também ela, uma alteração substancial da acusação.

2. Ou seja, a decisão recorrida partiu do pressuposto que o “auto de notícia” corresponde no concreto processo de contra-ordenação a uma verdadeira acusação e, como tal, deve conter todos os elementos que se exigem para uma acusação crime, nos termos do artigo 283º, do CPP. Não constando esses elementos do dito “auto de notícia” mas já constando da decisão administrativa, existe uma alteração substancial dos factos que determina a nulidade da decisão.
Esta decisão assenta num pressuposto falacioso ou errado que é a de atribuir ao designado “auto de notícia” a verdadeira natureza de uma acusação como esta é definida no processo penal para o processo-crime.
Ora, a natureza do ilícito contraordenacional é diferente do ilícito criminal.
O ilícito contraordenacional está regulado e regulamentado no Dec. Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (que já sofreu algumas actualizações). E se é verdade que os artigos 32º e 41º, deste diploma mandam aplicar, subsidiariamente, o regime do Código Penal e Código de Processo Penal, respectivamente, este último artigo começa por dizer que os preceitos do CPP são aplicáveis, “sempre que o contrário não resultar deste diploma”.
E a verdade é que este diploma (DL nº 433/82), tem preceitos próprios e específicos de tramitação e instrução da contra-ordenação, do conteúdo da decisão administrativa condenatória (v. artigo 58º), da impugnação desta para o tribunal de comarca e do próprio recurso para o tribunal da Relação (v. art. 73º) que funciona como um Tribunal de Revista, pois só aprecia ou conhece de direito e não da matéria de facto (v. art. 75º).
3. Ao abrigo do artigo 54º, nº1, do DL nº 433/82, o processo de contra-ordenação inicia-se oficiosamente mediante participação das autoridades policiais ou fiscalizadoras ou ainda mediante denúncia particular.
O que significa que não existe nem se exige, para dar início ao procedimento contraordenacional, qualquer auto de notícia, com a natureza e significado que este já teve em determinados procedimentos, incluindo no Código de Processo Penal de 1929 – v. artigos 166º e seguintes – fazendo fé em Juízo, quer no Código da Estrada quer mesmo no Código do Trabalho de 2003 – v. artigos 633º e 634º -, especificando este último preceito (634º) os elementos que o dito auto de notícia deveria conter Disposição que o actual Código do Trabalho já não contém limitando-se a remeter, esta matéria, para o regime geral das contra-ordenações o mesmo é dizer o regime do DL nº 433/82 – v. actual artigo 549.º que dispõe:
“ As contra-ordenações laborais são reguladas pelo disposto neste Código e, subsidiariamente, pelo regime geral das contra-ordenações”..
Como resulta do teor daquele nº1 do art. 54º, o processo pode iniciar-se mediante denúncia particular, pelo que não é exigida uma formalidade legal em que sejam descritos todos os factos e outras circunstâncias, maxime os referentes ao dolo ou negligência, para se dar início ao processo
Como refere o nº2 daquele preceito (art. 54º), a autoridade administrativa procederá à sua investigação e instrução, finda a qual arquivará o processo ou aplicará uma coima.
Ou seja, a participação ou denúncia é apenas o fundamento, o pretexto para que se investigue e instrua o processo com todos os elementos com vista à eventual aplicação da coima.
Apesar de o documento de fls. 4 dos autos ter a designação formal de “auto de notícia”, o mesmo não é nada mais que uma comunicação de um facto, “um evento”, com descrição de algumas circunstâncias já conhecidas e perceptíveis, a que se refere, por sua vez, o disposto no artigo 48º, do Dec. Lei nº 433/82.
Segundo este preceito (nº1), compete às autoridades policiais e fiscalizadoras tomar conta de todos os eventos e circunstâncias susceptíveis de implicar responsabilidade por contra-ordenação. Mais diz o nº3 que as autoridades policiais e agentes de fiscalização remeterão imediatamente às autoridades administrativas a participação e as provas recolhidas. Para que estas procedam à investigação e instrução do processo conforme referido no artigo 54º, nº2, do mesmo diploma.
É exactamente durante a instrução que tem aplicação o disposto no artigo 50º, do DL nº 433/82, sobre o direito de audição e defesa do arguido.
Finda a instrução, se se concluir pela condenação, então deve ser proferida a decisão pela entidade administrativa, decisão que deve observar o formalismo do artigo 58º, do Dec. Lei nº 433/82.
Não é o formalismo desta decisão ou a observância de todos os requisitos exigidos por aquele preceito (art. 58º), que está em causa. Mas sim o formalismo do designado “auto de notícia” que o tribunal a quo equipara a acusação logo, devendo conter todos os requisitos correspondentes à acusação crime a que se refere o artigo 283º, do CPP.
O paralelismo estabelecido pela decisão recorrida aponta no sentido de que o “auto de notícia” está para a decisão administrativa como a acusação crime está para a sentença, em processo penal.
Este paralelismo está desde logo viciado pois a acusação do artigo 283º, do CPP é o culminar, o resultado da investigação e instrução do processo-crime. Finda a investigação, lato sensu, será deduzida acusação ou arquivado o processo (poderá haver outras variantes como seja a suspensão provisória do processo).
Pelo que, se algum paralelismo deve ser feito entre o procedimento do processo contraordenacional e o processo-crime, este aponta no sentido de fazer corresponder à acusação do processo crime a decisão administrativa do artigo 58º, do DL nº 433/82. Também aqui, finda a instrução, ou é aplicada uma coima ou é arquivado o processo.
Mas como o processo contraordenacional tem uma fase administrativa e uma fase dita judicial, podendo a decisão administrativa ser impugnada para o tribunal de comarca e mesmo ser admitido recurso da decisão judicial para o tribunal da Relação, como está a acontecer nos termos em análise, é o próprio diploma - DL nº 433/82 – que no artigo 62º vem afirmar expressamente que, numa situação de impugnação judicial, a autoridade administrativa deve enviar os autos ao Ministério Público que os tornará presentes ao Juiz, valendo este acto como acusação.
Está assim definida e explicitada a coerência de todo o processado do processo contraordenacional e a conjugação entre a fase administrativa e judicial. É a decisão administrativa que, pela mão do MºPº, dá entrada em Tribunal, que vale e funciona como verdadeira acusação, definindo esta o objecto do processo e vinculando desta forma a apreciação do juiz.
A questão da alteração substancial dos factos poderá ser colocada entre o teor da decisão administrativa/acusação e a decisão judicial proferida ao abrigo do artigo 64º, nº1, do DL nº 433/82, mediante audiência de julgamento ou por simples despacho.
Mas não como o fez a decisão recorrida, entre o “auto de notícia” e a decisão administrativa impugnada. Este auto de notícia tem exactamente o mesmo valor e relevância que terá qualquer “auto de notícia” ou participação com base no qual se inicia um processo-crime e se procede a investigação.
Por todo o exposto é de concluir que não se verifica qualquer nulidade por verificação de uma alteração substancial dos factos que impeça a apreciação da eventual responsabilidade contraordenacional do arguido pela decisão administrativa nos termos em que o fez.
Outrossim, deverá a decisão recorrida ser revogada pela inverificada nulidade e deve ser proferida nova decisão que aprecie o factualismo dado por provado, à luz da eventual responsabilidade contraordenacional do arguido em qualquer uma das suas modalidades ou que, por outro lado, conclua pela inexistência de tal responsabilidade.


V
Decisão
Por todo o exposto, decide-se julgar procedente o recurso do Ministério público e, consequentemente anula-se a decisão recorrida, devendo ser proferida nova decisão que faça uma apreciação crítica e jurídica do factualismo que se mostra provado nos autos, com vista ao seu enquadramento legal e eventual responsabilidade contraordenacional ou não, do arguido.

Sem custas.

Coimbra.


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(Relator, Luís Teixeira)


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(Adjunto, Calvário Antunes)