Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
286/10.2TBCDN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Data do Acordão: 10/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: N.º 2 DO ART.º 245.º DO CSC, N.º 1, ALÍN. A), DO ART.º 27.º DO CIRE E N.ºS 1 E 2 DO ART.º 493.º E ALÍN. E) DO ART.º 494.º, DO CPC
Sumário: 1. O credor por suprimentos carece de legitimidade para requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade (n.º 2 do art.º 245.º do CSC);
2. Perante essa excepção dilatória, insuprível, não deveria a acção ter passado da fieira do despacho liminar e ser aí liminarmente indeferida (n.º 1, alín. a), do art.º 27.º do CIRE);

3. Não o tendo sido, apreciada agora a excepção, a respectiva procedência conduz à absolvição da instância (n.ºs 1 e 2 do art.º 493.º e alín. e) do art.º 494.º, do CPC) e enquanto pressuposto processual a sua procedência prejudica a apreciação das demais questões atinentes à impugnação da matéria de facto e/ou ao mérito da causa.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. Relatório

          A... requereu, no TJ da comarca de Condeixa-a-Nova, a declaração de insolvência de “B..., Lda.”, com fundamento em ser credor da requerida da quantia de € 80.000,00 por suprimentos prestados enquanto seu único sócio, o que ocorreu até 11.5.09, data em que a única quota, no valor nominal de € 5.000,00 passou a pertencer a C... , vindo também a ser destituído do cargo de gerente por deliberação da assembleia geral da requerida de 31.5.209 e substituído por D....

            A par disso, alegou que a requerida desde essa data cessou toda a actividade, deixou de pagar o salário mensal de € 740,00 ao trabalhador E..., deve a F..., de empréstimo, a quantia de € 54.841,24 e, com vencimento há mais de 6 meses, ao Fisco montante superior a € 1.429,33 e à Segurança Social mais de € 2.542,33, à Cooperativa Agrícola de Condeixa-a-Nova e Penela € 10.951,41 e o contabilista/TOC G...é igualmente credor da requerida, em quantitativo que não indicou.

            O único negócio que mantém é o arrendamento de 4 prédios rústicos à “H..., Lda.”, de que recebe anualmente a renda de € 5.000,00.

            Rematou com a perda de viabilidade económica da requerida e a situação de incumprimento generalizado e remeteu o pedido de declaração de insolvência para o n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.

            Na oposição deduzida, a requerida, fundamentalmente impugnou a existência do crédito do requerente, por isso não sendo legitimado para requerer a insolvência, apontando apenas como credores – que concorreram, aliás, à execução movida pelo adquirente da quota social contra o requerente – a Segurança Social (€ 14.888,00), a DGCI (€ 2.871,00) e a “I..., SA” (€ 5.911,92) e para cujo pagamento a requerida deliberou, em Fevereiro de 2010, um aumento de capital para € 25.000,00, a concretizar até final de Setembro de 2010, sendo que, para além disso, o activo social é de € 129.101,00 e o passivo de € 112.442,00.

            Concluiu pela improcedência da acção.

            Designada audiência de discussão e julgamento, foi seleccionada, em acta, a matéria de facto relevante considerada assente e organizada a base instrutória, sem reclamação.

            Produzida a prova, foi decidida a matéria de facto e, proferida sentença, foi a acção julgada improcedente e a requerida absolvida do pedido, fundamentalmente por se não haver provado o crédito do requerente, nem a situação de insolvência da requerida.

            Inconformado, recorreu o requerente, apresentado nas alegações as seguintes resumidas conclusões:

a) – A factualidade correspondente aos art.ºs 1.º a 9.º e 12.º a 14.º da base instrutória, em vez de não provada, deveria ter sido dada como provada, face aos documentos juntos por requerente e requerida e aos depoimentos prestado em audiência pelo TOC G...e pelo trabalhador E...;

b) - Tal factualidade, a par da demais matéria provada, integra os factos-índice ou presuntivos de insolvência ínsitos nas alíns. a), b), c), g) e h) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE e cuja presunção a requerida não elidiu;

c) – O requerente está legitimado como credor para requerer a insolvência, foi como tal considerado em sede de saneamento na sentença e o seu crédito deve dar-se como provado.

Concluiu pela revogação da sentença e sua substituição por outra que declare a insolvência da sociedade requerida.

A requerida respondeu às alegações no sentido da manutenção do decidido.

Cumpre decidir, sendo colocadas as seguintes questões:

a) – A impugnação da matéria de facto;

b) – A legitimidade do requerente;

 b) – O mérito da acção.


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II. Fundamentação

1. De facto

A sentença recorrida ateve-se à seguinte factualidade provada:

a) – A requerida é uma sociedade por quotas que tem por objecto social a produção e comercialização de aves cinegéticas e sede na Quinta das Chãs, Vila Seca, distrito de Coimbra, concelho de Condeixa-a-Nova;

b) – Na certidão de registo comercial da requerida com data de 2.6.09 consta a menção da cessação de funções do requerente, sendo que até à referida data da mesma certidão consta que o requerente foi o único sócio da requerida, titulando uma quota de € 5.000,00, pertencente desde a referida data a C... .;

c) – Por deliberação da assembleia geral da sociedade datada de 31 de Maio de 2009 o requerente foi destituído do cargo de gerente e de imediato substituído por D...;

d) – Encontram-se inscritos a favor da requerida por compra na Conservatória do Registo Predial de Condeixa-a-Nova os seguintes prédios:

1. Prédio rústico sito em..., inscrito na matriz predial rústica n.º..., descrito na CRP sob o n.º ...;

2. Prédio rústico sito em ...s, inscrito na matriz predial rústica n.º ..., descrito na CRP sob o n.º ...;

3. Prédio rústico sito em..., inscrito na matriz predial rústica n.º ..., descrito na CRP sob o n.º ...;

4. Prédio rústico sito em ..., inscrito na matriz predial rústica n.º ..., descrito na CRP sob o n.º ....

d) – Corre termos no TJ de Condeixa-a-Nova uma acção com forma de processo sumário com o n.º 269/09.5TBCDN, em que é autor o requerente e ré a requerida;

e) – Consta da certidão comercial da requerida que a última prestação de contas ocorreu em 2006;

f) – A requerida reuniu em assembleia geral em Fevereiro de 2010, constando da respectiva acta a deliberação do aumento de capital social para € 25.000,00, a concretizar em numerário até ao final de Setembro de 2010;

g) – A requerida deve à Fazenda Nacional montante superior a € 1.429,33, há mais de 6 meses;

h) – Deve à Segurança Social montante superior a € 2.542,33, igualmente há mais de 6 meses;

i) – Relativamente àqueles prédios a requerida recebe contrapartida anual de € 5.000,00;

j) – A requerida nunca teve acesso aos dados contabilísticos da sociedade requerida apresentados pela requerente com a petição inicial;

l) – Após a destituição do requerente da gerência da sociedade requerida, o TOC, apesar das sucessivas interpelações, recusou facultar à nova administração o acesso à escrituração comercial da empresa;

m) – A gerência destituída de funções recusou a entrega das chaves à gerência recém – eleita;

n) – Em consequência do descrito em 16.º a 18.º [da base instrutória] após 11 de Maio de 2009 a gerência da requerida passou a ser exercida na ...., em Coimbra;

o) – Nessa morada passou a funcionar a sociedade a reunir sempre que necessário para tratar de assuntos da vida societária.


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            2. De direito

            Porque são as conclusões do recurso que delimitam o objecto deste, já acima vimos que a 1.ª questão que nos é colocada tem a ver com a impugnação da matéria de facto, a 2.ª com a reafirmação da legitimidade do requerente (caso julgado formal) e a 3.ª com a apreciação do mérito da acção a partir da análise dos requisitos legais tendentes à declaração da insolvência requerida.

            Quanto à 1.ª questão, é preciso concordar que o recorrente cumpriu muito por defeito o que lhe impunha o art.º 685.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, desde logo omitindo qualquer passagem de gravação dos depoimentos em que fundou a impugnação da matéria de facto não provada.

            Impõe-se, todavia e para lá disso, por questão lógica e metodológica, apreciar, em 1.º lugar, a questão da ilegitimidade do requerente para requerente a insolvência, fundamento em que - a par da não comprovação do crédito e da situação de insolvência – a sentença se louvou para julgar improcedente a acção.

            Em sede de saneamento, antes da fundamentação, a sentença referiu, tabelarmente, que as partes eram legítimas.

            Contraditoriamente, na fundamentação, confrontada com o n.º 2 do art.º 245.º do Cód. Sociedades Comerciais (CSC), veio dizer que “com base em crédito de suprimentos o requerente não poderia requerer a insolvência da sociedade requerida …”.

            Porque o recorrente, agora, que o próprio tribunal a quo o considerou, na sentença recorrida, em sede de saneamento, parte legítima “para o efeito pretendido, atentos os fundamentos da sua pretensão e quanto resultou estar em apreço”, importa salientar que nos termos, hoje, do n.º 3 do art.º 510.º do CPC, só as excepções (e nulidades) concretamente apreciadas constituem caso julgado formal.[1]

            É, assim, irrelevante a afirmação prévia à fundamentação da sentença de serem legítimas as partes, não constituindo, pois, caso julgado formal impeditivo de concreta apreciação de tal pressuposto processual.

            Relevante para apreciação do caso em apreço é, assim, a norma do n.º 2 do art.º 245.º do CSC quando dispõe que “os credores por suprimentos não podem requerer, por esses créditos, a falência da sociedade”.

            Trata-se de um preceito que, actualisticamente interpretado, em vez de falência, que era o termo tradicionalmente usado (DL n.º 262/86, de 2.9), se transmudou hoje para insolvência (DL n.º 53/04, de 8.3, que aprovou o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE) (v. art.º 9.º, n.º 1, do Cód. Civil).

            E não obstante o art.º 20.º, n.º 1, do CIRE atribuir legitimidade para requerer a insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito, não se incluem, aqui, os créditos por suprimentos.

            Com efeito, aquela norma societária, impeditiva do requerimento de insolvência, constitui lei especial não revogada pelo CIRE e está em consonância com o demais arquétipo do direito de insolvência, desde logo com o art.º 3.º, n.º 3, alín. c) e art.º 48.º, alín. g), do CIRE (art.º 245.º, n.º 3, do CSC), em que os suprimentos, enquanto créditos subordinados, não se incluem no passivo e são graduados em último lugar.[2]

            Do aqui exposto já resulta que e salvo o devido respeito, foi em absoluta perda de tempo que os autos evoluíram do despacho liminar (art.º 27.º, n.º 1, alín. a) do CIRE) para a fase de julgamento e agora de recurso, ali devendo ter sido julgada oficiosamente procedente a excepção dilatória, insuprível, de ilegitimidade do requerente, enquanto credor alegadamente de suprimentos, para com a requerida.

            Não o tendo feito o tribunal a quo cumpre agora fazê-lo, julgando a excepção procedente e com ela a improcedência da apelação, prejudicada resultando a questão da impugnação da matéria de facto, bem como a sua subsunção (ou não) aos factos-índice de insolvência prevenidos no citado art.º 20.º do CIRE.


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            3. Resumindo e concluindo

            a) - O credor por suprimentos carece de legitimidade para requerer, por esses créditos, a insolvência da sociedade (n.º 2 do art.º 245.º do CSC);

             b) – Perante essa excepção dilatória, insuprível, não deveria a acção ter passado da fieira do despacho liminar e ser aí liminarmente indeferida (n.º 1, alín. a), do art.º 27.º do CIRE);

            c) – Não o tendo sido, apreciada agora a excepção, a respectiva procedência conduz à absolvição da instância (n.ºs 1 e 2 do art.º 493.º e alín. e) do art.º 494.º, do CPC) e enquanto pressuposto processual a sua procedência prejudica a apreciação das demais questões atinentes à impugnação da matéria de facto e/ou ao mérito da causa.


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III. Decisão

Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar, nos termos acima referidos, a sentença recorrida, no sentido, contudo, da absolvição da requerida da instância e não do pedido, por ilegitimidade do requerente.

            Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.


Francisco Caetano (Relator)
A. Magalhães
Freitas Neto


[1] Com efeito, com as reformas operadas pelos DLs n.ºs 329-A/95, de 12.5. e 180/96, de 25.9, perdeu indiscutivelmente vigência, como jurisprudência obrigatória, o Assento do STJ de 1.2.93, pelo que a declaração genérica de legitimidade das partes não faz caso julgado formal. V, entre outros, os Acs. STJ de 3.5.00, CJ/STJ, 2000, 2.º- 41 e 29.6.05, Proc. 05B2086/ITIJ.
[2] V., neste sentido e sobre toda esta problemática, Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, Almedina, 2009, pág. 102, nota 105, Raul Ventura, “Sociedades por Quotas”, II, Almedina, 1989, pág. 143 e ss, mormente pág. 148 quando refere que “o credor de suprimentos pode reclamar o seu crédito em processo de falência, intervir neste processo como qualquer outro credor e ser nele pago, contanto que não tenha sido ele a requerer a declaração de falência, por esse crédito”.
V., também, João Aveiro Pereira, “O Contrato de Suprimento”, C.ª Ed., 2001, pág. 98.