Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
136/20.1T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE FAMÍLIA E MENORES
RECONHECIMENTO DA UNIÃO DE FACTO
ESTADO CIVIL
Data do Acordão: 03/31/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO FAM. MENORES - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 2 E 4, DO ART. 14º, DO DL Nº 237-A/2006, DE 14/12, LEI Nº 7/2001 DE 11/5, ART. 122º, Nº1, AL.G), DA LEI Nº 62/2013 DE 26/8, ARTS.96, 97, 99 CPC
Sumário: I – A ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], integra a previsão do art. 122º, nº1, al.g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto - LOSJ].

II – É que, ao aludir a referida al.g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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1 - RELATÓRIO

L (…) e J (…), uma cidadã angolana e um cidadão português, ambos residentes no concelho de(…), do Distrito de Coimbra, propuseram, no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Família e Menores de Coimbra, contra o ESTADO PORTUGUÊS, ação declarativa, pedindo que seja judicialmente reconhecido que eles AA. vivem em união de facto, há mais de três anos.

                                                           *

Conhecendo da questão da incompetência material do Tribunal para a causa, a Exma. Juíza a quo proferiu despacho no seguinte sentido:

«Através da presente acção os AA. pretendem obter o reconhecimento da sua união de facto, nos termos e para os efeitos das Leis nº 7/2001 de 11/5 e nº 37/1981 de 3/10.

 De acordo com o artigo 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26/8, os juízos de Família e Menores têm competência, relativamente ao estado civil das pessoas e famílias para : a)Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil; f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
Ora, a presente acção não se inclui, manifestamente, neste elenco, tanto mais que a Lei da nacionalidade refere expressamente no seu artigo 3º, nº 3 que «O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação, a interpor no tribunal cível».- sublinhado meu.

Ora, este diploma legal – a Lei nº 37/81 de 3/10 – sofreu três alterações após a publicação da actual Lei de organização do Sistema Judiciário – pela Lei nº 8/2015 de 22/6, pela Lei nº 9/2015 de 29/7 e pela Lei nº 2/2018 de 5/7 – as quais mantiveram intocada aquela redacção do artigo 3º, nº 3!

Assim, este tribunal é materialmente incompetente para a presente acção :

De acordo com o artigo 96º do C.P.C., a infracção das regras de competência fundadas na matéria, determina a incompetência absoluta do tribunal .

A incompetência em função da matéria decorre da propositura num tribunal de uma acção que, de acordo com o princípio da especialização, está reservada a uma espécie ou categoria diferente de Tribunal .

A incompetência absoluta deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado (cfr. o nº 1 do artigo 97º do C.P.C.) .

Assim, deve o presente processo correr no juízo local com competência cível : o artigo 130º da Lei de Organização do Sistema Judiciário determina que às secções de competência genérica (que podem ser desdobradas em secções cíveis e em secções criminais) compete a preparação e o julgamento dos processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central .

Por todo o exposto, ao abrigo dos artigos 96º, 97º e 99º, nº 1 do C.P.C., declaro a incompetência deste Tribunal em razão da matéria, determinando, consequentemente, o indeferimento liminar da petição inicial .

Custas pelos AA. .

Notifique.»

                                                           *

Inconformados com tal decisão vieram os Requerentes recorrer, formulando a concluírem as alegações que apresentaram, as seguintes conclusões[2]:

«1.ª) A MM.ª juíza do Juízo de Família e Menores – Juiz 2 ao declarar a incompetência daquele juízo em razão da matéria, determinando, consequentemente, o indeferimento liminar da petição inicial, e Salvo o devido respeito, que é muito, decidiu mal.

2.ª) A presente ação proposta tendo em vista a obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto nos termos e para os fins da Lei n.º 31/81, de 3/10 e do Decreto-Lei n.º 237-A/2006 de 14/12 (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa), –, concretamente do artigo 3.º, n.º 3, não é, nos termos legalmente determinados e em vigor, da competência de nenhum dos tribunais de competência territorial alargada (neste sentido, vejam-se os artigos 111.º; 112.º; 113.º, 114.º; 116.º; 120.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, doravante LOSJ).

3.ª) Segundo a LOSJ, o reconhecimento judicial de uma união de facto, está incluído na competência interna dos tribunais de comarca (cf., artigo 80.º da LOSJ).

4.ª) O critério da competência em razão da matéria, releva, não só para determinar que os tribunais de comarca são, aqui, competentes, como também para determinar qual o juízo materialmente competente para a apreciação de determinadas causas, nos termos pré-determinados pelo legislador (cf., artigo 81.º da LOSJ).

5.ª) Ora, o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, prevê que os juízos de família e menores são competentes para preparar e julgar “[outras] ações relativas ao estado civil das pessoas e família’’.

6.ª) Portanto, parece certo que o legislador determinou a competência material dos juízos de família e menores para o conhecimento e apreciação de ações relativas a uniões de facto, designadamente ao reconhecimento judicial das mesmas.

7.ª) A união de facto é, na verdade, uma relação familiar (pelo menos em sentido amplo), estando intimamente ligada ao estado civil das pessoas e família.

8.ª) Por conseguinte, e havendo juízos cuja competência especializada é, precisamente, matéria de Direito da Família e dos Menores – sendo isso aquilo que está em causa –, não parece que o legislador tenha excluído, da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º, a união de facto e que diz respeito ao estado civil das pessoas.

9.ª) Os Juízos de Família e Menores são abstratamente competentes para o conhecimento e apreciação deste tipo de ações – reconhecimento judicial da união de facto –, como, no caso sub judice, havia, e há, um juízo de família e menores concretamente competente: o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

10.ª) Neste sentido aqui defendido veja-se, entre outros, o recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-10-2019, Processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1, www.dgsi.pt), que decidiu igualmente uma igual ação deste mesmo Juízo 2 de Família e Menores de Coimbra.

11.ª) A sentença em crítica da MMa. Juíza do Juízo de Família e Menores de Coimbra – Juiz 2, com efeito, violou a norma do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, que prevê que os juízos de família e menores são competentes para preparar e julgar “[outras] ações relativas ao estado civil das pessoas e família’’.

12.ª) E também já se vai referindo que, pelo que abaixo se demonstrar no requerimento infra da Resolução de Conflito Negativo de Competência, e o que é indiscutível – face ao disposto no art. 130º, n.º 1, al. a) da dita LOSJ – que as Secções de competência genérica da Instância Local detêm uma competência residual, cabendo-lhes preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da Instância Central ou Tribunal de competência territorial alargada.

13.ª) Por conseguinte, face à lei, dúvidas não restam que a competência para conhecer da presente ação seria, como será, o Juízo de Família e Menores de Coimbra, devendo esta Relação proferir douto Acórdão em ordem a revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, considerando-se o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juiz 2 competente, em razão da matéria, para conhecer, apreciar e decidir a ação de reconhecimento judicial da união de facto.»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

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            A Exma. Juíza a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em determinar se o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra detém ou não competência em razão da matéria, para uma ação em que é pedido pelos AA. que seja judicialmente reconhecido que os mesmos vivem em união de facto.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então decidir a questão supra enunciada, sendo certo que vamos fazê-lo começando por referir que a mesma já não é uma questão nova, atenta a anterior prolação de despachos de idêntico sentido ao recorrido, e a correspondente interposição de recurso por quem com tal se sentiu prejudicado, face ao que vamos abordar a questão com a linearidade e sintetismo que a mesma reclama.

De referir que a argumentação recursiva – e respetivas conclusões – constituem a reprodução do mesmo sentido interpretativo que foi sustentado pelos recorrentes na apelação correspondente ao Proc. nº 2998/19.6T8CBR.C1, que em data recente foi objeto de apreciação por este mesmo coletivo de Juízes[3], donde, por não vislumbrarmos, salvo o devido respeito, que o enquadramento e decisão devam ser alterados, nem que outros e diversos argumentos cumpra expender, vamos também reproduzir, no essencial, aquela anterior decisão.

Vejamos então diretamente a questão sob recurso, que se prende, naturalmente com a da atribuição de competência dos Tribunais de Família e Menores.

Consabidamente, no momento atual, é a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto – Lei de Organização do Sistema Judiciário (doravante “LOSJ”) – que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário.

Sendo que, quanto à extensão e limites de competência, o art. 37º desta lei estabelece que, na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, regra esta também afirmada no nº 2 do art. 60º do n.C.P.Civil, em cujo nº1 se preceitua que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.

Ora, como regra, relativamente à competência em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, cabendo à LOSJ determinar a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada – é o que consta no art. 40º da dita LOSJ, e é reiterado pelos arts. 64º e 65º do também já citado n.C.P.Civil.

Foi entendimento da decisão recorrida que a competência para dirimir a questão do reconhecimento judicial de que os requerentes ora recorrentes viviam em união de facto pertencia à Instância Local Cível, enquanto é sustentando pelos interessados e ora Apelantes, face ao disposto no art. 122º, nº 1, al. g), da citada LOSJ, que tal competência pertence às Secções de Família e Menores.

Ora, é indiscutível – face ao disposto no art. 130º, nº1, al. a) da dita LOSJ – que as Secções de competência genérica da Instância Local detêm uma competência residual, cabendo-lhes preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da Instância Central ou Tribunal de competência territorial alargada.

Assim, a questão de saber se a Secção de Família e Menores do Tribunal judicial de Coimbra detém ou não competência para preparar e julgar a presente ação reconduz-se à questão de saber se esse tipo de ação está legalmente atribuído a qualquer Secção da Instância Central ou Tribunal de competência territorial alargada e, mais concretamente, às Secções de Família e Menores.

Mais concretamente, regulando a competência das Secções de Família e Menores relativa ao estado civil das pessoas e família, o art. 122º, da citada LOSJ, dispõe nos seguintes termos:

«1 - Compete às secções de família e menores preparar e julgar:

a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;

b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;

c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;

d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;

e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;

f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;

g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.

2 - As secções de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.»

Salvo o devido respeito, para a decisão da questão sob recurso apenas verdadeiramente interessa aprofundar se a competência em causa se encontra atribuída pelas als. “b)” ou “g)” do nº1 do normativo em referência, pois que, em função da conexão, são as únicas com pertinência para esse efeito.

Vejamos então.

Começando, naturalmente, pelo constante da al. “b)” [«Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum»], parece-nos perfeitamente adequado dar por reproduzido a conclusão de sentido negativo que sobre tal já foi sustentada em douto aresto que cuidou da apreciação da mesma questão ora em apreciação[4], o que fez no seguintes termos:

«(…) estando o respectivo cerne direccionado para a tramitação de acção com a natureza de Processo de jurisdição voluntária, a verdade é que não se descobre no título XV [“Dos processos de jurisdição voluntária”] do Código de Processo Civil, ou em legislação avulsa, um qualquer procedimento de jurisdição voluntária que tenha por objecto a apreciação e o reconhecimento judicial ( a se ) de uma situação de união de facto.

É que, como com total pertinência esclarece António José Fialho (8), “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum (art. 3.º, al. a), e 4.º, da Lei n.º 6/2001 e art. 4.º, al. d), e 5.º da Lei n.º 7/2001), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”.

Acresce que, não se vê sequer qualquer razoabilidade de sujeitar a acção pelos AA intentada e em razão da natureza do seu objecto , ao critério de julgamento a que alude o artº 987º, do CPC [“Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna”], ou, também à possibilidade plasmada no artº 988º do mesmo diploma legal, a saber, a de as resoluções puderem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração.

(8) In Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum, in https://blogippc.blogspot

Já quanto à al. “g)” em referência, logo se constata que se encontra estabelecida uma cláusula geral sobre «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família», pelo que importa estabelecer o conteúdo e sentido desta disposição.

De referir que as Secções de Família e Menores têm a sua competência repartida pelos artºs 122º, 123º e 124º da já citada LOSJ, respetivamente, sob as epígrafes “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, “Competência relativa a menores e filhos maiores” e “Competências em matéria tutelar educativa e de proteção”.

Por outro lado, preceitua o art. 14º, nos respetivos nos 2 e 4, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], que «O estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto», sendo «a declaração instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto».

Também a Lei nº 37/81, de 3 de Outubro [“LEI DA NACIONALIDADE”], no seu art. 3º, estabelece que «O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio» (nº1), e que, o mesmo estrangeiro que à data da declaração de nulidade ou anulação do casamento «viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível» ( nº3, com sublinhado nosso, por ser este um dos argumentos mais destacados da decisão recorrida).

Vejamos, então, se há algum argumento, de ordem sistemática ou histórica, a apontar no sentido de se dar resposta positiva à nossa interrogação.

Os Tribunais de Família foram criados pela Lei nº 4/70 de 29/4 e vieram a ser regulamentados pela primeira vez, pelo Decreto-Lei nº 8/72 de 7/1.

A cláusula geral sobre «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família» como resulta da atual alínea f) do n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ, constitui um segmento normativo que foi introduzido pela Lei nº 52/2008, de 28/02 [LOFTJ], através do seu artigo 114.º, al. h).

No entanto, nenhum dos trabalhos preparatórios possibilita qualquer leitura desta disposição.

E isto porque a respetiva Proposta de Lei n.º 187/X e a sua Exposição de Motivos nada nos diz a propósito – a única coisa que podemos extrair, e é muito pouco, reside nas linhas de orientação traçadas, mais precisamente na sua alínea g) ao enunciar estar a «Apostar no reforço da justiça especializada no tratamento de matérias específicas, como sejam a família e menores (...)».

Aliás, no Parecer que a propósito foi emitido pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, ficou em nota de rodapé o seguinte: «De referir que se atribui aos juízos de família e menores a competência para preparar e julgar processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou economia comum – cfr. Artigo 113.º, alínea b) – e acções de investigação da maternidade e paternidade – cfr. Artigo 114.º, n.º 1 alínea l) –, competências que não se encontram actualmente acometidas aos Tribunais de Família e Menores», (DAR II-A, n.º 91, de 03/mai./2008, X Legislatura, 3.ª Sessão Legislativa (2007-2008), p. 31, nota 5).

Mas nada nos diz sobre aquela outra igualmente inovadora cláusula geral de atribuição de competência dos Tribunais de Família e Menores.

Também a Proposta de Lei n.º 114/XII, que está na antecâmara da atual LOSJ, não avança qualquer pista para extroverter o conteúdo e o sentido da anterior inovação legislativa.

O mesmo sucede com o subsequente parecer emitido pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, pois apenas aí se dá conta que uma das linhas centrais da reorganização dos tribunais judiciais de 1.ª instância seria «A promoção de um acentuado aumento da especialização dos tribunais» (DAR II-A, n.º 53, de 19/dez./2012, XII Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa (2012-2013),p. 99).

Pelos vistos o legislador de 2013, com a preocupação de estabelecer a reorganização judiciária, deu por adquirido o conceito de «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família», sem que este antes tenha sido precisado, não observando, em nenhum daqueles momentos de aprovação legislativa, as condições mínimas para se vir a respeitar o princípio da confiança no ato legislativo (9.º, n.º 3 do Código Civil), uma vez que declinou as regras básicas de concisão, simplicidade e clareza instituída pelas boas práticas legislativas, as quais, a nosso ver, implicam uma comunicação prévia ou contemporânea das inovações legislativas, designadamente, a sua razão de ser, o seu conteúdo e sentido (Lei 75/98, de 11/nov., alterada e republicada pela Lei n.º 42/2007, de 24/ago., artigo 13.º, n.º 1 ao exigir uma exposição de motivos; Resolução do Conselho de Ministros n.º 29/2011 (DR I, n.º 131, 11/jul.), Anexo II, artigos 3.º, n.º 1, 2 e 3; 14.º, n.º 1, 3, 5, 17.º, “Regras de Legística a Observar na Elaboração de Actos Normativos da Assembleia da República”, Edição A. R., Lisboa: 2008, pp. 24, 25).

Atento o vindo de dizer, importa então atentar na interpretação que a nível jurídico – doutrinal e jurisprudencial – tem sido efetuada sobre os conceitos jurídicos em causa no segmento normativo «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família».

E vamos fazê-lo com suporte no que já foi expendido quanto a este particular em douto aresto, a saber:

«o termo estado civil usa-se num conceito restrito e num conceito mais lato.

Ana Prata, in Dicionário Jurídico, pág. 509/510, define estado civil, como “uma situação integrada pelo conjunto das qualidades definidoras do estado pessoal que constam obrigatoriamente de registo civil, sendo o estado pessoal a situação jurídica da pessoa, no que toca, entre outras, à idade ( menoridade, maioridade, emancipação), relações familiares ( casado, solteiro, divorciado, viúvo ), relações com o Estado ( nacional, estrangeiro, naturalizado, etc.), à situação jurídica ( interdito, inabilitado )”.

Por outro lado, Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, pág. 96 da 5ª ed., define esse mesmo conceito como a expressão da condição jurídica da pessoa, enquanto maior ou menor, capaz ou incapaz.

Para Neves Ribeiro, in O Estado nos Tribunais, 2ª ed. , 1994, pág. 205, as acções sobre o estado das pessoas pressupõem um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil.

E o assento nº 1/92, DR, nº 134, de 11/06/1996, pág. 2794 entende as acções sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projecta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…)

Já João de Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, pág. 101 e 102 da edição de 1978, alude ao conceito de estado pessoal ou civil, num sentido global que abrange o conjunto de qualidades das pessoas que revistam as características que se inscrevem no registo civil ou que a doutrina repute de relevância jurídica igual à dessas.

Também pode aquele conceito ser usado numa acepção mais particularizada em que se chama estado a cada uma dessas qualidades (estado de filho legítimo, estado de maior, etc.), ou seja, abrangendo apenas as qualidades que resultam da posição face ao matrimónio.

O referido mestre refere como exemplo de um estado civil, o de interdito, porque consta obrigatoriamente do registo civil.

Assim na acepção do conceito mais restrito de estado civil abrange a posição da pessoa face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo) e está usado nomeadamente nos arts. 7º, nºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, nº 1 als. a) e b), 132º, nº 2, e 136º, nº 2 al. a), todos do Código de Registo Civil.

Já o conceito mais amplo de estado civil abrange os factos sujeitos a registo, e está usado no art. 211º do mesmo Cód. de Registo Civil.»[5]

Sem embargo do vindo de dizer, temos que nos diplomas que vêm regulando a competência especializada dos Tribunais de Família – mormente quer na precedente LOFTJ [Lei nº 52/2008, de 28/02], quer na presente LOSJ – se previu sempre como requisito da competência dos mesmos, o conhecimento de ações que versassem o ramo do Direito Civil, Direito da Família.

Sendo aqui que, em nosso entender, se encontra a resposta para a nossa interrogação.

É que a apreciação e decisão da questão jurídica colocada pela ação ajuizada envolve a aplicação de normas de Direito da Família, nomeadamente, as previstas nos artos 1793º (este ex vi do art. 4º, da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio) e 2020º, ambos do C.Civil ], «embora no conceito de família alargada pela evolução das condições sócio-familiares»[6].

Donde a pertinência de integrar a presente ação na previsão da alínea g) do nº 1 do art. 122º da Lei nº 62/2013.

Isto sempre na ponderação que se considerou que a referência na parte final à palavra “família” se tem de entender como referida às ações sobre o “estado civil” das pessoas, ou seja, fazendo qualificar o conceito de “estado civil” no seu uso restrito.

Na verdade, o legislador terá certamente pretendido abranger o caráter fluído e flexível que hoje carateriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe aos laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável, e sabido que as relações familiares não acabam com o divórcio dos progenitores.

Daí que a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família» se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (cf. art. 1576º do C.Civil, Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto e as alterações legislativas daí decorrentes, com destaque para a Lei  nº 7/2001, de 11 de Maio), de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que atualmente tem a família.[7]
            O que tudo serve para dizer que com «ações relativas ao estado civil das pessoas», o legislador utilizou essa expressão, na sua acepção mais restrita, atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, mas sempre no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
[8]

Termos em que, na procedência do recurso, se revoga a decisão recorrida que denegou a competência ao Tribunal em que a ação havia sido instaurada, pois que é nele – Juízo de Família e Menores de Coimbra – que deve prosseguir a competente e subsequente tramitação dos autos.

                                                                       *

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos dos nos 2 e 4, do art. 14º, do DL nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro [“REGULAMENTO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA”], integra a previsão do art. 122º, nº1, al.g), da “LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO” [Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto -  LOSJ].

II – É que, ao aludir a referida al.g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a acções relativas ao “estado civil” das pessoas, o legislador utilizou tal expressão - na sua acepção mais restrita - atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, mas sempre com o sentido e desiderato de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.

*

6 - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se em consequência, o despacho proferido e julgando-se o Tribunal recorrido como o competente para, em razão da matéria, prosseguir os autos.

            Sem custas.

                                                                       *

Coimbra, 31 de Março de 2020   

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

Ana Márcia Vieira


[1] Relator: Des. Luís Cravo
   1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
   2º Adjunto: Des. Ana Vieira
[2] Desconsiderando, por economia processual, o que foi suscitado, em via subsidiária, sob o enquadramento de «conflito negativo de competências entre os Tribunais, e o requerimento para a respetiva resolução».
[3] Através da prolação de decisão que, já se adivinha, foi favorável aos nele recorrentes, e daí ser enfaticamente invocado pelos aqui recorrentes!
[4] Trata-se do acórdão do T. Rel. de Lisboa de 11.12.2018, proferido no proc. nº 590/18.1T8CSC.L1-6, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[5] Trata-se do acórdão do STJ de 13.11.2012, proferido no proc. nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[6] Como pertinazmente se sublinhou no acórdão do STJ de 13.11.2012, referido na antecedente nota.
[7] Neste sentido também o acórdão do T. Rel. do Porto de 05.02.2015, proferido no proc. nº 13857/14.9T8PRT.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[8] Perfilhando esta linha de entendimento vide o já citado acórdão do T. Rel. de Lisboa de 26.04.2016, referido na precedente nota [3].