Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/08.5TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACESSÃO
BOA FÉ
Data do Acordão: 06/22/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 483, 496, 1340, 1341 CC
Sumário: I - O desgosto e a tristeza sofridos pelos donos de um prédio em consequência da sua ocupação ilegítima, são susceptíveis de integrar dano não patrimonial.

II- O conceito de boa fé em matéria de acessão é de natureza psicológica, tal como no domínio da posse.

III - Não constrói de boa fé o interventor que tem conhecimento da existência de um marco a dividir o seu prédio daquele onde efectua a construção.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:


            M (…) e I (…), residentes na Polinésia Francesa, propuseram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, contra MR (…) e JR (…), residentes na Rua (…), Leiria, alegando, em resumo, que:
São proprietários de um prédio composto de casa de habitação e terreno, situado no (…), concelho de Figueiró dos Vinhos, que adquiriram por usucapião.
Os réus, que são proprietários de um outro prédio que com aquele confina, ao realizarem obras no seu, ocuparam, implantando construções, a zona de um anexo e de uma faixa de terreno que identificam, que pertencem ao seu prédio (deles autores), abrindo ainda uma janela, em desconformidade com a lei, que deita directamente sobre este, factos que lhes causaram danos, de natureza patrimonial e não patrimonial, que estimam em, respectivamente, € 5.000,00 e € 3.000,00.
Concluíram, a final, pela procedência da acção, com a condenação dos réus no seguinte:
a) Reconhecer que os autores são os únicos e exclusivos proprietários do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) Abster-se de todo e qualquer acto ou comportamento que ponha em causa o direito dos autores;
c) Retirar, demolindo, todas as construções que erigiram na faixa de terreno identificada no documento 4, a tracejado vermelho, com as letras B e C, que tem a área de 50m2, com as medidas de 3,20 metros de largura por 15,50 metros de comprimento, concretamente um telheiro, uma churrasqueira, muros e pavimentação em cimento da passagem, abrindo-a para a serventia;
d) Tapar a janela que abriram no seu prédio (que na matriz tem o nº...º da freguesia de ..., concelho de Figueiró dos Vinhos), na casa de banho, em violação do disposto no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil;
e) Ressarcir os autores de todos os prejuízos que lhes advieram em consequência dos actos por si perpetrados, contra a respectiva propriedade, e, como consequência, a pagarem-lhes a quantia de € 8.000,00, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros desde a citação;
f) Pagar as custas e procuradoria condigna.
Regularmente citados, os réus contestaram, em breve síntese, assim:
Aceitam que os autores são donos do prédio que identificam, mas desconhecem a respectiva área e, bem assim, os actos de posse que eles alegam.
De todo o modo, a área de terreno reclamada pelos autores é pertença deles (réus), que a adquiriram por usucapião.
Terminaram pela improcedência da acção.
Os autores replicaram, reafirmando a posição assumida na petição inicial.
Foi saneado o processo, com a declaração de validade e regularidade da lide, e seleccionada a matéria de facto relevante para a decisão, relativamente à qual não foram opostas reclamações.
Realizado o julgamento e dadas (sem reparo) as respostas aos pontos de facto da base instrutória, foi proferida sentença que condenou os réus a reconhecer a propriedade dos autores sobre o prédio urbano, composto de casa de habitação, sito no ..., freguesia de ..., concelho de Figueiró dos Vinhos, inscrito na matriz sob o artigo ..., e sobre a faixa de terreno, situada imediatamente a poente da casa, faixa essa com a largura de cerca de três metros e com comprimento não concretamente apurado, mas os absolveu de tudo o mais que lhes foi pedido.
Inconformados, os autores interpuseram recurso e apresentaram a sua alegação, que concluíram desta forma:
1) Em face da prova produzida, deverá ser alterada a resposta ao artigo 2.º da base instrutória, por forma a ser dado por assente que o comprimento da faixa aí referida vai, a sul, até à parede da casa de habitação dos réus.
2) Em razão, ainda, da prova feita, deverão os artigos 42.º e 43.º da base instrutória ser dados por provados, do que decorre a verificação de danos não patrimoniais, valorizáveis, no mínimo, em € 3.000,00.
3) Os réus, ao destruírem o que restava do anexo mencionado na resposta dada ao artigo 2.º da base instrutória e ao procederem à realização de obras nesse solo, pertença dos autores, actuaram de má fé.
4) A sentença recorrida violou as disposições dos artigos 1340.º e 1341.º do Código Civil.
5) Deve a sentença ser alterada, de modo a reconhecer-se a sua propriedade sobre a mencionada faixa de terreno, com o comprimento ora assinalado, e a serem os réus condenados a abster-se de todo e qualquer acto na mesma, a retirar as construções que lá erigiram e a ressarcir os autores no montante de € 3,000,00, referente a danos não patrimoniais.

Os réus/recorridos não responderam à alegação dos autores.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, já que nada a tal obsta.
Em função das conclusões da alegação dos recorrentes, que balizam o âmbito do recurso, são três as questões a resolver:
a) A alteração da matéria de facto.
b) O dano não patrimonial.
c) A construção de boa (ou má) fé.


II. Na sentença apelada foram dados por assentes os seguintes factos:

1) Os Autores, numa escritura de justificação notarial, celebrada em 9.2.07, no Cartório Notarial do Licenciado W..., em ..., declararam ser donos e legítimos possuidores de prédio urbano, composto de casa de habitação, com a superfície coberta de sessenta metros quadrados, sito no ..., freguesia de ..., concelho de Figueiró dos Vinhos, a confrontar do Norte com a serventia, Sul com ..., Nascente com a rua e Poente o próprio, inscrito na matriz sob o art. ... (cf. documento de fls. 17 e ss.) – alínea A), dos factos assentes.
2) Este prédio confronta, pelo seu lado Poente e também pelo lado Sul, com o dos Réus – alínea B), dos factos assentes.
3) Em 1998, os Réus procederam a obras de reestruturação no seu prédio urbano, composto de casa de habitação – alínea C), dos factos assentes.
4) Encontra-se descrito, a favor dos Réus, na Conservatória do Registo Predial de Figueiró dos Vinhos, sob o nº ..., um prédio composto de casa da habitação de rés-do-chão, 1º andar e logradouro em ... ou Courelas de S. Simão, freguesia de ..., com a área coberta de 112 m2 e logradouro de 408 m2, a confrontar do Norte com ..., Nascente rua, Sul com ... e Poente com caminho, inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo ... (cf. documento de fls. 51 e 52) – alínea D), dos factos assentes.
5) A edificação referida em 1) é uma casa de habitação, sendo que, no que se refere à sua superfície coberta, consta da matriz como sendo a de 60 m2 – resposta ao quesito 1º.
6) Imediatamente a Poente da casa referida em 5), existia uma faixa de terreno, com a largura de cerca de três metros, que servia de acesso a um anexo existente a Sul, com a mesma largura e de comprimento não concretamente apurado – resposta ao quesito 2º.
7) Há cerca de 10 anos, os Autores procederam à realização de obras de reabilitação na casa referida em 5), obras essas de extensão não concretamente determinada, mas que incluíram a colocação de um novo telhado, o refazer das juntas das paredes e a substituição de algumas portas e janelas – resposta aos quesitos 3º, 4º, 5º e 6º.
8) Aquando da realização das obras mencionadas em 7), o anexo encontrava-se em ruínas, sendo nesse local ainda visíveis os alicerces de um forno que aí existira anteriormente, junto ao muro da casa e cuja abertura, atravessado esse muro, deitava directamente para o interior da casa referida em 5), na zona da cozinha – resposta ao quesito 7º.
9) Aquando da realização das obras mencionadas em 7), os trabalhadores utilizaram a faixa de terreno, referida supra em 6), como passagem e aí procederam ao despejo de alguns detritos derivados dessas obras – resposta aos quesitos 8º e 9º.
10) Os antepossuidores do prédio referido em 5), há mais de 20, 30, 40 ou 50 anos aí dormiam e recebiam amigos, confeccionavam as suas refeições, criaram os seus filhos – respostas aos quesitos 10º, 11º, e 12º.
11) Até altura não apurada, situada há mais de 40 anos, o anexo mencionado em 6) foi utilizado, pelos antepossuidores da casa referida em 5), para aí fazerem aguardente – resposta ao quesito 13º.
12) Até há cerca de 20 anos, o forno referido em 8) foi utilizado, pelos antepossuidores da casa referida em 5), para aí fazerem pão – resposta ao quesito 14º.
13) Desde data não apurada, situada há mais de 50 anos, os antepossuidores da casa mencionada em 5) utilizaram a faixa de terreno referida em 6) para acederem ao anexo aí mencionado, o que deixou de ocorrer há cerca de 20 anos pelo facto de a casa ter deixado de ser habitada – resposta ao quesito 15º.
14) O referido supra em 10) a 13) ocorreu dia após dia, sempre que foi necessário, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, no convencimento, por parte dos antepossuidores da casa referida na resposta ao quesito 1º, de que exerciam um direito de propriedade que lhes assistia e de que não lesavam o direito de ninguém – resposta aos quesitos 16º, 17º, 18º e 19º.
15) Depois da realização das obras referidas em 3), em altura não determinada, situada no ano de 2002 ou de 2003, os Réus destruíram o que restava do anexo mencionado em 6) e procederam, ocupando o local onde o mesmo esteve implantado e, ainda, a faixa de terreno aí também mencionada, à realização de obras, com edificação de um telheiro, uma churrasqueira, muros e colocando, também, piso em cimento no solo – resposta aos quesitos 20º, 21º e 22º.
16) As obras realizadas pelos Réus, mencionadas em 15), impedem o acesso por parte dos Autores à faixa de terreno onde se encontrava implantado o anexo e a passagem mencionados em 6) – respostas ao quesitos 23º, 35º, 36º e 37º.
17) Em inícios de 2003, o Réu arrancou o marco situado do lado Norte da faixa de terreno e que aí definia, para Poente, a estrema do prédio – resposta ao quesito 24º.
18) Os Réus, aquando da realização das obras, mantiveram uma abertura, com dimensões não concretamente apuradas, no local onde já existia anteriormente, há mais de vinte anos, a qual deita directamente para o local onde se encontrava implantado o anexo referido em 6) – resposta aos quesitos 25º, 26º, 27º, 28º e 29º.
19) Os Autores residem no Tahiti, Polinésia Francesa, e deslocam-se a ... esporadicamente, só tendo tido conhecimento directo das obras realizadas pelos Réus em 2006, quando se deslocaram de férias a Portugal – respostas aos quesitos 30º, 31º e 32º.
20) O topo do telhado do telheiro edificado pelos Réus, a que se alude supra em 15), situa-se a um nível superior ao dos peitoris das janelas da casa referida em 5), que deitam, nesse local, para Poente – resposta aos quesitos 44º e 45º.
21) Com exclusão do anexo e faixa de terreno mencionados supra em 6), os Réus, por si e antepossuidores, durante mais de 20 anos e até mais de 40 ou 50 anos, sempre cuidaram de todo o prédio referido em 4), amanhando-o, cavando-o, semeando-o e colhendo os respectivos frutos e produtos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, ininterruptamente e com a consciência de que o prédio lhes pertencia – respostas aos quesitos 46º, 47º, 48º, 49º, 50º e 51º.


III. O direito:

            a) A alteração da matéria de facto

            (…) .

            Deste modo, manter-se-á a resposta negativa ao quesito 42.º, mas alterar-se-á a resposta ao artigo 43.º, que passará a ser do seguinte teor:

            “Provado, apenas, que ficaram desgostosos e tristes”.

            b) O dano não patrimonial

            Os autores pediram que os réus fossem condenados a pagar-lhes a importância de € 3.000,00, a título de dano não patrimonial, alegando que, quando viram as construções efectuadas pelos réus no discutido terreno, perderam o gosto pela sua casa de habitação e ficaram desgostosos, tristes e psicologicamente abatidos.

            A 1.ª instância, admitindo, embora, em tese, a possibilidade de a violação do direito de propriedade dar origem a danos indemnizáveis, desconsiderou o pedido, pela circunstância de se não terem provado os factos em que o mesmo assentava.

            Os autores reiteraram a sua pretensão no recurso, na perspectiva de ser alterada a matéria de facto, que, previamente, requereram.

            Nesta parte, lograram êxito parcial, pois que, por via da alteração da resposta ao artigo 43.º da base instrutória, veio a ser dado por provado que “ficaram desgostosos e tristes”.

            Consoante o disposto no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil (diploma de que serão todos os preceitos doravante citados sem indicação de origem), a obrigação de indemnizar depende da verificação de cinco pressupostos: facto voluntário do lesante, ilicitude, nexo de imputação do facto ao lesante (culpa), dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano (Prof. Antunes Varela, Das Obrigações Em Geral, 7.ª edição, pág. 517 e seguintes).

            No caso, não sofrem dúvida os três primeiros, visto que os réus erigiram uma construção em terreno alheio, violando, assim, um direito absoluto (como o é o de propriedade – artigo 1305.º), apesar de saberem que tal terreno lhes não pertencia, uma vez que, como consta da matéria de facto provada – ponto 17) – existia um marco (que eles, aliás, arrancaram) a definir a extrema entre o seu prédio e o prédio dos autores. A intenção de realizar o facto ilícito (dolo directo) parece incontestável.

Em qualquer caso, nunca faltaria a mera culpa (entendida esta, na esteira do Prof. Antunes Varela, como a omissão do dever de diligência – obra referida, pág. 566), na medida em que os réus se não rodearam das cautelas que as circunstâncias do caso exigiam, mormente a de efectuar uma indagação séria acerca dos limites dos prédios.

Nenhuma pessoa medianamente sensata e prudente e, muito menos, um bom pai de família (artigo 487.º, n.º 2) ignoraria um marco e o que ele significava.

            A questão está, portanto, na existência do dano e, existindo ele, no apontado nexo de causalidade.

            Danos não patrimoniais indemnizáveis são, somente, aqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1) e quantificam-se com arrimo na equidade, mas sem esquecer as concretas incidências da situação, de que avultam o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica, bem como a do lesado e quaisquer outras que se tenha apurado (artigo 494.º).

            A gravidade, requisito básico do dano, “há-de medir-se por um padrão objectivo …, e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada). Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (Prof. Antunes Varela, ob. cit., 600).

            Tarefa difícil, portanto, esta, em face do rigor da lei, a de determinar o que seja suficientemente grave para merecer a tutela do direito. O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 12.02.2009, remeteu para as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida (processo n.º 08B4010, acessível em www.dgsi.pt).

            Quanto à valorização, escreve o Prof. Antunes Varela que “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” (obra citada, página 602).

No seu cálculo intervém, sobretudo, critérios de equidade (mas fundados nas circunstâncias do caso concreto), de proporcionalidade (em função da gravidade do dano), de prudência, de senso prático, de ponderação das realidades da vida (Professores Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4.ª edição, pág. 449).

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, particularmente vasta em matéria de acidentes de viação, mas cujos princípios são, naturalmente, aplicáveis noutros âmbitos, tem entendido que a indemnização, ou compensação, deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não podendo, por isso, ser miserabilista, antes significativa (acórdãos de 25.06.02, CJ/STJ, Ano X, Tomo II, pág. 128), e de 12.03.09, disponível em www.dgsi.pt).

Aqui chegados, é altura de perguntar se, na realidade, os autores sofreram danos merecedores da tutela do direito.

Julgamos que a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Não obstante a parcimónia da matéria de facto provada – desgosto e tristeza, devido à conduta dos réus – parecer revestir-se de carácter vago e genérico, a verdade é que a ponderação dos critérios enunciados no citado acórdão do STJ, de 12.03.2009, nos reconduz a um cenário real de existência de danos.

De um modo geral, a propriedade imobiliária representa muito para o comum das pessoas. Por maioria de razão, haverá de ter um significado relevante para quem a procura longe do local da sua residência. Não é de ânimo leve que se investe num bem que só se usufrui de longe em longe. Pense-se, agora, no que sentirá uma pessoa que vive a milhares de quilómetros de distância (recorde-se que os autores residem na Polinésia Francesa) e que cujas deslocações a Portugal são raras (pelo menos, por enquanto), o que lhe limita, obviamente, a capacidade prática de acção, ao saber que lhe usurparam parte da propriedade. A angústia não há-de ser pequena. É que nos diz o bom senso, a realidade da vida, a normalidade das coisas.

A situação é suficientemente grave para merecer tutela jurídica. É, por outro lado, certo que os autores não teriam sofrido os danos se não fosse a conduta dos réus; o que vale dizer que o facto é causal do dano (artigo 563.º) e que se verificam, por conseguinte, todos os pressupostos da obrigação de indemnizar.

No que concerne ao valor da indemnização, afigura-se ser algo elevado o pretendido pelos autores.

No mencionado acórdão do Supremo de 12.03.2009, em que se provou que os lesados tiveram falta de sossego e de tranquilidade e sofreram ansiedade, ausência de bem estar físico e psíquico durante sete meses, devido a ruído e vibrações provocados por rebentamentos de rocha com material explosivo, três a quatro vezes por dia, a escassas centenas de metros da respectiva residência, foi arbitrada a quantia de € 2.500,00. No acórdão do mesmo Tribunal, de 03.12.2009, em que o lesado passou por preocupações, ansiedade e angústia, por força da não formalização de um negócio que os demandados prometeram realizar, a indemnização foi de € 4.000,00 (processo 177/05.9TBFNV.C1.S1). E no acórdão, ainda, do Supremo, de 29.04.2009, em que uma trabalhadora padeceu de tristeza e de mágoa, que originaram um estado depressivo de constante angústia e ansiedade, ficando afectada psicologicamente, por não ter sido transferida de local de trabalho, como devia, fixou-se um montante indemnizatório de € 5.000,00 (processo 08S3081).

O quadro da presente situação, afigura-se menos grave do que o relatado naqueles acórdãos, em face, pelo menos, da matéria de facto a que se chegou. Desgosto e tristeza não é o mesmo que ansiedade, angústia, depressão e ausência de bem estar físico e psíquico. Daí que a indemnização deva ser menor do que a ali atribuída, julgando-se mais equilibrado e consentâneo com a realidade fáctico-jurídica o montante de € 1.500,00.

Que vencerá juros a partir desta decisão e não da citação, conforme os autores pediram, uma vez que se trata de montante actualizado.

c) A construção de boa (ou má) fé

Na sentença recorrida decidiu-se, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre a faixa de terreno em apreço, que o pedido de restituição da mesma e consequente demolição da construção nela efectuada não podia proceder, por se verificarem os requisitos da acessão industrial imobiliária, prevista no artigo 1340.º.

Os autores aceitaram a existência desses requisitos, excepção feita à boa fé. Na sua óptica, os réus não desconheciam que o terreno era alheio, o que remete a sua conduta para a disciplina do artigo 1341.º, do que deriva a legalidade da exigência de desmantelamento da construção.

 Nos termos do artigo 1340.º, se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio e o valor que a obra tiver trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras (n.º 1). Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação (n.º 2). Se o valor acrescentado for menor, a obra pertence ao dono do terreno, com obrigação de indemnizar o autor dela do valor que tinha ao tempo da incorporação (n.º 3). Existe boa fé se o autor da obra desconhecia que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno a fazer a incorporação (n.º4).

Retira-se, deste normativo, que são quatro os elementos constitutivos da acessão industrial imobiliária: a incorporação de obra num terreno; a pertença originária dos materiais ao autor da incorporação; a natureza alheia do terreno em que é feita a incorporação; a boa fé do autor da incorporação (acórdãos do STJ, de 06.07.2006 e de 08.11.2007, processo 05A4270 e 07B3545, respectivamente, ambos em www.dgsi.pt).

Como se disse, só a boa fé foi trazida à discussão, não tendo merecido reparos os demais elementos da acessão.

A boa fé consiste no desconhecimento de ser alheio o terreno em que foi feita a incorporação (ou, também, em haver autorização para ela pelo dono do terreno, situação que não está aqui em causa).

O conceito de boa fé nesta matéria, elucidam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, não diverge do adoptado no âmbito da posse (artigo 1260.º, n.º 1), sendo de natureza psicológica: haverá boa fé quando se ignora que se está a lesar os direitos de outrem, sem que a lei entre em indagações sobre a desculpabilidade ou censurabilidade da sua ignorância (obra citada, volume III, anotação aos artigos 1340.º e 1260.º).

No mesmo sentido se pronuncia o Ex.mo Conselheiro Quirino Soares, que esclarece que a uniformização dos conceitos de boa fé em matéria de acessão e de posse vinha já do Código de Seabra, pelo menos desde que o Assento do STJ, de 28.11.1969, interpretou o corpo do artigo 2306.º deste último diploma no sentido de que a boa fé, nele referida, tinha o conteúdo definido no artigo 476.º. Segundo este ilustre magistrado, o desconhecimento a que alude o n.º 4 do artigo 1340.º engloba o originado por erro grosseiro. Se o autor da incorporação desconfiava que o terreno era alheio e não procurou informar-se, não pode ser considerado de boa fé; mas, se não desconfiava, e, por isso, omitiu diligência, ao alcance de pessoa do seu nível sócio-cultural, que o informaria sobre a verdadeira situação do terreno, nem, por tal, deve ser tido por interventor de má fé. E conclui dever tratar-se de um genuíno convencimento, como tal incompatível com a mais pequena dúvida não resolvida (Acessão e Benfeitorias, CJ/STJ, Ano 1V, Tomo I, páginas 19/20).

E é por aí que segue, também, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdãos de 06.07.2006 e de 08.11.2007, acima referidos).

De modo que a solução para o problema que nos ocupa está em saber se os réus estavam genuinamente convencidos de que o terreno onde implantaram a construção lhes pertencia.

A sentença impugnada concluiu que sim, porque o terreno estava desocupado desde há cerca de 20 anos, sendo que só há 10 anos os autores procederam obras de reabilitação na casa de habitação, mas sem tocar no anexo, que estava em ruínas. Ou seja, não ocorria a prática de actos efectivos de posse por parte dos autores, pelo que só com dificuldade se poderia dizer que os réus, ao fazerem as construções, tivessem consciência de que o prédio era alheio, para o que não releva o facto, desacompanhado de outra prova, de o réu, em inícios de 2003, ter arrancado o marco situado do lado norte da faixa de terreno. A situação de abandono em que a faixa se encontrava torna aceitável a tese de que os réus estivessem convencidos de que a mesma lhes pertencia.

Mas não parece que seja essa a melhor interpretação da questão, quando observada a cronologia dos acontecimentos:

Os réus e seus antepossuidores nunca cuidaram, seja do anexo, seja da faixa de terreno que lhe dava acesso.
Em 1998, os réus procederam a obras de reestruturação no seu prédio urbano, composto de casa de habitação, mas sem fazer o que quer que fosse na faixa e anexo.
Posteriormente a isso, os autores reabilitaram a respectiva casa, nomeadamente, colocando um novo telhado, refazendo as juntas das paredes e substituindo algumas portas e janelas.
Aquando dessa obras, os trabalhadores utilizaram a parcela de terreno em causa como passagem e como local de despejo de detritos daquelas.
Na altura, o anexo encontrava-se em ruínas, sendo visíveis os alicerces de um forno que aí existira, junto ao muro da casa, cuja abertura, atravessado esse muro, deitava directamente para o interior da casa referida, na zona da cozinha.
Em momento não apurado do ano de 2002 ou de 2003, portanto, após as obras realizadas pelos autores, os réus destruíram o que restava do anexo e edificaram, no lugar que este ocupava e na falada faixa de terreno, diversas construções, que incluíram um telheiro, uma churrasqueira, muros e piso em cimento no solo.
Em princípios de 2003, o réu arrancou o marco situado do lado norte da faixa de terreno, que aí definia para poente (isto é, para o lado dos réus), a estrema do prédio.

Visto isto. Os réus foram os primeiros a fazer obras no seu prédio, mas sem tocarem na parcela de terreno ajuizada. Só depois disso, os autores reabilitaram a sua casa e estes, sim, ocuparam-na, seja como passagem, seja como depósito de detritos das obras. Não consta (na matéria de facto não está) que os réus se tenham oposto a tanto. E, no entanto, não poderiam ter deixado de observar as obras efectuadas e a ocupação que foi feita do terreno. Parece significar isso, à luz da razoabilidade das coisas, que não consideravam o anexo e a faixa de terreno como coisa sua.
Ideia que mais se reforça, quando se sabe que a boca do forno existente no anexo entrava directamente na casa dos autores e que, em princípios de 2003, apesar de avisado pela testemunha (…) (cf. o resumo do seu depoimento acima transcrito) para não o fazer, o réu arrancou o marco que separava a sua propriedade da propriedade dos autores.
Não é, portanto, inteiramente exacto que a faixa estivesse ao abandono há cerca de 20 anos, porquanto foi ocupada durante o período da realização de obras pelos autores (o que, aliás, também não poderia ter o alcance que lhe é dado na sentença, sob pena de se legitimar qualquer pessoa a ocupar os prédios aparentemente abandonados, que são muitos, hoje em dia, no nosso país).
Mas, ainda que assim fosse, não se vê como poderiam os réus convencer-se de que o terreno era seu, quando existia um marco a definir a propriedade.
No mínimo, este facto teria de lançar mais do que fundadas dúvidas no seu espírito acerca da pertença do domínio e levá-los a efectuar diligências tendentes à sua resolução. Preferiram, porém, avançar com as obras, confiados, porventura, na eficácia da política do acto consumado e na ausência dos autores no outro lado do mundo.
Retornando ao trabalho do Ex.mo Conselheiro Quirino Soares, o convencimento genuíno é incompatível com a mais pequena dúvida não resolvida.
Em conclusão, os réus não ignoravam que o terreno onde construíram lhes não pertencia, logo, agiram de má fé, pelo que assiste aos autores, declarados, sem contestação, donos do mesmo, o direito de exigir a sua devolução e a destruição das construções nele edificadas.


IV. Em síntese:

1) A matéria de facto só pode ser alterada pela Relação se tiver ocorrido erro de raciocínio na apreciação e valorização das provas.
2) O desgosto e a tristeza sofridos pelos donos de um prédio em consequência da sua ocupação ilegítima, são susceptíveis de integrar dano não patrimonial.
3) O conceito de boa fé em matéria de acessão é de natureza psicológica, tal como no domínio da posse.
4) Não constrói de boa fé o interventor que tem conhecimento da existência de um marco a dividir o seu prédio daquele onde efectua a construção.


V. Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, nos termos acima enunciados, em consequência do que se revoga, em parte, a sentença, condenando-se os réus a:
1) Reconhecer que os autores são donos faixa de terreno situada imediatamente a poente da casa referida em 1) da matéria de facto, faixa essa com a largura de cerca de três metros, que se prolonga, para sul, até à parede da casa de habitação dos réus.
2) Abster-se da prática de qualquer acto sobre a faixa de terreno antes referida.
3) Retirar, demolindo, todas as construções que erigiram na dita faixa de terreno.
4) Pagar aos autores a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, a contar deste acórdão.
Mantém-se, no mais, a sentença, nomeadamente no que se refere à condenação dos réus a reconhecer que os autores são donos do prédio composto por casa de habitação, sito no ..., freguesia de ..., concelho de Figueiró dos Vinhos, inscrito na matriz sob o artigo ....
Custas em ambas as instâncias por recorrentes e recorridos na proporção de 1/5 para aqueles e de 4/5 para estes.