Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
315/10.0TBTND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PRESSUPOSTOS
PRESUNÇÃO
ILISÃO
DEVEDOR
Data do Acordão: 10/26/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TONDELA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, NºS 1, 2 E 3; ALS. A), B), F) E G) DO ARTº 20º; 30º, Nº 3, DO CIRE DO CIRE
Sumário: I – A situação de insolvência, pressuposto da declaração de insolvência, consiste, em geral, na impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, indiciada por certos factos – o que corresponde a uma impossibilidade de cumprir pontualmente as respectivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito – artº 3º, nº 1, do CIRE.

II – A doutrina tem entendido que a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se, apenas, que a dívida pelo seu montante e pelo seu significado, no âmbito do passivo do devedor, seja reveladora da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.

III – Pelo nº 2 do artº 3º do CIRE as sociedades de responsabilidade limitada são também consideradas insolventes quando seja o seu passivo manifestamente superior ao activo, um e outro avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis. Mas diz o nº 3 do mesmo preceito que essa norma deixa de se aplicar quando o activo seja superior ao passivo, um e outro avaliados segundo as regras das als. a), b) e c).

IV – A falta de pagamentos atempados, enquanto expressão mais comum da insusceptíbilidade de cumprimento das obrigações vencidas que caracteriza nuclearmente a situação da insolvência, continua a ser um dos factos em que é legítimo aos credores fundarem a abertura da instância de insolvência, facto-índice que se desdobra pelas als. a), b), f) e g) do artº 20ºdo CIRE.

V – Caberá, então, ao devedor ilidir os factos presuntivos da insolvência estabelecidos nesse artº 20º, provando a inexistência do facto em que se fundamenta o pedido, ou a inexistência da situação de insolvência, não obstante a ocorrência do facto – artº 30º, nº 3 do CIRE.

Decisão Texto Integral:          ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

        

I- RELATÓRIO

         I.1- A... B... e C... , todos residentes em ....., requereram em 22.6.2010 que a sociedade «D...., Ldª», com sede em ..., fosse declarada insolvente nos termos dos arts.3º e 20º do C.I.R.E. (como os demais a citar sem menção de origem).

         Para fundamentar este pedido, em síntese alegaram: que são credores da sociedade requerida em montante de 85.578,37 €, proveniente de indemnização pela resolução com justa causa dos contratos de trabalho que com ela celebraram; que a requerida está em dívida em montantes elevados para com vários fornecedores, bem como à Segurança Social, Finanças, bancos «...», « ...» e « ...», e encontra-se em incumprimento perante todos os trabalhadores, devendo ao vendedor E... os salários de mais de um ano; mantém apenas em actividade o sector de reparação de automóvel, cingindo-se o seu património ao imóvel onde tem instalado os escritórios e a oficina de reparação.

Concluem afirmando que a requerida não tem viabilidade económica, encontrando-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações económicas.

         A requerida deduziu oposição, sustentando, em resumo, que detém algumas dificuldades de tesouraria mas, à parte do débito dos funcionários, não detém quaisquer outras dívidas, estando a cumprir todas as suas obrigações, nomeadamente a fornecedores, banca e Estado, nunca tendo estado em causa o pagamento de salários. Mas alega que os requerentes tinham conhecimento do sólido património da empresa, e sabiam que o único problema era de natureza financeira, estando a decorrer um processo de financiamento que aguarda aprovação. Conclui dizendo que actuaram com dolo, devendo por isso serem condenados a indemnizar a requerida nos termos do art.22º daquele diploma.

         I.2- Em 22.7.10 teve lugar a audiência de julgamento, e em 2.8.10 proferiu-se sentença, na qual, e com base nos factos julgados provados, se declarou insolvente a sociedade.  

         Inconformada, a requerida apelou, concluindo assim as suas alegações de recurso:

[…]

         I.3- Os requerentes contra-alegaram, pedindo a rectificação do total dos seus créditos para o valor de 78.058,44 €, por ter ocorrido erro de cálculo na sentença ao indicar-se o montante de 63.518,26 €, e pugnando pelo improvimento do recurso.

         Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.

                                               #                #

         II - FUNDAMENTOS

         II.1 - de facto

         A sentença assentou na seguinte factualidade, não impugnada:

         1. A requerida « D..., Ldª», é uma sociedade comercial por quotas com sede na ..., pessoa colectiva n° ..., matriculada com o mesmo número de pessoa colectiva na Conservatória do Registo Comercial de ...., correspondente à anterior matricula n° ..., com o capital social de 501.000,00 €, que se dedica ao comércio de viaturas automóveis, novas e usados, venda de peças e acessórios auto e garagem de assistência e reparação de viaturas;

2. O seu capital social ascende a 501.000,00 € e está distribuído por quatro quotas, sendo duas, no valor nominal de 83.500,00 € cada, e outras duas no valor nominal de 167.000,00 € cada;

3. A actividade económica da requerida insere-se no CAE 45110.

4. A gerência da sociedade está cometida aos seus dois únicos sócios, F... e G..., a partir de Outubro 2009;

5. Tem a sua sede e instalações, quer de venda, quer de reparação, na Av. Dr. ..., n° ..., nesta cidade de ..., instalações essas que são da sua propriedade;

6. Decorrente de contrato válido e em vigor, a Requerida possui o estatuto de agente oficial da marca “ ...” e de Reparador Autorizado;

7. Os requerentes foram trabalhadores da requerida;

8. A... foi admitida ao serviço sob a autoridade, direcção fiscalização da requerida em 1 de Novembro de 1994 para exercer as funções de escriturária;

9. Deixou de prestar trabalho em 2 de Fevereiro de 2010, com o último salário processado em Abril de 2009 m valor de 476,40 €;

 10. Além do vencimento base a 1ª Ré pagava ainda à 1ª Requerente 41,90€ a título de ajudas de custo;

11. Por carta registada datada de 1 de Fevereiro de 2010 e recebida pela Requerida em 2 do mesmo mês e ano, a Requerente comunicou à Requerida que iria resolver o contrato de trabalho, com justa causa, porque a Ré não lhe pagou os salários dos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2009 e Janeiro de 2010 e não lhe pagou os subsídios de Natal de 2009;

12. A Requerida não pagou à 1ª Requerente as férias de 2008 vencidas em 1.01.2009 no montante de 476,40 €;

13. Não lhe pagou o subsídio de férias de 2008 vencido em 1.01.2009 no montante de 476,40 €;

14.Não recebeu A... o subsídio de Natal de 2009 no valor de 476,40 €;

15.Não recebeu também a quantia de €476,40 relativa às férias de 2009 vencidas em 1.01.2010; 476,40 € relativa ao respectivo subsídio vencido em 1.01.2010; 119,10 € relativa ás férias, subsídio de férias e de Natal de 2010 proporcionais ao tempo de trabalho no mês de Janeiro de 2010;

16. B... foi admitida ao serviço, para, sob a autoridade, direcção e fiscalização da Requerida, em 1 de Setembro de 1994 exercer as funções de administrativa com o último salário processado em Abril de 2009 no valor de 476,40 €;

17. Além do vencimento base a Requerida pagava ainda à 2ª Requerente 156,62 € a título de ajudas de custo;

18. O montante pago de 156,62 € integrava sempre o pagamento das férias, subsídio de férias e de Natal;

19. Por carta registada datada de 1 de Fevereiro de 2010 e recebida pela Requerida em 2 do mesmo mês e ano a B... declarou resolver, com justa causa o contrato de trabalho, porque a Requerida não lhe pagou; os salários dos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro. Outubro, Novembro e Dezembro de 2009 e Janeiro de 2010 e não lhe pagou os subsídios de Natal de 2009;

20. A Requerida não pagou à 2ª Requerente as férias de 2008 vencidas em 1.01.2009 no montante de 603,02 €;

21. E não lhe pagaram também o subsídio de férias de 2008 vencido em 1.01.2009 no montante de 603.02 €;

22. Do subsídio de Natal de 2009 devem-lhe os Réus 603,02 €;

23. B... não recebeu 603,02 € relativa às férias de 2009 vencidas em 1.01.2010; 603,02 € referente ao respectivo subsídio vencido em 1.01.2010; 150,75 € relativa às férias, subsídio de férias e de Natal de 2010 proporcionais ao tempo de trabalho no mês de Janeiro de 2010;

24. C... foi admitido ao serviço em 1 de Agosto de 1990 para, sob a autoridade, direcção e fiscalização da requerida, exercer as funções de administrativo, com o último salário processado em Fevereiro de 2009 no valor de 850,00 €;

25. Além do vencimento base a Requerida pagava ainda ao 3° Requerente 203,36 € a título de ajudas de custo;

26. O montante pago de 203.36 € integrava sempre o pagamento das férias, subsídio de férias e de Natal;

27. Por carta registada datada de 7 de Dezembro de 2009 e recebida pela Requerida em 8 do mesmo mês e ano, C... declarou resolver, com justa causa, o contrato de trabalho porque a Requerida não lhe pagou os salários dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e não lhe pagou o subsídio de Natal de 2009;

28.A Requerida não pagou ao 3° Requerente as férias de 2008 vencidas em 1.01.2009 no montante de 1.053,36 €;

 29. E não lhe pagaram também o subsídio de férias de 2008 vencido em 1.01.2009 no montante de 1.053,36 €;

30. Do subsídio de Natal de 2009 devem-lhe os Réus 1.053,36 €;

31. A B... a Requerida não pagou as seguintes quantias: 1.053,36 € a título de férias de 2009, proporcionais ao tempo de serviço prestado; 1.053,36 € subsídio de férias de 2009, proporcional ao tempo de serviço prestado;

32. Os requerentes A..., B... e C...., desempenhavam a suas funções de escriturárias e administrativo, respectivamente, na sede da Requerida sita na Av. Dr. ..., ...;

33. A requerida encontra-se em incumprimento perante todos os trabalhadores a quem deve vários meses de salários, férias, subsídio de férias e de Natal de 2008 e 2009;

34. A requerida deve aos seus vendedores, de viaturas novas e usadas, comissões das vendas efectuadas, pelos mesmos;

35. A requerida é devedora ao seu funcionário da área comercial, E..., de crédito correspondente a 1 ano de salário;

36. A Requerida tem actividade comercial, tendo ao seu serviço 17 trabalhadores declarados;

37. Os resultados de exercício do primeiro trimestre de 2010 foram superiores aos resultados obtidos em igual período do ano anterior;

38. A requerida declarou que: no exercício da sua actividade, durante o primeiro quadrimestre de 2010 vendeu (adjudicou) viaturas novas, usadas e peças no montante de 511.925,17 € e prestou serviços de assistência e reparação no montante de 106.024,36 €;

39. Não tem dívidas com a Direcção-Geral de Contribuições e Impostos;

40. E é credora porque, resultante de liquidações que tiveram origem em processo e inspecção tributária que a Requerida impugnou judicialmente, veio-lhe a ser reconhecido, por sentença já transitada em julgado, que tais liquidações não eram devidas;

41. A Requerida mantém integralmente regularizada a sua situação contributiva para com a Segurança Social, no que se reporta a prestações sociais;

42. Não resulta dos autos que a requerida tenha obrigações vencidas para com a banca;

43. Deve ao «BANCO ...» a quantia de 118.000,00 €;

44. A requerida tem para com o «BANCO ...» dívidas no valor de 100.000,00 €, valor este que permanentemente oscila dentro daquele máximo valor, decorrente de um financiamento na forma de conta corrente caucionada;

45. Tal financiamento está duplamente garantido perante aquele banco, na forma de caução em dinheiro de igual montante em conta de terceiro, e hipoteca sobre imóvel, também propriedade de terceiro;

46. A Requerente paga mensalmente os juros decorrentes das quantias que utiliza naquela conta, não registando qualquer mora;

47. A Requerida é devedora à sua fornecedora «....» de 200.000,00 €, que se encontra vencido;

48. A Requerida detém em stock, relativamente aquele fornecedor, tractores novos, alfaias agrícolas, peças de reparação e outros acessórios num valor contabilizado de 400.000,00 €;

49. O negócio relativo ao sector agrícola está a ser objecto de exploração autónoma por parte de um ex-sócio da Requerida, e que grande parte daquele crédito da «SAME» virá a ser assumido por terceiro com a transmissão de parte do imobilizado afecto aquele departamento;

50. Sobre a Requerida não pende qualquer acção judicial, seja de que natureza for, declarativa ou executiva, que directa ou indirectamente tenha reflexos na sua situação patrimonial;

51. A aquisição de peças da sua representada « ...», seu maior fornecedor, é, por imposição desta marca, efectuado através da sociedade financeira « ... Gest»;

 52. Com excepção de um ou outro atraso pontual, mas sempre dentro do mesmo período, a Requerida nunca deixou de cumprir com aquela financeira com a sua obrigação de pagamento, nunca tendo sido objecto de qualquer participação de incidente de mora ou incumprimento ao Banco Central;

53. As instalações em que a Requerida labora são da sua propriedade, e sobre as mesmas não incide qualquer ónus ou encargos;

54. Tal imóvel possui uma área total de 5.480 m2, sendo 2.035 m2 de superfície coberta e 3.445 m2 de superfície descoberta;

55. No mesmo tem implantado um edifício destinado a escritórios, stand de vendas, recepção, garagem de recolha e reparação e estação de serviço;

56. Edifício este que foi recentemente reparado e remodelado, com a sua consequente valorização;

57. Em termos meramente matriciais, tal imóvel encontra-se avaliado em 166.035,00 €;

58. O imóvel foi objecto de uma avaliação bancária que lhe atribuiu o valor de 900.000,00€;

59. Os Requerentes têm conhecimento que o imóvel se encontra desonerado, e o 3° Requerente tem conhecimento do valor da avaliação que foi efectuada pelo « ...» no último trimestre do ano transacto;

60. A sociedade declarou ter viaturas no seu imobilizado circulante, com o valor de 18.000,00 €;

61. Consta da contabilidade a existência de um imobilizado corpóreo de valor superior a 533.648,00 €;

62. Acresce que, tem pendente em Tribunal acções para a cobrança de crédito sobre clientes de valor superior a 1.000.000,00 €, há muito tempo;

63. Possui uma carteira de clientes “frotistas” que lhe asseguram de forma permanente encomendas e trabalho na prestação de serviços de assistência e reparação de veículos;

 64. Declarou a requerida que no ano de 2010 vendas (adjudicação) de viaturas novas, numa média de 10 por mês, que gerou um crédito de comissões líquidas de 54.819,24 €;

65. Resulta da contabilidade que, na prestação de serviços, a Requerida teve um aumento de vendas do ano de 2008 para 2009, no montante de 28%;

66. A Requerida deixou de ser concessionário « ...» em 31/12/2007;

67. Tal alteração não se prendeu com a cessação da relação comercial com a marca, que ainda hoje subsiste, tão pouco com as condições particulares da Requerida, mas tão só com a alteração da política comercial da marca « ...»;

68. Esta alteração não foi específica da Requerida pois, pela mesma, ainda que de forma gradual, foram abrangidos mais de 50% dos concessionários, com especial incidência nos concelhos mais pequenos;

69. Decorrente daquela alteração a Requerida deixou de proceder a vendas directas ao cliente final, passando a exercer a função de agente e adjudicante, e as viaturas são vendidas (diga-se facturadas) pelo distribuidor de Coimbra;

70. Contudo, quem processa toda a documentação e procede à entrega dos veículos novos, é a Requerida;

71. Ou seja, a Requerida vende por conta do distribuidor;

72. Recebendo deste uma comissão;

73. Ou seja, regista uma diminuição do volume de vendas porque não é ela que factura as viaturas novas vendidas aos clientes finais, mas regista um aumento dos proveitos pois, para além de receber a mesma margem de comercialização, não tem empate de capital próprio ou de recorrer a financiamentos na aquisição das viaturas;

74. Quanto à assistência técnica e reparação de viaturas, mantém o seu estatuto de “Reparador Autorizado ...”;

75. A Requerida desenvolvia ainda o negócio de venda e reparação de tractores, máquinas e alfaias agrícolas;

             76. Negócio que era explorado em instalações arrendadas no lugar de Adiça;

77. O retorno do investimento era praticamente nulo, constituía o sector com maior percentagem de incobráveis;

78. A requerida tem um crédito para com a sociedade «...» no montante de 500.000,00 €;

79. A requerida no ano de 2009 requereu um financiamento bancário que não foi aprovado;

80. No ano de 2009 foi requerida a insolvência por um outro funcionário da Requerida que se despediu em situação análoga ao dos aqui Requerentes, que correu termos neste Tribunal, e que conheceu o seu termo por desistência do pedido;

81. Não obstante, aquele processo não passou despercebido ao « ...», banco que se dispunha a financiar a requerida.

         II.2 - de direito

         A sentença deferiu o pedido de declaração de insolvência da empresa « D..., Ldª» fundando-se no montante do crédito total dos requerentes sobre a requerida, no facto de outros trabalhadores terem créditos laborais sobre a mesma, e ainda na dívida confessada de 418.000,00 €. Fazendo-se notar que a mora no pagamento dos salários é um elemento suficientemente indiciador da incapacidade de gerar receitas adequadas a saldar as suas obrigações, concluiu-se, face ao disposto no art.3º/1 e 3, que a sociedade requerida encontra-se em situação de insolvência.

         Contra este entendimento insurge-se a ora recorrente, e cremos que com razão.

         Vejamos.

         Mas antes, há que dar razão aos recorridos quanto ao montante dos seus créditos sobre a empresa calculado na sentença, questão que suscitam nas contra-alegações. Na verdade, lendo a sentença a este respeito, não se questionando a forma de cálculo dos créditos salariais e demais retribuições devidas, facilmente se detecta um erro na soma do crédito de cada um dos recorridos. Assim, perfaz um total de 14.692,77 €, 18.352,09 € e 45.013,58 €, o crédito de A..., B... e C..., respectivamente, sendo a requerida devedora a estes ex-trabalhadores no montante de 78.058,44 €.

         Feita a rectificação, entremos na análise do recurso.

         Conforme decorre do estatuído naquele art.3º/1, a situação de insolvência, pressuposto da declaração de insolvência, consiste em geral na impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, indiciada por certos factos. Tal corresponde a uma impossibilidade de cumprir pontualmente as respectivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito.[1]

         A doutrina tem entendido que a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que a dívida pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor seja reveladora da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.[2]

         Pelo nº2 do referido art.3º, as sociedades de responsabilidade limitada são também consideradas insolventes quando seja o seu passivo manifestamente superior ao activo, um e outro avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis. Mas, diz o nº3 do mesmo preceito, esta norma deixa de se aplicar quando o activo seja superior ao passivo, um e outros avaliados segundo as regras constantes das als.a), b) e c).

         Consoante atrás se referiu, a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, só poderá ser indiciada por certos factos.

         Na verdade, quando a declaração de insolvência seja requerida por uma entidade diversa do devedor, como é o caso, para além de a sua legitimidade estar condicionada à verificação de certas situações elencadas nas als.a) a h) do nº1 do art.20º, a verificação dessas situações é condição suficiente da declaração de insolvência, como resulta dos arts.30º/5 e 35º/4.

Os factos referidos nessas alíneas constituem meros índices da situação de insolvência, tal como definida no art.3º, a qual tem de ficar demonstrada no processo.[3]

Conforme salientam L. Carvalho Fernandes e J. Labareda, a falta de pagamento atempado, enquanto expressão mais comum da insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas que caracteriza nuclearmente a situação da insolvência, continua a ser um dos factos em que é legítimo aos credores fundarem a abertura da instância, facto-índice que se desdobra pelas als.a), b), f) e g) do art.20º.[4]

Caberá então ao devedor, ilidir os factos presuntivos da insolvência estabelecidos nesse art.20º, provando a inexistência do facto em que se fundamenta o pedido, ou a inexistência da situação de insolvência, não obstante a ocorrência do facto (art.30º/3).

Expostos estes princípios e descendo à hipótese em análise, os requerentes fundam a legitimidade para o pedido de insolvência no art.20º, mas sem indicação de qualquer um dos factos aí enunciados, limitando-se a dizer, no final da petição, terem legitimidade para requerer a declaração de insolvência nos termos desse art.20º, porquanto têm créditos salariais sobre a requerida e esta suspendeu de forma generalizada os pagamentos das suas obrigações vencidas. Só agora em sede de recurso, apontam para as als.b) e g) do nº1 do art.20º a integração dos factos provados.

Como se disse, a sentença fez derivar do disposto no art.3º/1 a situação de insolvência da recorrente, não se fazendo menção de qualquer índice de insolvência julgado verificado com base nos factos considerados provados. Considerou-se, no entanto, como um facto índice marcante, os salários em atraso há mais de 9 meses, para além dos créditos reconhecidos aos requerentes, factos que na perspectiva do decisor são indiciadores da incapacidade da empresa requerida cumprir as suas obrigações vencidas.

Dissemos atrás que os factos enunciados no art.20º/1 aparecem como requisitos de legitimidade para o pedido de insolvência, e também como condição suficiente da declaração da insolvência, como resulta, nomeadamente, do art.35º/4. Com efeito, tendo havido oposição do devedor, é marcada audiência de discussão e julgamento, ditando o juiz para a acta sentença de declaração de insolvência, se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis no nº1 do art.20º.

Na situação presente, percorrendo o leque factual acima descrito, é legítima a conclusão de que nenhum dos factos elencados nas várias alíneas do nº1 do art.20º se mostra verificado.

Os factos alegados pelos requerentes dos quais decorreria a impossibilidade de a empresa devedora cumprir as suas obrigações vencidas, estariam previstos nas als.b) e g)-iii do nº1 do art.20º. Assim, no primeiro caso, é índice da situação de insolvência “a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”; no segundo caso, “o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de…(g)” “dívidas emergentes de contrato de trabalho…(iii).

Á primeira vista, os factos coligidos são reveladores da situação contemplada na al.b), porquanto a sociedade aqui recorrente não vem cumprindo algumas das suas obrigações. Na verdade, está em dívida para com os requerentes no montante de 78.058,44 € desde o início do corrente ano; encontra-se em incumprimento perante todos os trabalhadores a quem deve vários meses de salários, férias, subsídios de férias e de Natal de 2008 e 2009; é devedora a um seu funcionário da área comercial de montantes correspondentes a 1 ano de salários; deve ao «BANCO.» a quantia de 118.000,00 €, e tem dívidas para com o «BANCO ...» no valor de 100.000,00 €; é devedora à fornecedora «....» da quantia de 200.000,00 €.

Todavia, estes factos só constituiriam índice da insolvência se, como resulta da al.b), o incumprimento de uma ou mais obrigações, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, evidencie impossibilidade de pagar. Neste caso, era aos requerentes que cabia alegar e provar essas circunstâncias.

Porém, respeitando uma parte do incumprimento a dívidas emergentes de contrato de trabalho ocorrido nos últimos seis meses anteriores a Junho de 2010 (data da acção), tal facto fundamenta, só por si, sem necessidade de mais complementos, a acção, ficando a empresa devedora com o ónus de demonstrar a inexistência da impossibilidade generalizada de cumprir e, logo, da insolvência.[5]

Ora, tal demonstração foi feita.

Com efeito, resulta dos factos materiais relatados, que a recorrente mantém-se em laboração com 17 trabalhadores; nos primeiros quatro meses de 2010 vendeu viaturas novas, usadas e peças no montante de 511.195,17 € e prestou serviços de assistência e reparação no valor de 106.024,36 €; detém em stock tractores novos, alfaias agrícolas e outros acessórios num valor contabilizado de 400.000,00 €; o imóvel onde labora é propriedade sua, foi avaliado em 900.000,00 €, e sobre ele não incide qualquer ónus ou encargos; tem pendente em tribunal, acções para cobrança de créditos sobre clientes de valor superior a 1.000.000,00 €; possui uma carteira de clientes “frotistas” que lhe asseguram de forma permanente encomendas e trabalho na prestação de serviços de assistência e reparação de veículos; mantém o estatuto de reparador autorizado « ...»; tem um crédito para com a sociedade « ...» no montante de 500.000,00 €; não tem dívidas fiscais, mantendo integralmente regularizada a sua situação contributiva para com a Segurança Social; as dívidas para com o «BANCO ...» estão duplamente garantidas, não registando qualquer mora quanto ao pagamento de juros; não pende contra si qualquer acção judicial, declarativa ou executiva.

Estes elementos, trazidos e demonstrados pela requerida, não deixam de representar um índice seguro de solvabilidade da empresa. Mesmo havendo incumprimento da sua obrigação em relação aos requerentes, da análise daqueles factos não resulta que ela não vai cumprir. Como se disse, a simples demonstração de uma ou mais dívidas não é revelador da impossibilidade de pagar.

Em suma, a recorrente ilidiu a presunção de insolvência reportada à hipótese da al.b) e da al.g)-iii) do nº1 do art.20º, não ocorrendo no caso uma situação de insolvência, tal como definida no art.3º/1 e 2.      

Impõe, por isso, revogar a sentença declaratória de insolvência.

A recorrente insiste na condenação dos requerentes a pagar-lhe a indemnização no montante de 29.500,00 €, nos termos do art.22º, segundo o qual “A dedução de pedido infundado de declaração de insolvência (…) gera responsabilidade civil pelos prejuízos causados ao devedor ou aos credores, mas apenas em caso de dolo”.

A lei é clara: deduzindo em juízo pretensão infundada, o requerente responde civilmente perante o requerido, mas desde que tenha agido com dolo.

Na hipótese vertente, a recorrente alegou mas não provou, a conduta dolosa e os danos sofridos.

O pedido indemnizatório não reúne, pois, condições de procedência.

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III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, na parcial procedência da apelação, em revogar a sentença apelada e, em consequência, indeferir o pedido de declaração de insolvência.

Julga-se ainda improcedente o pedido de indemnização feito pela requerida contra os requerentes.

Custas pelos requerentes e requerida, na proporção de 5/6 e 1/6, respectivamente.


Mª REGINA ROSA (RELATOR)
ARTUR DIAS
JAIME CARLOS FERREIRA

[1]   Cfr. Pedro de Albuquerque, «O Direito», ano 137, III, pág.511
[2]   Cfr. Maria do Rosário Epifânio, «Manual de Direito da Insolvência», pág.20
[3]   Cfr. L. Menezes Leitão, «C.I.R.E. anotado», 2ª ed., pág.58
[4]   «C.I.R.E. anotado», vol.I, pág.132
[5]   Cfr. Carvalho Fernandes e A. Labareda, ob. cit., pág.133