Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
851/14.9TBCLD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
SOCIEDADES COMERCIAIS
DIREITOS SOCIAIS
TRIBUNAL CÍVEL
SECÇÃO DE COMÉRCIO
Data do Acordão: 05/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 60, 64, 65, 77, 89, 96 CPC, 117, 128, 188 LEI Nº 62/2013 DE 28/6
Sumário: 1. Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.

2. Na atribuição de competência especializada ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução.

3. A determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção.

4. Não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais e importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva (no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível.

Decisão Texto Integral:






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
           

            I. Em 21.4.2014, Sociedade de Construção (…), Lda., representada pelos seus sócios-gerentes J (…), intentou a presente acção declarativa comum contra A (…) (1º Réu), L (…) (2º Réu), E (…) (3º Réu), M (…) (4º Réu), S (…) S. A. (5ª Ré), N (…) (6º Réu), F (…) (7º Réu) e A (…) (8ª Ré), pedindo:

            «a) Requer a A., a condenação dos 1º aos 5º RR., por celebração de negócios simulados nos termos dos artigos 240º n.º 1 e 2 e referentes ao contrato promessa de cessão de quotas e dos ditos negócios que tiveram por base este, a consequente transmissão de gerência, que vieram a ser traduzidos nas alienações de bens imóveis titulados por escrituras de compra e venda, e referentes ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 116 da secção Q, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5910/ (...) e ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 45 da secção X, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5900/ (...) , celebrada em 19 de Março de 2014, no Cartório Notarial do Bombarral de M (...) , e exarada de fls. 46 a fls 47v. do livro 29-A e a escritura celebrada na mesma data e Cartório Notarial, exarada do mesmo livro 29-A e a fls. 48 a 49v.; e ao lote de terreno para construção de um armazém, na Rua (...) , freguesia da (...) , em Peniche, inscrito na matriz predial da freguesia de Peniche sob o artigo 4610 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o n.º 1694/ (...) , por escritura celebrada em 28 de Março de 2014 no Cartório Notarial do Bombarral de M (...) exarada de fls. 73 a 74 do Libro 29-A, com os seus legais efeitos;

            b) Requer a A., que seja considerado que os 1º a 5º RR actuaram com reserva mental, nos termos do artigo 244º do CC, com os seus legais efeitos;

            c) Requer a A., sejam o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda já identificadas, incidentes sobre os prédios supra identificados, declarados nulos com fundamento nos vícios simulação e reserva mental, de acordo nos termos dos artigos 286º do CC e 244º n.º 2 do CC;

            d) Requer a A., sejam o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda, incidentes sobre os prédios supra identificados, declarados nulos por oponibilidade, por força do regime constante no artigo 291º n.º 2 do CC e do artigo 17º do CRPredial, e referentes aos 3º, 4º e 5º RR., ou a outros titulares inscritos, que possam vir a ocorrer, entre o levantamento das certidões prediais juntas a esta acção e o registo da mesma, sendo garantido esse direito por chamamento à demanda;

            e) Requer a A., sejam declarados como negócios usurários os actos praticados nos termos do artigo 282º do CC, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram por base este contrato promessa, como a consequente transmissão de gerência e as escrituras de compra e venda entretanto realizadas, referentes aos prédios já supra identificados, pelos RR que neles directa e indirectamente intervieram;

            f) Requer a A. sejam declarados anuláveis por via do citado artigo 282º do CC, anulabilidade essa também declarado por força do constante no artigo 289º do CC, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que o tiveram por base, como a transmissão de gerência e as sequentes escrituras de compra e venda realizadas nos prédios supra identificados e já identificadas;

            g) Requer a A., sejam declarados anuláveis por força do regime constante no artigo 291º n.º 2 do CC e do artigo 17º do CRPredial, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda, que incidem sobre os prédios supra identificados, e referentes aos RR., ou a outros titulares inscritos, que possam vir a ocorrer, entre o levantamento das certidões prediais juntas a esta acção e o registo da mesma, sendo garantido esse direito por chamamento à demanda;

            h) Requer a A., seja efectuado o cancelamento com fundamento em declaração de nulidade ou anulabilidade, pelos vícios acima referidos, de todos os registos prediais sucessivamente realizados, de aquisição e decorrentes das escrituras já identificadas, e celebrados entre o 3º R., e o 4º R, e posteriormente entre o 4º e o 5º RR., e correspondentes aos prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 116 da secção Q, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5910/ (...) , e referentes às Ap. 2237 de 19 de Março de 2014 e Ap. 2836 de 2014/03/19; ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 45 da secção X, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5900/ (...) , e referente às Ap. 2237 de 19 de Março de 2014 e Ap. 2836 de 2014/03/19; e ao prédio urbano - Lote de terreno para construção de um armazém, na Rua (...) , freguesia da (...) , em Peniche, inscrito na matriz predial da freguesia de Peniche sob o artigo 4610 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 1694/ (...) , e referente à Ap. 2096 de 2014/03/28;

            i) E ainda sejam cancelados todos os registos prediais que venham eventualmente a ser realizados após a instauração da presente acção e o registo desta, por via da existência de eventuais pedidos ou requisições de registo não possíveis de localizar, atendendo às novas tecnologias usadas em registos on line e, celebrados entre o levantamento da certidão cujos documentos de certidões prediais serviram de base à instrução do presente processo e o registo da acção, salvaguardando-se o eventual chamamento à demanda de outro ou outros RR.

            j) Requer a A., seja também reconhecido a existência de enriquecimento sem causa de todos os RR e o consequente empobrecimento da A., por se encontrarem preenchidos os pressupostos desta figura, nos termos e para os efeitos do artigo 473º do CC., no entanto a lei faculta à A., meio especifico já supra peticionado de desfazer a deslocação patrimonial, por se tratar de uma figura de aplicação subsidiária conforme o artigo 474º do CC.

            k) E subsidiariamente requer a A., que venha a ser ressarcida de todos os valores resultantes das vendas dos bens imóveis da S (…), Lda., e ainda da diferença correspondente aos valores da avaliação dos bens imóveis que vierem a resultar da peritagem a realizar no âmbito dos presentes autos, e já requerida.

            l) Mais requer seja efectuado o cancelamento dos actos de registo automóvel, do veículo automóvel matrícula (...) LI, marca Mercedes – Benz, supostamente propriedade da ora A., mas que se encontra matriculado no registo automóvel em nome de N (…), ora 6º R, com o número 05543 de 7 de Abril de 2014, com os fundamentos constantes dos artigos 282º e 473º do CC e artigos 5º n.º 1 do CRP, por via do artigo 29º do CRAutomóvel, acto esse de registo celebrados após a escritura de compra e venda datada de 19 de Março de 2014, e ainda o acto a que se reporta o registo de propriedade em nome de A (…), ora 8ª R., com o número 04883 de 25 de Março de 2014, por nunca ter existido transmissão a favor da ora A., como deveria ter ocorrido, a realizar pelo 7º R., F (…), naquela data de 19 de Março de 2014, devendo assim este bem ser entregue à titularidade da A., por constar como meio de pagamento na escritura de compra e venda;

            m) E ainda sejam cancelados todos os registos no registo automóvel, que venham eventualmente a ser realizados após a instauração da presente acção e o registo desta, por via da existência de eventuais pedidos ou requisições de registo não possíveis de localizar, atendendo às novas tecnologias usadas em registos on line e, celebrados entre o levantamento da certidão cujos documentos de certidão de registo automóvel, serviram de base à instrução do presente processo e o registo da acção, salvaguardando-se o eventual chamamento à demanda de outro ou outros RR.

            n) Sejam os restantes 6º, 7º e 8ª RR, a serem condenados no que vier a resultar da produção de prova, tendo presente o facto de terem beneficiado sucessivamente de um bem que serviu com meio de pagamento numa escritura de compra e venda.

            o) Sejam os RR condenados a reconhecer, garantir e respeitar os direitos da A., nos termos em que virem a ser considerados».

            Alegou, em síntese: foi abordada pelos dois primeiros Réus, que representariam um investidor interessado na aquisição do activo e do passivo da A.; foi indicado à A. a pessoa do 3º Réu, o qual adquiriria uma das quotas da A. e indicaria quem poderia comprar outra quota e que assumiria a gerência da A.; o 3º Réu assumiu a gerência da A., seguindo instruções dos 1º e 2º Réus; em 18.02.2014, os sócios da A., J (…) e M (…), outorgaram um contrato-promessa de cessão de quotas em que o primeiro declarou prometer ceder uma quota ao 3º Réu e a segunda declarou ceder uma quota à própria sociedade A. ou a terceiro que o mencionado Réu viesse a indicar; em 19.3.2014, o 3º Réu, representando a A., vendeu imóveis desta ao 4º Réu pelo preço de € 83 000 e pela entrega de uma viatura Mercedes, de matrícula (...) LI, à data propriedade do 7º Réu e que, posteriormente a essa data, passou da propriedade da 8ª Ré para o 6º Réu; nesse mesmo dia, os mesmos prédios foram vendidos pelo 4º Réu à 5ª Ré; estes negócios padecem dos “vícios” indicados na petição inicial (p. i.).

            Por despacho de 30.6.2015, depois de se haver ponderado «que poderá vir a concluir-se que a Autora terá legitimidade para deduzir os pedidos que têm por objecto os imóveis identificados nos autos (vide art.ºs 286º e 242º do CC), mormente sob a égide da simulação, já não nos parece que tenha essa mesma legitimidade no que respeita aos pedidos que se prendem com o contrato promessa de cessão de quotas»[1], foi decidido: «(…) nos termos dos artigos 590º, n.º 2, al. a), e 6º, n.º 2, do CPC, convida-se os AA a, sob pena de ilegitimidade, fazer intervir nos autos, do lado activo, J (…) e M (…)».

            Este despacho foi notificado à Exma. Mandatária da A. e a cinco Exmos. Mandatários constituídos pelos Réus (cf. fls. 47 a 51, 57 a 60, 67 a 70, 77 a 80, 87 a 90 e 97 a 100/notificações com as referências 78254127, 78254128, 78254129, 78254131, 78254132 e 78254133).

            Considerando a Mm.ª Juíza a quo que existia a possibilidade de se entender que o Tribunal era “materialmente incompetente para apreciar o pedido atinente à validade da transmissão da gerência”, as partes foram notificadas para se pronunciarem, tendo a A. pugnado pela competência do Tribunal Cível, enquanto a 5ª Ré concluiu pela competência do Tribunal do Comércio.

            No despacho saneador, proferido a 13.11.2015, foi julgado ”[o] tribunal judicial incompetente em razão da matéria quanto ao peticionado que envolve os vícios da transmissão da gerência”, absolvendo-se os Réus “nessa precisa parte, da instância”; reproduzido o dito despacho de 30.6.2015 e afirmado o “silêncio” da A., foram os Réus ainda absolvidos da instância “quanto aos pedidos relativos aos vícios subjacentes ao contrato promessa de cessão de quotas celebrado em 18.02.2014”.

            Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões:

            1ª - Determina a Lei, no art.º 247º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), que as notificações às partes são feitas nas pessoas dos seus mandatários.

            2ª - E a forma dessa notificação, segundo o art.º 248º do CPC, cuja epígrafe é “formalidades”, remete para a Portaria prevista no art.º 132º, n.º 1 do CPC, sobre tramitação electrónica.

            3ª - A Portaria em causa é a 280/2013, de 26.8, e, no seu art.º 25º, refere que as notificações são efectuadas por transmissão electrónica de dados e realizadas através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, que assegura automaticamente a sua disponibilização e consulta no ´Citius`.

            4ª - Ora, não tendo a A., sido notificada nem electronicamente, nem por qualquer outro meio, do referido despacho datado de 30.6.2015, ocorreu a omissão de um acto e a sua formalidade, que a lei prescreve.

            5ª - Consequentemente, o não cumprimento das referidas formalidades determina uma irregularidade, a qual, por influir no exame e na decisão da causa, tem como consequência a anulação do acto e de todos os termos subsequentes (art.º 195º, n.ºs 1 e 2, do CPC).

            6ª - Assim, da análise do despacho saneador, verifica-se que o mesmo em si comporta um despacho que nunca foi notificado a nenhuma das partes, e nem especificamente à A., a quem diria respeito o seu cumprimento,

            7ª - E os efeitos dessa não notificação impediram o exercício de um direito por parte da A., e essa omissão teve como consequência o constante do despacho saneador, que em si é prejudicial à A., e que se traduz na exclusão da discussão de uma parte da matéria carreada para os autos.

            8ª - A A., por não ser notificada não pôde exercer um seu direito, por a isso ter sido impedida, e vem ainda a ser penalizada, por um lapso que a si não é imputável.

            9ª - Como tal, aquela matéria excluída da discussão em sede de Julgamento, é sempre necessária para a melhor descoberta da verdade dos factos.

            10ª - A absolvição dos Réus foi fundamentada no alegado silêncio da A., no entanto a A., simplesmente não respondeu, porque não foi notificada.

            11ª - Requerendo-se assim a anulação de todo o processado, após o despacho de 30.6.2015, nos termos do art.º 195º, n.º 2, do CPC, por dele dependerem absolutamente, devendo as partes ser notificadas, incluindo a A., daquele despacho datado de 30.6.2015, seguindo-se os ulteriores termos.

            12ª - A determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, sempre segundo a versão apresentada em juízo pelo A., isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos.

            13ª - Ora, todo o litígio tem por base as negociações preliminares e actos preparatórios que vieram a dar origem à sequência de actos e contratos celebrados entre as partes, negociações e actos, esses, sequenciais e entre si relacionados e que se reportam ao direito civil.

            14ª - Ocorrendo eliminação de matérias com fundamento em diferentes áreas de competência, torna-se impossível aferir da essência do caso concreto, sendo claramente prejudicial para a descoberta da verdade dos factos, viciando qualquer discussão e decisão que venha a ser tomada, negando-se justiça.

            Pede, depois, que “seja anulado o despacho saneador”.

            Não houve resposta.

            Por despacho de 25.01.2016, a Mm.ª Juíza a quo pronunciou-se sobre a denominada “reclamação do despacho saneador” apresentada pela A., reproduzida a fls. 180 e seguintes, bem como sobre a “nulidade” invocada na alegação de recurso, afirmando, nomeadamente, que, compulsado o processo electrónico, constata-se que o despacho de 30.6.2015 foi notificado às partes em 01.7.2015 e que, no que respeita à A., tal sucedeu através da referência ´citius` 78254127 (abrindo os anexos que compõem tal notificação, vislumbra-se o dito despacho), pelo que nenhuma nulidade foi cometida.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, apenas: a) nulidade do processo; b) qual dos tribunais/secções – cível (da instância central) ou tribunal/secção de comércio – é competente, em razão da matéria, para julgar a acção (maxime, o dito segmento do “pedido”).


*

            II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte[2]:

            a) O 3º Réu desempenhou as funções de gerente (único) da A. no período compreendido entre 20.02.2014 e 07.4.2014.

            b) Os negócios impugnados na presente acção foram realizados em 18.02.2014 e durante o período da dita gerência.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            Relativamente ao pretenso desrespeito dos art.ºs 247º, n.º 1 e 248º, do CPC, os autos dizem-nos que foram observadas as formalidades prescritas para a notificação às partes que constituíram mandatário, pelo que não se verifica a invocada nulidade por omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva (art.º 195º, n.º 1, do CPC).

            De resto, idênticas formalidades terão sido observadas aquando da notificação, por exemplo, do despacho de 25.01.2016 (cf. fls. 290 e seguintes).

            Dir-se-á, ainda, que não se vê esclarecida, nos autos, a aparente discrepância entre os elementos constantes de fls. 47 a 56 e os elementos que a A. veio a juntar, reproduzidos a fls. 188 a 194.

            Não se verifica, assim, a invocada nulidade processual ou qualquer consequente nulidade do despacho saneador recorrido.

            3. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[3] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir.

Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido.

            4. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (art.º 60º, do CPC).

            São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 64º, do CPC).

            As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º, do CPC).

            A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC).

            Nos termos da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [LOFTJ/Lei n.º 3/99, de 13.01]:

            - Compete aos tribunais de competência genérica preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal [art.º 77º, n.º 1, alínea a)].

            - Compete aos Tribunais do Comércio [hoje, “Secções de Comércio”] preparar e julgar, nomeadamente, as acções relativas ao exercício de direitos sociais e as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais [art.º 89º, n.º 1, alíneas c) e d)].

            - Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (art.º 94º).

            - Compete às varas cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo [art.º 97º, n.ºs 1, alínea a) e 2].[4]

            5. Na atribuição de competência especializada aos Tribunais do Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução; e importando analisar a actuação societária à luz de critérios de racionalidade empresarial (características do “gestor criterioso e ordenado” dotado de saber, competência e aptidão profissional para o bom desempenho e êxito do negócio), para a sua compreensão e para determinar as respectivas consequências, designadamente, em sede de responsabilidade civil, são necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio) relativamente aos tribunais cíveis.[5]

            6. Ante o descrito enquadramento jurídico e normativo, o acervo fáctico levado à p. i., a (pelo menos, aparente) profusão de pedidos e a natural interligação entre os factos, dir-se-á que a segunda questão colocada não se afigura isenta de dificuldades.

            Porém, se atentarmos na realidade donde emergem as pretensões deduzidas em juízo e nas normas que deverão ser convocadas para a sua resolução, antolha-se evidente que tudo girará à volta das regras gerais do negócio jurídico previstas na lei civil substantiva e será certamente a partir daí que (também) se deverá perspectivar o exercício da gerência pelo 3º Réu no período e circunstâncias ditas em I e II. 1. a) e b), supra.   

            Não estará assim em causa - pelo menos, numa primeira linha e nestes autos -, a apreciação de direitos sociais dos sócios, de terceiros ou da própria sociedade A. (cf., v. g., os art.ºs 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais/CSC), ligados necessariamente à vida da sociedade e em que se imponha harmonizar os interesses envolvidos[6], pois que, uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade.

            Ademais, os direitos sociais (titulados pela sociedade e/ou pelos sócios, credores sociais e terceiros) são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[7]

            7. Ora, o objecto da presente acção diz respeito não à eventual responsabilização dos administradores ou gerentes perante a sociedade nos termos da lei societária (cf., v. g., os art.ºs 64º, n.º 1; 72º e 259º, do CSC) e que tem a respectiva matriz no contrato de administração ou de gestão (reconduzível ao de mandato) e cuja violação acarreta para os administradores/gerentes responsabilidade contratual perante a sociedade - que, como entidade jurídica personalizada, é “dona da empresa”, num plano diverso dos respectivos sócios, apenas donos das acções ou das participações sociais -, mas, sim, à verificação da existência de vícios na formação e no conteúdo dos diversos negócios aludidos na p. i..

            Na verdade, a A., invocou diversos vícios nos actos e/ou negócios jurídicos aludidos na p. i., praticados imediatamente antes e durante a “gerência” dita em II. 1. a), supra, e que, segundo diz, determinam a sua nulidade e anulabilidade, conforme o peticionado.

            Trata-se, pois, de matéria de direito civil, e não de direito comercial, sendo que a problemática da “transmissão de gerência” antolha-se meramente consequencial e/ou instrumental da demais actuação configurada nos autos e a apreciar (cf., sobretudo, os art.ºs 21, 22, 27, 54, 55, 58, 69 e 70 da p. i.); o peticionado nos autos - nas palavras da recorrida - é muito mais amplo e abrangente que uma simples transmissão de gerência (sem que exista um qualquer pedido específico/individualizado/limitado a esta problemática), nada obstando a que o Tribunal Cível considere e analise a matéria factual em causa no seu todo.

            8. Concluindo - sabendo-se que a determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção, e não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais (importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva, no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível, sem que se justifique uma qualquer subtracção de matéria a atribuir ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio.

            Procedem, desta forma, parcialmente, as “conclusões” da alegação de recurso.


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            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão da “nulidade” e revogando-se a mesma no tocante à declarada incompetência em razão da matéria e consequente absolvição da instância, do que decorre o assinalado em II. 8. supra.

            A A./apelante suportará metade das custas da apelação.


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03.5.2016

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Fernanda Ventura


[1] Argumentando-se ainda:

   «Na verdade, quem declarou prometer ceder as quotas não foi a Autora, mas sim os seus dois identificados sócios, que delas declararam ser então titulares.

   Tal é corroborado pela análise da certidão de matrícula da Autora, junta a fls. 35 e ss, onde se constata que a titularidade das quotas era (e ainda parece ser) das referidas pessoas individuais, que com a sociedade não se confundem.

   Assim, o efeito prático e útil do peticionado quanto aos vícios subjacentes a esse contrato promessa de cessão de quotas só pode ser assegurado, do ponto de vista activo, pela intervenção, nos autos, dos titulares dessas quotas, i. é, J (…) e M (…), já que são eles quem poderá ter interesse directo em efectuar, nessa parte, a demanda.»

[2] Tendo em conta os documentos juntos, principalmente, a fls. 19, 27 verso a 38, 40, 41, 252, 258 e 258 verso.
[3] Vide, entre outros, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, págs. 91 e 95 e os Acórdãos do STJ de 12.01.1994, 22.01.1997, 20.5.1998 e 26.6.2001, in CJ-STJ, II, 1, 38 e V, 1, 65; BMJ, 477º, 389 e CJ-STJ, IX, 2, 129, respectivamente.

[4] Idêntico regime veio a ser estabelecido pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário e que entrou em vigor em 01.9.2014 - cf., principalmente, os art.ºs 117º, n.ºs 1 e 2; 128º, n.º 1, alíneas c) e d); 130º e 188º, n.º 1, este, conjugado com o art.º 118º do DL n.º 49/2014, de 27.3, que procedeu à sua regulamentação e aprovou o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais.
[5] Cf., de entre vários, os acórdãos do STJ de 18.12.2008-processo 08B3907 e de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e da RL de 26.3.2009-processo 94/07.8TYLSB.L1-6, publicados no “site” da dgsi.
[6] Sobre esta problemática, vide João Labareda, Notícia sobre os processos destinados ao exercício dos direitos sociais, in Direito e Justiça, vol. XIII, Tomo I, 1999, págs. 44 e seguintes e, em geral, entre outros, A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Sociedades Comerciais (Doutrina Geral), Universidade de Coimbra, 1968, págs. 348 e seguintes.
[7] Cf., sobretudo, o acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1, publicado no “site” da dgsi.
   Sempre se dirá que não se encontra na lei uma definição concreta de “direitos sociais”, para efeitos de integração na previsão da alínea c) do n.º 1 do artigo art.º 89º, da LOFTJ, realidade de algum modo traduzida nas dificuldades evidenciadas pela jurisprudência - atente-se, por exemplo, no expendido no cit. acórdão do STJ de 08.5.2013-processo 5737/09.6TVLSB.L1-S1 e na crítica aí expressa a respeito do percurso argumentativo seguido, sobre as mesmas matérias, nalguns arestos do nosso mais alto Tribunal.