Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | FONTE RAMOS | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL SOCIEDADES COMERCIAIS DIREITOS SOCIAIS TRIBUNAL CÍVEL SECÇÃO DE COMÉRCIO | ||
Data do Acordão: | 05/03/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA EM PARTE | ||
Legislação Nacional: | ARTS. 60, 64, 65, 77, 89, 96 CPC, 117, 128, 188 LEI Nº 62/2013 DE 28/6 | ||
Sumário: | 1. Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade. 2. Na atribuição de competência especializada ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução. 3. A determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção. 4. Não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais e importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva (no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra: I. Em 21.4.2014, Sociedade de Construção (…), Lda., representada pelos seus sócios-gerentes J (…), intentou a presente acção declarativa comum contra A (…) (1º Réu), L (…) (2º Réu), E (…) (3º Réu), M (…) (4º Réu), S (…) S. A. (5ª Ré), N (…) (6º Réu), F (…) (7º Réu) e A (…) (8ª Ré), pedindo: «a) Requer a A., a condenação dos 1º aos 5º RR., por celebração de negócios simulados nos termos dos artigos 240º n.º 1 e 2 e referentes ao contrato promessa de cessão de quotas e dos ditos negócios que tiveram por base este, a consequente transmissão de gerência, que vieram a ser traduzidos nas alienações de bens imóveis titulados por escrituras de compra e venda, e referentes ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 116 da secção Q, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5910/ (...) e ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 45 da secção X, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5900/ (...) , celebrada em 19 de Março de 2014, no Cartório Notarial do Bombarral de M (...) , e exarada de fls. 46 a fls 47v. do livro 29-A e a escritura celebrada na mesma data e Cartório Notarial, exarada do mesmo livro 29-A e a fls. 48 a 49v.; e ao lote de terreno para construção de um armazém, na Rua (...) , freguesia da (...) , em Peniche, inscrito na matriz predial da freguesia de Peniche sob o artigo 4610 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o n.º 1694/ (...) , por escritura celebrada em 28 de Março de 2014 no Cartório Notarial do Bombarral de M (...) exarada de fls. 73 a 74 do Libro 29-A, com os seus legais efeitos; b) Requer a A., que seja considerado que os 1º a 5º RR actuaram com reserva mental, nos termos do artigo 244º do CC, com os seus legais efeitos; c) Requer a A., sejam o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda já identificadas, incidentes sobre os prédios supra identificados, declarados nulos com fundamento nos vícios simulação e reserva mental, de acordo nos termos dos artigos 286º do CC e 244º n.º 2 do CC; d) Requer a A., sejam o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda, incidentes sobre os prédios supra identificados, declarados nulos por oponibilidade, por força do regime constante no artigo 291º n.º 2 do CC e do artigo 17º do CRPredial, e referentes aos 3º, 4º e 5º RR., ou a outros titulares inscritos, que possam vir a ocorrer, entre o levantamento das certidões prediais juntas a esta acção e o registo da mesma, sendo garantido esse direito por chamamento à demanda; e) Requer a A., sejam declarados como negócios usurários os actos praticados nos termos do artigo 282º do CC, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram por base este contrato promessa, como a consequente transmissão de gerência e as escrituras de compra e venda entretanto realizadas, referentes aos prédios já supra identificados, pelos RR que neles directa e indirectamente intervieram; f) Requer a A. sejam declarados anuláveis por via do citado artigo 282º do CC, anulabilidade essa também declarado por força do constante no artigo 289º do CC, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que o tiveram por base, como a transmissão de gerência e as sequentes escrituras de compra e venda realizadas nos prédios supra identificados e já identificadas; g) Requer a A., sejam declarados anuláveis por força do regime constante no artigo 291º n.º 2 do CC e do artigo 17º do CRPredial, o contrato promessa de cessão de quotas e os negócios que tiveram este por base, a transmissão de gerência e escrituras de compra e venda, que incidem sobre os prédios supra identificados, e referentes aos RR., ou a outros titulares inscritos, que possam vir a ocorrer, entre o levantamento das certidões prediais juntas a esta acção e o registo da mesma, sendo garantido esse direito por chamamento à demanda; h) Requer a A., seja efectuado o cancelamento com fundamento em declaração de nulidade ou anulabilidade, pelos vícios acima referidos, de todos os registos prediais sucessivamente realizados, de aquisição e decorrentes das escrituras já identificadas, e celebrados entre o 3º R., e o 4º R, e posteriormente entre o 4º e o 5º RR., e correspondentes aos prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 116 da secção Q, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5910/ (...) , e referentes às Ap. 2237 de 19 de Março de 2014 e Ap. 2836 de 2014/03/19; ao prédio rústico denominado (...) , sito na freguesia de (...) , sob o artigo 45 da secção X, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 5900/ (...) , e referente às Ap. 2237 de 19 de Março de 2014 e Ap. 2836 de 2014/03/19; e ao prédio urbano - Lote de terreno para construção de um armazém, na Rua (...) , freguesia da (...) , em Peniche, inscrito na matriz predial da freguesia de Peniche sob o artigo 4610 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Peniche sob o nº 1694/ (...) , e referente à Ap. 2096 de 2014/03/28; i) E ainda sejam cancelados todos os registos prediais que venham eventualmente a ser realizados após a instauração da presente acção e o registo desta, por via da existência de eventuais pedidos ou requisições de registo não possíveis de localizar, atendendo às novas tecnologias usadas em registos on line e, celebrados entre o levantamento da certidão cujos documentos de certidões prediais serviram de base à instrução do presente processo e o registo da acção, salvaguardando-se o eventual chamamento à demanda de outro ou outros RR. j) Requer a A., seja também reconhecido a existência de enriquecimento sem causa de todos os RR e o consequente empobrecimento da A., por se encontrarem preenchidos os pressupostos desta figura, nos termos e para os efeitos do artigo 473º do CC., no entanto a lei faculta à A., meio especifico já supra peticionado de desfazer a deslocação patrimonial, por se tratar de uma figura de aplicação subsidiária conforme o artigo 474º do CC. k) E subsidiariamente requer a A., que venha a ser ressarcida de todos os valores resultantes das vendas dos bens imóveis da S (…), Lda., e ainda da diferença correspondente aos valores da avaliação dos bens imóveis que vierem a resultar da peritagem a realizar no âmbito dos presentes autos, e já requerida. l) Mais requer seja efectuado o cancelamento dos actos de registo automóvel, do veículo automóvel matrícula (...) LI, marca Mercedes – Benz, supostamente propriedade da ora A., mas que se encontra matriculado no registo automóvel em nome de N (…), ora 6º R, com o número 05543 de 7 de Abril de 2014, com os fundamentos constantes dos artigos 282º e 473º do CC e artigos 5º n.º 1 do CRP, por via do artigo 29º do CRAutomóvel, acto esse de registo celebrados após a escritura de compra e venda datada de 19 de Março de 2014, e ainda o acto a que se reporta o registo de propriedade em nome de A (…), ora 8ª R., com o número 04883 de 25 de Março de 2014, por nunca ter existido transmissão a favor da ora A., como deveria ter ocorrido, a realizar pelo 7º R., F (…), naquela data de 19 de Março de 2014, devendo assim este bem ser entregue à titularidade da A., por constar como meio de pagamento na escritura de compra e venda; m) E ainda sejam cancelados todos os registos no registo automóvel, que venham eventualmente a ser realizados após a instauração da presente acção e o registo desta, por via da existência de eventuais pedidos ou requisições de registo não possíveis de localizar, atendendo às novas tecnologias usadas em registos on line e, celebrados entre o levantamento da certidão cujos documentos de certidão de registo automóvel, serviram de base à instrução do presente processo e o registo da acção, salvaguardando-se o eventual chamamento à demanda de outro ou outros RR. n) Sejam os restantes 6º, 7º e 8ª RR, a serem condenados no que vier a resultar da produção de prova, tendo presente o facto de terem beneficiado sucessivamente de um bem que serviu com meio de pagamento numa escritura de compra e venda. o) Sejam os RR condenados a reconhecer, garantir e respeitar os direitos da A., nos termos em que virem a ser considerados». Alegou, em síntese: foi abordada pelos dois primeiros Réus, que representariam um investidor interessado na aquisição do activo e do passivo da A.; foi indicado à A. a pessoa do 3º Réu, o qual adquiriria uma das quotas da A. e indicaria quem poderia comprar outra quota e que assumiria a gerência da A.; o 3º Réu assumiu a gerência da A., seguindo instruções dos 1º e 2º Réus; em 18.02.2014, os sócios da A., J (…) e M (…), outorgaram um contrato-promessa de cessão de quotas em que o primeiro declarou prometer ceder uma quota ao 3º Réu e a segunda declarou ceder uma quota à própria sociedade A. ou a terceiro que o mencionado Réu viesse a indicar; em 19.3.2014, o 3º Réu, representando a A., vendeu imóveis desta ao 4º Réu pelo preço de € 83 000 e pela entrega de uma viatura Mercedes, de matrícula (...) LI, à data propriedade do 7º Réu e que, posteriormente a essa data, passou da propriedade da 8ª Ré para o 6º Réu; nesse mesmo dia, os mesmos prédios foram vendidos pelo 4º Réu à 5ª Ré; estes negócios padecem dos “vícios” indicados na petição inicial (p. i.). Por despacho de 30.6.2015, depois de se haver ponderado «que poderá vir a concluir-se que a Autora terá legitimidade para deduzir os pedidos que têm por objecto os imóveis identificados nos autos (vide art.ºs 286º e 242º do CC), mormente sob a égide da simulação, já não nos parece que tenha essa mesma legitimidade no que respeita aos pedidos que se prendem com o contrato promessa de cessão de quotas»[1], foi decidido: «(…) nos termos dos artigos 590º, n.º 2, al. a), e 6º, n.º 2, do CPC, convida-se os AA a, sob pena de ilegitimidade, fazer intervir nos autos, do lado activo, J (…) e M (…)». Este despacho foi notificado à Exma. Mandatária da A. e a cinco Exmos. Mandatários constituídos pelos Réus (cf. fls. 47 a 51, 57 a 60, 67 a 70, 77 a 80, 87 a 90 e 97 a 100/notificações com as referências 78254127, 78254128, 78254129, 78254131, 78254132 e 78254133). Considerando a Mm.ª Juíza a quo que existia a possibilidade de se entender que o Tribunal era “materialmente incompetente para apreciar o pedido atinente à validade da transmissão da gerência”, as partes foram notificadas para se pronunciarem, tendo a A. pugnado pela competência do Tribunal Cível, enquanto a 5ª Ré concluiu pela competência do Tribunal do Comércio. No despacho saneador, proferido a 13.11.2015, foi julgado ”[o] tribunal judicial incompetente em razão da matéria quanto ao peticionado que envolve os vícios da transmissão da gerência”, absolvendo-se os Réus “nessa precisa parte, da instância”; reproduzido o dito despacho de 30.6.2015 e afirmado o “silêncio” da A., foram os Réus ainda absolvidos da instância “quanto aos pedidos relativos aos vícios subjacentes ao contrato promessa de cessão de quotas celebrado em 18.02.2014”. Inconformada, a A. apelou formulando as seguintes conclusões: 1ª - Determina a Lei, no art.º 247º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), que as notificações às partes são feitas nas pessoas dos seus mandatários. 2ª - E a forma dessa notificação, segundo o art.º 248º do CPC, cuja epígrafe é “formalidades”, remete para a Portaria prevista no art.º 132º, n.º 1 do CPC, sobre tramitação electrónica. 3ª - A Portaria em causa é a 280/2013, de 26.8, e, no seu art.º 25º, refere que as notificações são efectuadas por transmissão electrónica de dados e realizadas através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, que assegura automaticamente a sua disponibilização e consulta no ´Citius`. 4ª - Ora, não tendo a A., sido notificada nem electronicamente, nem por qualquer outro meio, do referido despacho datado de 30.6.2015, ocorreu a omissão de um acto e a sua formalidade, que a lei prescreve. 5ª - Consequentemente, o não cumprimento das referidas formalidades determina uma irregularidade, a qual, por influir no exame e na decisão da causa, tem como consequência a anulação do acto e de todos os termos subsequentes (art.º 195º, n.ºs 1 e 2, do CPC). 6ª - Assim, da análise do despacho saneador, verifica-se que o mesmo em si comporta um despacho que nunca foi notificado a nenhuma das partes, e nem especificamente à A., a quem diria respeito o seu cumprimento, 7ª - E os efeitos dessa não notificação impediram o exercício de um direito por parte da A., e essa omissão teve como consequência o constante do despacho saneador, que em si é prejudicial à A., e que se traduz na exclusão da discussão de uma parte da matéria carreada para os autos. 8ª - A A., por não ser notificada não pôde exercer um seu direito, por a isso ter sido impedida, e vem ainda a ser penalizada, por um lapso que a si não é imputável. 9ª - Como tal, aquela matéria excluída da discussão em sede de Julgamento, é sempre necessária para a melhor descoberta da verdade dos factos. 10ª - A absolvição dos Réus foi fundamentada no alegado silêncio da A., no entanto a A., simplesmente não respondeu, porque não foi notificada. 11ª - Requerendo-se assim a anulação de todo o processado, após o despacho de 30.6.2015, nos termos do art.º 195º, n.º 2, do CPC, por dele dependerem absolutamente, devendo as partes ser notificadas, incluindo a A., daquele despacho datado de 30.6.2015, seguindo-se os ulteriores termos. 12ª - A determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, sempre segundo a versão apresentada em juízo pelo A., isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos. 13ª - Ora, todo o litígio tem por base as negociações preliminares e actos preparatórios que vieram a dar origem à sequência de actos e contratos celebrados entre as partes, negociações e actos, esses, sequenciais e entre si relacionados e que se reportam ao direito civil. 14ª - Ocorrendo eliminação de matérias com fundamento em diferentes áreas de competência, torna-se impossível aferir da essência do caso concreto, sendo claramente prejudicial para a descoberta da verdade dos factos, viciando qualquer discussão e decisão que venha a ser tomada, negando-se justiça. Pede, depois, que “seja anulado o despacho saneador”. Não houve resposta. Por despacho de 25.01.2016, a Mm.ª Juíza a quo pronunciou-se sobre a denominada “reclamação do despacho saneador” apresentada pela A., reproduzida a fls. 180 e seguintes, bem como sobre a “nulidade” invocada na alegação de recurso, afirmando, nomeadamente, que, compulsado o processo electrónico, constata-se que o despacho de 30.6.2015 foi notificado às partes em 01.7.2015 e que, no que respeita à A., tal sucedeu através da referência ´citius` 78254127 (abrindo os anexos que compõem tal notificação, vislumbra-se o dito despacho), pelo que nenhuma nulidade foi cometida. Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa verificar e decidir, apenas: a) nulidade do processo; b) qual dos tribunais/secções – cível (da instância central) ou tribunal/secção de comércio – é competente, em razão da matéria, para julgar a acção (maxime, o dito segmento do “pedido”). * II. 1. Para a decisão do recurso releva o que se descreve no antecedente relatório e ainda o seguinte[2]: a) O 3º Réu desempenhou as funções de gerente (único) da A. no período compreendido entre 20.02.2014 e 07.4.2014. b) Os negócios impugnados na presente acção foram realizados em 18.02.2014 e durante o período da dita gerência. 2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão. Relativamente ao pretenso desrespeito dos art.ºs 247º, n.º 1 e 248º, do CPC, os autos dizem-nos que foram observadas as formalidades prescritas para a notificação às partes que constituíram mandatário, pelo que não se verifica a invocada nulidade por omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva (art.º 195º, n.º 1, do CPC). De resto, idênticas formalidades terão sido observadas aquando da notificação, por exemplo, do despacho de 25.01.2016 (cf. fls. 290 e seguintes). Dir-se-á, ainda, que não se vê esclarecida, nos autos, a aparente discrepância entre os elementos constantes de fls. 47 a 56 e os elementos que a A. veio a juntar, reproduzidos a fls. 188 a 194. Não se verifica, assim, a invocada nulidade processual ou qualquer consequente nulidade do despacho saneador recorrido. 3. Sabemos que a competência material do tribunal se afere em função dos termos em que o autor fundamenta ou estrutura a pretensão que quer ver reconhecida[3] e que o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor (i. é, o pedido) se encontra necessariamente correlacionado com o facto concreto que lhe serve de fundamento/causa de pedir. Assim, ao determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, temos de atentar, sobretudo, na alegação do A. e no efeito jurídico pretendido. 4. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (art.º 60º, do CPC). São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 64º, do CPC). As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (art.º 65º, do CPC). A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal (art.º 96º, al. a), do CPC). Nos termos da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [LOFTJ/Lei n.º 3/99, de 13.01]: - Compete aos tribunais de competência genérica preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal [art.º 77º, n.º 1, alínea a)]. - Compete aos Tribunais do Comércio [hoje, “Secções de Comércio”] preparar e julgar, nomeadamente, as acções relativas ao exercício de direitos sociais e as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais [art.º 89º, n.º 1, alíneas c) e d)]. - Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais (art.º 94º). - Compete às varas cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo [art.º 97º, n.ºs 1, alínea a) e 2].[4] 5. Na atribuição de competência especializada aos Tribunais do Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objecto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução; e importando analisar a actuação societária à luz de critérios de racionalidade empresarial (características do “gestor criterioso e ordenado” dotado de saber, competência e aptidão profissional para o bom desempenho e êxito do negócio), para a sua compreensão e para determinar as respectivas consequências, designadamente, em sede de responsabilidade civil, são necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio) relativamente aos tribunais cíveis.[5] 6. Ante o descrito enquadramento jurídico e normativo, o acervo fáctico levado à p. i., a (pelo menos, aparente) profusão de pedidos e a natural interligação entre os factos, dir-se-á que a segunda questão colocada não se afigura isenta de dificuldades. Porém, se atentarmos na realidade donde emergem as pretensões deduzidas em juízo e nas normas que deverão ser convocadas para a sua resolução, antolha-se evidente que tudo girará à volta das regras gerais do negócio jurídico previstas na lei civil substantiva e será certamente a partir daí que (também) se deverá perspectivar o exercício da gerência pelo 3º Réu no período e circunstâncias ditas em I e II. 1. a) e b), supra. Não estará assim em causa - pelo menos, numa primeira linha e nestes autos -, a apreciação de direitos sociais dos sócios, de terceiros ou da própria sociedade A. (cf., v. g., os art.ºs 78º e 79º do Código das Sociedades Comerciais/CSC), ligados necessariamente à vida da sociedade e em que se imponha harmonizar os interesses envolvidos[6], pois que, uma vez constituída a sociedade, titulares dos direitos sociais tanto podem ser os sócios, como a própria sociedade. Ademais, os direitos sociais (titulados pela sociedade e/ou pelos sócios, credores sociais e terceiros) são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.[7] 7. Ora, o objecto da presente acção diz respeito não à eventual responsabilização dos administradores ou gerentes perante a sociedade nos termos da lei societária (cf., v. g., os art.ºs 64º, n.º 1; 72º e 259º, do CSC) e que tem a respectiva matriz no contrato de administração ou de gestão (reconduzível ao de mandato) e cuja violação acarreta para os administradores/gerentes responsabilidade contratual perante a sociedade - que, como entidade jurídica personalizada, é “dona da empresa”, num plano diverso dos respectivos sócios, apenas donos das acções ou das participações sociais -, mas, sim, à verificação da existência de vícios na formação e no conteúdo dos diversos negócios aludidos na p. i.. Na verdade, a A., invocou diversos vícios nos actos e/ou negócios jurídicos aludidos na p. i., praticados imediatamente antes e durante a “gerência” dita em II. 1. a), supra, e que, segundo diz, determinam a sua nulidade e anulabilidade, conforme o peticionado. Trata-se, pois, de matéria de direito civil, e não de direito comercial, sendo que a problemática da “transmissão de gerência” antolha-se meramente consequencial e/ou instrumental da demais actuação configurada nos autos e a apreciar (cf., sobretudo, os art.ºs 21, 22, 27, 54, 55, 58, 69 e 70 da p. i.); o peticionado nos autos - nas palavras da recorrida - é muito mais amplo e abrangente que uma simples transmissão de gerência (sem que exista um qualquer pedido específico/individualizado/limitado a esta problemática), nada obstando a que o Tribunal Cível considere e analise a matéria factual em causa no seu todo. 8. Concluindo - sabendo-se que a determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção, e não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais (importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva, no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível, sem que se justifique uma qualquer subtracção de matéria a atribuir ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio. Procedem, desta forma, parcialmente, as “conclusões” da alegação de recurso. * III. Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida quanto à questão da “nulidade” e revogando-se a mesma no tocante à declarada incompetência em razão da matéria e consequente absolvição da instância, do que decorre o assinalado em II. 8. supra. A A./apelante suportará metade das custas da apelação. * 03.5.2016
Fonte Ramos ( Relator ) Maria João Areias Fernanda Ventura [1] Argumentando-se ainda: «Na verdade, quem declarou prometer ceder as quotas não foi a Autora, mas sim os seus dois identificados sócios, que delas declararam ser então titulares. Tal é corroborado pela análise da certidão de matrícula da Autora, junta a fls. 35 e ss, onde se constata que a titularidade das quotas era (e ainda parece ser) das referidas pessoas individuais, que com a sociedade não se confundem. Assim, o efeito prático e útil do peticionado quanto aos vícios subjacentes a esse contrato promessa de cessão de quotas só pode ser assegurado, do ponto de vista activo, pela intervenção, nos autos, dos titulares dessas quotas, i. é, J (…) e M (…), já que são eles quem poderá ter interesse directo em efectuar, nessa parte, a demanda.» [4] Idêntico regime veio a ser estabelecido pela Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26.8), que estabeleceu as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário e que entrou em vigor em 01.9.2014 - cf., principalmente, os art.ºs 117º, n.ºs 1 e 2; 128º, n.º 1, alíneas c) e d); 130º e 188º, n.º 1, este, conjugado com o art.º 118º do DL n.º 49/2014, de 27.3, que procedeu à sua regulamentação e aprovou o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais. |