Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1282/18.7T8LRA-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO DO DEVEDOR
RENDIMENTO DISPONÍVEL
SUBSÍDIO DE FÉRIAS E NATAL
Data do Acordão: 10/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 235, 236, 238, 239 CIRE, 738 CPC
Sumário:
I - A subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE não garante rendimentos ao devedor; o que ela garante, havendo rendimentos, é que uma parcela deles não será atingida pela cedência ao fiduciário.
II - O regime da penhora de vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação, que vigora no processo de execução, constitui uma indicação quanto ao que o legislador considera necessário para garantir o mínimo indispensável à vida do executado e do seu agregado familiar, podendo tal indicação ser transposta para a decisão a proferir em cumprimento da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
III - A variação, em cada mês, do montante dos rendimentos do devedor não implica a alteração do âmbito da exclusão ditada pela subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE; a modificação do âmbito dessa exclusão justifica-se quando haja alteração do que é necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Assim, não tem amparo no CIRE a pretensão do devedor no sentido de, nos meses em que recebe subsídio de férias e subsídio de Natal, autonomizar estas prestações, em relação à pensão de reforma, para efeitos da aplicação da exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

P (…) apresentou-se à insolvência e no requerimento com que se apresentou à insolvência requereu a concessão da exoneração do passivo restante.
Em 5 de Abril de 2018 foi proferida sentença a declará-lo em situação de insolvência.
Por decisão proferida em 9 de Julho de 2018, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo e, em consequência, foi determinado que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível, ou seja, tudo o que o devedor auferisse e que excedesse, por mês, o montante mensal de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros), se considerava cedido ao fiduciário, sendo que a cedência versava sobre todos os rendimentos auferidos pelo insolvente, incluindo subsídios que a ele fossem pagos por inteiro ou em regime de duodécimos, sem prejuízo de despesas que apresentasse e que se considerassem justificadas, designadamente despesas extra de saúde.
O requerente não se conformou com o segmento da decisão que excluiu do rendimento disponível, em cada mês, o montante de 650 euros e com o segmento que decidiu que os rendimentos a ceder incluíam, por inteiro, os subsídios que lhe fossem pagos, e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão e a alteração dela por outra que excluísse do rendimento disponível, em cada mês, o valor correspondente às despesas indicadas, isto é, 800,00 €, e que excluísse igualmente da cessão em relação às prestações que viesse a auferir a título de subsídios de férias e de Natal, o montante de 800 euros.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A quantia de 650,00 € é insuficiente para prover as necessidades do apelante, não permitindo pagar despesas com a renda;
2. Do disposto da alínea b) do nº 3 do artigo 239.º do CIRE, refere-se ao “sustento minimamente digno do devedor”, o que traduz na sua génese uma salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, que se sobrepõe aos direitos de ressarcimentos dos credores;
3. Atendendo aos documentos juntos aos autos e ao facto de o devedor ser uma pessoa reformada e doente oncológico, deveria o tribunal a quo ter considerado valores que resultariam numa decisão diferente aquela que veio a ser proferida, apesar do alegado por esse tribunal;
4. O tribunal a quo em nada teve em conta o alegado pelo requerente;
5. A decisão que fixou a quantia mensal de 650,00 €, como montante destinado ao sustento do apelante, viola o regime excepcional previsto nas subalíneas i) e II) da alínea b) do nº 3 do artigo 239.º do CIRE;
6. Com esta decisão do tribunal a quo, o apelante não terá possibilidade dessa “reabilitação económica”, pois a nova oportunidade que lhe é possibilitada com o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante, é colocada em causa, quando não é garantido ao apelante o sustento digno para viver;
7. Tal exclusão emana do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, plasmado no artigo 1.º da CRP e aludido também na alínea a) do nº 1 do artigo 59.º do mesmo diploma legal. O princípio da dignidade humana obriga a que o ordenamento jurídico estabeleça normas que salvaguardem a todas as pessoas o sustento mínimo para uma existência condigna;
8. O tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do preceito contido nas supra mencionadas subalíneas da alínea b) do n.º 3 do artigo 239º do CIRE, sendo o douto despacho recorrido passível de censura;
9. O despacho recorrido violou o disposto no artigo 239.º, n.º 3, do CIRE;
10. Se recorremos a um critério assente em juízos de razoabilidade e equidade, o montante considerado como minimamente digno para sustento do insolvente, não poderá ser de valor inferior ao valor das despesas supra indicado.
Não houve resposta ao recurso.
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Questões suscitadas pelo recurso:
A questão suscitada pelo recurso é de saber se a decisão recorrida errou quando estabeleceu que o valor de 650 euros era o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do ora recorrente, em cada mês.
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Não tendo sido impugnada a decisão relativa à matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos discriminados na decisão recorrida:
1. O requerente nasceu no dia … de Abril de 1967.
2. O requerente é natural da freguesia da …, concelho de … e reside actualmente (…) ….
3. O Requerente é divorciado e o agregado familiar é composto pelo mesmo.
4. O requerente actualmente encontra-se reformado por invalidez.
5. O único rendimento auferido pelo requerente é o que resulta da sua pensão de reforma, no montante de 806,48 € (oitocentos e seis euros e quarenta e oito cêntimos.
6. No ano de 2009, foi diagnosticado ao requerente uma doença do foro oncológico.
7. No ano de 2016, devido à doença oncológica que o requerente padecia foi-lhe atribuída uma incapacidade para o trabalho de 62%.
8. O requerente foi reformado por invalidez.
9. Actualmente, os seus gastos correntes, aproximadamente, são:
a) Electricidade - € 60,00;
b) Água - € 15,00;
c) Gás - € 27,50;
d) Combustível - € 100,00;
e) Alimentação - € 250,00;
f) Roupa - € 25,00;
g) Medicamentos - € 30,00.
10. O requerente nunca foi condenado, por sentença transitada em julgado, por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal
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Descritos os factos, passemos à resolução da questão supra enunciada.
Previamente importa dizer o seguinte sobre a exoneração do passivo restante [seguimos aqui o que escrevemos noutros acórdãos, designadamente no proferido no processo 1872/17.5T8VIS.C1].
Quando o insolvente for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração do pagamento dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (artigo 235.º do CIRE). É a chamada exoneração do passivo restante.
A exoneração depende de pedido do devedor nesse sentido (n.º 1 do artigo 236.º do CIRE).
Se não houver razões para indeferimento liminar do pedido (razões previstas nas alíneas a) a g) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE), o juiz profere despacho inicial, determinando que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o chamado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considere cedido a uma entidade (o fiduciário), escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência (n.º 2 do artigo 239.º do CIRE).
Este despacho é designado de inicial, uma vez que a lei (artigo 244.º do CIRE) prevê uma 2.ª decisão (decisão final), que se pronunciará de modo definitivo sobre a concessão da exoneração do passivo restante.
No despacho inicial deverá o tribunal quantificar a parte dos rendimentos do devedor que não será entregue ao fiduciário por ser necessária:
1. Para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar (artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i, do CIRE);
2. Para o exercício pelo devedor da sua actividade profissional (artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ii, do CIRE);
3. Para outras despesas, a requerimento do devedor (artigo 239.º, n.º 3, alínea b), iii, do CIRE).
A decisão objecto do presente recurso de apelação é precisamente a que o n.º 1 do artigo 239.º designa por despacho inicial. Em causa está o segmento de tal decisão que, em cumprimento da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do citado preceito, excluiu do rendimento disponível do devedor o montante de 650 euros.
Observe-se que o sentido da exclusão determinada pela norma não é o de uma “garantia de rendimento” a favor do devedor ao longo do período da cessão. Ela não garante rendimentos ao devedor. O que ela garante, havendo rendimentos, é que uma parcela deles não será atingida pela cedência ao fiduciário. Garante-se uma “exclusão”, se houver rendimentos.
Posto isto, entremos na apreciação dos fundamentos do recurso.
O recorrente acusa a decisão recorrida de ter fixado, a título do que era razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno, um montante que não satisfaz tal exigência. Segundo ele, só uma quantia em dinheiro correspondente ao montante das despesas que indicou (800 euros) é que daria satisfação a tal exigência.
Pese embora o muito respeito que nos merece, a alegação do recorrente não é de acolher.
Antes de mais importa dizer que não há correspondência directa entre, por um lado, o valor a subtrair ao rendimento disponível para garantir o sustento do devedor e, por outro, o montante global das despesas indicadas por ele. O que está em causa na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE não é a cobertura das despesas que o devedor suportava, antes da declaração de insolvência, designadamente em habitação, alimentação e saúde, nem a cobertura das despesas que o devedor diz serem necessárias, no período da cessão, para o sustento minimamente digno dele e do seu agregado familiar.
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal proferido em 25 de Março de 2014, no processo n.º 3248/13.4TBVIS, publicado no sítio www.dgsi.pt, o “que é razoavelmente necessário terá de ser avaliado em função da situação concreta do devedor e não interessa o que o devedor gasta mensalmente. O que releva é aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que apenas isso lhe pode e deve ser garantido, dada a situação de insolvência em que se encontra”… “de facto, o que está aqui em causa não é assegurar ao devedor o padrão de vida que tinha antes da insolvência, mas apenas garantir que disponha da quantia necessária para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que, como é evidente, não seria admissível que o devedor – que incorreu em situação de insolvência – pudesse beneficiar da exoneração do passivo restante e, ao mesmo tempo, ver assegurado, à custa dos credores, o padrão de vida que tinha antes. A satisfação dos direitos dos credores por via do património do devedor apenas pode e deve ceder perante a necessidade de satisfação das necessidades básicas do devedor, não sendo legítimo pretender que os credores devam sofrer o prejuízo inerente à impossibilidade de satisfação dos créditos (por não ser possível utilizar, para esse efeito, uma larga fatia do rendimento do devedor), apenas para que o devedor pudesse continuar a usufruir de um determinado padrão de vida que tinha antes da insolvência (que até poderia ser muito elevado e que, eventualmente, até poderia corresponder a um padrão de vida muito acima das reais possibilidades do devedor)”.
Na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, está em questão o que é necessário, de um ponto de vista razoável – e não do ponto de vista do devedor ou dos credores - para uma vida minimamente digna da pessoa que foi declarada insolvente e do seu agregado familiar.
Como é bom de ver, não é fácil, para não dizer impossível, indicar com exactidão o montante que garantirá, em cada caso, o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. É que tal mínimo depende de múltiplos factores, designadamente da situação pessoal, familiar e profissional do devedor e do seu agregado familiar e do próprio local onde vive o requerente e o agregado (pense-se na variação do preço da habitação e de outros bens essenciais, em função do local onde se vive).
Assim, o mais a que se pode aspirar é quantificar aproximadamente o que é razoavelmente necessário para assegurar ao devedor e ao seu agregado o indispensável a uma vida minimamente digna.
No entender deste tribunal, o montante fixado pelo tribunal a quo como razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do recorrente cabe dentro do valor que, aos olhos do legislador, garante o sustento minimamente digno dele.
Chegamos a esta conclusão a partir de um caso regulado na lei com alguns pontos de contacto com o caso do devedor a quem foi concedido o benefício da exoneração do passivo restante. O caso que temos em vista é o da penhora de vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação, no processo de execução, quando o executado não tenha outras fontes de rendimento e a dívida exequenda não seja de alimentos. Os pontos de contacto são os seguintes:
1. Em ambos os casos os interesses do credor ou dos credores conflituam com os do devedor;
2. Em ambos os casos a lei impõe sacrifícios aos direitos dos credores;
3. Em ambos os casos os sacrifícios são justificados pela necessidade de salvaguardar um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.
Assim, entendemos que é possível colher no regime da penhora de vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação, que vigora no processo de execução, uma indicação quanto ao que o legislador considera necessário para garantir o mínimo indispensável à vida do executado e do seu agregado familiar e transpor essa indicação para a decisão a proferir em cumprimento da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
Vejamos, pois, tal regime.
Segundo o n.º 1 artigo 738.º do CPC são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação. Por seu turno, a 2.ª parte do n.º 3 do mesmo preceito estabelece que a impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
Segue-se deste regime que, quando o executado só tenha rendimentos do seu trabalho ou de prestações periódicas pagas a título de aposentação e não esteja em causa um crédito exequendo de alimentos (n.º 4 do artigo 738.º do CPC), a penhora tem de deixar a salvo, ao executado, montante equivalente a um salário mínimo nacional.
Sabendo-se que a impenhorabilidade de parte dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação visa a defesa de uma vida minimamente digna do devedor, é legítimo estabelecer uma relação entre o que não se pode penhorar e o que é necessário para o sustento minimamente digno do executado. Sendo mais concreto: o montante equivalente a um salário mínimo nacional será, em situações normais, o suficiente para garantir ao executado o indispensável para uma vida com um mínimo de dignidade. A favor desta interpretação do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i), do CIRE, citam-se o acórdão do STJ proferido em 18-10-2012, no processo n.º 80/11.3TBMAC, e o acórdão do STJ proferido em 2-2-2016, no processo n.º 3562/14.1T8GMR, ambos publicados em www.dgsi.pt.
Posto isto, vejamos o que é que, num quadro de facto como o dos autos, se excluiria da penhora.
Por aplicação combinada dos n.ºs 1 e 3 do artigo 738.º do CPC seriam excluídos dois terços da parte líquida da prestação paga a título de pensão de reforma, os quais não poderiam ser inferiores ao montante correspondente a um salário mínimo nacional.
Estando provado que o ora recorrente está reformado e que recebe de pensão, por mês, 806,48 euros, numa execução estariam a salvo da penhora 2/3 desta pensão. Como esta fracção da pensão corresponde a 537,65 euros e este montante é inferior ao valor do salário mínimo nacional (580 euros), então, por imperativo da parte final do n.º 3 do artigo 738.º do CPC, estariam a salvo da penhora precisamente 580 euros.
No caso, a decisão sob recurso excluiu do rendimento disponível o montante de 650 euros, que é superior à retribuição mínima mensal garantida para o ano de 2018, fixada em 580 euros pelo Decreto-Lei n.º 156/2017, de 28-12.
Se, no âmbito de uma execução, o montante de 580 euros seria visto pelo legislador como suficiente para garantir ao executado um sustento minimamente digno, não vemos razões para dizer que, no âmbito da exoneração do passivo restante, o montante de 650 euros já não constituirá o “razoavelmente necessário” a tal sustento minimamente digno, quando, no caso, está provado que o ora recorrente vive sozinho e quando o despacho recorrido ressalvou da cessão o que fosse necessário para acudir a despesas que o ora recorrente apresentasse e que se considerassem justificadas, designadamente despesas extra de saúde.
Com o exposto não se quer dizer que o ora recorrente não tenha de viver comedidamente e com sacrifícios com um rendimento mensal de 650 euros. Seguramente que terá de viver com sacrifícios. Porém, o recurso à exoneração do passivo restante implica inevitavelmente sacrifícios, sacrifícios para os devedores e os respectivos agregados familiares e sacrifícios para os credores. Aqueles terão de viver durante o período da cessão apenas com o que for necessário para lhes garantir, com o mínimo de dignidade, o seu sustento, ou seja, as condições essenciais à sua existência com um mínimo de dignidade; estes ficarão sem parte ou, nalguns casos, sem a totalidade dos seus créditos.
Observe-se que se se deferisse a pretensão do recorrente – exclusão da cessão ao fiduciário do montante de 800 euros -, tal significaria, atendendo, por um lado, ao destino que as alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 248.º do CIRE fixam aos montantes recebidos pelo fiduciário e, por outro, aos rendimentos actuais do recorrente (806,48 por mês), que nenhum do rendimento disponível seria distribuído pelos credores da insolvência.
Nesta hipótese, a exoneração do passivo restante serviria apenas para obter a extinção total dos créditos sobre a insolvência, o que claramente esteve fora do pensamento do legislador quando institui a exoneração do passivo restante, como o atesta a seguinte passagem do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março): “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boafé incorridas em situação de insolvência, …, é agora acolhido entre nós, através do regime da exoneração do passivo restante. O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedido ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste” (1.º e 2.º parágrafos do ponto n.º 45 do preâmbulo diploma acima referido).
Por todo o exposto, conclui-se que, ao estabelecer que o valor de 650 euros era o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do ora recorrente, a decisão recorrida não violou o disposto na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do CIRE.
O recorrente pretende ainda que a cedência do subsídio de férias e de Natal se faça com exclusão, em relação a cada uma destas prestações, do montante de 800 euros.
A pretensão do recorrente tem implícita a autonomização do subsídio de férias e do subsídio de Natal, em relação à pensão de reforma, para efeitos da aplicação da exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º. Esta autonomização significaria, se fosse acolhida, que nos meses em que o ora recorrente recebesse pensão de reforma e subsídio de férias e subsídio de natal, seriam excluídos da cessão 650 euros da pensão de reforma e 650 euros do subsídio de férias e 650 euros do subsídio de natal, isto é, seriam excluídos 1 300 euros.
Esta pretensão não tem apoio no CIRE. Vejamos.
Segundo o n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham ao qualquer título ao devedor, com as exclusões previstas na alínea a) e nas três subalíneas da alínea b) do citado preceito.
Para o caso interessa-nos a exclusão ditada pela subalínea i) da alínea b). Tendo em conta a razão de ser dela, o que é susceptível de determinar a alteração do âmbito dessa exclusão não é a variação, em cada mês, do montante dos rendimentos; o que justificará a alteração do âmbito dessa exclusão é a alteração do que é necessário para o sustento minimamente digno do devedor. Deste modo, só uma alteração para mais do que é necessário ao devedor para se sustentar a si e ao seu agregado familiar com um mínimo de dignidade é que justificará o alargamento do círculo dos rendimentos a excluir da cessão. Sucede que a pretensão do requerente não radica no facto de, nos meses em que recebe subsídio de férias e de natal ter, necessidades acrescidas, para se sustentar com um mínimo de dignidade; a sua pretensão assenta exclusivamente na alteração de rendimentos. Pelo exposto, é de julgar improcedente a pretensão ora em apreciação.
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Decisão:
Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Visto que o recorrente, vencido no recurso, beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não se condena o mesmo no pagamento de quaisquer encargos com o processo.
Coimbra, 16 de Outubro de 2018

Emídio Santos ( Relator )
Catarina Gonçalves
António Magalhães