Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
295/14.2T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: RECURSO DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
PASSAGENS DA GRAVAÇÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
CONFISSÃO
PROVA TESTEMUNHAL
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
DAÇÃO PRO SOLVENDO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MÁ FÉ
Data do Acordão: 02/16/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 640 CPC, 352, 355, 358, 610, 611, 837, 840 CC
Sumário: 1.- Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda.

2.- A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem com a transcrição, total ou parcial, de depoimentos das testemunhas, pois tal transcrição é uma mera faculdade.

3.- A matéria de facto corresponde a ocorrências da vida; que mais não são do que manifestações externas de factos concretos simples ou complexos, naturais ou não, ou de factos humanos voluntários, ou representam factos internos ou fenómenos psicológicos, compreensíveis e articuláveis por qualquer pessoa, pelo comum mortal.

4.- A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem tal valor, porquanto implica o reconhecimento perante a parte contrária de um facto que lhe é desfavorável (arts. 352º, 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2, do CC).

5.- Por isso, se o vendedor alega que não recebeu o preço, impõe-se-lhe invocar a falsidade do documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento.

6.- Fora destas hipóteses, quando existir um princípio de prova por escrito suficientemente verosímil é possível o vendedor complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória; e também no caso de existirem nos autos outros elementos probatórios, designadamente confissão do comprador que obste à atribuição de natureza confessória à afirmação do vendedor do recebimento preço.

7.- Na dação em cumprimento, a prestação de coisa diversa da que for devida só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento (art. 837º do CC); diferentemente na dação em função do cumprimento, ou datio pro solvendo (art. 840º do CC), embora esta também tenha por objecto a realização de uma prestação diferente da que é devida, o seu fim não é o de extinguir imediatamente a obrigação, mas o de facilitar apenas o seu cumprimento, por exemplo por assunção de dívida através da emissão de cheque para facilitar ao credor a sua cobrança ou a execução em juízo se necessário.

8.- Como na prática, por vezes se torna difícil saber se em determinada situação há uma dação em cumprimento ou dação pro solvendo (ou até novação), o legislador aplanou tais dúvidas através da presunção estabelecida no art. 840º, nº 2, do CC, designadamente que a assunção de uma dívida, por exemplo através da emissão de uma letra ou cheque se presume como sendo uma dação pro solvendo.

9.- Não estando comprovado a extinção da obrigação fundamental, dívida da R., sociedade comercial, mediante uma dação em cumprimento com assentimento da A. credora, nem se mostrando ilidida a mencionada presunção, pela R., face à emissão de 4 cheques por cada um dos 4 sócios/gerentes da mesma para garantir oportunamente o pagamento da dívida dessa sociedade, estaremos perante uma dação pro solvendo e não perante uma dação pro solutum.

10.- Para obviar ao requisito inscrito no art. 610º, b), do CC – resultar do acto impugnado impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito (ou agravamento dessa impossibilidade), a lei (art. 611º) atribui ao devedor obrigado, e ao adquirente, o encargo de provar o devedor possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao da dívida.

11.- Para comprovar a má fé, prevista no art. 612º, nº 2, do CC, não exige a lei, que com o acto impugnado haja a intenção de provocar um dano ao credor, que devedor e adquirente ajam dolosamente (nas suas diversas modalidades de dolo directo, necessário ou eventual), bastando a mera consciência do prejuízo ou actuação com negligência consciente.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório

1. Herança Indivisa Aberta por óbito de J (…), representada pela cabeça-de-casal, residente em Coimbra, intentou acção declarativa contra P (…) Ldª, E (…), Ldª, e C (…), Ldª, todas com sede em Penela, pedindo que a 1ª R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 368.500 €, com juros legais desde a citação; seja declarada a ineficácia das compras e vendas efectuadas a 4.7.2014, sendo os bens em causa restituídos à esfera jurídica da 1ª R.; sejam canceladas as inscrições prediais relativas aos imóveis, com data de 4.7.2014; subsidiariamente, sejam as vendas declaradas nulas por simulação absoluta, com os consequentes cancelamentos registrais.

Para tanto alegou, em suma, ter o autor da herança vendido à 1ª R. três terrenos para construção pelo preço total de 1.565.713 €, valor declarado na escritura, do qual o vendedor recebeu apenas 1.197.213 €, ficando por pagar 368.500 €, quantia que foi dividida por quatro cheques, cada um pertença de cada um dos quatro sócios da R., servindo tais cheques para garantir o pagamento futuro em dinheiro da parte do preço em falta, logo que construído o imóvel, ou em apartamentos, que a R. iria construir nos terrenos. Todavia, construído o prédio e decorridos que são vários anos, a R. não procedeu ao pagamento do preço em falta, tendo os cheques sido devolvidos sem pagamento e recusando-se a R. a cumprir o acordado. Após decretamento de arresto a 1ª R. vendeu à 2ª e 3ª RR várias fracções, sabendo todas as RR que o património da primeira ficava, desta forma, desprovido de meios para solver esta dívida, o que quiseram. Ademais, as vendas em apreço foram simuladas, não tendo sido pago qualquer preço, tendo tido por intuito enganar os AA.

Contestaram as RR dizendo, em suma, que o preço da venda foi integralmente recebido pela 1ª R. ao de cujus, uma parte paga através de empréstimo concedido aquela 1ª R. pelo BPN e a outra através dos quatro cheques subscritos pessoalmente pelos sócios da 1ª R. Assim sendo, nada deve a 1ª Ré aos AA., sendo devedores os sócios. Por assim ser, não se verificam os requisitos da impugnação pauliana. Por outra parte, não existe simulação porquanto se verificam existir, de facto, dívidas da 1ª R. para com as restantes (sociedades pertencentes a dois dos sócios da primeira) resultantes da disponibilização por estas àquela de valores que a primeira não obteve junto da Banca e de que carecia para levar a cabo a construção do imóvel e sendo as vendas a forma de reembolso. A 1ª R. formulou pedido reconvencional, pretendendo que a A. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 67.400 €, resultante da circunstância de os prédios vendidos terem menos 20,80 m2 do que o anunciado pelo vendedor, pelo que o valor de 10,900 € deve ser abatido ao preço, com juros desde Agosto de 2007, e do facto de o de cujus dever 15.000 € a uma das arquitectas intervenientes, valor que é agora da sua responsabilidade, e, ainda, do facto de ter sido obrigada a alterar a propriedade horizontal inicialmente prevista o que determinou atraso no alvará de utilização, determinando demora na concretização das escrituras de venda e, por força disso, continuação do pagamento de juros bancários no montante de 35.000 €.

Replicou a A. impugnando a matéria da reconvenção.

*

A final foi proferida decisão, na qual se julgou a acção parcialmente procedente, condenando-se a 1ª R. P (…) a pagar à A. a quantia de 368.500 €, com juros legais, e na procedência da acção pauliana, declararam-se ineficazes em relação à A. as vendas efectuadas pela R. P (…) às RR E (…) e C (…) (descritas nos pontos 7 e 8 dos factos assentes) e se julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional (absolvendo-se a reconvinda do demais), condenando-se a A. a pagar à reconvinte 1ª R. a quantia de 10.893,79 €.

*

2. As RR recorreram, tendo concluído como segue:

(…)

3. A A. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

1 - Por escritura de 3.8.07, J (…) e mulher, M (…), declararam vender à Ré, P (…), Ld.ª, pelo preço que aí declararam ter já recebido, de € 1.565.713,00, os seguintes prédios urbanos, sitos no (...) , freguesia de (...) , Coimbra (doc. de fls. 26 e ss.):

N.º 1- Por € 318.179, 00, o lote de terreno destinado à construção, “Lote n.º 28”, descrito na 1.ª Consv. do Reg. Predial de Coimbra sob o n.º 5568.

N.º 2 – Por € 674.836,00, lote de terreno destinado à construção, “Lote n.º 29, inscrito na matriz sob o art. 10922 e descrito na 1.ª Consv. do Reg. Predial de Coimbra sob o n.º 5569.

N.º 3 – Por € 572.707,00, o lote de terreno destinado à construção, “Lote n.º 30”, inscrito na matriz sob o art. 109923 e descrito na 1.ª Consv. do Reg. Predial de Coimbra sob o n.º 5570.

2 – Os quatros sócios da 1.ª Ré, P (…), entregaram aos vendedores, cada um deles, um cheque titulando a quantia de € 92.125,00 (no total de € 368.500) – docs. de fls. 44 a 51.

3 – Os cheques foram apresentados a pagamento a 22.4.2014 e foram devolvidos e não pagos, com as seguintes menções “falta de provisão” (o de fls. 44), “saque irregular” (o de fls. 46), “importância incorretamente indicada” (o de fls. 48) e “”falta de provisão” (o de fls. 50).

4 – Em 20.5.2012, faleceu o vendedor, ficando a suceder-lhe o cônjuge sobrevivo, M (…) , e os filhos, O (…), A (…) e J (…) (doc. de fls. 42 e 43).

5 – Os apartamentos ficaram em fase de acabamentos em meados de 2010, sendo que as frações constantes dos docs. de fls. 60 e 86 e foram participadas à Autoridade Tributária em 17.2.1011, e as constantes de 68 e 77, em 28.12.2011.

6 – Nos autos de providência cautelar, a 3.7.2014, foi decretado o arresto dos seguintes imóveis (fls. 79 e 80 do apenso A):

a) Fração autónoma, R/C designado pela Letra A destinado a restauração e similares de hotelaria, comercio e serviços e garagem n.º 4 do r/c, do prédio urbano sito no (...) , lote 29, freguesia de (...) , descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 5569-A e inscrito na matriz sob o art. 13 414 – A daquela freguesia, o qual se encontra onerado com hipoteca voluntária registada pela AP 4 de 2007/07/13.

b) Fração Autónoma, Apartamento designado pela letra C, tipo T1 no 1.º andar e garagem n.º 1 no r/c, do prédio urbano sito (...) , lote 29, freguesia de (...) , descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 5569 - C e inscrito na matriz sob o n.º 13 543 C, o qual se encontra onerado com hipoteca voluntária registada pela AP 4 de 2007/07/13.

c) Fração autónoma, Apartamento designado pela letra H, tipo T4 no 3.º andar e garagem n.º 2 no r/c, do prédio urbano sito (...) , lote 29, freguesia de (...) , descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 5569 - H e inscrito na matriz sob o n.º 13 543 H, o qual se encontra onerado com hipoteca voluntária registada pela AP 4 de 2007/07/13.

d) Fração autónoma designado pela letra A, r/c destinado a restauração e similares de hotelaria, comercio e serviços, com garagem no r/c, a número 5 à direita a contar da via pública, do prédio urbano sito (...) , lote 28, freguesia de (...) , descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 5568 -A - A e inscrito na matriz sob o n.º 13 414, o qual se encontra onerado com hipoteca voluntária registada pela AP 4 de 2007/07/13.

e) Fração autónoma, letra A do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, composto r/c direito, lado sul para habitação, sito na urbanização de (...) , (...) , inscrito na matriz sob o art. 4613 - A da União de freguesias de (...) e (...) e registado na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 2180-A de (...) .

f) Fração H do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, composto por garagem na cave sito na urbanização de (...) , (...) , inscrito na matriz sob o art. 4613-H da União de freguesias de (...) e (...) e registado na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º 2180-H de (...) .

7 – No dia 4.7.2014, a Ré P (...) vendeu à Ré E (...) , Ld.ª, pelo preço de € 501.400,00, as frações “A”, do art. 13543 da freguesia de (...) e “A” do art. 13414 da mesma freguesia (doc., de fls. 109 e ss.), tendo a compradora registado em seu nome tais aquisições (fls. 94 e 100).

8 – No dia 4.7.2014, a Ré P (...) vendeu à terceira Ré, Constrafel, pelo preço global de € 475.000,00, o prédio correspondente à fração com a letra “C” do art. 13543, da freguesia de (...) , Coimbra; a fração “H” do art. 13543, da mesma freguesia; fração “A” do art. 4613, da União das freguesias de (...) e; fração “H” do art. 4613 da União das freguesias de (...) e (...) (doc. de fls. 117 e ss.).

9 - Do valor declarado recebido (€ 1.565,713,00), os vendedores apenas receberam o valor de € 1.197,213,00.

10 - Os cheques referidos em 2 destinavam-se a servir de garantia, destinando-se a pagar o valor em dívida, logo que os prédios estivessem em fase de acabamento ou se procedesse às primeiras vendas, caso a Ré P (...) não pagasse ou não fizesse uma dação em pagamento com alguns dos apartamentos que viria a construir nos lotes vendidos.

11 - Os cheques referidos em 2 foram entregues aos vendedores no dia da escritura.

12 - Tendo a 1.ª Ré pago aos vendedores juros do capital em dívida.

13 - O autor da herança e, depois deste, os seus sucessores, interpelaram a primeira ré, na pessoa dos seus legais representantes, várias vezes, após a conclusão dos trabalhos de acabamento das frações, para pagarem o valor em dívida.

14 - Os legais representantes da primeira ré sempre reconheceram a dívida desta.

15 - Na data das vendas referidas em 7 e 8 o património da 1ª R. (escreveu-se da A. por lapso) era exclusivamente constituído pelos bens vendidos à segunda e terceira Rés.

16 - No momento das vendas de 4.7.2014, as Rés sabiam que, com as vendas, no património da primeira Ré não havia bens para garantir o pagamento que ficou por efetuar no momento da celebração da escritura de 2007 referida em 1.

17 - A primeira Ré não pretendeu vender, nem a segunda e terceira Ré pretenderam comprar os prédios em apreço.

18 – A emissão de cheques pessoais para pagamento de parte da compra de 2007 foi uma exigência de J (...) quando se apercebeu que o Banco não emprestava à 1.ª Ré a totalidade do valor da compra, permitindo depois que os cheques fossem sendo substituídos por outros dos mesmos sócios sem exigir cheques da sociedade.

19 - Antes da escritura referida em 1, foi assegurado pelos vendedores à compradora que os respetivos projetos de construção se encontravam aprovados na Câmara Municipal e com licenças a pagamento.

20 - E que a área bruta de construção era de 2.989,50 m2.

21 - Tendo sido na base dessa área que se fixou o valor da compra e venda acordando-se o pagamento de 105.000$00 por cada m2 de construção.

22 - Para o lote 30 estavam aprovadas 9 habitações com 9 garagens acopladas e 3 (três) frações autónomas designadas como caves.

23 - Somando as áreas brutas de construção constantes das licenças que teve de pagar constatou a Ré que em relação:

- ao Lote 28 constavam 599,20 m2

- ao Lote 29 constavam 1.254,50 m2

- ao Lote 30 constavam 1.115,00 m2.

24 - Quando já se encontrava o lote 30 construído, a 1ª Ré foi confrontada pela Câmara Municipal com a recusa da propriedade horizontal já constituída e com a necessidade de fazer alterações às plantas iniciais porque não aceitava que se encontrassem previstas frações autónomas correspondentes às 3 garagens, nem que estas constassem como arrumos, o que resultou de uma interpretação da Conservatória quanto ao número mínimo de garagens previsto nas plantas de síntese do loteamento.

25 - Só em 26 de Novembro de 2010 a 1ª Ré conseguiu obter o alvará de Autorização de Utilização.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Crédito da A. sobre a 1ª R.

- Impugnação pauliana.

- Pedido reconvencional de indemnização por pagamento indevido de juros bancários, imputável ao de cujus.   

2. As recorrentes impugnam os factos provados 3., 9., 12. a 14., 16. (embora refiram por lapso o 15.) e 17, pretendendo que as respostas aos dois últimos 16. e 17. seja não escrita e uma resposta de provado com outra redacção aos restantes indicados factos (vide a conclusão de recurso 1ª), pelos motivos que afirmam. Estribam-se, nos depoimentos das testemunhas, arroladas pela A., (…) e na arrolada por elas, (…), quanto aos factos 3., 9., e 12., na alegação da A. produzida no art. 9º da p.i. de providência cautelar apensa aos autos, em relação ao facto 9., e ainda, quanto ao facto 14., ser ele conclusão de direito e ao mesmo tempo no relevo do doc. 30 junto com a p.i., bem como a mudança da resposta ao facto 14. importar a concomitante alteração ao facto 13. (vide a aludida conclusão 1ª).

Foi, aliás, em tal tipo de prova – depoimentos e prova documental - na qual se fundou o julgador de facto para, conjugando, entrecruzando e ponderando a mesma, responder, nos termos expostos, à referida factualidade, como consta expressamente da sua motivação à decisão da matéria de facto (vide fls. 418v/419v).

2.1. Nas alegações (corpo) as recorrentes transcrevem - total ou parcialmente, não sabemos, embora a A. na contra-alegação acuse a transcrição de parcialidade, por os recorrentes só transcreverem aquilo que lhes interessa – aquilo que as indicadas testemunhas terão dito/afirmado na audiência de julgamento, deixando depois um pequeno comentário crítico final e extraindo as respectivas conclusões. Mais referem (no corpo das alegações e apontadas conclusões) que tais depoimentos testemunhais estão gravados no sistema digital, nem sequer apontando o início e termo de tal gravação

Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, sob pena de rejeição.

Ou seja, de tal dispositivo verifica-se que a lei exige 5 requisitos:

i) Que o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

ii) Qual o sentido correcto da resposta, que na óptica do recorrente, se impunha fosse dado a tais pontos;

iii) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa;

iv) E por que razão assim seria, com análise critica criteriosa;

v) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de facultativa transcrição dos excertos relevantes.

Ora, das suas alegações de recurso – corpo e conclusões - verifica-se que as recorrentes não cumpriram o 5º dos indicados requisitos legais, pois não indicaram, em lado algum, com exactidão as passagens da gravação em que fundam a sua impugnação, baseada nos indicados depoimentos testemunhais que referiram, nem sequer apontando o início e termo de tais gravações, apesar de, face à gravação efectuada (vide a respectiva acta a fls. 412/415), haver identificação precisa e separada de tais depoimentos.  

Na realidade, o ónus imposto a qualquer recorrente no aludido nº 2, a) do art. 640º, do NCPC não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem sequer com a transcrição, total ou parcial, dos depoimentos prestados, já que esta é meramente facultativa. Não deixando a lei neste ponto qualquer dúvida, face aos termos claros e terminantes com que está redigida (vide igualmente no mesmo sentido L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 3º, T. I, 2ª Ed., nota 4. ao artigo 685º-B, págs. 62/64, e A. Geraldes, Recursos em P. Civil, 2ª Ed., 2008, notas 3. e 4. ao referido artigo, págs. 138/142, normativo do CPC semelhante ao actual 640º do NCPC, e a título de exemplo os recentes Ac. desta Rel. de 28.9.2015, Proc.198/10.0TBVLF, 10.2.2015, Proc.2466/11.4TBFIG e de 17.12.2014, Proc.6213/08.0TBLRA, e Ac. do STJ, de 19.2.2015, Proc.405/09.1TMCBR, disponíveis em www.dgsi.pt). No caso, as recorrentes limitam-se a referir que os apontados depoimentos se encontram gravados no sistema digital, sem sequer apontarem o início e termo das gravações de tais depoimentos, e transcrevem os mesmos – total ou parcialmente não sabemos -, em vez de indicar com exactidão as passagens da gravação em que tais pessoas depuseram, no sentido supostamente afirmado/defendido pelas apelantes, a fim de permitir, como pretendiam, a eventual resposta de provado, com a redacção que sugeriram, aos apontados factos, depois de prévia audição por esta Relação e subsequente análise e ponderação de tais depoimentos.

Assim, face ao não cumprimento do referido ónus legal, a impugnação da indicada matéria de facto não pode proceder com base em tais depoimentos, desde logo aos factos 3. e 12. Que se fundavam apenas em tal tipo de prova.

Vejamos agora a restante prova indicada pelas recorrentes.

(…)

Indefere-se, igualmente aqui a impugnação da matéria de facto.

3. Relativamente ao crédito da A. sobre a 1ª R. (conclusões de recurso 2ª a 9ª).

Deixou-se dito na sentença recorrida que:

“Alega a A. que o preço devido pela primeira Ré, a quem o autor da herança e mulher, em 3.8.07, venderam três lotes de terreno, não foi integralmente pago pela compradora, tendo ficado em dívida € 368.500, 00.

Certo que os vendedores declararam na escritura ter já recebido o preço declarado, todavia também é certo não escamotear a Ré que esse dinheiro não foi entregue. O que foi entregue foram quatro cheques subscritos pelos sócios da Ré. Os cheques titulando, em conjunto, o valor reclamado como sendo a parte do preço não recebida, não foram pagos. É, por isso, inequívoco não terem os vendedores recebido aquele valor de € 368.500, 00, mas sim quatro cheques titulando, cada um deles, a quantia de € 92.125, 00. Veremos, daqui a pouco, a finalidade da entrega destes cheques

De acordo com o que se expõe no Ac. STJ, de 9.7.2014 (Proc. 28252/10.0T2SNT.L1.S1), No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade. A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço) – cf. arts. 355.º, n.º s 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC. Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento. Fora destes casos, só quando existir um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida mediante o documentador. Diversa é a situação de existirem nos autos outros elementos de facto que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do montante do preço e do seu recebimento.

Em tese, a entrega de cheque configura, na relação com o credor, uma mera datio pro solvendo, figura próxima da dação em cumprimento, mas dela distinta posto que esta última consiste na extinção da obrigação mediante prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação (art. 837.º CC), sendo que na primeira, tratando-se da realização de uma prestação diferente da que é devida, o seu fim não é o de extinguir imediatamente a obrigação, mas o de facilitar apenas o seu cumprimento.

Deste modo, salvo se essa for a intenção das partes, na datio pro solvendo a obrigação não se extingue imediatamente, apenas se extinguindo se e à medida que o crédito for sendo satisfeito à custa do novo meio ou instrumento jurídico para o efeito proporcionado pelo credor (cfr. A. Varela, Das Obrigações em geral, Vol. II, 6.ª ed., p. 172).

A subscrição de títulos de crédito, mormente de cheques, é vista pela doutrina como um caso de datio pro solvendo, ficando a “existir ao lado da obrigação primitiva (fundamental), proveniente do contrato (…), uma outra obrigação (cambiária), resultante da subscrição do título de crédito por parte do aceitante”(ibidem, p. 173), assim como pela jurisprudência (cfr., v.g., ac. STJ, de 6.11.2003, Proc. 03B3495: Tendo o mutuário de dinheiro entregado ao mutuante, na sequência de acerto de contas relativo a contratos de mútuo nulos por falta de forma, e reconhecimento face ao segundo pelo primeiro da sua obrigação de restituição, dois cheques com determinado valor neles inscrito, a situação não se configura como novação nem datio pro solutum, mas como mera datio pro solvendo.

Na situação dos autos, os cheques não foram entregues com a finalidade própria que lhes anda associada e que é a de constituírem meio de pagamento. Na verdade, o que se apurou é que a dívida de valor – parte do preço da venda – subsistiria até ser paga pela compradora que o faria quando tivesse fundo de maneio que lho permitisse (mormente com vendas de produto final a construir).

Os cheques, esses, constituíram aqui uma forma de garantia prestada pelos sócios da sociedade compradora que, deste jeito, assumiriam pessoalmente a dívida, ficando a ser obrigados cambiários e não obrigados no negócio de venda, que para eles é res inter alios.

Os cheques seriam apresentados a pagamento apenas se o pagamento pela devedora falhasse. Isso não lhes retira valor como título executivo, pois que Desde que a subscrição de um cheque tenha sido feita “pro solvendo”, o propósito das partes não é cercear os direitos do credor, mas aumentá-los, conferindo-lhe, além do que já tinha, um novo crédito, verificando-se um reforço dos meios de pagamento do credor relativamente à mesma dívida fundamental ou subjacente (ac. RC, de 21.3.06, Proc. 100/06), mas também não transforma os subscritores em devedores da obrigação principal, primitiva e fundamental, de pagamento da parte do preço em falta, como se tivesse ocorrido uma transmissão singular de dívidas ou uma qualquer cessão da posição contratual.

(…)

Com efeito, não se verificou qualquer facto extintivo dessa obrigação (o cheque é uma simples datio pro solvendo e, em rigor, os dos autos constituiriam uma datio pro solvendo subsidiaríssima), nem existiu qualquer acordo entre as partes no sentido de ser transmitida a dívida da sociedade para os sócios nos termos previstos nos arts. 595.º e ss. do CC.

É, pois, inequívoco o crédito da A. sobre a Ré.

A existência dos cheques não impedirá a A. de demandar executivamente os obrigados cambiários posto que, como vimos, subsiste a obrigação primitiva ao lado da obrigação cambiária e é apenas nesta que os sócios da Ré assumem a qualidade de devedores e, ainda assim, sem se substituírem à primeira Ré”.

Este discurso jurídico merece a nossa adesão, face ao acerto e justeza do mesmo. E as razões apresentadas em recurso pelas recorrentes não procedem.

Em primeiro lugar, há que chamar à colação o correctíssimo argumentário jurídico do citado (na decisão recorrida e no recurso das recorrentes) acórdão do STJ de 9.7.2014, que é aliás jurisprudência corrente e doutrina largamente concordante, de que a escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor, porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem este valor, porquanto implica o reconhecimento de um facto que lhe é desfavorável, e que o art. 352.º do CC qualifica de confissão. Tratando-se, assim, de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, faz prova plena de que, nesse acto, o vendedor declarou já ter recebido o preço (arts. 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2, do CC). Por isso, se o vendedor alega que não recebeu o preço, impõe-se-lhe alegar a falsidade do documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento.

Fora destes casos, quando existir um princípio de prova por escrito suficientemente verosímil fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador. E também no caso de existirem nos autos outros elementos de facto que obstem à atribuição de natureza confessória à afirmação do recebimento preço.

Ora, nos autos verificam-se estas duas mencionadas situações, pois existe esse elemento probatório que contraria a aludida confissão extrajudicial, assim como existe princípio de prova escrita suficientemente verosímil do não recebimento do preço total, pela A., da venda feita à 1ª R.

Quanto àquele aspecto, como alerta A. Varela (Cód. Civil Anotado, Vol. I, 3ª Ed., nota 3. ao artigo 394º, pág. 342), por não se admitir a prova testemunhal contra o conteúdo de documentos na parte em que estes têm força probatória plena não quer dizer que outra prova documental ou confissão não possam probatoriamente servir para destruir esse facto plenamente provado. Ora, resulta da própria confissão judicial espontânea da 1ª R., confissão feita no articulado de contestação, em especial no art. 30º de tal peça, que a A. não recebeu a totalidade do preço da parte da mesma R., não escamoteando, aliás, tal R. que não pagou a totalidade do preço. O que ela diz é que o remanescente da quantia reclamado pela A., e que não pagou, afinal não lhe cabia pagar porque foi assumida individualmente pelos seus 4 sócios/gerentes que emitiram cada um o seu cheque para liquidação dessa quantia remanescente, sendo por isso eles 4 os verdadeiros devedores (versão que, aliás, tal R. não provou, tendo a A. provado outra diferente). Trata-se de uma contra-confissão que igualmente tem força probatória plena (art. 358º, nº 1, do CC), e que é um meio probatório legítimo de infirmar a confissão da A., que resultava do por esta declarado na mencionada escritura.

E quanto ao último aspecto, existia começo ou princípio de prova por escrito, são os 4 cheques referidos no facto 2. e 11., emitidos e entregues no dia da escritura pelos 4 sócios/gerentes da 1ª R. (nenhum deles tendo obtido provisão – facto 3.), pelo que a prova testemunhal em que a julgadora se fundou (vide a motivação do despacho da decisão da matéria de facto a fls. 418v/419v) para dar como provado que a 1ª R. ainda devia a quantia de 368.500 € à A. é perfeitamente válida para infirmar a confissão feita pela A., na escritura de compra e venda, de recebimento da totalidade do preço        

Em segundo lugar, a emissão dos 4 cheques pessoais pelos 4 sócios/gerentes da 1ª R. não exonera a mesma da sua responsabilidade primária, passando aqueles sócios/gerentes a ser os únicos responsáveis. Vejamos.

Quanto à dação em cumprimento, a prestação de coisa diversa da que for devida só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento (art. 837º do CC). Ora, não há facto nenhum provado que comprove que com a entrega dos cheques pelos sócios/gerentes da 1ª R, a A. tenha dado assentimento a uma exoneração da 1ª R. Não há, por isso, qualquer datio in solutum como defende tal R./recorrente.

Diferentemente da dação em cumprimento é a dação em função do cumprimento, ou datio pro solvendo, prevista no art. 840º do CC. Esta também tem por objecto a realização de uma prestação diferente da que é devida, mas o seu fim não é, no entanto, o de extinguir imediatamente a obrigação, mas o de facilitar apenas o seu cumprimento, dependendo também do consentimento do credor. Neste caso a obrigação mantém-se e só se extinguirá se e à medida que o respectivo crédito for sendo satisfeito à custa do novo instrumento jurídico para o efeito proporcionado ao credor. Esta finalidade – de facilitar a satisfação do crédito e não de o extinguir imediatamente – é realizada a cada passo na prática da vida, mediante vários expedientes, por exemplo, ou mediante a entrega de uma coisa para que vendendo-a o credor se cobre do seu crédito, através da transmissão de um crédito do devedor sobre terceiro, ou por assunção de dívida, nomeadamente por emissão de uma letra para facilitar ao credor a negociação do crédito com um banco, ou a execução em juízo se necessário, ou por emissão de um cheque. Quando assim suceda, ficará a existir ao lado da obrigação primitiva (fundamental) uma outra obrigação (cambiária) resultante da subscrição do título de crédito. O credor terá então à sua disposição dois créditos apontados ao mesmo fim. A assunção da segunda obrigação não é feita, normalmente, com a intenção de apagar ou extinguir imediatamente a primeira obrigação. Mas também não se trata de acrescentar um outro crédito ao crédito já existente no património do credor, por modo que ele fique a com direito a cobrar um crédito dobrado. Como a constituição do novo direito se faz, em princípio, no exclusivo interesse do credor, nada impedirá que este renunciando ao benefício opte pelo cumprimento da obrigação fundamental. Como na prática, por vezes se torna difícil saber se em determinada situação há uma dação em cumprimento ou dação pro solvendo (ou até novação), o legislador aplanou tais dúvidas através da presunção estabelecida no art. 840º, nº 2, do CC, designadamente que a assunção de uma dívida, por exemplo através da emissão de uma letra, se presume como sendo uma dação pro solvendo (vide a lição de A. Varela, que temos vindo a acompanhar, em D. Obrigações, Vol. II, 2ª Ed., pág. 138/141, e em Cód. Civil Anotado, Vol. II, 2ª Ed., em anotação ao referido 840º, nota 2., pág. 110).

No nosso caso, como há pouco dissemos, não está comprovado a extinção da obrigação fundamental, mediante uma dação em cumprimento com assentimento da A. credora, nem se mostra ilidida a mencionada presunção, pela 1ª R./recorrente, face à emissão dos 4 referidos cheques por cada um dos 4 referidos sócios/gerentes da mesma.

Nem se mostra, aliás, comprovada alguma novação, porque também dependente do consentimento da A. credora e de declaração expressa que na situação em concreto em análise não existe (art. 859º do CC). Nem demonstrada uma transmissão singular de dívida da 1ª R. para os seus 4 gerentes, com a emissão de tais cheques, porque falha de qualquer ratificação da A. credora (art. 595º, nº 1, a), do CC).

O que se provou, pois, e apenas, foi a emissão de 4 cheques para pagamento do remanescente do crédito da A., uma dação pro solvendo, e num contexto muito preciso, o de os cheques funcionarem inicialmente como garantia – como é do conhecimento geral e resulta dos usos da actividade comercial, o cheque de garantia é pré-datado (data posterior à da sua emissão), ou seja destina-se precisamente a ser posteriormente datado após a sua emissão, e apresentado a pagamento após se constatar que o sacador não cumpriu a obrigação a que ele ou terceiro estava vinculado, sendo um título exequível (vide neste sentido P. Romano Martinez, Garantias do Cumprimento, 5ª Ed. pág. 67) - só sendo aqueles 4 cheques pagáveis (o que não aconteceu) quando os prédios da 1ª R. estivessem em fase de acabamento ou se procedesse às primeiras vendas caso a 1ª R. não pagasse ou não fizesse uma dação em pagamento com alguns dos apartamentos que viria a construir nos lotes vendidos (factos 2., 3. e 10.).       

Improcede, pelo exposto esta parte do recurso.

4. No que respeita à impugnação pauliana (conclusões de recurso 10ª a 15ª). Escreveu-se na decisão recorrida que:

“O instituto acolhe-se positivamente nos arts. 610.º a 622.º do Código Civil.

(…)

São pressupostos da procedência da ação a existência de um crédito de que seja sujeito ativo o impugnante (ainda que não vencido ou ilíquido) e de um ato de natureza patrimonial por banda do devedor que envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do ativo, seja por aumento do passivo (por ex., assunção de divida) – art. 610.º al. a) Código Civil.

É ainda requisito geral da vertente impugnação que do ato impugnado resulte a impossibilidade prática de satisfação integral do crédito do impugnante ou o agravamento dessa impossibilidade (al. b) do art. 610.º Código Civil), sendo que é ao devedor ou terceiro adquirente que cabe demonstrar que o devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor do que a dívida ao A. (art. 611.º Código Civil). Em caso de ato oneroso – como sucede na compra e venda -, posterior ao crédito, o impugnante tem de provar a má-fé do devedor e do terceiro adquirente, isto é, a consciência do prejuízo que o ato oneroso causa ao credor (art. 612.º, n.º2 Código Civil). Densificando a noção de má-fé para este efeito, Vaz Serra escreve que o art. 612.º, n.º2 Código Civil exige “a previsão do dano que para os credores deriva do ato”, sendo que esse conhecimento, na maioria dos casos, será provado com base em elementos presuntivos, isto é, a partir de factos indiciários que, seguindo a experiência comum, permitam induzir esse conhecimento.

Na situação que nos ocupa é inequívoco o crédito da A., remontando a sua constituição a 2007, mas sendo que, tendo sido acordada a devolução logo que em fase de acabamento do prédio construído pela primeira Ré ou das primeiras vendas, é certo que desde 2011 as frações foram participadas às Finanças, tendo manifestamente a Ré procedido a vendas até que, no ano de 2014, alineou as últimas frações às co-Rés.

O crédito da A. constituiu-se e venceu-se, por isso, antes do ato de alienação de 4.7.2014 e este ato retirou do património da vendedora o que ali existia que ainda constituía garantia patrimonial de satisfação daquele crédito, não existindo outros bens capazes de preencher tal função.

Já a má-fé das partes alienante e adquirentes, traduzida na consciência do prejuízo dos atos de venda para A., é requisito que não poderia deixar de se demonstrar. Tanto a vendedora como as compradoras, sociedades com sócios comuns, sabiam da existência do crédito da A. e da impossibilidade real do seu cumprimento pela ausência de outros bens. A realização da venda no dia seguinte ao decretamento do arresto não poderia ser mais eloquente.

Verificam-se, por isso, os requisitos da procedência da impugnação pauliana”.

Uma vez que a factualidade provada se manteve inalterada, perante a mesma, a argumentação jurídica da sentença recorrida está certa face aos textos legais convocados.

As recorrentes contrapõem basicamente 3 razões: que inexiste o crédito da A. sobre a 1ª R; que não existe a impossibilidade prática da satisfação do crédito da A., ou agravamento dessa impossibilidade, pela existência vinculante dos cheques; e falta comprovada de má fé das RR enquanto alienante e adquirentes, face ao facto não provado sob 1. Mas sem razão.

Quanto à 1ª razão, não é verdade o alegado, pois o crédito da A., no montante de 368.500 € existe (factos provados 2., 9. e 10.).

Quanto à 2ª razão, disse-se na sentença recorrida, com toda a pertinência, que é ao devedor ou terceiro adquirente que cabe demonstrar que o devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor do que a dívida ao A. (art. 611º CC). Efectivamente o requisito inscrito no art. 610º, b), relaciona-se com aquele normativo. Como explica A. Varela (CC Anotado citado, Vol. I, em anotação ao referido 611º, pág. 596), em princípio, numa acção de impugnação pauliana devia caber inteiramente ao autor fazer a prova dos requisitos necessários à procedência do pedido, nos termos do art. 342º, e portanto devia caber-lhe não só a prova do montante da dívida e da anterioridade do crédito, como da diminuição da garantia patrimonial nos termos da b) do art. 610º. No entanto por razões compreensíveis – dificuldade ou mesmo impossibilidade de provar que o devedor não tem bens – o artigo atribui ao devedor obrigado, e ao adquirente, o encargo de provar que possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao da dívida. Ora, está provado que na data das vendas dos prédios pela 1ª R. às demais RR o património dessa 1ª R. era exclusivamente constituído por tais bens, ficando assim tal 1ª R. sem quaisquer bens (factos 15. e 16.). Não lograram, por isso, as RR/recorrentes provar o requisito legal impeditivo inscrito nesse art. 611º.

Quanto à 3ª razão, não exige a lei, no citado art. 612º, nº 2, que que com o acto impugnado haja a intenção de prejudicar um dano ao credor, que devedor e adquirente ajam dolosamente, nas suas diversas modalidades de dolo directo, necessário ou eventual (vide A. Varela, ob. cit., nota 2. ao artigo 612º, pág. 597, e Almeida Costa, D. Obrigações, 7ª Ed., pág. 772). Basta, pois, a mera consciência do prejuízo ou actuação com negligência consciente.

No caso, não se provou sob 1. que as vendas da 1ª para as restantes RR constituíram um mero expediente para subtrair aquele património à esfera jurídica da 1ª R. de modo a furtá-lo à acção da A. Mas este facto não provado só significa que não se comprovou que alienante e adquirentes tivessem actuado com intenção de prejudicar a A. credora, que tivessem agido dolosamente com tal intuito, nada mais. Todavia, comprovou-se a má fé das RR, pois na data das vendas referidas em 7. e 8. o património da 1ª R. era exclusivamente constituído pelos bens vendidos às demais RR, sabendo todas as RR que, no momento das vendas em 4.7.2014, com tais vendas, no património da 1ª R. não havia bens para garantir o pagamento que ficou por efectuar no momento da celebração da escritura de 2007 (factos 15. e 16.)

Não procede, por isso esta parte do recurso.     

5. Quanto a parte do pedido reconvencional (conclusão de recurso 16ª). Fundava-se o mesmo no facto de a 1ª R. ter sido obrigada a alterar a propriedade horizontal inicialmente prevista o que determinou atraso no alvará de utilização, determinando demora na concretização das escrituras de venda e, por força disso, continuação do pagamento de juros bancários no montante de 35.000 €.

O que se provou nesta matéria foram apenas os factos 24. e 25. Isto é, que quando já se encontrava o lote 30 construído, a 1ª R. foi confrontada pela Câmara Municipal com a recusa da propriedade horizontal já constituída e com a necessidade de fazer alterações às plantas iniciais porque não aceitava que se encontrassem previstas fracções autónomas correspondentes às 3 garagens, nem que estas constassem como arrumos, o que resultou de uma interpretação da Conservatória quanto ao número mínimo de garagens previsto nas plantas de síntese do loteamento; só em 26 de Novembro de 2010 tendo a 1ª R. conseguido obter o alvará de autorização de utilização. Todavia, como a mesma bem sabe, não se provaram os outros factos relevantes que alegou sobre tal matéria, pois não se provou, sob 8. a 11., que: o referido em 24., havia sido garantido pelo de cujus à R.; o referido em 24., implicou demora de 7/8 meses na realização das escrituras dos apartamentos já prometidos vender; não recebendo a R. os respectivos preços, na ordem de 700.000/800.000 €; e tendo de suportar juros de cerca de 35.000 € ao BPN dessas importâncias.

Não se tendo provado tal factualidade, sobretudo o último facto, inexiste qualquer dano a indemnizar. Não procede, assim esta parte do recurso.

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) Quando se impugna a matéria de facto, tem de observar-se os ditames do art. 640º, nº 1, a) a c), e nº 2, a), do NCPC, designadamente quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda;

ii) A omissão desse ónus, imposto pelo nº 2, a), do referido artigo, implica a rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, pois tal ónus não se satisfaz com a menção de que os depoimentos estão gravados no sistema digital, nem com a transcrição, total ou parcial, de depoimentos das testemunhas, pois tal transcrição é uma mera faculdade;

iii) A matéria de facto corresponde a ocorrências da vida; que mais não são do que manifestações externas de factos concretos simples ou complexos, naturais ou não, ou de factos humanos voluntários, ou representam factos internos ou fenómenos psicológicos, compreensíveis e articuláveis por qualquer pessoa, pelo comum mortal;

iv) A escritura pública de compra e venda não faz prova plena do pagamento do preço ao vendedor. Porém, a declaração do vendedor perante o notário de já ter recebido o preço, tem tal valor, porquanto implica o reconhecimento perante a parte contrária de um facto que lhe é desfavorável (arts. 352º, 355º, nºs 1 e 4, e 358º, nº 2, do CC); por isso, se o vendedor alega que não recebeu o preço, impõe-se-lhe alegar a falsidade do documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento;

v) Fora destas hipóteses, quando existir um princípio de prova por escrito suficientemente verosímil é possível o vendedor complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória; e também no caso de existirem nos autos outros elementos probatórios, designadamente confissão do comprador que obste à atribuição de natureza confessória à afirmação do vendedor do recebimento preço;

vi) Na dação em cumprimento, a prestação de coisa diversa da que for devida só exonera o devedor se o credor der o seu assentimento (art. 837º do CC); diferentemente na dação em função do cumprimento, ou datio pro solvendo (art. 840º do CC), embora esta também tenha por objecto a realização de uma prestação diferente da que é devida, o seu fim não é o de extinguir imediatamente a obrigação, mas o de facilitar apenas o seu cumprimento, por exemplo por assunção de dívida através da emissão de cheque para facilitar ao credor a sua cobrança ou a execução em juízo se necessário;

vii) Como na prática, por vezes se torna difícil saber se em determinada situação há uma dação em cumprimento ou dação pro solvendo (ou até novação), o legislador aplanou tais dúvidas através da presunção estabelecida no art. 840º, nº 2, do CC, designadamente que a assunção de uma dívida, por exemplo através da emissão de uma letra ou cheque se presume como sendo uma dação pro solvendo;

viii) Não estando comprovado a extinção da obrigação fundamental, dívida da R., sociedade comercial, mediante uma dação em cumprimento com assentimento da A. credora, nem se mostrando ilidida a mencionada presunção, pela R., face à emissão de 4 cheques por cada um dos 4 sócios/gerentes da mesma para garantir oportunamente o pagamento da dívida dessa sociedade, estaremos perante uma dação pro solvendo e não perante uma dação pro solutum;

ix) Para obviar ao requisito inscrito no art. 610º, b), do CC – resultar do acto impugnado impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito (ou agravamento dessa impossibilidade), a lei (art. 611º) atribui ao devedor obrigado, e ao adquirente, o encargo de provar o devedor possui bens penhoráveis de valor igual ou superior ao da dívida;

x) Para comprovar a má fé, prevista no art. 612º, nº 2, do CC, não exige a lei,  que com o acto impugnado haja a intenção de provocar um dano ao credor, que devedor e adquirente ajam dolosamente (nas suas diversas modalidades de dolo directo, necessário ou eventual), bastando a mera consciência do prejuízo ou actuação com negligência consciente.

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

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Custas pelas RR/recorrentes.

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  Coimbra, 16.2.2016

Moreira do Carmo ( Relator )

Fonte Ramos

Maria João Areias