Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1803/05.5PTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: SUSPENSÃO DA PENA
REVOGAÇÃO
Data do Acordão: 05/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 50º CP
Sumário: 1. No actual regime não basta afirmar as condenações sofridas pelo agente para se concluir pela infirmação do juízo de prognose favorável determinante da suspensão da pena. Fosse assim e estaríamos a regressar enviesadamente ao regime inicial do Código de 1982.
2. A revogação da suspensão da pena como decorrência do cometimento de novo crime no período da suspensão deixou de ser um acto meramente formal, implicando agora uma apreciação judicial das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime para, em função das conclusões assim obtidas, se decidir da vantagem ou inconveniente da revogação, juízo que será necessariamente conformado pelas finalidades consagradas no art. 50º, nº 1, em função, pois, das necessidades de protecção do bem jurídico subjacente à norma violada pelo condenado e das necessidades de reintegração do agente na sociedade.
3. Tendo sido imposta ao condenado a pena de suspensão da execução da pena de prisão e cometendo este um novo crime no decurso do período de suspensão, é ainda o critério dos fins das penas que deve ser ponderado. O juiz verificará se o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de prognose que justificou a suspensão da execução da pena, permitindo alicerçar a convicção de que a suspensão se revela insuficiente
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO:

Nestes autos de processo comum que correram termos pelo 2º Juízo Criminal de Aveiro foi proferida sentença que, julgando procedente a acusação deduzida pelo M.P., condenou o arguido J..., como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 2, do DL nº 2/98, de 3de Janeiro, na pena de10 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de dois anos.
Ulteriormente foi verificada, por certidões entretanto juntas aos autos, a prática pelo arguido de novo crime de condução sem habilitação legal no período de suspensão da execução da pena, tendo sido designada data para tomada de declarações ao arguido com vista a apurar as circunstâncias em que ocorreram os factos correspondentes.
Ouvido presencialmente, o arguido prestou as declarações que ficaram exaradas no auto de fls. 146/147.
O M.P. promoveu a revogação da suspensão da execução da pena nos termos constantes de 154/157.
O Mmº Juiz proferiu então o seguinte despacho (fls. 158/160):
Por sentença proferida nestes autos em 20/09/2006, o arguido J... foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art. 3º nº 2 do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos.
Conforme resulta do CRC junto aos autos e da certidão de fls. 114 a 123, oriunda do Processo Comum Singular nº 421/08.0PBAVR do 3º Juízo Criminal de Aveiro, e por factos ocorridos em 09/06/2007, ou seja dentro do período de um ano posterior ao transito em julgado daquela sentença (prazo para que terá que ser reduzido o período da suspensão por força do disposto nº art. 50º nº 5 do Código Penal na sua actual redacção que terá que ser aplicável porque mais favorável ao arguido), o arguido foi entretanto condenado (em 30/01/2009) por um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art. 3º nº 2 do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 10 meses de prisão substituída por 300 dias de trabalho a favor da comunidade.
Apesar da prática de um crime doloso de idêntica natureza ocorrido no período da suspensão da execução da pena, importa referir que esta condenação em pena de prisão não foi efectiva, mas sim substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, o que aponta, de alguma forma que com essa substituição, mais uma vez foi decidido dar uma nova oportunidade ao arguido em não cumprir uma pena de prisão efectiva. E nas declarações prestadas no dia 05/11/2009, declarações essas que prestou a fls.146 e 147, o arguido declarou: "Confirma ter sido efectivamente condenado por um crime de condução sem habilitação legal ocorrido em 9 de Junho de 2007 na Ava. Dr. Lourenço Peixinho, sendo que nessa altura, tinha vindo buscar uma sobrinha sua que aquela hora tinha chegado de comboio vinda do Luxemburgo. Está bastante arrependido de tal conduta, sendo que na altura até andava a pensar tentar tirar a carta de condução através da oral uma vez que tem dificuldades em ler. Encontra-se a cumprir uma pena de 8 meses de prisão por crime de condução sem habilitação legal, sendo que até esta altura já cumpriu um mês dessa pena. Tem a seu cargo 2 filhos os quais estão a habitar a casa, sendo o mais novo (17 anos estudante) e o de 18 anos é que está a trabalhar e a sustentar a casa e a família. Divorciou-se da mulher há cerca de 13 anos mas já antes desse divórcio que tomou conta desses filhos e de uma outra que actualmente tem 24 anos e já faz vida autónoma. Mais uma vez refere que está arrependido dos factos praticados e promete não mais voltar a conduzir enquanto não obtiver carta de condução.”
Por todas estas razões, e não obstante os argumentos expostos pelo Ministério Público a fls. 154 no sentido da revogação da suspensão da execução da pena, entendo que, apesar de ter sido condenado por um crime de idêntica natureza ocorrido no período da suspensão da execução da pena, crime esse ocorrido quando já estavam decorridos cerca de ¾ do período legal dessa suspensão, terão sido minimamente atingidas as finalidades que serviram de base à suspensão, não havendo assim razões prementes que determinem a sua revogação.
Nestes termos, ao abrigo do disposto no art. 57º nº 1 do Código Penal, declaro extinta a pena de prisão por que o arguido J... foi condenado nos presentes autos.
Remeta boletim ao registo criminal.
Notifique.”

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
“I - Discordamos da douta decisão proferida a fls. 158 e seguintes dos autos, ao não revogar a suspensão de execução da pena de prisão ora fixada ao arguido, não obstante terem-se verificado, em concreto, todos os pressupostos exigidos pelo art. 560 do Cód. Penal, para o efeito.
II - O Tribunal não valorou devidamente o comportamento do arguido no decurso do período de suspensão de execução da pena de prisão, apesar da advertência solene de que o mesmo foi objecto no âmbito da douta sentença ora proferida.
III - Igualmente, não teve o Mmo Juiz em atenção os factos que o arguido havia praticado antes, durante e depois do período da suspensão da execução da pena de prisão ora fixada, reveladores de uma forte tendência, por parte do mesmo de viver ao “arrepio das normas”, em clima de absoluta impunidade.
IV - Nada apontando para se fazer uma prognose favorável ao comportamento futuro do arguido, antes pelo contrário.
V - Ponderando os diferentes critérios de determinação da medida concreta da pena, maxime uma medida de culpa elevada e exigências inderrogáveis de tutela do Ordenamento Jurídico e dos bens jurídicos violados, ligados á segurança da circulação rodoviária, não julgamos adequada a decisão de não revogação da suspensão de execução da pena de prisão, com base no mero argumento de que o arguido foi autor do mesmo tipo de crime decorridos que já estavam cerca de 3/4 do período legal de suspensão.
VI - É tão grave a prática de novo ilícito decorridos que sejam ¼, ½ ou os ¾ do período da suspensão, como pretende o Mmo. Juiz a quo, no despacho de que ora se recorre.
VII-O legislador não distingue ou autonomiza sub-períodos temporais do prazo de suspensão, razão pela qual é processual e penalmente inócuo o momento em que, dentro do prazo de suspensão de execução da pena, o arguido volte a delinquir.
VIII - O que a lei não distingue, não cabe ao julgador fazê-lo ­“ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.
IX - Não pode o julgador considerar que se atingiram as finalidades que serviram de base à suspensão da pena de prisão, só porque o arguido cometeu o novo ilícito em data próxima do termo daquele período, esvaziando assim de conteúdo e de sentido a solene advertência feita àquele aquando da prolação da douta sentença.
X - Com efeito, o arguido nunca interiorizou o efeito das penas que já havia sofrido, em momentos anteriores à condenação destes autos, continuando a praticar o mesmo crime, quer no decurso do período da presente suspensão, quer já posteriormente.
XI - Todos os antecedentes criminais em conjugação com a conduta que levou a cabo no decurso do período de suspensão da pena de prisão e ainda face aos factos posteriores pelos quais veio a ser julgado e condenado, sempre pelo mesmo ilícito criminal - condução de veiculo sem habilitação legal -, entendemos que são razões suficientes para que se crie uma convicção séria de que o processo de ressocialização do arguido não beneficiará em nada com a não revogação da presente suspensão de execução da pena de prisão, decidindo-se em sentido contrário, tal como fez o Mmo. Juiz a quo, é esvaziar-se de conteúdo o instituto da suspensão de execução da pena de prisão.
XII - Com a douta decisão, que aqui se sindica, violou o Mmo. Juiz a quo o disposto nos arts. 56°, 44° e 50°, todos do Cód. Penal
Termos em que Vossas Excelências revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que determine a revogação da suspensão de execução da pena de prisão aplicada ao arguido nestes autos, farão, como sempre, justiça”.

O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.

Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é a de saber se, face aos elementos constantes dos autos, deverá ser revogada a suspensão da execução da pena de prisão.

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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Como se expôs em sede de relatório, J... foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução.
A suspensão da execução da pena assume carácter imperativo sempre que se verifiquem os correspondentes pressupostos, previstos no art. 50º, nº 1, do Código Penal (diploma a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção de origem), oferecendo-se como uma das alternativas legais à imposição de uma pena de prisão efectiva, a que o legislador atribuiu o estatuto de ultima ratio, reservando-a para os casos em que as penas de substituição aplicáveis se apresentem como manifestamente insuficientes ou desajustadas para lograr as finalidades subjacentes aos fins das penas.
O condenado veio, no entanto, a cometer novo crime de idêntica natureza no decurso do período de suspensão.
A versão original do Código Penal de 1982 consagrava a revogação da pena suspensa na sua execução como consequência do cometimento pelo condenado, no decurso do período de suspensão, de crime doloso pelo qual viesse a ser punido com pena de prisão. Dispunha então o nº 1 do art. 51º que “a suspensão será sempre revogada se, durante o respectivo período, o condenado cometer crime doloso por que venha a ser punido com pena de prisão”. Partia-se de uma estreita correlação entre o incumprimento da pena cuja execução fora suspensa e o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do delinquente, considerando-se que a condenação em pena de prisão por crime doloso cometido no período de suspensão evidenciava a falência daquele juízo de prognose e justificava a revogação automática da suspensão.
As alterações introduzidas pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, implicaram uma significativa evolução face ao regime anterior.
Dispõe a al. b) do nº 1 do actual art. 56º:
“1 - A suspensão da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) …
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.”
A introdução do requisito actualmente exigido – revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas – pôs termo à revogação ope legis da revogação da suspensão como mera decorrência do cometimento de um novo crime no período da suspensão e restringiu a possibilidade de revogação àquelas situações em que o cometimento de um novo crime naquele período temporal implicasse a convicção de que o juízo de prognose que havia fundamentado a suspensão se deveria considerar definitivamente arredado. Mas precisamente porque é este, agora, o elemento determinante da revogação da suspensão, a lei deixou de exigir a natureza dolosa do novo crime cometido, assim como deixou de exigir a condenação em pena de prisão.
Ou seja, a revogação da suspensão da pena como decorrência do cometimento de novo crime no período da suspensão deixou de ser um acto meramente formal, implicando agora uma apreciação judicial das circunstâncias em que ocorreu o cometimento do novo crime para, em função das conclusões assim obtidas, se decidir da vantagem ou inconveniente da revogação, juízo que será necessariamente conformado pelas finalidades consagradas no art. 40º, nº 1, em função, pois, das necessidades de protecção do bem jurídico subjacente à norma violada pelo condenado e das necessidades de reintegração do agente na sociedade. Concomitantemente, foi alargado o leque de medidas admissíveis como reacção ao incumprimento das condições de suspensão, de modo a garantir que a efectivação da pena suspensa se restringirá aos casos em que o condenado, através da sua conduta, revele uma verdadeira desconformação com os pressupostos que determinaram a suspensão da execução da pena de prisão. E assim, o mero incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, deixou de justificar a revogação, passando a exigir-se que o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social (al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal).
Se estes são os requisitos materiais da revogação, no plano processual impõe-se a prévia realização das diligências que se revelem úteis para a decisão, avultando entre as possíveis, a audição do condenado. Só através dessa averiguação se poderá concluir com segurança pela eficácia ou ineficácia da manutenção da suspensão, pré-ordenada às finalidades visadas pela pena suspensa, sendo certo que tratando-se de motivações de ordem subjectiva ninguém melhor do que o condenado estará em condições de explicar as razões do incumprimento dos deveres ou regras de conduta impostas ou do plano de readaptação, ou mesmo as razões que conduziram ao cometimento de novo crime no período da suspensão. É esta, aliás, a finalidade por excelência do direito que reconhecidamente assiste ao condenado, de ser ouvido antes da decisão de revogação: permitir-lhe fornecer uma explicação que de alguma forma contribua para reduzir ou afastar o impacto negativo do incumprimento em que incorreu ou da nova actuação criminosa, em ordem a convencer o tribunal da subsistência das expectativas em si depositadas e que justificaram a suspensão da execução da pena.
As finalidades subjacentes à aplicação das penas, indicadas no art. 40º, nº 1, do Código Penal, são a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, visando claramente finalidades de prevenção geral e especial, não finalidades de compensação da culpa ou de retribuição do mal causado - Neste sentido cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 331..
Assim, no juízo de prognose postulado pela suspensão da execução da pena de prisão, garantidas que sejam pela suspensão as irrenunciáveis exigências de defesa do ordenamento jurídico, importará essencialmente averiguar se esta opção garante as exigências de ressocialização, consentindo a formulação de um juízo favorável à interiorização, pelo destinatário, do significado da pena, em termos tais que este adopte, no futuro, um comportamento lícito, conforme às exigências do ordenamento jurídico-penal, não voltando a delinquir. Tal aferição faz-se em função do critério estabelecido no art. 50º, nº 1, oferecendo-se a pena de prisão suspensa na sua execução como a pena adequada ao caso sempre que, em função da personalidade do agente, das condições da sua vida, da sua conduta anterior e posterior ao crime e das circunstancias deste, seja possível concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, expressas numa pena de prisão suspensa na sua execução, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição referidas no já citado nº 1 do art. 40º.
Do mesmo modo, tendo sido imposta ao condenado a pena de suspensão da execução da pena de prisão e cometendo este um novo crime no decurso do período de suspensão, é ainda o critério dos fins das penas que deve ser ponderado. O juiz verificará se o cometimento do novo crime infirmou definitivamente o juízo de prognose que justificou a suspensão da execução da pena, permitindo alicerçar a convicção de que a suspensão se revela insuficiente para garantir o respeito futuro pelos valores jurídico-criminalmente tutelados ou se, pelo contrário, apesar da prática do novo facto criminoso, subsistem ainda fundadas expectativas de ressocialização, sendo razoável admitir um comportamento futuro conforme com os ditames do direito. No primeiro caso, revogará a suspensão da execução da pena de prisão, o que determinará o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
Apreciemos, pois, à luz das considerações que antecedem, a situação concreta retratada nos autos.
Como vimos, o condenado, que já anteriormente à condenação imposta nos presentes autos tinha cometido diversos crimes da mesma natureza, voltou a cometer novo crime no período de suspensão da pena.
É claro que não basta afirmar as condenações sofridas pelo agente para se concluir pela infirmação do juízo de prognose favorável determinante da suspensão da pena. Fosse assim e estaríamos a regressar enviesadamente ao regime inicial do Código de 1982. No regime actual, uma condenação decorrente de comportamento não revelador de verdadeira tendência para o crime (por exemplo, uma condenação isolada por crime sem particular relevo para o juízo relativo à desconformidade ético-social do comportamento do condenado) jamais permitiria afirmar o afastamento do juízo de prognose e a necessidade de cumprimento efectivo da pena de prisão. Situação diversa é aquela em que os antecedentes criminais do condenado evidenciam já por si uma personalidade fortemente refractária do dever de respeito à lei, denotando a sua incapacidade de assimilar a carga negativa associada aos comportamentos penalmente sancionados. É esse, aliás, o caso dos autos, em que o cometimento de novo crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal no decurso do período de suspensão da execução da pena se não oferece como facto isolado, mas verdadeiramente como mais um elo de um encadeado de factos que parece não ter fim à vista, como, de resto, indiciam as explicações fornecidas pelo condenado exaradas em auto. Tanto quanto resulta do certificado de registo criminal e das certidões constantes dos autos, o arguido foi objecto das seguintes condenações, todas elas por crime de condução de veículo sem habilitação legal:
- No Processo Comum nº 03/00.5GDAVR, do 2º Juízo Criminal de Aveiro, foi condenado por sentença de 13/02/2001, por factos datados de 10/12/1999, em pena de multa;
- No Processo Comum nº 291/01.0GTAVR, do 2º Juízo Criminal de Aveiro, por sentença de 09/07/2002, por factos datados de 15/07/2001, foi novamente condenado em pena de multa;
- No Processo Sumário nº 769/02.8GCAVR, do 1º Juízo Criminal de Aveiro, foi condenado por sentença de 02/10/2002, por factos praticados em 11/09/2002, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos;
- No Processo Abreviado nº 223/05.6GTAVR, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ílhavo, foi condenado por sentença de 18/01/2006, por factos de 28/05/2005, na pena de 6 meses e 15 dias de prisão, suspensa na sua execução por dois anos;
- Nestes autos (Processo Comum nº 1803/05.5PTAVR.C1 do 2º Juízo Criminal de Aveiro), foi condenado por sentença de 20/09/2006, por factos ocorridos em 9 de Maio de 2005, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos.
- Volvidos apenas cerce da nove meses, mais concretamente, em 9 de Junho de 2007, no decurso do período de suspensão da pena imposta nos presentes autos, cometeu novo crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, tendo sido condenado no Processo Comum nº 421/08.0OPBAVR, do Juiz 3 do Juízo de Média Instância Criminal de Aveiro, por sentença de 30/01/2009, na pena de 10 meses de prisão substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
- No Processo Comum nº 329/06.4GAALB, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Albergaria-a-Velha, por sentença de 30 de Outubro de 2007 foi condenado na pena de 6 meses de prisão, a cumprir em períodos correspondentes a 36 fins-de-semana, por factos praticados em 17/04/2006, portanto, ainda anteriores à condenação imposta nos presentes autos (condenação não considerada na sentença por ainda não constar do certificado de registo criminal).
- E ulteriormente veio ainda a ser condenado no Processo Sumário nº 1495/09.2PTAVR, do Juízo de Pequena Instância Criminal de Ílhavo, por sentença de 20 de Julho de 2009, por factos de 23 de Junho do mesmo ano, na pena de 8 meses de prisão.
Ou seja: Não obstante a sucessão de condenações anteriormente sofridas, confrontado com a que lhe foi imposta nos presentes autos – pena de prisão com execução suspensa – o condenado voltou a praticar novo crime de condução sem habilitação legal no período da suspensão da pena. Como convencer, então, da subsistência do bem fundado do juízo de prognose que levou à suspensão da execução da pena? Depois de duas condenações em pena de multa e de três condenações em pena de prisão suspensa na sua execução, a prática de um novo crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal não desmente a eficácia da pena de substituição para a tutela do bem jurídico já anteriormente violado por cinco vezes? Quantas condenações seriam ainda necessárias para que se pudesse chegar a essa conclusão? E retenha-se que as condenações não se ficaram por aqui…
Mas se as conclusões consentidas pela sucessão de condenações já de si são algo de distinto da mera referência às condenações sofridas – são como que a análise crítica do seu significado (e no juízo de prognose o tribunal deve atender à conduta anterior e posterior ao facto) – se ainda assim se entendesse que seriam insuficientes para se considerarem como esgotadas todas as possibilidades de, com a suspensão, virem a ser alcançadas as finalidades da punição, bastaria atentar nas declarações do condenado. O grau de indiferença manifestado perante a anterior condenação em pena suspensa é de tal ordem que vem justificar-se com o facto de ter ido buscar uma sobrinha que tinha chegado de comboio vinda do Luxemburgo. Dizê-lo, é o mesmo que dizer que na sua perspectiva tudo justifica que conduza sem carta; basta que na sua óptica seja necessário, lhe dê jeito ou lhe convenha…
Claro que para além dessa justificação manifestou ainda o seu arrependimento pela conduta assumida. Contudo, o arrependimento que releva é o demonstrado por actos, não o que resulta de declarações com sentido de oportunidade. Verdadeiro arrependimento, relevante para o juízo de reinserção, resultaria da manutenção de uma conduta criminalmente irrepreensível após a condenação em pena suspensa, pelo menos na esfera de comportamentos que determinou a condenação suspensa, o que no caso não sucedeu. De todo o modo, a declaração de arrependimento neste momento é inócua. A audição do condenado para efeitos de revogação da suspensão da pena não visa recolher declarações de duvidosa sinceridade, mas apenas compreender as razões subjacentes à actuação criminalmente relevante, facultando ao condenado a possibilidade de justificar a conduta adoptada.
É tempo de o condenado entender que a condenação em pena suspensa não é um formalismo desprovido de consequências nem representa uma forma de desculpabilização de actos criminalmente censuráveis. Bem pelo contrário, traduz solene aviso para a gravidade da conduta censurada e, quando imposta em crimes puníveis em alternativa com pena de multa ou de prisão, significa o reconhecimento da insuficiência da pena de multa para a tutela dos bens jurídicos protegidos pela norma violada; e significa também que a sua conduta se encontra já num patamar elevado de censurabilidade, com a consequente advertência para a redução da tolerância da ordem jurídica para com futuros comportamentos idênticos. No caso vertente, essa solene advertência transmitida sob a forma de pena de substituição – pena de prisão suspensa na sua execução – não evidenciou revestir o grau de dissuasão da prática de novos crimes de que supostamente estaria dotada. Bem pelo contrário, revelou-se ineficaz para assegurar as finalidades apontadas às penas criminais (a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade). O juízo de prognose positiva foi, pois, deslegitimado pela actuação do próprio recorrente. Não colhe, por outro lado, a afirmação constante do despacho recorrido, de que pelo facto de no momento da prática do novo crime terem já decorrido cerca de ¾ do período da suspensão terão sido minimamente atingidas as finalidades que serviram de base à suspensão, não havendo assim razões prementes que determinem a sua revogação”. A finalidade político-criminal subjacente ao instituto da suspensão não é o afastamento do delinquente do cometimento de novos crimes no período de suspensão, mas o seu afastamento futuro da prática de novos crimes, visando a «prevenção da reincidência» - Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 343., havendo, por outro lado, que ponderar ainda as exigências mínimas e irrenunciáveis do ordenamento jurídico, decorrentes das considerações de prevenção geral, que limitam o valor da socialização da liberdade subjacente ao instituto da suspensão da execução da pena - Idem, pag. 344..
Donde se conclui que não havendo verdadeiro fundamento para esperar que o condenado mantenha doravante uma conduta lícita, não resta alternativa: a suspensão da execução da pena deve ser revogada, pois só assim aquele interiorizará o desvalor da sua conduta e só assim ficarão asseguradas as exigências de prevenção geral.

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III – DISPOSITIVO:

Termos em que acordam nesta secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e revogando, consequentemente, a suspensão da execução da pena de prisão imposta a J..., determinando o seu efectivo cumprimento.
Sem tributação.

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Coimbra, ____________
(texto processado pelo relator e
revisto por todos os signatários)




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(Jorge Miranda Jacob)




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(Maria Pilar de Oliveira)