Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1162/22.1T8SRE-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
TRANSAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
ÂMBITO DO TÍTULO
INSUFICIÊNCIA DO TÍTULO
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 236.º, 238.º DO CÓDIGO CIVIL, 715.º E 729.º, ALÍNEA C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Constando do título executivo a assunção pelo executado da obrigação de contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio, tal título seria bastante para o efeito de exigir o cumprimento da obrigação de proceder a esse contacto e comunicação, bem como de requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo.
II – Sendo outra a obrigação cujo cumprimento a exequente vem reclamar – a obrigação de pagamento da quantia correspondente a metade do valor existente no fundo –, para esse efeito o título executivo não é bastante.

III – Uma vez que, em face do título, essa obrigação estava dependente da autorização que viesse a ser concedida para a movimentação do fundo, a exequente apenas poderia exigir o seu cumprimento se alegasse e provasse, nos termos previstos no art.º 715.º do NCPCiv., que tal autorização já havia sido concedida, o que não fez.

Decisão Texto Integral:

Apelação nº 1162/22.1T8SRE-A.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Coimbra - Soure - Juízo Execução - Juiz …

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: Helena Melo

2.º Adjunto: Maria João Areias

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente no Largo .... ..., instaurou execução para pagamento de quantia certa contra BB, residente na Rua ..., ..., ..., pedindo o pagamento da quantia de 44.527,80€, acrescida de juros no valor de 1.180,90€, com fundamento em sentença de 09/06/2021 que havia homologado transacção celebrada entre as partes onde estas se comprometeram a partilhar o montante – constante da relação de bens – proveniente de um fundo de pensão no valor de Chf. 100.037,25 (correspondente a 98.094,97€) que reconheceram ser um bem comum. Alega a Exequente que ao valor do fundo tem que ser deduzido o valor de 9.039,37€ que a Exequente também estava obrigada a entregar, restando, por isso, o valor de 44.527,80€ que o Executado está obrigado a pagar.


*

O Executado veio deduzir oposição à execução, mediante embargos, invocando a excepção de incompetência em razão da matéria e do território e falta de autorização jurisdicional, bem como a inexequibilidade do título, alegando, em resumo:

- Que o tribunal português é incompetente em razão da matéria e do território para estabelecer a comunicabilidade dos depósitos e, também, para ordenar que o ora executado desencadeie os mecanismos necessários à obtenção dos fundos relacionados;

- Que apenas poderá proceder ao levantamento dos fundos com autorização do tribunal competente, no caso, o tribunal suíço;

- Que a transacção celebrada – onde as partes reconheceram os fundos como bens comuns – não é válida perante a instituição que detém o fundo;

- Que cumpriu a transacção, procurando efectuar o levantamento dos fundos em causa, o que não foi viável pela não aceitação da decisão proferida pelo Tribunal português, inexistindo, por isso, qualquer incumprimento da sua parte;

- Que a questão terá de ser dirimida nos tribunais suíços;

- Que o título executivo é inexequível porque dele não resulta uma obrigação clara, líquida e exigível.


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A Exequente apresentou contestação, alegando, em resumo:

- Que, na transacção em causa, as partes não se obrigaram a partilhar os fundos localizados em país estrangeiro, mas sim o valor correspondente ao depositado nesses fundos (por isso os valores existentes nos fundos foram convertidos para euros);

- Que os valores a que se reporta a transacção dizem respeito aos depositados em dois fundos existentes na Suíça, estando um em nome da Exequente (onde consta o valor de 9.039,37€) e outro em nome do Executado (onde consta o montante de 98.094,97€), perfazendo o total de 107.134,34€, cabendo à Exequente metade desse valor;

- Que, quando afirma que a competência pertencerá aos tribunais suíços, o Executado refere-se à divisão do fundo de pensão acumulado na Suíça, sendo certo, no entanto, que aquilo que a Exequente reclama nos autos não é a divisão dos fundos mas sim a entrega do montante de 44.527,80€ correspondente a metade dos valores depositados nos fundos, sendo que a obrigação a que o Executado se encontra adstrito – porque a reconheceu e aceitou na transacção – é a obrigação de partilhar a quantia fixa, que resulta nesse montante, e não os fundos de pensão;

- Que está em causa uma obrigação clara, líquida e exigível, e, por isso, exequível;

- Que não existe, no caso, qualquer incompetência em razão da matéria e do território.

Conclui pela improcedência dos embargos.


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Foi realizada a audiência prévia e foi proferido despacho saneador onde se apreciou o mérito da causa – por se ter entendido que o processo fornecia já os elementos necessários, sem necessidade de outra prova – e onde se decidiu julgar os embargos improcedentes.


*

Inconformado com essa decisão, o Executado veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

I- Recorrente e Recorrida reconheceram que as verbas indicadas na relação de bens são comuns, obrigando-se a proceder à sua partilha em partes iguais, cabendo metade a cada um.

II- Para esse efeito, o interessado BB obriga-se a contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio bem assim a requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo.

III- A transacção não define prazos de cumprimento, apenas estabelece que os fundos em causa são bens comuns.

IV- O montante do fundo existente em nome do interessado, resulta de uma pensão de invalidez, com início em 01.12.2010 e termo na idade da reforma aos 65 anos, 01.03.2028, decorrendo de uma incapacidade de 100%, conforme documento da Avena Fondation BCV 2éme pillier, junto ao Requerimento inicial

V- Através do fundo em causa, o recorrente recebe uma pensão mensal, destinada a protegê-lo na sua situação incapacitante.

VI- Assim, por cartas datadas de 27.12.2021 e 26.05.2023, a entidade detentora dos fundos, Avena Fondation BCV 2éme Pillier, informou que ocorre a competência exclusiva dos tribunais suiços para decidir sobre a divisão dos créditos da previdência profissional contra uma previdência profissional suiça (art. 64º da Lei Federal de Direito Internacional Privado (LDIP), bem como que o capital de pensão acumulado não poderia ser levantado em dinheiro, uma vez que o Recorrente se encontra a receber uma pensão de invalidez completa daquela Fundação. Cfr Doc. 1 da oposição apresentada e requerimento com a referência CITIUS 45857902 apresentado em 15.06.2023

VII- Nenhum destes itens (competência exclusiva dos tribunais suiços para decidir sobre a divisão dos créditos da previdência profissional contra uma previdência profissional suiça (art. 64º da Lei Federal de Direito Internacional Privado (LDIP) e a questão de o capital de pensão acumulado não poderia ser levantado em dinheiro, uma vez que o Recorrente se encontra a receber uma pensão de invalidez completa daquela Fundação), foram tidos em consideração na sentença, verificando-se a omissão de pronúncia da mesma sobre esta questão essencial, apesar de devidamente alegada e documentada.

VIII- A obrigação emergente da transacção homologada por sentença, não é, assim, válida perante a instituição que detém o fundo e o ora Recorrente não tem a faculdade de proceder ao seu levantamento, pelo facto de se tratar de uma pensão de invalidez que é paga mensalmente e cuja partilha/divisão depende da competência exclusiva dos tribunais suiços.

IX- Verifica-se, assim, a impossibilidade de cumprimento da obrigação vertida na sentença homologatória.

X- O Recorrente e a Recorrida não podem, assim, valer-se da sentença para resgatar o fundo em causa, pelo que existe impossibilidade de cumprimento da obrigação assumida, o que não foi tido em conta na Douta Sentença proferida.

XI- No âmbito do processo de inventário, a obrigação foi de partilhar o fundo em partes iguais. Apenas com a partilha seria possível efetuar o pagamento.

XII- Isto é, o pagamento só poderia ocorrer, antecedido da competente partilha e entrega do montante ao Recorrente para pagamento à Recorrida. A partilha/divisão é condição de pagamento e terá de ser autorizada pelos tribunais suiços e, também, encontra-se condicionada pelo facto de o Recorrente se encontrar a receber uma pensão de invalidez completa daquela Fundação, não podendo proceder ao levantamento em dinheiro do capital de pensão acumulado.

XIII- Face à impossibilidade de partilha/divisão que se encontra devidamente documentada nos autos, não existe obrigação do pagamento vertido na execução. Verifica-se a impossibilidade de cumprimento.

XIV- O destinatário normal, in casu as partes, teriam entendido o conteúdo da sentença em termos de partilha e não de pagamento direto, porquanto, a existir este, a transacção não seria realizada em virtude da dependência da movimentação dos fundos de decisão pela justiça suiça e, também, pelo facto de se tratar de uma pensão de invalidez que tem vindo a ser paga mensalmente ao requerido.

XV- Encontram-se, assim, violadas as normas estabelecidas nos artigos 9º, nºs 1 e 2, 236º, nºs 1 e 2, 238º, nºs 1 e 2, 401º, nºs 1 e 3 do Código Civil, 615º, al. d), 713º e 715º do CPC e artigo 64º da Lei Federal de Direito Internacional Privado (LDIP).

XVI- Deverá, por último, ser revogada a decisão de improcedência dos embargos de executado.

Termos em que deverá ser revogada a sentença proferida nos embargos de executado, de acordo com as conclusões vertidas no presente recurso, decretando-se os mesmos procedentes.


*

A Exequente respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – importa apreciar as seguintes questões:

- Interpretação do título executivo (sentença homologatória de transação) com vista a saber se ele deve ser interpretado com o sentido (que lhe foi dado pela decisão recorrida) de o Executado se ter vinculado ao pagamento/entrega da quantia (certa) que é pedida na execução, correspondente a metade do valor constante dos fundos, independentemente de qualquer condição relacionada com a autorização para a imediata movimentação do montante dos fundos e com o levantamento desses fundos ou se deve ser interpretado com o sentido (que lhe é atribuído pelo Apelante) de aquela obrigação estar condicionada à prévia realização da partilha/divisão e à prévia autorização para movimentação do fundo onde se encontrava a quantia a partilhar/dividir ;

- Saber, em face da interpretação do título executivo, se a obrigação em causa (a obrigação exequenda) é imediatamente exigível independentemente da possibilidade de movimentação do fundo onde se encontra a quantia que as partes pretendiam partilhar/dividir;

- Saber se o Executado/Apelante está impossibilitado de cumprir essa obrigação em virtude de o capital existente no fundo não poder ser levantado em dinheiro (conforme informação prestada pela entidade detentora do fundo) e pelo facto de a sua divisão ser da competência exclusiva dos tribunais suíços.


/////

III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. Em 27 de Maio de 2022, a Exequente AA instaurou acção executiva nos próprios autos, com base em sentença judicial condenatória, para pagamento coercivo do total de €45.759,70 euros, contra o Executado BB, com morada na Rua ..., ..., ... ... - cf. requerimento executivo, da execução principal.

2. Tal execução baseia-se em sentença homologada judicialmente, de 09-07-2021, proferida no âmbito do processo n.º 84/20...., que correu os seus termos no Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, transitada em julgado em 30-09-2021, tendo-se comprometido as partes, nomeadamente o Executado, a partilhar o montante constante dos autos – conforme relação de bens posteriormente actualizada, a saber, o proveniente de um fundo de pensão no valor de € 100.037,25 (cem mil e trinta e sete francos suíços e vinte cinco cêntimos) – v. Doc. 1 junto com o requerimento executivo.

3. No seu requerimento executivo a Exequente alegou, na parte dos “FACTOS”:

1 – Por Transação Homologada Judicialmente, de 09-06-2021, proferida no âmbito do processo n.º 84/20...., que correu os seus termos no Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, transitada em julgado em 27-09-2021, comprometeram-se as partes, nomeadamente o Executado, a partilhar o montante constante dos autos, conforme relação de bens posteriormente actualizada, a saber, o proveniente de um fundo de pensão no valor de Chf. 100.037,25 (cem mil e trinta e sete francos suíços e vinte cinco cêntimos) – Cfr. Doc. 1 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

2 – De facto, as partes, aqui Executada e Exequente, reconheceram que os montantes constantes dos autos, conforme relação de bens de 09-04-2021, atualizada de acordo com o requerimento de 21-06-2021, são bens comuns e consequentemente obrigaram-se a partilhá-los em partes iguais, cabendo metade a cada um deles – Cfr. Doc. 2 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

3 – Por diversas vezes, a Exequente, através do seu Mandatário, e da Mandatária do Executado, intentou começar as devidas diligências para proceder à partilha dos bens inventariados, nunca tendo obtido resposta satisfatória – Cfr. Doc. 3 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

4 – Conforme notificação electrónica, de 10-03-2022, com a referência 8787616, o valor supra identificado de Chf. 100.037,25 (cem mil e trinta e sete francos suíços e vinte cinco cêntimos), encontra-se devidamente convertido e determinado em Eur. 98.094,97 (noventa e oito e noventa e quatro mil euros e noventa e sete cêntimos). Cfr. Doc. 4 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.

5 – Assim, decorre da Transação Homologada Judicialmente que o Executado se obrigou a partilhar a quantia de Eur. 49.047,50 (quarenta e nove e quarenta e sete euros e cinquenta cêntimos), sendo que do mesmo instrumento decorreu a obrigação por parte da aqui Exequente de partilhar o montante constante da verba 1 (Eur. 9.039,37) da relação de bens já acima identificada, pelo que, ao valor referido acima deverá ser subtraída a quantia de Eur. 4.519,70 (quatro mil quinhentos e dezanove euros e setenta cêntimos).

6 – Assim, da mera conjugação aritmética dos valores supra referidos, resulta que o Exequente se obrigou a entregar à Executada o montante de Eur. 44.527,80 (quarenta e quatro quinhentos e vinte e sete euros e oitenta cêntimos).

7 – Até à presente data, o Executado não partilhou, tão pouco permitiu que a Exequente cumprisse a sua igual obrigação, emanada da Transação Homologada Judicialmente, apesar de já haver sido diversas vezes contactado para esse efeito.

8 – A sentença constitui título executivo, nos termos do disposto na alínea a), do n.º 1, do art. 703º do Código de Processo Civil.

9 – A obrigação é certa, líquida e exigível.

11 – Pelo que o Executado deve a importância de 44.527,80 (quarenta e quatro quinhentos e vinte e sete euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros vencidos, á taxa legal até á presente data no montante de Eur. 1180,90 (mil cento e oitenta euros e noventa cêntimos), bem como os respectivos juros vincendos até efectivo e integral pagamento.

12 – Por último, nesta data é já também devido o valor de 25,50 € (vinte e cinco euros e cinquenta cêntimos) a título de taxa de justiça, sendo ainda o executado o responsável por todas as demais despesas judiciais que a presente acção venha a originar.

4. No acordo celebrado entre as partes, que veio a ser homologado judicialmente, foi consignado:



Os interessados reconhecem que os montantes constantes dos autos, conforme relação de bens de 09/04/2021, actualizada de acordo com o requerimento de 21/06/2021, são bens comuns e consequentemente obrigam-se a partilhá-los em partes iguais, cabendo metade a cada um deles;


Para esse efeito, o interessado BB obriga-se a contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio bem assim a requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo;

5. A sentença dada à execução, proferida pela 1.ª instância, decidiu nos seguintes termos:

Iniciaram-se os presentes autos com o requerimento de inventário para separação de meações entre AA e BB.

Foi alcançado acordo de composição dos quinhões em sede de conferência de interessados.


*

O tribunal é competente.

Nada obsta à decisão.


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Dada a qualidade dos intervenientes e a disponibilidade do direito litigioso, julga-se válida a transação que antecede, que se homologa, condenando-se as partes a cumpri-la nos seus precisos temos.

Custas em partes iguais.

Valor o dos bens a partilhar (requerimento de 21.06.2021)

Registe e notifique”.

6. Através do auto de penhora de 10-08-2022, foram penhorados vários bens do Executado, a saber: um prédio misto e dois veículos automóveis, no valor global atribuído de €46.800,33 euros.


/////

IV.

A sentença recorrida julgou improcedentes os embargos deduzidos à execução com os seguintes fundamentos:

· Considerou, em primeiro lugar, que, baseando-se a execução em sentença proferida no âmbito de processo que correu termos no Juízo Local Cível ... e residindo o Executado em ..., era efectivamente, o Juízo de Execução ..., da Comarca de Coimbra, o tribunal competente, em razão da matéria e do território, para tramitar a execução, à luz do disposto no art.º 129, da Lei Orgânica do Sistema Judiciário e no art.º 85.º do CPC, razão pela qual improcedia a excepção de incompetência em razão da matéria e do território que havia sido invocada pelo Embargante;

· Considerou, em segundo lugar, que, interpretando a sentença à luz das regras vigentes – onde se consagrou a chamada doutrina da impressão do destinatário –, conclui-se: que nela não foi prevista qualquer condição relacionada com a autorização para a imediata movimentação do montante do fundo; que a partilha dos bens comuns nunca ficou dependente da expressa autorização dos Bancos Suíços ou do Tribunal da Suíça para aceitar o levantamento do fundo pelo Executado; que as partes não se obrigaram a partilhar determinados fundos localizados em país estrangeiro, mas sim o valor correspondente ao depositado nesses fundos; que o Embargante aceitou entregar à Embargada metade do montante constante dos fundos e não metade dos valores referenciados nos mesmos fundos e que, como tal, a obrigação pedida nos autos – a obrigação de pagamento de determinada quantia/montante – é certa, líquida e exigível.

O Embargante/Apelante discorda da sentença, argumentando, no essencial:

· Que a obrigação constante do título – assumida pelas partes – foi apenas a obrigação de partilhar o fundo em partes iguais, sendo que o pagamento da quantia pertencente à Exequente pressupunha a prévia realização da partilha, assumindo-se esta como condição daquele pagamento;

· Que o destinatário normal teria entendido o conteúdo da sentença em termos de partilha e não de pagamento direto, porquanto, a existir este, a transacção não seria realizada em virtude da dependência da movimentação dos fundos de decisão pela justiça suíça e, também, pelo facto de se tratar de uma pensão de invalidez que tem vindo a ser paga mensalmente ao requerido.

· Que – conforme informação prestada pela entidade detentora do fundo – o capital acumulado não pode ser levantado em dinheiro (pelo facto de o Recorrente estar a receber uma pensão completa de invalidez) e a sua divisão é da competência exclusiva dos tribunais suíços;

· Que, nessas circunstâncias e face à impossibilidade de partilha/divisão, não existe obrigação do pagamento que é pedido na execução, sendo certo que o Apelante está impossibilitado de cumprir essa obrigação.


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Analisemos então as questões suscitadas, começando pela interpretação da sentença que fundamenta a execução e, mais concretamente, pela interpretação da transacção (homologada e incorporada pela sentença) e das declarações negociais e consequentes obrigações que nela estão incluídas.

Em matéria de interpretação da declaração negocial, o art.º 236.º do CC dispõe nos seguintes termos:

1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

O princípio ou regra geral em matéria de interpretação da declaração negocial (sem prejuízo das situações submetidas a regime diferente) será, portanto, o seguinte: a declaração valerá com o sentido que seria apreendido e que lhe seria dado por um declaratário normal – ou seja, um declaratário medianamente instruído e diligente –, colocado na posição do real declaratário. Refira-se, usando as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[1], que a normalidade do declaratário que a lei toma como padrão “...exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”.

Essa regra – que consagra uma doutrina objectivista da interpretação – é no, entanto, temperada por duas excepções (em que a declaração valerá com o sentido que o declarante lhe pretendeu atribuir):

- Quando o declaratário conheça a vontade real do declarante (ou seja, o sentido que este pretendeu atribuir à declaração);

- Quando o declarante não possa razoavelmente contar com a interpretação que resultaria da aplicação da regra geral.

Acrescente-se que, conforme previsto no art.º 238.º do CC, nos negócios formais, a declaração não poderá valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, salvo se esse sentido corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.

Interpretando a transacção celebrada pelas partes (incorporada na sentença que a homologou) à luz das regras mencionadas, concluiu a decisão recorrida que, por ser esse o sentido que lhe seria dado por um declaratário normal, ela deve valer com o sentido pretendido pela Exequente, ou seja, com o sentido de o Executado se ter vinculado ao pagamento/entrega da quantia (certa) correspondente a metade do valor constante dos fundos, sem previsão de qualquer condição relacionada com a autorização para a imediata movimentação do montante dos fundos e com o levantamento desses fundos; a partilha dos bens comuns não havia ficado dependente da expressa autorização dos Bancos Suíços ou do Tribunal da Suíça para aceitar o levantamento do fundo pelo Executado e tal transacção consignaria, portanto, a obrigação que é exigida na execução, ou seja, uma obrigação – certa, líquida e exigível – de pagamento da quantia peticionada.

Não compartilhamos, no entanto, desse entendimento, uma vez que, no nosso entender e salvo o devido respeito, a aplicação das regras de interpretação acima mencionadas não nos conduz ao sentido das declarações que foi considerado na decisão recorrida.

Recordemos o teor do acordo/transacção (celebrada no âmbito de um processo de inventário) que é o seguinte:



Os interessados reconhecem que os montantes constantes dos autos, conforme relação de bens de 09/04/2021, actualizada de acordo com o requerimento de 21/06/2021, são bens comuns e consequentemente obrigam-se a partilhá-los em partes iguais, cabendo metade a cada um deles;


Para esse efeito, o interessado BB obriga-se a contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio bem assim a requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo.

Lendo o teor desse acordo, pensamos ser de concluir que dele não resulta que o Executado se tenha obrigado a pagar – pelo menos em termos imediatos e independentemente de qualquer condição ou circunstância – a quantia que lhe está a ser exigida na presente execução. Ainda que se possa retirar desse acordo que o Executado se obrigou a entregar à Exequente – em execução da partilha acordada – metade do valor constante do fundo que reconheceram ser um bem comum (embora estivesse em nome do Executado), resulta claramente do acordo – mais concretamente da cláusula segunda – que essa entrega pressupunha a autorização para a movimentação do fundo. Ou seja, o que resulta do acordo – judicialmente homologado – é que aquilo que estava em causa era a efectiva partilha e divisão do montante que constava do fundo e não uma qualquer obrigação de pagamento de quantia certa pelo Executado – eventualmente, a título de tornas ou compensação – que pudesse operar e ser exigida independentemente da efectiva movimentação do fundo e da retirada do valor que nele existia. Só assim se compreende a cláusula segunda.

Na prática, a pretensão da Exequente de obter o pagamento da quantia correspondente a metade do valor existente no fundo independentemente da sua movimentação e da retirada do valor em causa, corresponderia a uma composição de quinhões que se traduzia na adjudicação ao Executado do valor (integral) do fundo, obrigando-se este a pagar à Exequente, a título de tornas ou compensação, o valor que a esta pertenceria. Mas – claramente – não foi isso que as partes pretenderam e não foi isso que consignaram no acordo; o que pretenderam – e ali ficou consignado – foi dividir o valor/capital que se encontrava no fundo e para isso estabeleceram que o Executado se obrigaria a requerer a autorização necessária para a sua movimentação e consequente retirada do valor necessário para entregar à Exequente. O texto do acordo celebrado entre as partes não dá indícios de que o Executado se tivesse pretendido vincular ao pagamento de qualquer quantia à Exequente caso não tivesse a disponibilidade do capital existente no fundo.

Pensamos ser esse o sentido que um normal declaratário – medianamente instruído e diligente nos termos acima mencionados – retiraria das declarações em causa, tendo em conta, designadamente, a introdução da cláusula segunda que aponta claramente nesse sentido e que seria inútil caso se interpretassem aquelas declarações com o sentido – que lhe é dado pela Exequente e pela decisão recorrida – de apenas se ter pretendido instituir uma obrigação de pagamento de determinada quantia que pudesse operar e ser exigível independentemente da prévia movimentação do fundo e da retirada do valor necessário para entregar à Exequente em execução da partilha ali acordada. Se assim fosse, seria inútil e desnecessária a 2.ª cláusula; não faria sentido que o Executado se obrigasse – perante a Exequente – a contactar a entidade detentora do fundo e a requerer autorização para a respectiva movimentação se o cumprimento dessa obrigação fosse totalmente irrelevante para a partilha/divisão que pretendiam realizar. Como nos parece evidente, essa cláusula foi incluída no acordo porque a divisão que queriam efectuar (com referência ao valor existente no fundo) pressupunha a efectiva disponibilidade desse dinheiro.

Interpretada a transacção e o título executivo com o sentido que acabamos de mencionar, impõe-se concluir que a única obrigação que, em termos imediatos, dele resulta para o Executado é a obrigação – estabelecida na cláusula 2.ª – de contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio bem assim a requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo. Ainda que se possa retirar também do referido acordo uma obrigação – a cargo do Executado – de entregar à Exequente metade do valor do fundo, essa obrigação não se assume como “imediata” e apenas poderia ser exigível num segundo momento, ou seja, depois de obtida a autorização para a movimentação do fundo (conforme resulta da cláusula 2.ª).

Nessas circunstâncias, independentemente da questão de saber se a efectiva execução do acordo de partilha celebrado pelas partes é (ou não) viável e possível (pelo menos sem a intervenção dos tribunais do país onde está o Fundo em causa), pensamos que o título apresentado não é bastante, só por si, para o efeito de exigir o pagamento da quantia (certa) que a Exequente peticiona.

O título em causa seria bastante para o efeito de exigir o cumprimento da obrigação – que ali foi expressamente assumida pelo Executado – de contactar, por escrito, a entidade onde se encontra o seu fundo, comunicando a data do divórcio bem assim a requerer autorização para a imediata movimentação do montante do fundo. Não é essa, porém, a obrigação cujo cumprimento a Exequente vem reclamar (o que, aliás, já nem teria qualquer utilidade, uma vez que, de acordo com os elementos juntos aos autos, a referida entidade já negou aquela autorização, dizendo que a movimentação do fundo – o levantamento do capital acumulado – não é possível dada a circunstância de o Executado estar a receber uma pensão de invalidez completa); a obrigação cujo cumprimento a Exequente vem reclamar é a obrigação de pagamento da quantia correspondente a metade do valor existente no fundo e, para esse efeito, o título executivo não é bastante. Sendo certo que, em face do título, essa obrigação estava dependente da autorização que viesse a ser concedida para a movimentação do fundo, a Exequente apenas poderia exigir o seu cumprimento se alegasse e provasse, nos termos previstos no art.º 715.º do CPC, que tal autorização já havia sido concedida, o que a Exequente não fez, sendo certo que nada alegou no requerimento executivo a propósito dessa matéria (resultando, aliás, dos autos que tal autorização não terá sido concedida).

É inútil apreciar a questão – suscitada pelo Apelante – de saber se existe (ou não) uma efectiva impossibilidade de cumprimento dessa obrigação. Com efeito, seja ou não possível o cumprimento da obrigação, o certo é que, nos termos que emergem do título, tal obrigação (ou, pelo menos, a sua exigibilidade) pressupunha que o Executado fosse autorizado a movimentar o fundo (só depois disso estava em condições de entregar à Exequente metade do valor que nele existia) e, portanto, para que o título em causa pudesse fundamentar a presente execução era necessário que, nos termos acima referidos, ele fosse completado com a alegação e prova de que aquela autorização já havia sido concedida.

Não tendo sido feita essa alegação – e respectiva prova – o título não é bastante para o efeito de exigir a quantia em causa, na medida em que não atesta, só por si, a existência de uma obrigação que já seja exigível e essa questão não foi suprida na fase introdutória da execução como seria necessário.

Tal situação constitui fundamento de oposição à execução – cfr. art.º 729.º, alínea c), do CPC – e determina, por isso, a procedência da oposição.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por decisão que julgue procedente a oposição.


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V.
Em face de tudo o exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, revogando-se a decisão recorrida, julga-se procedente a oposição e, em consequência, julga-se extinta a execução.
Custas a cargo da Apelada.
Notifique.

                              Coimbra,


(Maria Catarina Gonçalves)

(Helena Melo)

(Maria João Areias)



[1] Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição Revista e Actualizada, pág. 223.