Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
347/08.8GCVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: CRIME DE DANO
ELEMENTOS DO TIPO
Data do Acordão: 12/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 212º
Sumário: Para efeitos penais, constitui coisa alheia o muro construído pelo ofendido, ainda que o a propriedade do solo sobre o qual o mesmo foi implantado seja convertida.
Decisão Texto Integral:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA



Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


Após a realização da audiência pública de discussão e julgamento, com exercício amplo do contraditório, foi proferida a sentença, na qual o tribunal de 1ª instância decidiu:
- Julgar a acusação procedente, condenando a arguida, M pela prática de um crime de dano previsto e punido pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de noventa dias de multa, no quantitativo diário de dez euros, perfazendo o montante global de novecentos euros; ---
- Julgar improcedente o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido F, dele absolvendo a arguida. ----
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Não se conformando com a aludida decisão, dela recorre a arguida.
Na motivação do recurso formula as seguintes CONCLUSÕES:
Foi a arguida condenada como autora de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de noventa dias de multa, à taxa diária de € 10,00, cfr. artigo 47º, n.º2 do C. Penal, ou seja, no montante global de € 900,00.
Ora, a queixa que determinou a existência do procedimento criminal foi apresentada muito depois de decorrido o prazo de seis meses estabelecido no artigo 115.°, n.º 1, do Código Penal,
Não foi feita nenhuma prova de que os factos tivessem ocorrido no dia 16 de Fevereiro de 2008, sendo certo que ouvidos em audiência d julgamento, nem a arguida, nem o ofendido, nem as testemunhas referiram qualquer data como sendo aquela em que os factos ocorreram.
Assim, o procedimento criminal tem necessariamente de se considerar extinto por caducidade daquele direito de queixa.
Quando assim se não entenda,
Conforme resulta dos autos, e tal como foi confessado pela arguida em audiência de julgamento, a arguida destruiu parte do muro construído pelo ofendido que delimitava os terrenos confinantes propriedade da arguida e o ofendido.
Correu termos no 2° Juízo Cível do tribunal Judicial de Viseu, acção de processo sumário com o n.º de processo 2141/06.1TBVIS, entre a arguida, ali autora e o ofendido, ali réu, nos termos da qual a arguida pediu que fosse reconhecido o direito de propriedade daquela sobre a parcela de terreno onde se encontrava implantado o dito muro.
Não obstante a improcedência da acção, não foi reconhecida nem à arguida nem ao ofendido direito de propriedade sobre a parcela de terreno onde se encontrava implantado o dito muro, impondo-se desse modo, a instauração de uma acção de demarcação dos prédios de ambos.
O ofendido construiu o dito muro demarcando os terrenos confinantes do daquele e da arguida a seu bel-prazer sem o acordo da arguida e sem recorrer a uma qualquer acção de demarcação.
É convicção da arguida que a parcela de terreno onde se encontrava implantado o muro é sua propriedade.
Dispõe o artigo 204.°, n.º 2, do Código Civil que entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro.
Deste modo, na medida em que o muro é considerado como parte componente de parte de prédio rústico cuja propriedade não é conhecida, desconhece-se se o dito muro era ou não um bem alheio para a arguida.
Assim, inexiste ilicitude no comportamento da arguida por não se desconhecer se o muro destruído é ou não alheio para a arguida, pois não é certo a quem pertence a parcela de terreno onde o muro foi implantado.
Deste modo, a douta sentença recorrida violou o disposto no artigo 115.°, n.º 1, 212.°, nº 3, 212.°, nº 1 todos do Código Penal.
NESTES TERMOS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO, REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA, E SER A ARGUIDA ABSOLVIDA DO CRIME DE QUE FOI CONDENADO, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.
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Respondeu a digna magistrada do MºPº junto do tribunal recorrido, rebatendo, ponto por ponto, a motivação do recurso, concluindo, a final, pela sua total improcedência.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual sufraga a resposta apresentada em 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos, após julgamento, em conferência, em observância do formalismo legal, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre decidir.
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1. Tendo por referência o dever de motivação do recurso decorrente do disposto no art. 412º do CPP, constitui entendimento pacífico que (sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de determinadas questões) o âmbito do recurso é definido pelas respectivas conclusões – cfr., designadamente, Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335; Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74; jurisprudência ali citada.
Assim, no caso, constituem objecto de apreciação, no recurso: - a caducidade do direito de queixa; a verificação, no caso, do pressuposto do tipo de crime “coisa alheia”.
A fim de apreciar as críticas que lhe são dirigidas, vejamos a decisão do tribunal recorrido, em matéria de facto.
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2. A decisão do tribunal recorrido em matéria de facto, com a motivação que a suporta, é a seguinte:

A) Factos provados:
F é proprietário de um terreno, denominado “às eiras” sito em …, Viseu.
Tendo em vista a delimitação desse terreno, o arguido construiu um muro, de blocos de cimento, com cerca de 1,20m de altura, muro esse sobre o qual colocou piquetes em ferro e uma rede, a estes presa por fios de arame.
Rede essa que, numa das extremidade do terreno, e terminado o muro em blocos, continuava no mesmo sentido do muro e para além daquele, mantendo, todavia, a função delimitadora que até então tinha.
Desta feita, em vez de estar colocada sobre o muro, nos termos anteditos, estava pressa, agora até ao solo, com arames, a esteios de madeira enterrados no solo e piquetes de ferro cravados cimento, este posto em buracos no próprio solo.
No dia 16 de Fevereiro de 2008, pelas 14 horas, por forma não concretamente apurada, a arguida cortou os arames que amarravam a rede aos sobreditos piquetes e esteios, que suportavam a rede em toda a sua extensão, sobre o dito muro e para além daquele, fazendo-a tombar sobre o prédio do arguido.
Nas mesmas circunstâncias, com a utilização de um machado, a arguida destruiu dois dos referidos esteios e madeira e derrubou dois dos piquetes de ferro cravados em cimento no solo.
Além disso, e munindo-se com o antedito machado, partiu em partes diversas do muro alguns dos blocos que o constituíam.
Os blocos, a rede, os esteios e piquetes foram adquiridos e pagos pelo ofendido e por si colocados, facto de que era do conhecimento da arguida.
Ciente disso, e sabedora não lhe pertenciam, agiu da forma descrita, com o propósito de os danificar, como conseguiu, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono.
A arguida agiu de forma voluntária, livre e consciente e porque, em seu entender, o ofendido tinha feito o muro em propriedade que era dela, pelo que ali não poderia estar sabendo, embora, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Correu termos no 1.º Juízo Cível deste Tribunal, com o número 3267/05.4 TBVIS a providência cautelar de embargo de obra nova, que constitui a certidão de fls. 45 a 62, providência essa que terminou com a transacção de fls. 61 e 62, tudo o que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
Na sequência dessa providência cautelar, foi intentada a acção declarativa comum, com processo sumário, que correu termos no 2.º Juízo Cível deste Tribunal com o número 2141/06.1 TBVIS, que constitui a certidão de fls. 64 a 89, e que foi julgada improcedente, nos termos conhecidos na sentença de fls. 80 a 89, tudo o que aqui se tem por reproduzido para os legais efeitos.
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Quanto à situação pessoal da arguida, prova-se que, sendo viúva, está reformado, vivendo em França, em casa dos seus dois filhos, de forma alternada.
Durante a sua vida activa esteve emigrada em França, onde trabalhou.
Aufere uma pensão de reforma, paga pelo Estado Francês, de montante não concretamente apurado.
Em Portugal tem casa própria e, ainda um terreno.
Não tem qualquer nível de instrução escolar, nem nunca aprendeu a ler e a escrever.

B) Factos não provados:
Que os danos referidos em 5, 6 e 7 tenham ascendido ao valor de 450,00€, 500,00€.

C) Motivação
Para a afirmação da factualidade provada, apreciou o julgador criticamente toda a prova produzida e examinada em julgamento, conjugada entre si e com as regras da experiência, lógica e senso comum, tudo o que permitiu a afirmação da factualidade provada, nos termos ante expostos e seguir expressos.
Deixa-se uma nota para dizer, desde logo, que todas as testemunhas a cujo depoimento se atendeu, depuseram de forma credível, quanto aos factos em julgamento, nada se lhes podendo apontar nesse particular. Igualmente mereceu credibilidade o declarado pelo ofendido, isto apesar da confessa conflitualidade com a arguida, conflitualidade essa resultante da própria existência de acção cível, prévia, e relativa à questão das concretas delimitações da propriedade de ofendido e arguida. Naquilo que disse afigurou-se isento e credível, precisando o que lhe foi dito e por quem, como lhe foi dito e o que é que o próprio constatou quando chegou ao local, vindo propositadamente de França, onde vive.
E foi exactamente das suas declarações, conjugadas com o auto de denúncia, que se chegou à data da prática dos factos. Isto porque, declarou o ofendido, na data em que a arguida praticou os factos estava em França mas, no próprio dia, foi contactado via telefone pela testemunha J. que lhe contou o sucedido e do que tomou devida nota, mesmo para controlar o prazo disponível para a apresentação de queixa, porque era já a 3.ª vez que a arguida praticava actos semelhantes, o que veio a fazer, deslocando-se pessoalmente a Portugal. A testemunha J, por sua vez, confirmou que presenciou os factos e que os relatou ao ofendido, pese embora não conseguisse precisar o dia, mas sempre adiantou que foi pelas 14 horas, o que consta exactamente do auto de denúncia. Esta preocupação e cuidado do ofendido em não deixar passar o prazo para apresentar queixa, conjugada com o registo que fez e transmitiu na queixa apresentada, naturalmente, permitiram afirmar com certeza a data da prática dos factos. As circunstâncias de lugar resultaram também da conjugação do auto de denúncia, com as declarações do ofendido e da própria arguida, que não pôs em causa que as coisas se tivessem passado no local provado.
Uma nota para dizer que a testemunha J presenciou os actos de a arguida estar a “partir” os piquetes e esteios (referidos em 3 e 4 da matéria de facto) e a tirar a rede. Disse não ter a certeza que a arguida pudesse ter partido os blocos, por não ter memória de ter visto isso (o que se compreende, porque a testemunha, pelo que declarou, não estaria junto á arguida, mas à distância) mas, nessa parte, a própria arguida admitiu ter partido, com um machado, os blocos, nos termos provados, na mesma altura. Aliás, a arguida acabou por admitir a acção imputada, embora com um discurso já parco em palavras e explicações, que se percepcionou ser causado pela idade avançada e por dificuldade na rememoração do passado. Mas, ainda assim, foi capaz de dizer que partiu os paus (os esteios em madeira), que partiu alguns blocos, que tirou os “picos” (piquetes de ferro) e que cortou os arames que seguravam a rede sobre o muro, tombando-a para o lado. E foi capaz de admitir, louve-se, que assim procedeu porque, em seu entender, ele ofendido tinha feito o muro naquilo que era dela, pelo que aquilo ali não poderia estar, sendo o próprio acto de partir blocos, como disse, uma espécie de destruição simbólica para que o ofendido ficasse ciente de que aquilo era contra a sua vontade.
Os actos praticados pela ofendida acabaram por ser verificados, à posteriori pelo ofendido, quando veio de França, o que foi por si relatado ao tribunal, precisando, pois, o ofendido o que verificou, nos termos provados: como estava danificado o muro, a rede, os esteios e os piquetes, fazendo pleno sentido com o que a arguida havia declarado, ao ponto de nenhuma dúvida surgir em termos de afirmação de que aquilo que verificou foi o efectivamente feito pela arguida.
Ora, e assim sendo, claro está que acabou por revelar a arguida o voluntarismo, a liberdade e a intenção, provadas, para agir como agiu, acção essa que, confrontada com as decisões judiciais onde foi parte interveniente, revelam sem dúvida que o que a arguida quis foi fazer justiça com as próprias mãos, quando não conseguiu ver reconhecida, por acção judicial, que a parcela de terreno onde estava implantado o muro (e por onde supostamente possa depois ter sido aumentado, se é que foi - cf. depoimentos das testemunhas A e MM, que se bastaram a afirmar que solo da arguida sem explicarem a razão de ciência para isso ) lhe pertencia e ver por via dela removido o muro.
Aliás, sendo a sentença anterior a essa acção, atentas as regras da lógica, da experiência e senso comum, não poderia sequer ser outra a intenção da arguida, mesmo que nada tivesse dito, sendo certo que reconheceu que quem fez o muro e pôs a rede, nos termos descritos, foi o arguido.
Porque se aventou essa possibilidade, de a arguida ter agido numa situação de acção directa, há que considerar que exercício legítimo de acção directa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos a) A existência de um direito privado próprio (que não se prova, manifestamente, desde logo pelo teor da sentença referida; b) Impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais (judiciais ou policiais) que também não se prova; c) A não existência de outro meio de impedir a perda do direito, que não se prova; d) Não exceder o agente o que for necessário para evitar o prejuízo, que não se prova; e) Não importar a acção directa o sacrifício de interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar, o que não se prova, também. Ao invés, o que resultou das declarações do ofendido é que o muro havia sido construído 3 a 4 anos antes, que depois, em data não concretizada, numas férias de verão, foi posta a rede e os esteios e piquetes e a arguida, alguns meses depois, chegada de França, com declarou, assim que viu aquilo, foi ao local e agiu como se provou, tão só, porque, como disse, o muro, todo ele estava naquilo que era dela e que ele não podia ter feito o que fez por atentar contra o seu direito de propriedade.
Atendeu-se, depois, às certidões enunciadas na matéria de facto provado, para a afirmação do teor para onde se remeteu, naturalmente e para a afirmação da própria relação de conflitualidade, resultando dessas certidões, conjugadas com as próprias declarações da ofendida e do arguido, a propriedade do ofendido do prédio identificado referido na matéria de facto provada.
A situação pessoal da arguida resultou das declarações da própria.
O passado criminal do arguido resultou do CRC.
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Os factos não provados resultaram da falta da necessária prova para a sua afirmação. Da prova produzida não resultou que, apesar do dano funcional no muro, o que interessa para efeitos criminais, na medida em que ficou afectado nas suas finalidades, tenha havido um correspondente dano económico, nomeadamente o pecuniário pedido, no sentido de que o muro pode acabar por ser recolocado no estado anterior com o aproveitamento quase integral do que foi danificado sem que isso implique um custo. E do que não possa significar aproveitamento integral, como alguns blocos partidos e os esteios em madeira, não se prova que os mesmos tivessem qualquer valor pecuniário per si.
De facto, apesar do dano patrimonial funcional, pode este não ter correspondência com uma perda pecuniária efectiva ou significante o suficiente para ter relevo jurídico, por um lado; por outro, porque que pode ser o próprio arguido efectuar a recolocação, tendo aliás dito que o muro foi construído por si próprio, sendo certo que a esse título (com essa causa de pedir) o arguido nada peticionou, referindo-se os danos peticionados, como concretizou já em julgamento (na produção antecipada de prova) a quantia pedida referia-se às partes danificadas e não ao custo de recolocação.
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3. Apreciação

3.1. Caducidade do exercício do direito de queixa

Ainda que não impugne a decisão da matéria de facto, não cumprindo designadamente os ónus impostos pelo art. 412º, n.º3 e 4 do CPP, em sede de caducidade do direito de queixa, o recorrente convoca os depoimentos prestados oralmente em audiência, sustentando que, para dar como provada a data da prática dos factos em 16 de Fevereiro de 2008, a sentença “louvou-se apenas nas declarações o ofendido, em conjugação com o auto de denúncia, apresentado em 09 de Maio de 2008, tal como consta dos autos”.
Concluindo que “Não foi feita nenhuma prova de que os factos tivessem ocorrido no dia 16 de Fevereiro de 2008 (…) nem a arguida, nem o ofendido, nem as testemunhas referiram qualquer data como sendo aquela em que os factos ocorreram”.
Não procede ao exame das declarações prestadas em audiência. Apenas refere – de forma genérica, que “não foi feita nenhuma prova” sobre a data da prática dos factos. Não indicando qualquer excerto, concreto, de depoimento (tanto que diz apenas não existir) susceptível de contrariar aquilo que deles foi valorado pela decisão recorrida.
Não especificando, nem nas conclusões nem na motivação que as suporta, qualquer passagem de depoimento que contrarie aquilo que foi valorado na sentença, como tal evidenciado pelo registo magnético, que possa levar o tribunal de recurso – em vista da apontada desconformidade, evidenciada pela gravação - a corrigi-la, assim modificando a decisão recorrida.
Por outro lado a recorrente contradiz-se nos seus próprios termos. Quando diz, por um lado que nenhuma prova foi feita. Mas por outro refere o auto de denúncia, invocado como suporte da decisão questionada - onde é situada, com toda a clareza, a data da prática dos (estes) factos denunciados nos precisos termos que vieram a ser dados como provados.
Existindo, pois, dentro da economia da motivação do recurso, pelo menos a prova constituída pelo auto de denúncia – e repare-se que não está em causa a prática do facto, mas apenas a data da denúncia (para efeito da caducidade) por referência á data dos factos ali denunciados.
Ora a denúncia dos factos à autoridade policial foi efectivamente apresentada, no Posto da GNR de Viseu, no dia 09.05.2008. Conforme resulta do auto de denúncia subscrito por AA, Cabo n.º104, da GNR - documento (autêntico) incorporado nos autos, a fls. 3.
Nele tendo sido indicada, desde a primeiríssima hora, a data dos factos denunciados (aquela que veio a constar da acusação e veio a ser dada como provada) tal como consta do referido documento.
Assim, como a própria recorrente acaba por reconhecer, a decisão recorrida tem bom fundamento, desde logo, no que toca ás datas questionadas, no enunciado do auto de notícia.
Alega ainda a recorrente que a ofendida referiu que a arguida “destruiu aquilo por várias vezes … esta foi a terceira vez que ela o fez” – reprodução com destaque do relator.
Pretendendo retirar, de tal asserção, a conclusão de que a queixosa não sabe a qual das ocorrências se refere.
Ora a perspectiva conclusória retirada é contrariada, desde logo pela referência, clara, no depoimento da queixosa a “esta” vez, como emerge da própria transcrição efectuada pelo recorrente. - “Esta” é a dos autos, excluindo qualquer outra.
Sendo certo que a queixosa quando se refere a “esta” vez, reporta-se clara e inequivocamente, àquela de que se queixou. Dizendo, além do mais que foi “fazer queixa” (a dos autos) logo que lhe foi dado conhecimento, telefonicamente, da tropelia (esta) denunciada - cfr. designadamente a gravação respectiva, minuto 05.00 a 05.20.
A recorrente trunca e desvirtua, assim, o sentido das declarações da queixosa. A qual, ainda que manifestando, em audiência, dificuldade em situar a data dos factos, reporta sempre as suas declarações à apresentação da queixa, dizendo que apresentou a queixa logo que lhe soube da ocorrência (“esta”) denunciada.
A motivação do recurso assenta ainda num outro equívoco, quando alega que a queixosa soube da existência de um prazo para a apresentação da queixa em Setembro de 2008, para daí concluir que, quando apresentou a queixa já teria deixado passar esse prazo. Com efeito, dentro da própria alegação da recorrente, quando teria “sabido” da existência de um prazo (Setembro 2008) há muito que a queixa estava efectivamente apresentada (09.Março.2008) conforme resulta do auto de denúncia a fls. 3, verso).
Aliás, sendo a data dos factos, imputada na acusação, identificada desde e primeiríssima hora (auto de denúncia), passando depois na acusação, a recorrente, na contestação oportunamente apresentada (onde é suposto ser apresentada toda a defesa relativamente à matéria da acusação, conhecida) a recorrente nem se “lembrou” da caducidade – cfr. original a fls. 146-148.
Nem confrontou, sequer, o tribunal recorrido com tal questão, em audiência de discussão e julgamento a fim de que pudesse tê-la apreciado e pronunciar-se sobre ela.
Assim, não só por o recorrente não apresentar fundamentos probatórios concretos capazes de, á luz dos preceitos legais em vigor, levar á modificação da decisão recorrida no que toca á data da prática dos factos, como porque tal decisão tem boa cobertura nos meios de prova validamente produzidos, apreciados em conformidade com os critérios legais de valoração da prova, supondo a invocada caducidade a modificação, infundada, da matéria de facto, impõe-se julgar, como julga, improcedente a invocada excepção da caducidade.
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3.2. Convicção da licitude da conduta
Sobre os pressupostos do crime, alega a recorrente que “não foi reconhecida nem à arguida nem ao ofendido direito de propriedade sobre a parcela de terreno onde se encontrava implantado o dito muro, impondo-se desse modo, a instauração de uma acção de demarcação dos prédios de ambos”.
Daí concluindo, que “É convicção da arguida que a parcela de terreno onde se encontrava implantado o muro é sua propriedade (…) na medida em que o muro é considerado como parte componente de parte de prédio rústico cuja propriedade não é conhecida, desconhece-se se o dito muro era ou não um bem alheio para a arguida (…) Assim, inexiste ilicitude no comportamento”.
A este respeito, cumpre salientar, liminarmente, que a recorrente não procedeu á impugnação da matéria de facto. Devendo, pois, a qualificação jurídica assentar na matéria de facto, designadamente que a recorrente actuou “sabedora que não lhe pertenciam, agiu da forma descrita, com o propósito de os danificar, como conseguiu, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e em prejuízo do respectivo dono”.
Por outro lado, se, como a própria recorrente reconhece, a sentença cível não reconheceu o direito de propriedade sobre a “parcela de terreno”, daí decorre que não reconheceu esse direito á recorrente. De onde que não pode dizer que deitou o muro abaixo “confortada” pela sentença que tivesse reconhecido que o muro estava edificado em terreno seu.
Sobre a natureza alheia do muro danificado, objecto do crime dos autos, refere a sentença recorrida, em argumentação que o recorrente não rebate e que merece a nossa concordância:
««« (…) Desde logo, com relevo para o caso dos autos, é irrelevante saber onde é que está implantado o muro que foi objecto da acção da arguida: se em terreno desta se em terreno do ofendido, se no terreno de um e outro.
Por ser paradigmático, para o que cumpre apreciar, nos autos, não se pode deixar de citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no processo 237/06-1, de 27-03-2006; I – Provando-se que um muro (vá lá, os blocos, a areia, o cimento, a água, o trabalho e o resultado final, ou seja, a forma e função de muro) é indiscutivelmente do ofendido e que foi isso que o arguido destruiu, sem que lhe aproveite qualquer figura susceptível de preencher causas de exclusão, verifica-se o elemento objectivo da natureza alheia da coisa destruída e assim, com os demais elementos, o crime de dano.
II – Assim, de nada lhe vale ao arguido vir tentar convencer que o terreno onde o muro está construído é seu ou, sequer, que é objecto de discórdia, pois o que importa é que ele sabia que o muro era coisa alheia e que agiu com intenção dolosa de o destruir.
III – Em tais situações, existem meios próprios ao alcance das pessoas para discutir a propriedade dos terrenos, mas nada autoriza que se destrua coisa alheia, e nem os Tribunais têm que considerar qualquer questão prejudicial sobre a propriedade dos terrenos, pois, pertença o terreno a quem pertencer, se a coisa destruída era coisa alheia, a tanto se resume o enquadramento jurídico do crime em apreço.
Efectivamente, na perspectiva global da “coisa” enquanto realidade que pode ser objecto de relação jurídica, tal como vem definida no art. 202.º do Código Civil (Em sentido jurídico, coisas são “os bens (ou os entes) de carácter estático desprovidos de personalidade e não integradores do conteúdo necessário desta, susceptíveis de constituírem objecto de relações jurídicas.” - Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Ed., pag. 340, Carlos Alberto da Mota Pinto), um muro é ele próprio uma coisa autónoma ou autonomizável, que pode, ou não, ser a parte integrante de uma coisa imóvel. E, sendo-o, pode, ou não, ganhar com ele um conteúdo funcional, assim como umas sebes ou uns esteios que também sirvam de delimitação a um terreno.
Quando um muro tem uma ligação material com um terreno com carácter de permanência pode considerar-se dele parte integrante - art. 204.º, al. e) do Código Civil - mas, não obstante, não deixa de ser susceptível de existir enquanto coisa autónoma ou autonomizável, sendo aquela ligação ao terreno apenas funcional. No fundo, não perde a sua identidade jurídica de coisa, na noção apontada, como “bem” de carácter estático.
Ora, enquanto realidade autónoma da própria coisa à qual possa estar funcionalmente ligado, um muro constitui-se de um “bem” protegido como coisa, penalmente, por si só, independentemente do local onde possa estar implantado, já que, na verdade, tem existência própria (de “bem”) enquanto tal.
Daí que, por mais que uma vez, que a jurisprudência tenha vindo a considerar, em idênticas situações, que o facto de um muro estar implantado em terreno cuja propriedade se desconhece (por maioria de razão, de saber se pertence a A ou a B) não lhe retira a qualidade de alheio, para efeitos de integração do crime de dano ( Vide, Ac. TRP, de 19-02-2003, processo n.º 0242739, em www.dgsi.pt.). O que equivale a dizer que o muro deve ser considerado como coisa única, bem assim como as outras coisas móveis que a ele, muro, estejam ligados com carácter de permanência ( Vide, Ac. TRC de 18-10-2010, processo n.º 2137/00, www.dgsi.pt), como o estão uma rede, uns esteios ou piquetes.
O carácter alheio da coisa advirá, então, em concreto, da forma como foi construída e, para o agente do crime, importa somente é que este lhe não pertença como obra sua. Quer isto dizer que o muro (enquanto “coisa” originariamente criada pela obra humana) terá o carácter alheio quando não tenha sido construído (por si, ou a seu mando e expensas) pelo próprio agente do crime.
No caso dos autos, é manifesto que o muro, porque foi construído pelo ofendido, não pertencia à arguida, assim com as coisas que a ele estavam ligadas com carácter de permanência e que no conjunto descreviam uma função: a rede, os armes que a prendiam, os esteios e os piquetes.
Fica provado, pois, o carácter alheio exigido pelo tipo. »»»

Esta fundamentação, como se viu não é rebatida, muito menos com base em critérios doutrinais ou jurisprudenciais que ponham em causa ou contrariem o expendido.
Pelo que, sufragando-se aqui se dá por reproduzida.
De qualquer forma, a sentença cível não se pronuncia sobre a propriedade do muro e rede destruídos, objecto do processo-crime.
Mas antes e apenas sobre a propriedade de determinada “parcela de terreno”.
Sendo certo que, em transacção - datada de 31.03.2006 - efectuada no âmbito de procedimento cautelar prévio da acção cível, a arguida reconheceu a obrigação de “não tocar no muro … até á resolução definitiva (do litígio) pela via judicial ou extra-judicial” - cfr. a respectiva certidão a fls. 61 dos autos.
Não podendo, pois, a recorrente alegar que estava, sequer, convencida da titularidade do chão onde foi edificado o muro. Uma vez que não lhe foi reconhecida e tinha-se comprometido, solenemente, a não tocar no muro até que a questão da extrema do terreno fosse definida por via legal, que não por acção directa.
Sendo certo, ainda, que não tendo a acção declarativa definido a extrema – nem é essa a sua finalidade típica - não ficou esgotada a possibilidade dessa definição pela via, legal, da respectiva acção de demarcação.
E a recorrente não põe em causa (sustenta antes que a destruição do muro foi legítima) que foi a ofendida quem adquiriu e suportou o pagamento dos materiais bem como o custo do trabalho necessário à edificação do muro.
O fundamento da acção na acção cível é distinto do objecto da acção penal. Ali uma questão de propriedade de terrenos - onde se não foi dada razão á recorrente. Aqui apenas a destruição, voluntária, do muro edificado pelo queixoso, a rede e pilares colocados sobre o mesmo.
E é manifesta não só a destruição/inutilização do muro, bem como a natureza alheia desta. Estando, pois, verificado o questionado elemento normativo do tipo.

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III.
Nos termos e com os fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso, coma consequente manutenção, integral, da decisão recorrida. ----
Custas pela recorrente, sem prejuízo do instituto do apoio judiciário, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC.