Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
102/09.8GAAVZ.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 05/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALVAIÁZERE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 358º E 359º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas - constitutivo do tipo leal de crime de injúria, será, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º, n.º 3, do C. Proc. Penal, impõe que seja incluído na acusação.

Ultrapassada a fase processual em que a acusação particular deduzida podia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a), do C. Proc. Penal, por ser manifestamente infundada, por falta de alegação de factos integradores do elemento subjectivo do tipo, na fase de julgamento restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos dos artigos 358º e 359º, do C. Proc. Penal.

Porém, se a descrição dos factos constantes da acusação não integra sequer um crime, face à referida omissão do elemento subjectivo do tipo legal de crime imputado, afastada está a possibilidade de o julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores desse elemento subjectivo, com recurso às aludidas normas, atento o conceito de “alteração substancial dos factos” vertido na al. f), do art.º 1º, do mesmo Código.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da comarca de Alvaiázere, em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, foram os arguidos JF... e ZB…, com os demais sinais nos autos, julgados e ABSOLVIDOS da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181º, n.º 1, do Código Penal, que lhes foi imputado na acusação particular deduzida pelos assistentes MS.. e DM.., e que nos termos do preceituado no art.º 285º, n.º 3 do Código de Processo Penal, a fls 83, o Magistrado do Ministério Público, acompanhou nos seus precisos termos.
Foram ainda absolvidos do pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes civis.
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Inconformados com a decisão, recorreram os assistentes, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
“1ª - A sentença em recurso ao não imputar, no relatório, a cada um dos arguidos dois crimes de injúrias nas pessoas dos assistentes conforme consta da acusação particular, viola o disposto no artigo 374º n.º 1 C) do C.P.P., pelo que nos termos do artigo 380º e 379º do C.P.P. tem que ser corrigida.
2ª - Quando do decurso da audiência de discussão e julgamento se tenham provado os elementos relativos ao dolo, não pode o Tribunal “a quo” incluí-los na matéria de facto não provada pelo facto dos mesmos não terem sido alegados na acusação.
3ª - A decisão sob recurso apreciou mal a prova produzida em Julgamento quanto ao dolo, porquanto aquele resultou provado em sede de audiência de discussão e Julgamento conforme melhor consta da transcrição dos depoimentos em 2) da motivação do presente recurso.
4ª - Daí os elementos relativos ao dolo, incluídos na sentença, na matéria de facto não provada, “que os arguidos tivessem agido de forma livre, deliberada, e consciente, com o propósito conseguido de ofender os assistentes na sua honra e consideração, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei” ,terem que passar para a matéria dos factos provados.
5ª - E assim ser modificada a decisão nos termos do disposto no artigo 431º b) do C.P.P., por referência ao disposto no artigo 412º n.º 3 a) e b) do C.P.P.
6ª - E os arguidos condenados pelos dois crimes de injúrias, respectivamente, conforme vinham acusados e no pedido de indemnização civil respectivo.
Ou quando assim se não entenda,
7ª - Tendo resultado os elementos do dolo no decurso da audiência, o Tribunal “ a quo” ao incluí-lo na matéria de facto não provada, por não constar da acusação particular está a por em causa e a violar o disposto no artigo 339º n.º 4 e 368º n.º 2 do C.P.P.
8ª - Dado que a decisão sob recurso considerou provados os factos em que a acção dos arguidos se desenrolou, pontos 1 a 7 da matéria de facto provado.
9ª - E o elemento subjectivo resulta como extrapolação daqueles factos dados como provados, da confissão dos arguidos, da prova produzida na audiência, dos assistentes terem imputado aos arguidos o crime de injúrias – art.º 181º do C.P. e da conjugação das regras comuns.
10ª - E porque da matéria de facto dada por provada não consta que os arguidos não se tenham apercebido do sentido típico de tais expressões.
11ª - Pelo menos conformaram-se os arguidos com a possibilidade de injuriarem os assistentes.
12ª - Assim e tendo em conta uma das finalidades primarias do processo penal – a Realização da Justiça –
13ª - Deveria o Tribunal “a quo” ter lançado mão do disposto no artigo 358º do C.P.P. e notificado os arguidos do elemento do dolo que resultou do decurso da audiência de discussão e Julgamento.
14ª - Esses elementos não configuram uma alteração substancial dos factos da acusação particular, pois não imputam aos arguidos crime diverso daquele por que vêm acusados, nem agravam dos limites máximos das sanções aplicáveis.
15ª - Com efeito a acusação dos autos ao ter omitido o dolo, é tão só deficiente.
16ª - Pelo que em obediência ao princípio da conservação dos actos imperfeitos, a sentença “a quo” violou o disposto no artigo 358º do C.P.P., pelo que é nula a decisão.
Termos em que com o mui douto suprimento de Vªs Exªs que se invoca, deve ser revogada a sentença recorrida e pela via do art. 431º b) do C.P.P. ser julgada procedente e provada a acusação bem como o respectivo pedido de indemnização cível ou por via da nulidade invocada por violação do art.º 358º do C.P.P., ser ordenado ao Tribunal “a quo” a introdução na acusação dos elementos referentes ao dolo e o julgamento repetir-se a partir daí com as legais consequências.”
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O MP respondeu ao recurso interposto no sentido da sua improcedência, concluindo que a omissão, ainda que involuntária, do elemento subjectivo do ilícito, nomeadamente, a descrição fáctica que não comporta a conclusão lógica da representação do evento típico e da intenção de actuação por parte do agente, no texto acusatório comporta violação legal do disposto nos arts. 283° e 285°, do C. P. Penal que, não sendo invocada anteriormente, em sede do conhecimento das nulidades, irregularidades ou outras questões prévias não inibe, porém, o juiz de as conhecer mesmo na fase de julgamento, desde que antes não tenha havido pronúncia expressa sobre a matéria já que "em processo penal, a declaração tabelar de inexistência de questões prévias impeditivas do conhecimento do fundo" da causa "(...) não faz caso julgado." - cfr. Ac. da Rel. Évora, de 1.2.1994, CJ XIX, 1, 294. Ao desconsiderar, por não provada, a conduta dolosa dos arguidos, somos de parecer que a Mma Juiz 'a quo' não violou qualquer preceito legal, pelo que a sentença recorrida não merece censura.”
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação apôs o visto.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÂO
Constitui entendimento pacífico que são as conclusões das alegações dos recursos que delimitam o respectivo objecto e o seu âmbito, sem prejuízo das questões que são de conhecimento oficioso. É no quadro assim delimitado que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação, obviamente com excepção das que tenham ficado prejudicadas pela solução de outras.
É também entendimento pacífico que “As questões que são submetidas ao tribunal constituem o thema decidendum, como complexo de problemas concretos sobre que é chamado a pronunciar-se, os quais devem constituir as questões específicas que o tribunal deve, como tal, abordar e resolver, e não razões, no sentido de argumentos, opiniões e doutrinas expostas pelos interessados na apresentação das respectivas posições (cf., entre outros, Acs. do STJ de 30-11-2005, Proc. n.º 2237/05, de 21-12-2005, Proc. n.º 4642/02, e de 27-04-2006, Proc. n.º 1287/06).” – Ac STJ de 16-09-2008.
Assim, considerando o objecto do recurso definido pelas conclusões da motivação, as questões a decidir são:
1 - omissão no relatório da sentença da imputação a cada um dos arguidos de dois crimes de injúrias nas pessoas dos assistentes conforme consta da acusação particular,
2 - erro de julgamento quanto aos factos integradores do dolo
3 - omissão do dolo na acusação
4 - violação do disposto no artigo 358º do C.P.P.
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Decisão Recorrida (com relevo para a apreciação do recurso):
“ (…) FACTOS PROVADOS
1. No dia 08 de Abril de 2009, pelas 15h30m, no Lugar dos W..., e nas imediações da casa de habitação dos arguidos, mais concretamente quando os assistentes e um filho destes se encontravam a caminho de um seu terreno agrícola, que confina com um terreno agrícola dos arguidos e pelo qual os assistentes têm passagem para o seu.
2. Os arguidos do seu terreno e dirigindo-se ao assistente MS..chamaram-lhe “cabrão”, “ladrão”, “gatuno”, “filho da puta”, “ordinário”, “papa-hóstias” e “andas a marrar”.
3. Porém, a assistente esposa, quando tirava algumas fotografias ao terreno dos arguidos, a uma vala que os últimos haviam aberto para tentar impedir a passagem dos assistentes para a sua propriedade, foi surpreendida pelas expressões que a arguida ZB... proferiu e lhe dirigiu e que foram as seguintes: “Vai tirar fotografias à cona da tua mãe, vai tirar fotografias ao caralho, ordinária”.
4. E, dirigindo-se a ambos os assistentes prosseguiu com as expressões “São uns ladrões; não há pessoas tão ordinárias nestas sete freguesias; gatunos, andam a tomar hóstias, vão embirrar com o caralho que os foda, vão embirrar com o caralho”.
5. Situação que os arguidos sustentaram por cerca de meia hora até que os assistentes abandonaram o local, por ali terem acorrido duas pessoas que pretendiam falar com o assistente MS...
6. Também no passado dia 18 de Maio de 2009, cerca das 15h30m e no mesmo local, quando os assistentes se faziam acompanhar de PR... e NR..., que foram ao terreno dos assistentes fazer um levantamento topográfico, os arguidos de novo se dirigiram aos assistentes, tendo a arguida ZB... dito: “ladrão, gatuno, andas a papar hóstias, nestas sete freguesias não há gente tão ordinária, vão tirar fotografias ao caralho e à cona”.
7. Sendo que o arguido JF..., após agarrar uma pedra das grandes dimensões e de fazer o gesto, por diversas vezes, de a atirar em direcção aos assistentes, atirando-a ao chão, proferiu as seguintes expressões para os assistentes: “gente ordinária, andam a papar hóstias”.
8. O assistente MS… é catequista há 43 anos.
9. Os assistentes sentiram-se emocionalmente abalados e vexados.
10. Os assistentes deslocaram-se por duas vezes à GNR de Alvaiázere, três ao advogado e pelo menos uma vez ao Tribunal.
Mais se provou que:
11. Os arguidos são reformados, auferindo cada um a título de pensão de reforma quantia não concretamente apurada mas não inferior a €100.
12. Os arguidos vivem em casa própria.
13. Ao arguido JF... são desconhecidos antecedentes criminais, constando do seu CRC de fls 135 que as não tem.
14. À arguida ZB… são desconhecidos antecedentes criminais, constando do seu CRC de fls 135 que as não tem.
Factos não provados
De resto, não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:
1. Que os arguidos tivessem agido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito conseguido de ofender os assistentes na sua honra e consideração, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
2. Que nas deslocações referidas em 10 dos factos provados, os assistentes tenham despendido a quantia de €200.
Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, bem como da que consta dos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal.
O tribunal fundou a sua convicção, socorrendo-se das declarações que foram prestadas pelos assistentes, MS… e DM.. que relataram de forma objectiva os factos descritos na acusação.
Conjugadamente com as declarações dos assistentes, atendeu ainda o Tribunal ao depoimento prestado pelas testemunhas de acusação BD..., FJ..., PS... e NR..., que presenciaram os factos, depondo acerca dos mesmos de forma imparcial e credível.
Os arguidos, por seu turno, declararam pretender prestar declarações, admitindo a prática de parte dos factos, concretamente do facto de terem dirigido aos assistentes algumas das expressões descritas na acusação particular.
Em sede de condições de vida, designadamente quanto à situação económica, social e familiar dos arguidos, na falta de quaisquer outros meios de prova, o Tribunal baseou-se nas declarações por eles prestados.
Finalmente, no que toca aos antecedentes criminais dos arguidos, foi decisivo os respectivos certificados de registo criminal.
No que respeita à factualidade que se deu como não provada, a tal conclusão se chegou atento o facto de nenhuma prova se ter efectuado acerca da sua verificação.
Na verdade, e quanto à falta de prova do dolo que se resolveu incluir nos factos não provados, ficou a dever-se ao facto do mesmo não constar da acusação particular, tratando o Tribunal dessa problemática na parte que surge dedicada ao direito, conforme se verá.”
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1ª questão – omissão da indicação dos crimes imputados
O relatório da sentença deve conter a indicação do crime ou crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido – art 374º nº 1 al c) do CPP.
Certamente por lapso no relatório da decisão recorrida refere-se apenas a imputação aos arguido, como autores materiais, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º do Código Penal.
A omissão em causa não constitui porém, uma nulidade da sentença, conforme resulta manifesto do disposto no art 379º, nº 1 al a) e art 118º , Nº 1, ambos do CPP.
Trata-se então de um acto irregular – art 118º, nº 2 do CPP – que não foi tempestivamente invocado – art 123º nº 1 do CPP – e que de todo o modo pode ser oficiosamente reparado.
Improcede pois a pretensão da declaração de nulidade da sentença com o mencionado fundamento.
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2ª questão – erro de julgamento
Entende o recorrente que a decisão sob recurso apreciou mal a prova produzida em julgamento quanto ao dolo, cumprindo na motivação as exigências do artigo 412º n.º 3 a) e b) C.P.P., para as quais remete n 3ª conclusão.
O Tribunal “a quo” incluiu nos factos não provados que os arguidos tivessem agido de forma livre, deliberada e consciente com o propósito conseguido de ofender os assistentes na sua honra e consideração, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei.
Contudo esclarece na motivação que “ quanto à falta de prova do dolo que se resolveu incluir nos factos não provados, ficou a dever-se ao facto do mesmo não constar da acusação particular, tratando o Tribunal dessa problemática na parte que surge dedicada ao direito, conforme se verá.”
Porém, os factos relativos ao dolo resultam efectivamente provados no decurso da audiência.
Basta atentar na prova seguinte e na valoração da sua credibilidade pelo tribunal a quo.
- Declarações da arguida ZB…, gravadas em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio, Studio”, conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010 (gravação das 11:33:31h às 11:40:35h num total de 07.01mts – ouvir de 05:15mts aos 05:23mts, na parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – “Quando a Sr.ª proferiu essas expressões tinha intenção de os ofender?
Arguida ZB... – Tinha quê?
Advogada dos Assistentes – Intenção de os ofender?
Arguida ZB... – Mais ofenderam eles a mim, trinta mil vezes.”
- Declarações do assistente MS.., gravadas em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Stúdio”, conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010 (gravação das 11:44:04h às 12:03:20h num total de 19:17mts – de 12:450mts aos 12:52mts, na parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – “Eles tinham consciência de o estarem a ofender?
Assistente MS.. – Tinham consciência.
- Declarações da assistente DM…, gravadas em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Stúdio”, conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010 ( gravação das 12:04:06h às 12:18:23h num total de 14:17mts – de 9:30mts aos 11:33mts, na parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – Dnª DM..os arguidos quando se dirigiam a vós era com intenção de vos ofender ou não?
Assistente DM..– Mas de que maneira. Ela até malhava com a sachola no chão, com uma força horrível. Aquilo ouvia-se pelo lugar todo abaixo. Aquilo era um barulho, só visto, atão não era para nos ofender? Para nos atingir mesmo!
Advogada dos Assistentes – Portanto, eles tiveram intenção mesmo.
Assistente DM..- Então não é?
Advogada dos Assistentes – Tinham consciência de que vos estavam a ofender?
Assistente DM..– Então não era para nos ofender Dr.ª então não era para nos ofender, mesmo quando ela chama papa-hóstias, fica perdida ela diz aquilo mesmo...
Meritíssima Juíza – Isso não tem nada a ver com o ser católico ou não ser, percebe, não é por ser católico é que se vai sentir mais lesada que uma pessoa que se calhar vai à igreja pronto, isto são coisas graves a serem proferidas, são coisas graves, e não é pelo facto da pessoa ir todos os dias à igreja ou ir uma vez por ano à igreja, que vai fazer a diferença, são expressões gravíssimas e inadmissíveis”.
- Depoimento da testemunha BD..., gravado em CD, pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Studio”, conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010 (gravação das 12:19:09h às 12:32:12h num total de 13:02mts – de 6:32mts aos 7:17mts da parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – Quer o Sr. JF..., quer a Dnª ZB..., quando proferiram essas expressões, eles diziam isso em tom ofensivo?
Testemunha – Então não era e se fosse para mim... de à idade que eles tem, no outro dia andei lá a trabalhar pareciam que andavam eles com olhares ofensivo, de vez em quando ainda falei para lá, o pá tira aí a conta que eu quero pagar, anda para aí tudo encho gado, espera-se ai meia dúzia de dias....
Advogada dos Assistentes – Não, mas o que eu lhe estou a perguntar é o seguinte: quando o Sr. ouviu essas expressões, as pessoas estavam com intenção de ofender o Sr. MS…?
Testemunha – Daquela maneira que ele falou, estavam ofendidos, é pior que correr uma pessoa à pedra.
Advogada dos Assistentes – Portanto eles tinham consciência que estavam a ofender, o Sr. não teve dúvidas?
Testemunha – Eu não, é como lhe estou a dizer, daquela maneira que eles falaram, e aquilo tudo era como quem estava a insultar e ofender.
- Depoimento da testemunha FJ..., gravado em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Studio”, conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010 (gravação das 12:33:18h às 12:41:59h num total de 08:40mts – de 6:05mts aos 6:46mts da parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – Quando o Sr. JF...e a esposa estavam a dizer isto, eles tinham consciência e noção de que estavam a ofender, o Sr. MS… e a Dnª DM…?
Testemunha – Da maneira como falavam parecia, parecia sim, pelo menos, eu ainda fiquei assim um bocado, assim meio assustado.
Advogada dos Assistentes – Não há dúvida que a forma como eles se expressavam?
Testemunha – Pelo menos da maneira que eram e de que falavam, se fosse comigo, não sei.
Advogada dos Assistentes – Qualquer pessoa se sentiria ofendido com aquelas palavras?
Testemunha – Ah. Sentia!
Advogada dos Assistentes – E eles tiveram essa intenção?
Testemunha – Pelo menos foi o que demonstraram, pelo menos.
- Depoimento da testemunha PS..., gravado em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Studio” conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010, (gravação das 12:42:54h às 12:53:44h num total de 10:50mts – de 5:05mts aos 6:46mts da parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – Quando os senhores JF...e Dnª ZB... disseram isso era com intenção de ofender, eles tinham consciência de que estavam a ofender ou não?
Testemunha – Sim, foi uns termos um pouco ofensivos.
Advogada dos Assistentes – Portanto eles tinham consciência de que estavam a ofender?
Testemunha – Julgo que sim.
- Depoimento da testemunha NR..., gravado em CD pela forma digital proveniente da aplicação “Habilus, Médio Studio” conforme acta de audiência de Julgamento do dia 11-10-2010, (gravação das 12:54:24h às 13:04:51h num total de 10:26mts – ouvir dos 5:39mts aos 6:04mts da parte respectiva):
Advogada dos Assistentes – Estas expressões quando foram proferidas pela Dnª ZB… e pelo Sr. JF… eram com intenção de ofender e eles sabiam que estavam a ofender?
Testemunha – Eu acho que sim, pelo menos se fosse para mim era para ofender, se fosse directo direccionado a mim, ficava ofendido.
Advogada dos Assistentes – Portanto eles tinham noção de estas palavras eram ofensivas?
Testemunha – Sim. “
Impõe-se concluir que os factos relativos ao dolo, - ausentes da acusação particular - não deveriam ser incluídos na sentença, na matéria de facto não provada.
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Importa então ponderar se tais factos devem ser incluídos nos dos factos provados como pretendem os recorrentes.
O que pressupõe a análise das consequências da omissão na acusação particular dos factos que integram o elemento subjectivo dos crimes imputados – crime de injúrias. O que engloba a apreciação dos fundamentos das 3ª e 4ª questões objecto do recurso.
De acordo com o disposto no nº5 do artº 32º da CRP, o processo criminal tem estrutura acusatória, o que significa que o objecto do processo é fixado pela acusação, a qual delimita o poder cognitivo do juiz, de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido. Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento.
Nos crimes particulares é a acusação particular que define o objecto do processo, estabelecendo desde logo os limites do quadro factual, crimes e respectivos agentes.
Da simples leitura da acusação deduzida pelos assistentes, resulta a percepção imediata da omissão de factos que possam suportar a condenação dos arguidos – ainda que provados todos os que dela constam. Efectivamente na acusação particular não são descritos factos integradores do dolo, designadamente que os arguidos conheciam e queriam o resultado da sua conduta.
O crime de injúrias não exige a verificação do impropriamente chamado dolo específico. É tão-somente necessário que o agente queira com o seu comportamento ofender a honra ou consideração alheias ou preveja essa possibilidade de forma que a mesma lhe pudesse ser imputada dolosamente, nada mais - Ac Rel Coimbra 14-06-2006.
Num crime doloso, da acusação ou da pronúncia há-de constar necessariamente, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
Dispõe o n.º 3 do art. 283.º do C. P. Penal, aplicável à acusação particular, ex vi art. 285.º, n.º 3, do mesmo código, que a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhes deve ser aplicada. Face à cominação de nulidade no caso da acusação que não preencha os requisitos estabelecidos naquela disposição legal, importa ter algum cuidado na sua elaboração, como, aliás, salientam Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal, 2.ª edição, tomo II, pág. 140, em anotação ao artigo 283.º, os quais, a propósito desta questão, escreveram que “No que se reporta à elaboração da acusação interessa também chamar a atenção para a necessidade de se conferir o máximo cuidado à sua feitura, não apenas no aspecto de explanação geral, como sobretudo na vertente da descrição fáctica, que deve ser suficientemente pormenorizada e precisa, até porque, como se sabe, está legalmente vedada uma alteração substancial dos factos transportados para a acusação, limitativa dos poderes do J.I.C. (quanto à amplitude da instrução e decisão instrutória – art.ºs 303.º e 309.º) e dos poderes do juiz do julgamento (arts.ºs 358.º e 359.º).”
O dolo como elemento subjectivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objectivas – constitutivo do tipo leal de crime de injúria, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283º/3 C P Penal, impõe que seja incluído na acusação.
Ultrapassada a fase processual em que a acusação particular deduzida podia ter sido rejeitada ao abrigo do disposto no artigo 311º/2 alínea a) C P Penal, por ser manifestamente infundada por falta de alegação de factos do tipo subjectivo, na fase de julgamento restaria ponderar a possibilidade de accionar os mecanismos dos arts 358 e 359 do CPP.
No caso sub judice, a acusação deveria ter sido rejeitada, por manifestamente infundada, dado que os factos ali descritos não constituem crime.
Crime na noção contida na alínea a) do artigo 1º do C P Penal é o “conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
“O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime, só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos constitutivos - objectivos e subjectivo - de qualquer ilícito criminal ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do C P Penal.
Aliás, a propósito da alínea d) do n.º 3 do artigo 311º C P Penal, Germano Marques da Silva in Curso, III, 207/8, entende que, “esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”.
Dada a estrutura acusatória basicamente acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial do nosso processo penal, o tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação – princípio da vinculação temática – como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem que defender-se dos factos acusados, e não de outros, e que apenas poderá ser condenado pelos factos acusados, e não por outros. Daí que a lei fulmine com nulidade, a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do C. Processo Penal (art. 379º, nº 1, b), do mesmo código).
Mas, em certas circunstâncias, e no que à fase do julgamento respeita, pois só esta agora releva, o Código de Processo Penal possibilita o conhecimento de novos factos e a condenação do arguido por eles.
Assim, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver – isto é, quando os novos factos conhecidos na audiência não excedem o âmbito do objecto do processo, tal como foi definido na acusação – o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa (art. 358º, nºs 1 e 2, do C. Processo Penal).
Se a alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia for substancial – tal como é definida no art. 1º, f), do C. Processo Penal – já o tribunal só pode deles conhecer se, feita a sua comunicação, o Ministério Público, o arguido e o assistente concordarem com a continuação do julgamento pelos novos factos, e a alteração não determinar a incompetência do tribunal (art. 359º, nº 3, do C. Processo Penal). Como refere Francisco Isasca (Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português 2ª Ed., 200 e ss.), dá-se uma reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem a menor intervenção do julgador e portanto, sem trair o princípio do acusatório.
Ora, o artigo 1º alínea f) C P Penal, define “alteração substancial dos factos” como aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
É óbvio que a descrição dos factos constantes da acusação particular deduzida pelos recorrentes não integra sequer um crime, pois a omissão do elemento subjectivo do tipo legal de crime que pretendiam imputar manifestamente não permite a imputação de uma conduta ilícita típica aos arguidos.
Consequentemente, afastada está a possibilidade do julgador suprir a falta da alegação dos factos integradores do tipo subjectivo, com recurso às aludidas normas.
É a lei processual penal vigente.
E não nos compete contornar os obstáculos legais sob pena de violação do princípio da acusação e da verdade material - subtraída à influência que, através do seu comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela e que, não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser, antes de tudo, uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço - mas processualmente válida.
Esta a razão da nossa discordância do Ac da Relação de Évora de 15.07.2008 (CJ A. XXXIII, T. III/p. 264) onde se defende que “A insuficiência de narração na acusação do elemento subjectivo não constitui fundamento para a sua rejeição”, pois “A rejeição apenas deve ser usada pelo julgador quando se verifique que a omissão detectada é integral e irremediavelmente insusceptível de vir a ser suprida, sendo por isso, de todo inviável a condenação do arguido.”
Até porque se argumenta naquele acórdão, a propósito, precisamente, da falta de indicação dos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo de crime que aquele elemento subjectivo, “…poderá sempre ser integrado no decurso da audiência, através de requerimento do MP ou oficiosamente por via do disposto no art. 358º do CPP, dado que então se estará perante uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, na medida em que não redundará em imputação de crime diverso – art. 1º nº1 al. f) do CPP – como entre outros foi abordado no Ac TC nº 450/2007 de 18.09 ….”.
Também discordamos, pelas razões acima expostas, do Ac RL de 26.09.2001 (relator Adelino Salvado, dgsi.pt). onde se decidiu: “ A deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjectivo do tipo (dolo genérico) é susceptível de ser integrada, em julgamento, por recurso à lógica, racionalidade e normalidade dos comportamentos humanos, donde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum. Assim, existindo tal deficiência na acusação, esta não pode ser considerada manifestamente infundada de modo a determinar a sua rejeição ao abrigo do disposto no art. 311º, nº 2, alínea a) e 3 alíneas b) e d) do C.P.Penal.”
Renovando o fundamento central da tese que defendemos, por força das regras da hermenêutica jurídica, há-de partir necessariamente do conceito vertido no art. 1º, al. f), do CPP, que define como “«alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Factos que impliquem a imputação de um crime diverso ou que agravem os limites máximos das sanções aplicáveis (portanto, a implicar a pronúncia ou condenação pelo mesmo tipo legal de base, mas agravado ou qualificado), são, necessariamente, factos com repercussão na configuração do ilícito e/ou na moldura penal.
Pressuposto necessário é que se verifiquem os elementos objectivos e subjectivos do tipo, essenciais à estrutura e conceito do crime. Se os factos exarados na acusação não constituem crime, torna-se inviável a transmutação para crime diverso.
Concluímos como na sentença recorrida: “Não se pode admitir a figura de dolo implícito” (Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, in CJ, II, 291) nem a Constituição da República consente presunções de culpa (cfr. artigo 32º/1, 2 e 5 da Constituição da República). O elemento subjectivo não pode resultar como extrapolação e efeito lógico do conjunto dos factos objectivos que são imputados aos arguidos na acusação dos assistentes.
É que, como se refere no referido Acórdão da Relação de Guimarães de 7 de Abril de 2003, CJ, ano XXVIII, tomo 2, pág. 292, no nosso direito ninguém sustenta a existência de presunções de dolo.
Entendemos assim que não é admissível a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, isto sem embargo de se poder operar a comprovação do dolo pelo recurso a presunções legais, coisa bem diferente, mesmo porque, salvo os casos de confissão por parte do agente de um crime, a prova do dolo tem de se inferir do conjunto da prova produzida na audiência de julgamento e, nomeadamente, de presunções legais.
Deste modo, face à posição por nós defendida, ainda que todos os factos constantes da acusação viessem a ser provados na audiência de julgamento, sempre o resultado teria de ser a absolvição dos arguidos.
Por questão de rigor, elimina-se da sentença recorrida o facto não provado nº 1.
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III. DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e em consequência, confirmam a sentença recorrida, com excepção do facto não provado nº 1, que se elimina.
Custas a cargo dos assistentes arguido fixando-se a taxa de justiça em 5 Ucs

Isabel Valongo (Relatora)
Paulo Guerra