Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1739/11.0TBCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
CHEQUE
ENDOSSO FALSO
INDEMNIZAÇÃO
CONCAUSALIDADE
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
COMARCA DE LEIRIA - CALDAS DA RAINHA - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS. 14, 16, 35, 38 LUCH, 563, 570, 799 CC
Sumário: I - Considerando a confiança que o cliente do banco nele deposita, e os atos ilícitos que, com frequência, são praticados sobre o cheque, o banco sacado tem o dever de, prudente e zelosamente, fiscalizar a autenticidade dos atos – p. ex. endosso - que permitem o seu pagamento, bem como a legitimidade dos seus detentores.

II –Destarte, se o cheque é emitido à ordem de «PWG» e o endosso é feito com os termos de «PWG, Lda, A gerência», seguindo-se assinatura ilegível, e sendo o cheque pago por crédito em conta cujo titular não se prova ser banqueiro ou cliente, tal dever não foi cumprido – artºs 35º e 38º da LUC.

III – Porém, o envio pelo emitente, via correio, de cheque cruzado à ordem, logo, endossável, e sem ser expedido como «valor declarado», em contravenção ao disposto no artº 12º nº1 al. h) do D.L. nº 176/88, de 18.05, é censurável e, assim, devendo ser tido como concausa do evento danoso.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

Q (…) –, Lda  instaurou contra  Banco (…)SA e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…) ação declarativa, de condenação.

Pediu:

 A condenação dos réus a pagarem-lhe  a quantia de €24 350,72.

Alegou, em síntese:

Subscreveu um cheque da sua conta bancária domiciliada no Banco (…), à ordem de PWG, cheque este que foi endossado de forma irregular, tendo, no entanto, sido indevidamente pago.

Em consequência, foi proposta contra si ação judicial para pagamento pelo seu fornecedor PWG.

Contestaram os Réus.

Excecionando a prescrição do crédito reclamado pela Autora.

O réu B (...) invocou a sua irresponsabilidade pois que existiu regular sucessão de endossos até porque a beneficiária do cheque PWG assume a forma de sociedade por quotas.

E que, perante o Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária,(SICOI) impendia sobre a segunda ré o dever de verificar a regularidade do endosso.

Apresentou a Autora Réplica às contestações dos Réus, pugnando pela improcedência das exceções invocadas.

Foi proferido despacho saneador, julgando procedente a exceção de prescrição invocada pela Ré Caixa de Crédito Agrícola de (…) e, em consequência, absolvendo-a do pedido, e julgando improcedente mesma exceção quanto à Ré B (…)..

2.

Prosseguiu o processo os seus termos, tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«julga-se a presente acção parcialmente procedente, e, em consequência:

a) condena-se a Ré, no pagamento à Autora da quantia de €17 000,05 (dezassete mil euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a data da citação e até integral pagamento;

b) absolve-se a Ré do demais peticionado.

Custas por ambas as partes, na proporção de 70% a cargo da Ré e 30% a cargo da Autora…»

3.

Inconformado recorreu o reu B (…).

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) - A sentença recorrida interpretou e fixou correctamente a matéria de facto da causa, mas justifica censura no que concerne ao respectivo enquadramento jurídico;

b) - A viciação no endosso do cheque dos autos, ao invés do que a sentença considera, não era detectável;

c) - Contrariamente ao que a sentença defende, a comparação no cheque da denominação da sociedade beneficiária (“PWG”) com a denominação aposta no carimbo (“PWG, Lda”), não é susceptível de suscitar dúvida, tanto mais que é incontornável que o aditamento “Lda” (no carimbo) em nada alterou a denominação da “PWG” enquanto pessoa colectiva (que é uma sociedade de responsabilidade limitada);

d) - Provado ficou nos autos que, admitindo o cheque, a possibilidade de endosso, a 2ª R., CCA depositou-o, como lhe competia, na conta do portador que identificou como seu cliente e o cheque foi pago pelo Banco ora Apelante, como era seu dever fazer;

e) - Ao invés do que a sentença postula, o Banco Apelante actuou, no caso, com o zelo, diligência e competência técnica devidos;

f) - Por outro lado, a sentença assenta na presunção de culpa do Banco-R., em reporte ao estatuído no artigo 799º do C. Civil, perdendo de vista que este ilidiu essa presunção, tendo ficado provada a culpa da A.;

g) - Com efeito, a A., não teve o cuidado de passar o cheque - Não à ordem – como se limitou a fazê-lo à ordem de “PWG” (sem indicar de forma completa a firma beneficiária do cheque) e, máxime, procedeu ao envio do cheque por mero correio simples, (“Actua com manifesto desprezo por regras básicas de segurança da circulação do cheque aquele que o envia por correio através de carta simples) facilitando assim o seu extravio e a possibilidade de viciação, não podendo ser exonerada da sua responsabilidade - cfr. artigo 570º do C.Civil - a qual exclui a do  Banco-R., ou, quando menos – sem conceder – reparte as culpas.

Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  608º nº2, ex vi do artº 663º n2, 635º nº4 e 639º  do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:

Irresponsabilidade do réu por inexistir negligencia sua na verificação da (i)regularidade do endosso.

5.

Os factos dados como provados e que importa considerar são os seguintes:

A) A Autora emitiu e subscreveu um cheque cruzado, sacado sobre a sua conta nº (...) 1, domiciliada no B (...) , SA, no valor de €17 000,50, em 14 de Novembro de 2006 (art.1º da petição inicial);

B) O referido cheque foi passado à ordem de PWG, para pagamento de um fornecimento por esta efectuada à Autora (art.2º da petição inicial);

C) A sigla PWG corresponde à denominação PWG – (…), Lda (art.11º da petição inicial);

D) O cheque foi remetido à PWG por meio de correio normal, nunca tendo chegado ao seu destino (art.5º, nº2 do Código de Processo Civil);

E) No verso do referido cheque foi aposto um carimbo com os dizeres “PWG, (…) Lda” e um autógrafo ilegível (art.6º da petição inicial),

F) No verso do cheque consta como conta a creditar o nº401442484 (art.5º, nº2 do Código de Processo Civil);

G) O cheque foi depositado na conta nº401442484, da Caixa de Crédito Agrícola, titulada por QSR – (…) Lda (art.5º, nº2 do Código de Processo Civil);

H) A PWG (…) não recebeu o cheque nem o endossou (art.28º da réplica);

I) A Autora pagou a PWG o valor do cheque (art.11º da petição inicial);

6.

Apreciando.

6.1.

Na sentença decidiu-se com base no seguinte, nuclear, discurso argumentativo:

«Sendo um contrato bilateral, o contrato de cheque repousa, antes de mais, na existência de um dever de protecção baseado na confiança.

Assim, existe uma recíproca obrigação de diligência entre as partes, cabendo ao cliente a obrigação de dar imediatamente notícia de uma eventual perda, extravio ou roubo, e ao banco a obrigação de cumprir as ordens do Cliente e de zelar pelos seus interesses.

…o banco …verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados, nomeadamente, o dever de verificação da assinatura do sacador, o dever de verificação da validade formal do portador nos cheques nominativos, o dever de verificação da regularidade da sucessão de endossos, o dever de verificação da validade material dos portadores dos títulos e o dever de verificação dos elementos consubstanciadores do título.

…Dispõe o art.14º da Lei Uniforme relativa ao Cheque (Luch) que “o cheque estipulado pagável a favor duma determinada pessoa, com ou sem cláusula expressa “à ordem”, é transmissível por via de endosso.”

Acrescenta o art.16º da mesma Lei que “o endosso pode não designar o beneficiário ou consistir simplesmente na assinatura do endossante (endosso em branco). Neste último caso para ser válido, deve ser escrito no verso do cheque ou da folha anexa.”

Sendo forma cambiária de transmissão do título o endosso só pode ser validamente feito pelo legítimo portador do cheque, seja ele o seu beneficiário originário ou aquele que justificar o seu direito por uma série ininterrupta de endossos.

Nos presentes autos …é de concluir que ocorreu uma irregularidade no endosso do cheque, uma vez que não foi efectuado pelo seu beneficiário originário – PWG.

…art. 35º da LUCh, segundo o qual “o sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes”.

…Estamos perante um cheque falsificado, uma vez que o conteúdo das declarações cambiárias foi intencionalmente alterado, fazendo-se, num documento verdadeiro, alteração ou intercalação que faz variar o seu sentido, ainda que formalmente, e nos termos do art.1º da Lei Uniforme dos Cheques (LUCh), reúna as condições para ser considerado cheque.

Uma vez que a Lei Uniforme dos Cheques não regulamenta as consequências do pagamento de cheques falsificados, situando-nos no âmbito das relações entre o banco sacado e o seu cliente depositante, encontrar-se-á em causa a responsabilidade contratual do banco sacado.

Assim, terá de se recorrer aos princípios da responsabilidade civil.

E sobre o banco impenderá a presunção de culpa prevista no art.799º do Código Civil, sendo que, só ele estará em condições de fazer a prova de que agiu com o zelo que lhe era devido.

E, embora o legislador, ao mandar aplicar à culpa no domínio da responsabilidade contratual o mesmo critério de apreciação da culpa no domínio da responsabilidade extracontratual (nº2 do art.799º CC), remetendo para a tese da culpa em abstracto, determinada pelo modelo do bonus pater famílias, a doutrina e a jurisprudência apontam para um novo conceito de diligência profissional em matéria bancária (…).”

A diligência esperada deverá, pois, ser a de um profissional habilitado e dotado de meios técnicos e humanos especialmente adequados ao exercício da actividade bancária, proporcionados por recursos financeiros consideráveis.

No caso em apreço, como se deixou supra exposto, está em causa o devido cumprimento da obrigação contida no art.35º da LUCh…

Tratar-se de um mero dever de verificação formal da legitimidade do apresentador do cheque, ou seja, o sacado apenas está obrigado a verificar a regularidade dos endossos, não sendo obrigado a conferir a assinatura atribuída à gerência da beneficiária.

E, para que se verifique uma regular cadeia de endossos, basta que eles se sucedam logicamente, o que acontece quando a assinatura do endossante corresponde ao nome do (anterior) beneficiário ou do (último) endossatário e assim sucessivamente.

No cheque em causa nos autos, emitido à ordem de PWG, no valor de €17500, foi aposto, no respectivo verso, a marca de um carimbo com os dizeres “PWG, (…).// A Gerência”, e um autógrafo.

A questão que se coloca é, pois, se o endosso assim efectuado pode ser considerado regular, do ponto de vista do dever de verificação formal da regularidade da cadeia de endosso.

Ora, afigura-se que a mera comparação da denominação da sociedade beneficiária (“PWG”) com a denominação aposta no carimbo (“PWG, Lda”), seria suficiente para levantar dúvidas sobre a verificação da necessária coincidência entre o beneficiário e o endossante.

Na verdade, PWG não é PWG Lda, e ainda que se possa afirmar que a sigla PWG sempre corresponderia a uma pessoa colectiva, o que é certo é que, enquanto pessoa colectiva, poderia assumir diversas denominações – Lda, SA ou mesmo Unipessoal Lda.

Como se afirma no Acórdão do STJ de 22/372010, disponível in www.dgsi.pt, “relativamente ao cheque dos autos, uma pessoa, medianamente informada e diligente, teria notado a divergência em termos de, pelo menos, se lhe colocar dúvida determinante da suspensão do processo de pagamento, com a apresentação ao Banco sacado, sem previamente obter informação sobre a regularidade do título, objectivamente fora da normalidade”.

Qualquer funcionário bancário medianamente atento e diligente se teria apercebido da diferença entre a denominação do beneficiário do cheque e do endossante, não podendo deixar de levantar a dúvida que a mesma suscita.

Assim, não se pode deixar de concluir que impendia sobre a Ré o dever de rejeitar, ou pelo menos suspender, o pagamento do cheque em apreço.

Afirmou a Ré que a obrigação de verificação da regularidade do endosso não impendia sobre si mas sobre o banco tomador, a Caixa de Crédito Agrícola Mutuo, atento o Regulamento da Compensação emitido pelo Banco de Portugal (prevista no ponto18.3 das Instruções do banco de Portugal nº 25/2003).

Recebendo as instituições bancárias cheques sacados sobre outras instituições, chama-se compensação à troca de informações sobre títulos de crédito ou outros valores, que poderão, ou não ser trocados fisicamente, efectuada entre instituições de crédito, tendo em vista o encontro e a liquidação de obrigações recíprocas.

Um dos princípios que vigora na rede interbancária de comunicações, gerida pela SIBS – Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., é o da truncagem, por via do qual, os títulos que reúnem determinadas condições (é o caso dos cheques de valor inferior a determinado quantitativo) não circulam fisicamente entre as instituições de crédito, ou seja, não vão ao balcão onde está constituída a respectiva relação de provisão.

Por tal motivo o “Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI, no seu ponto 18.3. responsabiliza “o participante tomador”: “Pela verificação, para todos os cheques e documentos afins que lhe sejam apresentados, da regularidade: do seu preenchimento, com excepção da data de validade do impresso cheque; da sucessão dos endossos, apondo no verso, nos casos em que não exista endosso, a expressão “valor recebido para crédito na conta do beneficiário” ou equivalente.”

Porém, e como afirmou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/2/2010,…“os efeitos do Regulamento em causa, cujo objecto é a regulamentação do Sistema de Compensação Interbancária, tendo como destinatário as entidades bancárias participantes no Sistema, não só não é fonte de directa de direito, como, por desde logo isso, não é oponível aos demandantes, sem prejuízo dos efeitos que dele possam retirar as demandadas em sede de determinação de responsabilidades nas relações entre si.”

A circunstância de o banco prescindir de proceder à conferência das assinaturas e endossos dos cheques apresentados a pagamento não pode prejudicar os interesses dos seus clientes, tanto mais que o contrato de cheque tem subjacente uma relação de confiança.

Nas relações entre o Cliente e o banco sacado, continua, assim, a vigorar o princípio contido no art. 35º da LUCh, segundo o qual é sobre o sacado que impende o dever de verificar a regularidade dos endossos.

Nestes termos, é forçoso concluir que impendia sobre a Ré, B (...) SA, a verificação do endosso do cheque em causa nos autos.

Não o tendo feito, e não se mostrando ilidida a presunção de culpa decorrente do disposto no art.799º do Código Civil terá de ser responsabilizada pela reposição do valor indevidamente pago.»

Esta argumentação apresenta-se, em tese, ie., jurídico-dogmáticamente, acertada e curial, pelo que ela se corrobora na sua essencialidade relevante.

Em seu abono dir-se-á que demais jurisprudência, para além da citada na decisão, aponta no sentido propugnado.

Assim e quanto à exigida e acrescida diligencia do banco sacado aquando do pagamento do cheque:  

«Na base do contrato de depósito bancário está uma recíproca relação de confiança entre o depositante, a quem é garantida a restituição do dinheiro depositado, e o Banco que conta com os depósitos dos seus clientes para financiar a suas aplicações e investimentos.

A relação de confiança estabelecida entre o banqueiro depositário e o depositante evidencia-se ainda no contrato de cheque…A convenção de cheque constitui o Banco na obrigação, além de outras, de pagar os cheques emitidos pelo depositante na veste de sacador.

Nas relações ao abrigo do contrato de abertura de conta bancária e da inerente convenção de cheque, intercorrente entre o titular da conta e o Banco onde tal conta foi aberta, funciona a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, n.º1, do Código Civil, sendo a culpa apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, de harmonia com o nº2 do citado preceito.

… Não parece compaginável com o grau de diligência exigível actualmente, que um Banco prudente, zeloso e cauto, não disponha de meios técnicos e funcionários especializados na detecção de falsificações; mais que controlar a aparência das assinaturas, o banco tem um dever de “fiscalizar” a autenticidade das assinaturas.

Se é assim quanto ao pagamento de cheques falsificados, importa saber se, no caso de cheques que são apresentados a pagamento na sequência de endossos, quais as obrigações a cargo do Banco sacado. Da conjugação dos arts. 15º e 35º da LUch resulta para o Banco sacado a obrigação de verificar a legitimidade do portador endossatário, o que implica que deva verificar se existe uma regular cadeia de endossos, porque o portador só será considerado portador legítimo se legitimar a posse do título através de uma regular sucessão de endossos, mesmo que o último seja em branco.» Ac. do STJ de 11.07.2013, p. 9966/02.5TVLSB.L1.S1.

Acrescentando-se neste aresto, e citando autor  abalizado: Paulo Olavo  in Cheque e Convenção de Cheque, pág. 481:

«A cargo do Banco há, pois, um dever de fiscalização ou de verificação dos cheques, que, “sendo acessório e também, de certo modo, instrumental do dever principal do banco – de pagamento -, consiste na obrigação que o banco sacado tem de verificar cuidadosamente o cheque. O cumprimento desta obrigação pressupõe o controlo da autenticidade do módulo em que foi preenchido o cheque, a comprovação de que o banco não foi notificado de nenhuma vicissitude e o controlo da assinatura do sacador, confrontando-a com a que o banco recolheu do seu cliente quando abriu a conta movimentada pelos cheques sacados nos módulos disponibilizados, e que consta da ficha de cliente, encontrando-se microfilmada ou digitalizada e, consequentemente, disponível em qualquer estabelecimento do banco…”»

Ainda neste sentido:

«O banco tomador que se encarrega da cobrança de um cheque é garante da sua regularidade, devendo verificar se existem ou não sinais de viciação.

- Os direitos e deveres recíprocos dos bancos participantes, decorrentes da sua participação nos subsistemas integrantes do SICOI, não são oponíveis nem afastam a responsabilidade individual de cada participante relativamente aos seus clientes.

- Na relação entre o banco sacado e a sua cliente está em causa a responsabilidade contratual, pelo que, de harmonia com o disposto no art. 799º do Código Civil, competia-lhe ilidir a presunção de culpa na violação da convenção de cheque, através da prova dos factos de onde se pudesse concluir que o banco tomador, usando da diligência que lhe era exigível, não podia ter dado pela viciação do cheque.

- Não estando provado que ao banco tomador não era possível detectar a viciação do cheque, ambos os bancos - sacado e tomador - são solidariamente responsáveis» - Ac. da RL de 12.11.2015, p. 2808/12.5TJLSB.L1-6.

Tal dever de cuidado e fiscalização dimana  também do art. 73º e 74º pelo RGICF e pela Norma Técnica do Cheque, constante da Instrução n° 26/2003 do Banco de Portugal, parcialmente alterada pela Instrução n° 11/2008, de 18 de Agosto, publicada no Boletim do BP n° 8/2008

Destarte:

«Ao tomador do cheque, enquanto entidade bancária cobradora dos valores inscritos nos cheques do banco sacado, é exigível uma actuação diligente, própria de um “banco prudente, zeloso e cauto”, dispondo de técnicas e funcionários especializados na detecção de falsificação dos elementos constantes daqueles títulos, tal como a data, valor ou quaisquer outras inscrições ali inseridas, constituindo um ónus seu a prova de que agiu em conformidade com a observância de tais princípios» - Ac da RL de 21/04/2015 p. 2566/12.3TJLSB.L1 -7.

Certo é que, se houver uma sucessão de endossos, ao banco tomador ou sacado é difícil de controlar a genuinidade e autenticidade das assinaturas que integram a cadeia de endossos.

Daí a exceção prevista na parte final do artº 35º no que concerne à não exigência do controlo da assinatura do endossante.

Em todo o caso, tal não exigência tem de ser interpretada cum granno sallis, isto é, sensata e comedidamente, atentos os valores e interesses em causa e a exigível e adequada proteção dos mesmos.

 Pelo que ela não afasta o acentuado dever de cuidado, preenchido substancialmente nos termos supra referidos, na verificação da fidedignidade dos elementos materiais  dos negócios e atos jurídicos constantes no cheque que permitem o seu pagamento.

E, bem vistas as coisas,  ela apenas emerge  quando o cheque é endossado mais do que uma vez, ou seja, nos endossos posteriores ao primeiro.

Pois que o primeiro endosso é efetivado pelo seu beneficiário, e, assim, a assinatura deste, máxime num cheque cruzado o qual, «só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado»  - primeira parte do artigo 38º da Lei Uniforme sobre Cheques, isto é e na prática corrente, apenas pode ser depositado na conta do beneficiário, o controlo da assinatura deste já é possível, e, assim, exigível.

6.2.

No caso vertente o recorrente alicerça a sua pretensão em dois aspetos fundamentais, a saber: I) - a comparação no cheque da denominação da sociedade beneficiária (“PWG”) com a denominação aposta no carimbo (“PWG, Lda”), não é susceptível de suscitar dúvida, tanto mais que é incontornável que o aditamento “Lda” (no carimbo) em nada alterou a denominação da “PWG” enquanto pessoa colectiva (que é uma sociedade de responsabilidade limitada); II) a A., não teve o cuidado de passar o cheque - Não à ordem – como se limitou a fazê-lo à ordem de “PWG” (sem indicar de forma completa a firma beneficiária do cheque) e, máxime, procedeu ao envio do cheque por mero correio simples.

6.2.1.

Quanto ao primeiro fundamento, estamos com o entendimento da julgadora.

Na verdade e como ela aduz:

«…PWG não é PWG Lda, e ainda que se possa afirmar que a sigla PWG sempre corresponderia a uma pessoa colectiva, o que é certo é que, enquanto pessoa colectiva, poderia assumir diversas denominações – Lda, SA ou mesmo Unipessoal Lda.».

Certo é que, coincidentemente,  - ou não,  pois o mentor do endosso saberia de tal qualidade – a beneficiária assume a qualidade de sociedade por quotas.

Mas tal qualidade não era do conhecimento do recorrente.

Assim, a dita desconformidade deveria ser suficiente para, como outrossim se menciona na sentença, «levantar dúvidas sobre a verificação da necessária coincidência entre o beneficiário e o endossante».

O levantamento destas dúvidas era imposto, como se viu, pelos deveres de zelo e de cautela que incidem sobre os bancos,  principalmente num campo e numa matéria que sempre foi atreita, ao longo dos tempos, e continua a ser, a muitos e frequentes vícios e tentativas de cobrança indevida, a qual, assim, clama cuidado e fiscalização adequados.

Na verdade, a  legitimação formal ou aparente do portador do titulo, assente na autonomia e literalidade do direito cartular nele contido, tudo com o fito de facilitar o trafego jurídico-comercial, não pode permitir o postergamento, ou o intolerável alívio, de atuação tendente a impedir a fraude que, infelizmente, e como é consabido, máxime pelas instituições bancárias, grassa neste domínio.

Ademais em caso com contornos factuais iguais ou muito similares decidiu o Ac. do STJ de 23.02.2010, p. 3404/07.4TVLSB.L1.S1 citado na sentença, quando deliberou:

«É irregular o endosso de um cheque em que como beneficiária e endossante figura uma sociedade comercial anónima, cuja firma é constituída por denominação e nome, se este elemento pessoal não corresponde no endosso ao da beneficiária/tomadora indicada no título».

A sempre desejável consecução da justiça relativa ou comparativa, ou seja, decidir de igual modo em casos iguais ou idênticos, exige,  salvo se facto ou circunstância  nova e/ou excecional  impuserem o contrário, que não se opere um entendimento diverso.

Finalmente, do citado artº 38ºda LU emerge mais um fundamento para a responsabilização do recorrente.

Na verdade, se o endossado do cheque não era um banqueiro, nem estando provado que fosse um cliente do recorrente, este, pela simples inverificação destes requisitos, não poderia ter pago o cheque ao endossado – cfr. neste sentido, o AC. do STJ de  04.06.2015, p. 319/06.7TVLSB.L2.S1.

6.2.2.

Quanto ao segundo fundamento.

No que tange ao argumento de que a autora se limitou a emitir o cheque «à ordem de “PWG” (sem indicar de forma completa a firma beneficiária do cheque)» o mesmo revela-se claramente irrelevante ou inócuo.

Na verdade, o endosso foi feito com a menção da qualidade de «Lda» da beneficiária.

Logo, se esta qualidade constasse como sendo da beneficiária, aquando da emissão do cheque, aqui sim, o endosso não levantaria dúvidas quanto à legitimidade do beneficiário/endossante, podendo e devendo o cheque ser descontado sem que daí, adviesse, em princípio, responsabilidade para a recorrente.

No atinente ao argumento do dever de emissão dos cheques «não à ordem».

Aqui importa dizer que os cheques «não à ordem», que não permitem o seu endosso e, assim, apenas podem ser pagos ao beneficiário nele inscrito, de algum modo tolhem ou contendem com um dos fitos deste título de crédito, qual sejam a celeridade e a facilitação dos pagamentos no trafego jurídico- comercial.

Esta dificuldade é cada vez mais premente e acentuada quanto é certo que, hodiernamente, este trafego é consabidamente cada vez mais complexo, com interpenetrações e conexões económicas e financeiras entre os vários sujeitos ou entidades nele ínsitos e envolvidos.

Vale isto por dizer que a emissão de um cheque «não à ordem» dificulta ou pode dificultar a consecução de tais desideratos, pois que, p. ex. o seu beneficiário original, pode desejar, ou ter necessidade, de o endossar, precisamente para que, ele próprio, com ele solva compromissos ou responsabilidades suas; e o cheque «não à ordem» não o permite.

Destarte, a emissão de cheques «não à ordem»  não costuma ser  frequente , pois que o seu próprio beneficiário pode até não o aceitar, em função das restrições que encerra, enquanto título de pagamento.

No entanto, dadas certas circunstâncias, o cuidado e a precaução impõem, salvo prova de que o beneficiário não aceitaria um cheque de tal cariz, que ele assim seja emitido.

Ora, no caso sub judice, o envio pelo correio, com alguns riscos de extravio e viciação inerentes relativamente a títulos de crédito como o presente, aconselhavam que a sacadora, empresa supostamente medianamente diligente e desperta para a existência de tais riscos e perigos, usasse, nesta circunstancia, o cheque «não à ordem».

Finalmente o argumento do envio pelo correio.

Versus o que, ao que parece, é entendimento da insurgente, o envio pelo correio de cartas e demais  objetos ou encomendas não se alcança como uma atitude meridiana  e totalmente inadvertida e imprudente.

Pelo simples facto de que, nem a instituição dos correios se vislumbra infidedigna, nem, em regra ou na maioria dos casos, o envio de tais cartas ou objetos descamba no  seu descaminho.

Antes, felizmente, pelo contrário.

Casos como o presente, de descaminho, no iter temporal e de lugar sob responsabilidade dos correios, com apropriação, para viciação, de um documento, rectius cheque, são, estatisticamente, muito raros.

Aliás, nem sequer está provado que o cheque tenha sido desencaminhado pelo serviço de correios no seu trajeto até à sede da beneficiária.

Tendo-se provado que o cheque «nunca chegou ao seu destino», tal tem de ser interpretado, sagaz e razoavelmente, como nunca tendo chegado à posse/disponibilidade da PWG.

Mas pode ter chegado às suas instalações/sede, e, nestas, ter sido objeto de apropriação e preenchimento abusivo, nos termos em que o foi.

Sendo, inclusive, este o aspeto mais natural e aceitável. Quer pela aludida situação ou regra de normalidade existente nos CTT; quer, principalmente, pelo facto de, quem preencheu o cheque, ter conhecimento da exata qualidade jurídica da PWG (resp. Lda); o que mais se compagina com pessoa ou entidade que, com ela se relacionando, ou até nas suas instalações trabalhando e sabendo que o cheque ia ser recebido,  efetivamente tinha conhecimento de tal qualidade.

No entanto, urge atentar que o envio pelo correio, não está isento de riscos de descaminho e subsequente falsificação destes títulos.

Tanto assim que, admitindo tais riscos, o art. 12º, nº 1, alínea h) do Regulamento do Serviço Público dos Correios, aprovado pelo Dec. Lei nº 176/88, de 18.05  e  o art. 25º, nº 5 da Convenção Postal Universal (DR 1ª série A, nº 110, de 11 de Maio de 2004) vedam a «aceitação, expedição ou distribuição de quaisquer objectos postais quando contenham notas de banco, outros títulos ou objetos com valor realizável, salvo quando expedidos como valor declarado».

Assim sendo, o envio de cheques, como títulos de crédito com valor realizável que são, deve ser expressamente solicitado aos correios «como valor declarado», apenas assim tal envio  sendo legal e regular.

No caso vertente tal não se verificou, pois que apenas se provou que o cheque foi enviado pela emitente via correio normal,  ou seja, nem sequer registado.

Tanto basta para se concluir que a sociedade emitente atuou, neste particular, irregular e, até, ilicitamente.

E, assim, contribuindo para a verificação do resultado danoso – neste sentido, e para além do aresto citado pela o recorrente, cfr. o Ac. da RL de 02.07.2015, p. 193/11.1TJLSB-2 e, mutatis mutandis, o Ac. da RC de RC de 06.10.2015, p. 38/14.0TBCNT.C1, in dgsi.pt.

Na verdade,  como é consabido e constitui jurisprudência pacífica do nosso mais Alto Tribunal, a lei – artº 563º do CC -  no que tange à problemática da causalidade adequada  e para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - consagrou a «formulação negativa de  Enneccerus-Lehman segundo  qual, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto»

Ademais:

 «Esta doutrina … não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado».

« …nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite:

-- não só a ocorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não;

-- como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano» -Cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 06.11.2002, 29.06.04, 20.10.2005, 07.04.2005 e 13-03-2008 in dgsi.pt, ps. 02B1750, 03B4474, 05B2286, 05B294 e 08A369 e A. Varela, ob. cit. ps. 746/756. 

(sublinhado nosso).

É o caso dos autos.

 O envio pelo correio, de cheque «não à ordem», e, assim, endossável, e, principalmente, o envio sem a menção de «valor declarado» foram factos genéticos e matriciais que despoletaram e permitiram a adulteração posterior que originou o indevido pagamento.

Existindo concorrência de culpas entre o recorrente e o emitente, conclui-se, na economia e para os efeitos do artº 570º do CC, que a culpa daquele é mais intensa do que a deste.

Na verdade, o juízo ético-jurídico de censura que deve incidir sobre o recorrente -considerando o seu estatuto de instituição credenciada, supostamente apetrechada com meios humanos e técnicos para detetar fraudes do presente jaez, a sua obrigação acrescida de zelo e fiscalização, em abono e homenagem à defesa e sedimentação da mencionada relação de confiança, bem assim como a violação do artº 38º da LU -, sobreleva sobre o que deve ser assacado à autora,  apenas dimanante da ligeireza e descuido no envio do cheque nas aludias condições.

Tudo visto e razoavelmente ponderado, conclui-se pela justa e adequada distribuição da culpa e da consequente quota parte de responsabilidade, na proporção de 1/3 para a firma emitente do cheque e de 2/3 para o banco recorrente.

Devendo, assim, o valor de €17.000,05 em que o recorrente foi condenado, ser reduzido em 1/3, ou seja, ficando ele agora adstrito ao pagamento da quantia de 11.333,67 euros (onze mil trezentos e trinta e três euros e sessenta e sete cêntimos).

(Im)procede, parcialmente, o recurso.

7.

Sumariando: artº 663º nº7 do CPC.

I - Considerando a confiança que o cliente do banco nele deposita, e os atos ilícitos que, com frequência, são praticados sobre o cheque, o banco sacado tem o dever de, prudente e zelosamente,  fiscalizar a autenticidade dos atos – p. ex. endosso -  que permitem o seu pagamento, bem como  a legitimidade dos seus detentores.

II –Destarte, se o cheque é emitido à ordem de «PWG» e o endosso é feito com os termos de «PWG, Lda, A gerência», seguindo-se  assinatura ilegível,  e sendo o cheque pago por crédito em conta cujo titular não se prova ser banqueiro ou cliente, tal dever não foi cumprido – artºs 35º e 38º da LUC.

III – Porém, o envio pelo emitente, via correio, de cheque cruzado à ordem, logo, endossável, e sem ser expedido como «valor declarado», em contravenção ao disposto no artº 12º nº1 al. h) do D.L. nº 176/88, de 18.05, é censurável e, assim,  devendo ser tido como concausa do evento danoso.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso parcialmente procedente e, consequentemente, condenar o réu no pagamento à autora da quantia de    11.333,67 euros.

No mais se absolvendo.

 

Custas pelas partes na proporção da presente sucumbência.

Coimbra, 2016.02.02.

Carlos Moreira ( Relator )

Moreira do Carmo

Fonte Ramos