Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
497/25.6T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HUGO MEIRELES
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE ENTREGA DO BEM LOCADO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
MOTIVO JUSTIFICADO
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA MARINHA GRANDE DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 21.º, N.ºS 1 E 7, DO DLEI N.º 149/95, DE 24-06, 17.º-E, N.º 1, DO CIRE (NA REDAÇÃO DO ART.º 2.º DA LEI N.º 9/2022, DE 11-01) E 272.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – O procedimento cautelar de entrega do bem locado ao abrigo do artº. 21º, nºs. 1 e 7, do DL nº. 149/95, de 24 de junho, não cabe na previsão do art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE.

II – A suspensão ao abrigo do artº. 272º, nº. 1, do CPC. exige a alegação de uma situação concreta que permita concluir pelo “motivo justificado”.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Recorrente/ré: Banco 1..., SA
Recorridos/autora: A..., Ldª
I. Relatório

O «Banco 1..., S.A.» intentou providência cautelar de entrega judicial de bem imóvel, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 149/95 de 24 de junho, contra «A..., Lda.», peticionando a entrega judicial do prédio urbano, composto de instalações fabris com pavilhão de rés-do-chão e 1.º andar e logradouro, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...34 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...62.

Para o efeito, alega, em suma, que celebrou um contrato de locação financeira com a requerida e que a mesma deixou de proceder ao pagamento da renda devida em 15 de março de 2024 e das que seguidamente se venceram, que o contrato chegou ao seu termo programado e que a requerida não exerceu a opção de compra.


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Em 1 de julho de 2025, foi junto aos autos o anúncio de nomeação de administrador judicial provisório, no âmbito de um PER em benefício da requerida.

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Em 25 de março de 2025, a requerida veio deduzir oposição à presente providência cautelar alegando, além do mais, que sempre comunicou à requerente a sua intenção de proceder ao pagamento do remanescente das rendas em atraso, bem como do valor residual, o que a requerente aceitou.

Além disso, alega a pendência do PER e que o prédio em causa é onde exerce a sua atividade industrial e na qual trabalham vinte e nove colaboradores, sendo a sua manutenção é absolutamente vital para a sua sobrevivência.

Concluiu pedindo a improcedência do providência e, se assim não se entender, a suspensão da mesma ao abrigo do disposto no artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE ou, caso ainda assim não se entenda, a sua suspensão nos termos gerais, ao abrigo do preceituado no art.º 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, uma vez que a entrega do imóvel à requerente inviabilizaria, de todo, o propósito subjacente ao processo especial de revitalização.


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Conferido contraditório, veio a requerente, em 11 de agosto de 2025, alegar, em suma, que o contrato terminou há 9 meses e que o incumprimento já se verifica há ano e meio, bem como que a causa suspensiva invocada pela requerida prende-se com a cobrança de créditos e o que está em causa é a restituição de um bem/entrega de coisa certa, que é propriedade da requerente, razão pela qual não deverá ser decidida a peticionada suspensão da instância.

Impugna ainda, por desconhecimento, a alegada finalidade a que a requerida destina o imóvel.


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Em 5 de setembro de 2025, foi proferido despacho que, pronunciando-se sobre a requerida suspensão da instância, termina com o seguinte segmento decisório:

Em face do exposto, atento o teor do anúncio referente à prolação de despacho de nomeação de administrador judicial provisório da Requerida junto aos autos em 01.07.2025, e o disposto no artigo 17.º-E, nº 1, do CIRE, na interpretação dada pelos acórdãos supra citados, a qual subscrevemos, defiro o ora requerido e, em consequência, determino a suspensão imediata da instância no presente procedimento cautelar e das diligências visando a entrega do imóvel dado em locação financeira enquanto durarem as negociações no Processo Especial de Revitalização.

Notifique.


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Não se conformando com esta decisão, o requerente «Banco 1..., SA» veio interpor recurso, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…).


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A requerida/recorrida apresentou resposta ao recurso, que conclui da forma seguinte:

(…).


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Pelo relator a quem foi distribuída a presente apelação, foi ordenada a notificação da recorrente, ao abrigo do disposto no art.º 665º, n.º 3 do Código de Processo Civil, para se pronunciar sobre a questão da eventual suspensão da instância nos termos gerais (art. 272º, n.º 1 do Código de Processo Civil) colocada pela recorrida, a título subsidiário, no requerimento de oposição.

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Em resposta, a recorrida pronunciou-se no sentido da não verificação dos pressupostos para a suspensão da instância com tal fundamento, reiterando o entendimento segundo o qual a decisão recorrida deve ser revogada, ordenando-se o prosseguimento dos autos. 

Colhidos os vistos, cumpre decidir


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II. Questão que importa decidir: se este procedimento cautelar não devia ter sido suspenso.

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III. Fundamentação de facto

Os factos a considerar, no caso, são apenas as ocorrências processuais de que o relatório deste acórdão dá conta.


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IV. Fundamentação de Direito
Importa então tomar posição sobre a questão jurídica em causa que é a de saber se o procedimento cautelar para entrega judicial de bem objeto de locação financeira deve ser suspenso com fundamento no disposto no art.º 17.º-E, n.º 1, do CIRE.
A resposta a esta questão passa pela interpretação do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, na redação que lhe foi dada pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, e pressupõe o entendimento de que para estes procedimentos cautelares se justifica, ou não, a aplicação do mesmo regime que a dita norma legal prevê para as “acções executivas contra a empresa para cobrança de créditos”.
A redação anterior da norma em causa, introduzida pelo DL n.º 79/2017, de 30/06, era a seguinte: «1 - A decisão a que se o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.» [sublinhados nossos].
Perante esta redação, era controversa a questão se saber se no conceito de ações se integravam apenas as ações executivas ou também as ações declarativas, entendendo-se maioritariamente, na doutrina e na jurisprudência, que se englobavam os dois tipos de ações, havendo também quem defendesse que entre as ações que o mencionado art.º 17º-E, n.º 1 obstava a que fossem instauradas ou, quando já instauradas, impunha a sua suspensão, figuravam os procedimentos cautelares que visam a entrega do bem objeto de locação financeira.

Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, o Acórdãos desta Relação de 18/01/2022 (proc. n.º 193/20.0T8MMV.C1) e 12/07/2017 (Processo nº 3582/16.1T8LRA-A.C1), bem como os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/10/2013 (proc. 761/13.7TVLSB.L1-2), de 21/11/2013 (proc. 1290/13.4TBCLD.L1-2), de 05/06/2014 (proc. 171805/12.0YIPRT.L1-2), de 22/01/2015 (proc. 197/14.2TNLSB.L1-6), de 12/03/2019 (proc. 4103/18.7T8FNC.L1-7) [este relativo a contrato ainda não resolvido], o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/09/2019 (proc. 685/19.4T8PNF.P1) e ainda os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 27/05/2021 (proc. 330/21.8T8VCT.G1); de 23/09/2021, proc. 7004/19.8T8VNF.G1 [mas relativo a um imóvel dado de arrendamento à requerida][1] .

O entendimento contrário, ou seja, de que a norma em causa (na sua anterior redação) não se aplicava ao procedimento cautelar de entrega judicial de bens objeto de contratos de locação financeira, foi manifestado, por exemplo, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/01/2016 (proc. 213/14.8TTFUN.L1-4) e de 25/06/2015 (proc. 7452/13.7TBCSC-B.L1-8) e no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17/12/2020 (proc. 3548/20.7T8GMR.G1).

No mesmo sentido, veja-se Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis[2]: [o art. 17.ºE/1 do CIRE] “abrange (…) as acções executivas para pagamento de quantia certa (e as demais execuções sempre e quando se verifique a conversão das mesmas nos termos previstos nos artigos 867.º ou 869.º do CPC) e os procedimentos cautelares antecipatórios de acções que deveriam ser suspensas ao abrigo do citado normativo legal.”. Ou seja, encontram-se “excluídas (…) do âmbito de aplicação do artigo 17.º-E/1, as acções declarativas, as acções executivas para entrega de coisa certa, as acções executivas para prestação de facto e a generalidade dos procedimentos cautelares.”.

A redação atual do art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE, introduzida pela Lei 9/2022 de 11.01 é a seguinte: «1 - A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.» [sublinhados nossos].

Como se diz no acórdão desta Relação de 4/06/2024 (Proc. n.º 4793/23.9T8LRA.C1)[3], “perante o teor atual do art.º 17º-E nº1 do CIRE alcança-se meridianamente evidente que o legislador limitou a proibição da instauração de ações, e a sua suspensão já quando instauradas, às ações executivas; mais definindo/limitando o período máximo durante o qual tal proibição e suspensão são possíveis: 04 meses.”
No momento atual, a suspensão tem em vista ações executivas, questão que parece ter ficado resolvida com a redação dada ao art.º 17º-E, n,º 1 do CIRE, pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro (que transpôs a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019), e que pôs fim à divergência sobre se a incidência da suspensão recaía apenas sobre as ações executivas ou abrangia também as ações declarativas.
Tendo por certo que apenas serão objeto de suspensão as ações executivas, ainda assim pode colocar-se a questão de saber se nessas ações  se incluem apenas as execuções cuja finalidade seja a de cobrança de créditos ou também todas as ações de natureza executiva que possam interferir com o património da empresa ou com o prosseguimento da sua atividade. Ou seja, se em causa estarão todas as medidas executivas e dentro destas se estão abrangidas as providências cautelares de entrega judicial de bens locados, na medida em que este procedimento cautelar assume, na fase subsequente à decisão de deferimento da pretensão, natureza executiva.
Com efeito, visando a providência em causa a entrega judicial de determinado bem, a mesma consiste na realização coativa da respetiva restituição findo o contrato de locação financeira, daí que a sua finalidade acabe por se reconduzir à entrega de coisa certa.
Perante a nova redação do art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE, uma parte da jurisprudência defende que tal norma deve ser interpretada no sentido de abranger na sua previsão as entregas judiciais requeridas no âmbito dos procedimentos cautelares a que alude o artigo 21.º do DL n.º 149/95, de 24 de junho. Para esta jurisprudência, as razões pelas quais as ações de cobrança de dívida se deverão suspender, perante a propositura dos processos especiais de revitalização – consistentes na valorização do escopo essencial do PER, ou seja, permitir a continuação da atividade económica por parte do devedor em dificuldades, de modo a evitar a situação de insolvência, impedindo a liquidação de empresas viáveis – estão igualmente presentes perante um procedimento cautelar de entrega judicial de bens locados que incorpora um julgamento definitivo da causa, ao abrigo do disposto no art.º 21.º do Decreto- Lei n.º 149/05 de 24 de Junho.
É este o entendimento, entre outros, do acórdão da Relação de Évora de 16-03-2023[4], onde se escreveu que “sendo o PER um instrumento de revitalização de empresas, não podia o legislador nacional desconhecer que os contratos de locação financeira constituem meio privilegiado de acesso aos bens e equipamentos necessários à atividade empresarial. Deste modo, permitir que, na pendência do processo de revitalização, ainda que em virtude de resolução feita operar anteriormente por falta de pagamento de rendas vencidas, o locador obtenha a entrega judicial dos bens locados – muitas vezes o imóvel onde funciona a unidade empresarial, as máquinas da linha de produção ou os equipamentos do estabelecimento ou ainda, como no caso vertente, os veículos sem os quais a requerida, empresa dedicada ao transporte rodoviário de mercadorias, não poderá continuar a sua actividade – será inviabilizar desde logo qualquer possibilidade de recuperação da devedora, o que contraria de forma clara os fins tidos em vista com este instrumento, reforçados na Directiva transposta”.[5]
E foi também o entendimento que fundamentou a decisão recorrida.
Não obstante, sobre esta questão pronunciou-se recentemente o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 13 de março de 2025 (Proc. n.º 9354/24.2T8SNT.L1-A.S1) tendo concluído que “embora a teleologia do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE justificasse a suspensão de providências executivas, como a prevista no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 149/95, de 24 de Junho, os restantes elementos relevantes para a interpretação da lei (letra, unidade do sistema jurídica e elemento histórico) apontam no sentido de que as acções executivas para cobrança de créditos tidas em vista pelo preceito acima referido, são apenas as acções executivas para pagamento de quantia certa”. E, assim, excluindo que o preceito abrangesse o tipo de ações ora em análise, revogou o acórdão recorrido e substituiu-o por decisão a levantar a suspensão dos termos da providência cautelar prevista no n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 149/95, de 24 de junho, e a determinar o prosseguimento do processo.
Salvo melhor opinião, entendemos ser de aderir à interpretação da lei feita neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

Com efeito, como aí se diz, o elemento teleológico da lei não é o único a atender na interpretação da mesma.

Decorre do artigo 9.º do Código Civil que, na interpretação da lei, cabe atender à respetiva letra e ao pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico (n.º 1), e há que presumir, na fixação do sentido e alcance da lei, que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3).

Ora, desde logo, a providência cautelar de entrega em nada corresponde literalmente a ação executiva para a cobrança de créditos.

Como se refere no recente acórdão do STJ de 18 de setembro de 2025[6],“se a providência cautelar de entrega judicial se ajusta à noção de ação executiva constante do n.º 4 do artigo 10.º do CPC – pois consiste numa providência adequada à realização coactiva de uma obrigação –, já claramente se afasta da noção de acções executivas para cobrança de créditos. Nesta expressão, o termo “cobrança” tem o sentido de “pagamento” e o termo “créditos” o de “créditos pecuniários”. Assim sendo, a expressão acções executivas para cobrança de créditos são as que têm por fim o pagamento de créditos pecuniários, ou seja, usando a terminologia do n.º 6 do artigo 10.º do CPC, as execuções para pagamento quantia certa. Ora, não é este o fim da providência em causas nos autos. O seu fim é a entrega de coisa certa (a coisa móvel ou imóvel dada em locação financeira)”.

Já foi dito que a redação atual do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE foi estabelecida pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

Esta lei teve como objeto a aprovação de medidas de apoio e agilização dos processos de restruturação das empresas e dos acordos de pagamento (artigo 1.º, n.º 1) e a transposição para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1023.

Parece-nos, contudo, que, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, a interpretação do art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE ali propugnada não encontra apoio na mencionada Diretiva (UE) 2019/1023.

De acordo com o já mencionado acórdão do STJ de 13 de março de 2025, (a) redacção actual do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE foi estabelecida pelo artigo 2.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro. Esta lei teve como objecto a aprovação de medidas de apoio e agilização dos processos de restruturação das empresas e dos acordos de pagamento (artigo 1.º, n.º 1) e a transposição para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/1023. Para a interpretação do sentido e alcance do n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, interessam-nos de modo especial as regras da Diretiva relativas à reestruturação preventiva e de, entre elas, o artigo 6.º, pois é este preceito que dispõe especificamente sobre a suspensão das medidas de execução. O n.º 1 contém a seguinte injunção dirigida aos Estados-Membros: devem assegurar que os devedores possam beneficiar da suspensão das medidas de execução para apoiar as negociações do plano de reestruturação num regime de reestruturação preventiva. A Diretiva não se ficou, no entanto, por esta injunção. Definiu o que se devia entender por suspensão das medidas de execução. Fê-lo no n.º 4 do artigo 2.º nos seguintes termos: a suspensão temporária, concedida por uma autoridade judicial ou administrativa ou aplicada por força da lei, do direito de um credor executar créditos reclamados junto de um devedor e, se o direito nacional assim o previr, junto de terceiros prestadores de garantias, no contexto de processos judiciais, administrativos ou outros, ou de suspender o direito de apreender ou liquidar por via extrajudicial os ativos ou a empresa do devedor. Decorre deste preceito, que para efeitos da Diretiva, são os seguintes os direitos do credor que são suspensos para apoiar as negociações: • Direito de um credor de executar créditos reclamados junto de um devedor, ou junto de terceiros prestadores de garantias, no contexto de processos judiciais, administrativos ou outros; • Direito de um credor apreender ou liquidar por via extrajudicial os ativos ou a empresa do devedor. Não se vê que a providência cautelar prevista no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-lei n.º 149/95, de 24 de Junho, corresponda ao exercício de algum dos direitos acima indicados. Não corresponde ao direito de executar créditos reclamados, pois os créditos tidos em vista são os pecuniários. Não corresponde a apreensão ou liquidação por via extrajudicial de activos ou da empresa do devedor, pois a providência em causa nos autos exerce-se através da via judicial. Segue-se do exposto que a Diretiva não inclui, entre as medidas de execução a suspender, providências executivas como a que está em causa nos autos”.

Poderá ainda dizer-se que, ante a polémica doutrinária e jurisprudencial acima referida, o legislador, dela bem ciente, entendeu, na sua mais recente intervenção, alterar  redação do n.º 1 do art.º 17º-E do CIRE, de forma a clarificar o sentido e alcance da anterior expressão “ações para cobrança de dívida”, dizendo que tais ações são tão somente as “ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos”

O legislador não desconhecia a possibilidade de serem deduzidos pedidos de entrega de bens dados em locação financeira ou em regime de aluguer, especialmente porque se trata de empresas que estão a passar por momentos económicos difíceis, pelo que, se pretendesse que qualquer procedimento ou execução que tivesse por objeto a entrega dos bens locados devessem ser suspensos, tê-lo-ia dito.

 Conforme se escreve no citado Ac. do STJ de 13 de março de 2025, “(n)a exposição de motivos da proposta de Lei n.º 115/XIV/III, que veio a culminar com a aprovação da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro (que alterou a redacção do n.º 1 do artigo 17.º-E) é afirmado, a propósito da suspensão das medidas de execução na pendência das negociações entre a empresa e os seus credores o seguinte: “... clarifica-se que o despacho liminar proferido em PER, que consiste na nomeação do administrador judicial provisório, obsta à instauração de quaisquer acções executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante o período de negociações – que não pode exceder quatro meses - e é causa de suspensão quanto à empresa, durante o mesmo período, das acções em curso com idêntica finalidade.

Este trecho da exposição de motivos mostra o seguinte com relevância para a interpretação do n.º 1 do artigo 17.º-E, na sua redação actual.

Em primeiro lugar, mostra que o legislador tinha conhecimento das divergências que existiam na doutrina e na jurisprudência sobre o sentido e alcance da expressão “acções para cobrança de dívidas”.

Dir-se-á, finalmente, que a interpretação que está subjacente à decisão recorrida   pressuporia a existência de uma lacuna, a carecer de regulamentação, ou então que o legislador terá dito menos do que pretendia e, por isso, deve colmatar-se a sua falha por interpretação extensiva. Todavia, como bem nota o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21-09-2017[7] – ainda que a propósito da anterior redação da norma - “Não nos parece estar-se ante caso que justifique lançar mão de tais recursos. Como a tal propósito, por exemplo, adverte pedagogicamente o STJ, no recente AUJ nº 6/2017 (DR 1ª série, nº 128, de 05 de Julho), “É vedado aos Tribunais superar a vontade expressa pelo legislador, através da formulação legal adoptada, a não ser que sejam identificadas razões bastantes que permitam extrair das normas um sentido mais amplo do que aquele que delas resulta em termos meramente literais (interpretação extensiva) ou que permitam detectar uma omissão legal que deva ser suprida mediante a transposição da solução normativa(analogia). A interpretação extensiva legitima que se extraia das normas um sentido mais amplo do que aquele foi expresso através do seu elemento literal, mas pressupõe que na letra da lei se encontre um mínimo de correspondência, sendo aquele resultado corroborado por outros elementos de interpretação normativa: histórico, sistemático ou racional (art. 9.º do CC). Já a analogia constitui um mecanismo de integração de lacunas legais que é reservado para situações omissas, isto é, para situações não expressamente reguladas pelo legislador mas relativamente às quais procedam as mesmas razões que subjazem à regulamentação expressamente consagrada. Caso omisso não equivale à mera falta de previsão legal de determinada situação, antes exige que se descubra uma realidade que não encontra consagração na lei, em toda a sua dimensão, mas à qual sejam aplicáveis as mesmas razões que estiveram na base da solução normativa.”. Tais pressupostos não se verificam”.

Pelo exposto, concluímos que não se encontram verificados os pressupostos que exigem a suspensão do procedimento cautelar nos termos do nº1 do art.º 17º-E, do CIRE.


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Tendo-se concluído desta forma, terá ainda de se aferir se estaremos perante um caso de suspensão da instância ao abrigo do art.º 272º, nº. 1, Código de Processo Civil.

Esta hipótese foi avançada pela requerida no seu requerimento de oposição, como fundamento subsidiário da sua pretensão de suspensão da instância, mais propriamente para a hipótese de se vir a entender que tal suspensão não resulta ope legis do disposto no art.º 17º-E, n.º 1 do CIRE.

Foi também expressamente por ela invocada nas suas contra-alegações de recurso, enquadrando-a como uma ampliação de recurso nos termos do art.º 636º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Uma vez que tal fundamento (subsidiário) não chegou a ser apreciado em primeira instância, considerando-o o tribunal a quo implicitamente prejudicado face à procedência do primeiro fundamento invocado para a suspensão do processo, não está em causa verdadeiramente uma ampliação do objeto de recurso.

Como refere Abrantes Geraldes[8], “(e)m tais circunstâncias, a tutela dos interesses do recorrido não passa pela ampliação do objeto de recurso, entrando em funcionamento o mecanismo prescrito pelo art.º 665º, n.º 2, para o recurso de apelação.

Efetivamente, em relação a questões cuja análise foi considerada prejudicada, não pode haver razão para se concluir que a parte  vencedora decaiu, como se exige no n.º 1 do art.º 636º. Tão pouco existe nulidade por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do seu n.º 2.

(…) Se a apelação proceder relativamente aos fundamentos que conduziram à decisão recorrida, a relação deve conhecer das questões que ficaram prejudicadas (sejam ou não de conhecimento oficioso), desde que para tal detenha os elementos necessários, caso contrário, deve determinar a baixa do processo para apuramento dos factos que se mostrem necessários”

Em razão do que acaba de se expor e tendo este tribunal observado o preceituado no art.º 665º, n.º 3 do Código de Processo Civil, importa então conhecer do fundamento subsidiário de suspensão do procedimento invocado pela requerida, aqui recorrida.

Nos termos do n.º 1 do art.º 272º do Código de Processo Civil, “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.

Este artigo prevê a suspensão por causa prejudicial ou por motivo justificado.

De acordo com José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[9], entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada.

Parece-nos que, no caso concreto, esta hipótese está afastada já que a ação de revitalização e a sua sorte não interfere com o pedido de restituição do bem por força da caducidade de um contrato de locação alegadamente já verificada.

Todavia, como nos dizem Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luís Filipe Sousa[10], “suspensão da instância em geral pode encontrar outros motivos cuja justificação é sujeita ao escrutínio do juiz, o qual, neste campo, goza de uma larga margem de discricionariedade, devendo aquilatar se efetivamente se justifica tal medida. Nesses casos, o juiz deve sempre fixar o prazo de suspensão, o que, no entanto, não obsta a que o mesmo seja renovado se acaso as circunstâncias continuarem a revelar a necessidade da suspensão”.

Haverá, no caso em apreço, motivo justificado para se determinar a suspensão da instância ao abrigo desta norma?

Numa primeira análise, poderá não parecer que estariam verificados, no caso em análise, os pressupostos da suprarreferida norma.

O que está em causa nestes autos são os efeitos da extinção de uma relação contratual de locação financeira estabelecida entre as partes, no caso, por via da alegada caducidade do mesmo contrato, e a subsequente entrega do bem locado, que não é propriedade da requerida, mas da requerente.

Daí que, não visando a cobrança de dívida, não terá cabimento a eventual extinção da instância por força da homologação do plano de recuperação que incide sobre o modo de pagamento de créditos.

Por outro lado, caso o processo negocial venha a concluir-se sem a aprovação plano de recuperação, todos os efeitos da apresentação ao PER cessam – art.º 17º-G, nºs. 1, 2 e 4 do CIRE. A não ser que tal se verifique porque a empresa está antes em situação de insolvência. E, se assim for, então, e sendo declarada a insolvência do devedor, só serão suspensas as diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente (cfr. art.º 88º, nº. 1, do CIRE). Sucede que o bem locado não integra a massa insolvente, pelo que, uma vez reconhecida a caducidade do contrato de locação financeira (ou operada a resolução do mesmo), nada parece obstar ao prosseguimento deste procedimento cautelar.

Apesar disso, não podemos olvidar que a finalidade da reestruturação é permitir a continuação da atividade económica por parte do devedor em dificuldades, de modo a evitar a situação de insolvência, impedindo a liquidação de empresas viáveis.

Por isso, o desiderato do processo negocial com os credores, que ocorrerá sob orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, terá por pressuposto ou propósito que a empresa mantenha a sua atividade económica, com a continuidade das relações jurídicas e económicas com os diversos agentes, sejam trabalhadores, clientes ou fornecedores.

E há que ter em conta que, apesar de não estar em causa, no procedimento cautelar de entrega de bem locado, a cobrança de um crédito, o requerente/locador financeiro terá sobre a requerida um crédito pecuniário correspondente às rendas vencidas e não pagas e, nessa medida, será chamado a intervir em tais negociações, nada obstando que, por efeito das mesmas, possa vir até a ser renegociado um novo contrato que permita à requerida continuar a usar o bem locado.

Não custa assim a admitir que poderá haver situações em que permitir, na pendência do processo de revitalização, que o locador, por via da providência cautelar do art.º 21º, n.º 1 do DL 149/95, obtenha a entrega judicial dos bens locados equivalerá a inviabilizar, desde logo, qualquer possibilidade de recuperação da devedora, o que contraria de forma clara os fins tidos em vista com este instrumento, reforçados na Diretiva transposta.

Parece-nos que, nessas situações, poderá ocorrer um motivo justificado para que o juiz, ao abrigo do disposto na 2ª parte do n.º 1 do art. 272º do Código de Processo Civil, determine a suspensão da instância[11].

Porém, a aplicação desta norma não deixa de exigir a alegação, pela parte interessada nessa suspensão, de factos concretos demonstrativos de tal circunstancialismo, que ocorrerá, por exemplo, se o bem locado e cuja entrega se pretende é uma máquina sem a qual a atividade da requerida ficará paralisada ou o imóvel onde esta tem as suas instalações fabris, podendo, por isso, a entrega do mesmo comprometer a vida empresarial da requerida.

Na situação vertente, a requerida alegou, no seu requerimento de oposição, que o prédio objeto da locação, cuja entrega é requerida, constitui o local onde exerce a sua atividade industrial e no qual trabalham vinte e nove colaboradores, mais sustentando que a manutenção do uso do mesmo é absolutamente vital para a sua sobrevivência.

Face ao acima exposto, entendemos que esta factualidade, a demonstrar-se, poderá configurar motivo justificado para a suspensão da instância, até à conclusão da fase das negociações a que alude o art.º 17º-D do CIRE, nos termos do art.º 272º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Civil.

Sucede que tal factualidade mostra-se controvertida (porque expressamente impugnada pela requerente no articulado de resposta às exceções deduzidas na contestação), carecendo de produção de prova, razão pela qual não estão reunidos os requisitos do artigo 665.º do Código de Processo Civil para que este Tribunal de recurso se substitua ao Tribunal a quo na apreciação da questão em análise.

Impõe-se, por conseguinte, a remessa dos autos à primeira instância para apreciar a questão.


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Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil):

(…).


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V. Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar a apelação procedente, em consequência do que se se revoga a decisão recorrida e se determina que, após a necessária produção de prova, seja apreciado o requerimento para suspensão da instância por existência de motivo justificado, nos termos do n.º 1 do art.º 272º do Código de Processo Civil.
Condena-se o recorrido a pagar as custas do recurso.
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Coimbra, 11 de novembro de 2025.
Hugo Meireles
Marco António de Aço e Borges
Francisco Costeira da Rocha


(O presente acórdão segue na sua redação as regras do novo acordo ortográfico, com exceção das citações/transcrições efetuadas que não o sigam).


[1] Disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] “PER, O Processo Especial de Revitalização – Comentários aos artigos 17.º-A a 17.º-I do CIRE”, Coimbra Editora, 2014, p, págs. 97 e segs.
[3] Acessível em www.dgsi.pt.
[4] processo n.º 382/22.3T8ETZ.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Em idêntico sentido, confronte-se o acórdão da Relação de Lisboa de 19-12-2024 (processo n.º 9354/24.2T8SNT.L1-7), citado na decisão recorrida, e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-07-2025 (processo n.º 1573/25.0T8GMR.G1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Processo n.º 1573/25.0T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pt
[7] Processo n.º 443/17.0T8FLG.G1, in www.dgsi.pt
[8] Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª Edição, pag. 153
[9] Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, pag. 550 da 4ª edição.
[10] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2018, pag. 315,
[11] Neste sentido, os acórdãos deste Relação de 12/07/2017 (Processo nº 3582/16.1T8LRA-A.C1) e de 18-01-2022 (Proc. n.º 193/20.0T8MMV.C1). Também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de dezembro de 2020 (proc. n.º 3548/20.7T8GMR.G1) parece admitir, nestes casos, a possibilidade de suspensão da instância, nos termos do art.º 272º do Código de Processo Civil.