Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2078/12.5TBPBL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
COMISSÁRIO
SEGURO
EXCLUSÃO
CONDUTOR DO VEÍCULO
TERCEIROS
Data do Acordão: 11/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 500, 503 CC, 14 DL Nº 291/2007 DE 21/8
Sumário: 1. - Na ação indemnizatória intentada pelas lesadas (esposa e filha do falecido condutor, por conta de outrem, do veículo automóvel seguro), no âmbito do seguro obrigatório automóvel, contra a respetiva seguradora, por acidente de viação que se traduziu no despiste, sozinho, do veículo seguro, de que resultou a morte do condutor, é aplicável a presunção de culpa prevista no art.º 503.º, n.º 3, primeira parte, do CCiv..

2. - Tal presunção legal, operando no domínio das relações externas (entre condutor/comissário, como lesante, e lesados), como resulta do Assento n.º 1/83, de 14/04/1983, colhe ainda aplicação nas relações internas (entre comitente e condutor/comissário), não para definição de responsabilidades pelo risco – a lei não prevê responsabilidade objetiva do condutor por conta de outrem –, mas para efeitos de direito de regresso, por o afastamento da presunção de culpa do comissário obstar ao direito de regresso do comitente que satisfaça a indemnização ao lesado no âmbito da sua responsabilidade objetiva (art.º 500.º, n.ºs 1 e 3, do CCiv.).

3. - Pedindo também indemnização por danos próprios, as aqui autoras situam-se, como lesadas, no plano das relações externas – o da ação indemnizatória por danos decorrentes do acidente, intentada contra a seguradora de responsabilidade no âmbito do seguro obrigatório automóvel –, não obstante a dupla qualidade do condutor/comissário de lesante e lesado.

4. - A noção de terceiros, para efeitos indemnizatórios em matéria de seguro obrigatório automóvel, vista a função social deste, tem vindo a sofrer progressivos alargamentos, de molde a, cada vez mais, incluir todas as vítimas dos acidentes de viação, garantindo-lhes indemnização.

5. - Porém, deve atender-se a um princípio básico e originário dos seguros de responsabilidade civil – o seguro obrigatório automóvel continua a ser um seguro de responsabilidade civil –, traduzido na oposição irredutível entre os conceitos de responsável/lesante, por um lado, e vítima/lesado, por outro, não podendo ser-se responsável (exclusivo) e vítima ao mesmo tempo, devendo, pois, conjugar-se este princípio com aquela ideia, mais recente, de progressivo alargamento da abrangência do seguro.

6. - Neste âmbito, operam as exclusões da garantia do seguro a que alude o art.º 14.º da LSOA, aprovada pelo DLei n.º 291/2007, de 21-08, desde logo quanto ao condutor do veículo – este não é terceiro, estando afastada, quanto a si (condutor responsável pelo acidente, ainda que por culpa presumida, e pelos decorrentes danos), a indemnização de quaisquer danos ao abrigo do seguro obrigatório automóvel.

7. - E, quanto aos familiares (no caso, esposa e filha menor), há que distinguir consoante sejam ou não vítimas diretamente atingidas pelo acidente: se são passageiros do veículo ou vítimas diretamente atingidas, impõe-se o disposto no art.º 14.º, n.º 2, al.ªs e) e f), da LSOA, inexistindo exclusão dos danos corporais próprios; se não são vítimas (diretas) do acidente (como no caso), apenas sofrendo danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável, não terão direito indemnizatório (designadamente, pelos seus próprios danos morais decorrentes da morte do exclusivo responsável, conforme jurisprudência uniformizada do STJ e sem contradição com o Direito da União Europeia).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

P (…)e sua filha menor, M (…), esta representada por aquela, ambas com os sinais dos autos,

intentaram ([1]) ação declarativa condenatória, com forma ordinária, contra

Companhia de Seguros (…), S. A.” (atualmente “F (…) S. A.”), também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhes a quantia de € 97.358,18, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, desde a citação e até integral pagamento.

Alegaram, para tanto, em síntese, que:

- as AA. são as únicas e universais herdeiras de R (…) respetivamente marido e pai destas, falecido em consequência de acidente de viação ocorrido em Espanha, quando conduzia um veículo pesado articulado (com reboque), por conta da proprietária do veículo, a “Sociedade Transportadora Rodoviária (..) Ld.ª”, sob cuja autoridade, direção e fiscalização exercia funções de motorista;

- tal acidente consistiu no despiste desse veículo – seguro na R., seja quanto a seguro obrigatório automóvel, seja quanto à cobertura facultativa de “ocupantes da viatura” –, que, em autoestrada, saindo da via pelo lado direito atento o seu sentido de marcha, foi embater na barreira lateral, após o que caiu num precipício e sofreu explosão;

- das lesões assim sofridas resultou a morte do dito condutor, não tendo sido possível determinar em que circunstâncias se verificou o despiste;

- sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, correu termos processo laboral, no âmbito do qual as AA. receberam a quantia de € 3.600,00 a título de despesas de funeral, sendo, porém, que despenderam neste € 5.958,12, pedindo agora a diferença (€ 2.358,18), bem como € 50.000,00 pela perda do direito à vida, € 10.000,00 por danos morais sofridos pela própria vítima, € 20.000,00 pelos danos morais sofridos pela A. P (…9 e € 15.000,00 pelos sofridos pela A. M (…).

Citada a R., apresentou esta contestação, recusando a responsabilidade pelo acidente de viação, invocando que as AA. não são “terceiros /lesados” para efeitos de seguro obrigatório automóvel, ficando excluídos da cobertura do seguro os danos sofridos pelo motorista do veículo causador do acidente e todos os danos decorrentes daqueles, excecionando a prescrição do direito indemnizatório, afirmando a culpa do condutor do veículo no despiste ocorrido, e concluindo pela sua total absolvição.

Na réplica, as AA. vieram pugnar pela improcedência da deduzida exceção da prescrição.

Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho saneador e, julgada improcedente a exceção de prescrição ([2]), procedeu-se à enunciação do objeto do litígio e à fixação dos temas da prova.

Procedeu-se também a julgamento, após o que foi proferida sentença (datada de 08/12/2015, conhecendo de facto e de direito), julgando a ação parcialmente procedente, assim condenando a R. a pagar:

“I- A ambas autoras a quantia global de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de indemnização pela perda do direito à vida de R (…), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

II- À autora P (…) a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

III- À autora M (…) a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a presente data até efectivo e integral pagamento;

IV- A ambas autores a quantia de € 2.358,12 […] (dois mil trezentos e cinquenta e oito euros e doze cêntimos) a título de dano patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;» ([3]).

De tal sentença veio a R. interpor recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([4])

(…)

Pugna, no provimento do recurso, pela revogação da sentença impugnada, com a consequente absolvição da R. dos pedidos formulados.

Contra-alegaram as AA./Recorridas, pugnando pela improcedência do recurso interposto.

Tal recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo, após o que foi ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido tal regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito da apelação, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito do Recurso

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil atualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 ([5]) –, importa saber ([6]):

a) Se ocorre manifesta improcedência da ação, por via da operância da presunção de culpa, não ilidida, do condutor do veículo sinistrado/seguro (art.º 503.º, n.º 3, primeira parte, do CCiv.) e da exclusão da cobertura, pela garantia do seguro, dos danos sofridos pelo causador culposo do acidente e dos danos decorrentes daqueles (art.º 14.º, n.º 1, da LSOA, aprovada pelo DLei n.º 291/2007, de 21-08);

b) Se deve proceder a impugnação da decisão de facto;

c) Se pode formular-se um juízo de culpa efetiva daquele condutor.

 


***

III – Fundamentação

         A) Matéria de facto

É a seguinte a factualidade julgada provada pela 1.ª instância:

«1- As autoras são as únicas e universais herdeiras de R (…), falecido em 14.10.2009, sendo a autora P(..) [o] cônjuge sobreviv[o] e M (…) filha de ambos, nascida a 19.09.2005.

2- No dia 14 de Outubro de 2009, cerca das 12 horas e 35 minutos, ao KM 77.860, em Villacastin, A.P.6, Espanha, sentido Adanero-Villalba ocorreu um acidente de viação, no qual foi único interveniente o veículo matrícula (...) DL e reboque matrícula VI- (...) , conduzido pelo falecido R (…)

3- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 2, R (…) conduzia o referido veículo articulado por conta da sociedade Transportadora Rodoviária (...) , para a qual trabalhava e sob cuja autoridade, direcção e fiscalização exercia funções de motorista.

4- O local do acidente constitui um viaduto numa auto-estrada com portagem e, à data do acidente, era composta por duas vias em cada sentido de trânsito, com 3,70 metros cada uma, separadas por uma linha longitudinal descontínua, com traçado rectilíneo, descendente com uma inclinação de 2%.

5- O viaduto referido em 5 tinha uma altura de cerca de 35 metros no seu centro, não dispunha de faixas de emergência e era ladeado por uma barreira lateral semi-rígida.

6- A velocidade permitida para o local era 90 Km/hora para veículos articulados.

7- No momento do acidente fazia bom tempo, não chovia, o piso estava seco e o sol estava num dos seus pontos mais altos, não existindo quaisquer circunstâncias atmosféricas que impedissem ou pusessem em perigo a circulação de veículos.

9- Em circunstâncias e por motivos não concretamente apurados, o veículo colidiu com a barreira lateral semi-rígida situada do lado direito, atento o seu sentido de marcha, destruindo a mesma, despenhando-se de seguida sobre o leito do riacho localizado no fundo do viaduto, incendiando-se de imediato.

10- No dia do acidente o falecido R (…) havia saído de Pombal, pelas cinco horas da manhã, hora portuguesa, tendo percorrido até ao local do acidente uma distância de cerca de 500 Km.

11- Em consequência do acidente referido em 9, R (...) sofreu lesões que foram causa directa, necessária e adequada da sua morte.

12- No âmbito do processo de trabalho nº 1319/09.6 TTCBR do 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Coimbra, que correu termos na sequência do acidente referido em 9, entre o mais a companhia de seguros (…) SA pagou à autora P (…) a quantia de € 3.600,00 a título de despesas de funeral.

13- A autora P(…) despendeu com o funeral de R (…) a quantia global de [€] 5.958,12.

14- À data do acidente R (…) tinha 31 anos de idade, era saudável, robusto, bem disposto, com projectos para o futuro e com uma grande alegria de viver.

15- R (…), juntamente com as autoras, constituíam uma família harmoniosa, unidos por fortes laços afectuosos.

16- R (…) era marido e pai dedicado, meigo e estimado por toda a família, amigos e pessoas da localidade onde vivia, estando plenamente integrado na vida familiar e social.

17- As autoras sentiram enorme dor, terrível desgosto e tristeza com a morte do seu marido e pai, não se conformando com a tragédia que as atingiu.

18- A morte súbita, inesperada, brutal, prematura do seu marido e pai, causou às autoras grande abalo emocional, em muito fez e as faz sofrer, que sentem uma enorme dor e tristeza.

19- Em consequência da morte de R (…) ficou subitamente alterada toda a dinâmica e projectos de vida familiares.

20- Nas semanas seguintes à morte do seu marido, P (…) não conseguiu dormir, perdeu o apetite e chorava onde quer que se encontrasse e ainda na presente data chora a morte do seu marido, sofrendo muito com a sua perda.

21- A autora M (…) tinha apenas quatro anos de idade quando o seu pai faleceu.

22- A autora M (…) viu-se, e vê-se, prematuramente privada do carinho do pai, numa fase da sua vida, infância e posterior adolescência, em que mais dele precisava e precisa.

23- A morte de R (…) causou um vazio enorme no espírito das autoras do qual resultaram traumas psíquicos e psicológicos dos quais nunca se recompuseram.

24- Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º AU22505041, em vigor desde Maio de 2006, a responsabilidade civil dos danos causados a terceiros pelo veículo articulado (...) DL e reboque VI- (...) , foi transferida para a ré, pela proprietária do veículo, a sociedade T (…), Lda.

25- Em 23.05.2008 a sociedade T (…), Lda. solicitou ao seu mediador de seguros um pedido de cotação referente a uma alteração à apólice mencionada em 24, que englobasse toda a sua frota automóvel e que tivesse, além do mais, cobertura de ocupantes.

26- Em 14.05.2010, a sociedade T (…), Lda solicitou formalmente alteração à apólice de seguro referida em 24 por forma a na mesma incluir a cobertura de ocupantes, o que sucedeu com efeitos a partir de Maio de 2010, de que não dispunha até essa data».

E foi julgado não provado que:

«a) Momentos antes do acidente o veículo acidentado tenha obliquado para a direita, tenha começado a balouçar e o reboque tenha oscilado para a esquerda;

b) R (...) tenha iniciado a viagem às 6 horas da manhã hora portuguesa, 7 horas da manhã hora espanhola, dando-se o acidente volvidas 5 horas e 35 minutos desde que iniciara a viagem;

c) R (...) tenha feito o percurso referido em 10 de modo ininterrupto, sem ter feito qualquer paragem e sem ter feito qualquer paragem técnica para descanso regulamentar;

d) O facto referido em 9 ocorreu porquanto R (...) não conseguiu, por falta de atenção e cuidado e por cansaço e sonolência, manobrar o veículo articulado por forma a evitar que este saísse da via e se despenhasse no precipício;

e) O falecido R (…) representou a sua morte, a angústia e desespero foram enormes e sentiu as dores físicas resultantes do embate que foram brutais;

f) O falecido deu-se conta da inevitabilidade do embate, com o inerente susto e do perigo iminente para a sua vida;

g) O embate causou grande sofrimento ao falecido, nos momentos que precederam a sua morte;

h) O falecido esteve consciente do intenso e profundo sofrimento que mediou a colisão e a sua morte;

i) No período antes da morte, a vítima sofreu muitas dores, sentiu angústia e terror pela morte assistindo conscientemente à gravidade das lesões por si sofridas e posterior morte, que provavelmente representou na sequência de tais lesões;

j) A autora (…) era casada com o falecido apenas há seis anos;

l) A ré tenha aceite a proposta referida em 25, não constando a cobertura “ocupantes” na apólice vigente à data do acidente mencionado em 2 um mero lapso;

m) Após a ocorrência do acidente de viação, descrito nos presentes autos, teve a sociedade T (…), Lda. conhecimento do lapso referido em l), não sendo essa a vontade negocial da sociedade T (…), Lda que pretendeu a cobertura “ocupantes” na data referida em 25».


***

B) Substância do recurso

1. - Da presunção de culpa do condutor do veículo seguro

1.1. - Em ponto prévio, cabe notar que estamos perante ação indemnizatória por danos decorrentes de acidente de viação ocorrido em Espanha, a que é aplicável a lei civil substantiva portuguesa, como, aliás, decidido sem controvérsia na sentença recorrida ([7]).

1.2. - Depois, e ainda preliminarmente, deve lembrar-se que, se foi invocada pelas AA./Apeladas, quanto ao veículo sinistrado e contrato de seguro em causa, cobertura facultativa de “ocupantes”, indubitável é – como também decidido, sem controvérsia, na sentença – que tal cobertura facultativa não resultou demonstrada.

Ao contrário, provou-se, sem impugnação nesta parte, a vigência, ao tempo do acidente, de contrato de seguro obrigatório automóvel, destituído de coberturas facultativas (como a de “ocupantes” que incluísse o condutor culposo do veículo seguro) – cfr. factos provados 24- a 26-, com a cobertura de ocupantes a vigorar apenas a partir de maio de 2010, quando o acidente ocorreu em 14/10/2009.

Donde a forçosa conclusão no sentido de a cobertura do seguro vigente ao tempo do acidente apenas respeitar ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, destinado a garantir, exclusivamente, a responsabilidade pela reparação de danos (corporais ou materiais) causados a terceiros ([8]).

1.3. - Na sentença, perspetivando-se o acidente como ocorrido em circunstâncias e por motivos não concretamente apurados – este traduziu-se num despiste em autoestrada, com o veículo sinistrado a sair, sem mostras de interferência de qualquer outra viatura, para fora da via, para o lado direito atento o seu sentido de marcha –, entendeu-se não ser possível imputar esse infeliz evento a conduta culposa, em termos de culpa efetiva ou presumida, do condutor do veículo seguro.

Por isso, afastada a culpa, se enveredou na decisão em crise pela aplicação ao caso do regime indemnizatório da responsabilidade pelo risco.

Para tanto, foi considerado, em sede de eventual culpa presumida do condutor do veículo seguro, que, não obstante a sua posição de comissário (motorista ao serviço da sua entidade patronal, a sociedade tomadora do seguro), lhe é inaplicável a presunção a que alude o art.º 503.º, n.º 3, do CCiv..

Ponderou-se, neste âmbito, que “O Assento 1/83 veio estabelecer que tal presunção aplica-se nas relações entre o condutor do veículo por conta de outrem como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização. Deste modo, estando nós no âmbito das relações entre comitente e comissário não se aplica a mesma”.

Dissente a Apelante, defendendo que não pode retirar-se tal sentido interpretativo – injustificadamente restritivo, a seu ver – do texto desse Assento, antes pugnando pela interpretação contrária, isto é, que a presunção de culpa do condutor comissário tanto vale para as relações internas (entre comitente e comissário) como para as externas (entre comissário e lesado).

Que dizer?

Analisado o dito Assento – com o n.º 1/83, de 14/04/1983 (Rel. Licurgo Augusto dos Santos), publicado em DR, 1.ª Série, de 28/06/1983, hoje com valor uniformizador de jurisprudência –, constata-se que o mesmo, resolvendo conflito que então dividia a jurisprudência, veio dispor o seguinte:

«A primeira parte do n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização».

Esta clara afirmação da presunção de culpa no âmbito das relações externas afastará igual presunção no quadro da relação interna (entre comitente e comissário)?

Ora, o Assento começa por explicar em que se traduzia o dito conflito jurisprudencial: enquanto para a jurisprudência maioritária, seguindo Vaz Serra e Pires de Lima e Antunes Varela, o preceito do art.º 503.º, n.º 3, primeira parte, do CCiv. estabelecia uma presunção de culpa, do condutor por conta de outrem, aplicável nas relações entre ele e o lesado (relações externas), outro ramo jurisprudencial veio considerar que a presunção funciona apenas nas relações internas dos vários responsáveis pelo risco (com exclusão, pois, das relações lesante-lesado).

Assim, quanto aos dois arestos em oposição – sobre que versou o Assento –, segundo o Ac. do STJ de 24/11/1977 a presunção de culpa opera nas relações entre condutor/comissário/lesante, por um lado, e lesado, por outro, razão pela qual o condutor foi ali responsabilizado pelos danos a título de culpa presumida não ilidida; já, divergentemente, para o Ac. STJ de 28/02/1980 a presunção apenas opera nas relações de responsabilidade objetiva entre o condutor em nome de outrem e o dono do veículo, razão pela qual o caso foi decidido no âmbito da responsabilidade pelo risco.

Assim sendo, a questão que se impunha resolver era a de saber se a dita presunção de culpa vale apenas nas relações internas (entre comitente e comissário/condutor) ou também nas relações externas (entre comissário/lesante e lesado).

E a resposta do Assento foi a da afirmação, no âmbito problematizado, da presunção de culpa nas relações externas, presumindo-se, pois, a culpa do condutor por conta de outrem, como lesante, perante os lesados (titulares do direito a indemnização), sem menção, no respetivo dispositivo, às relações internas, visto que a oposição de julgados a estas se não reportava, mas apenas às relações externas.

Assim, do dispositivo desse Assento nada resulta no sentido do afastamento da presunção no âmbito das relações internas.

É certo que na fundamentação do mesmo Assento se refere que a aludida presunção de culpa não poderá “considerar-se aplicável nas relações internas entre os vários responsáveis pelo risco, mas sim nas relações entre o lesante e o titular do direito à indemnização, por ser inconcebível que, com a prova de exclusão de culpa sua, o comissário, no exercício dessas funções, afaste a responsabilidade pelo risco, uma vez que a lei o não responsabiliza a tal título por não ter a direção efectiva e interessada do veículo, o que constitui fundamento dessa responsabilidade”.

E de facto não poderia, logicamente, ilidir-se uma presunção de culpa para afastar uma responsabilidade objetiva (do próprio comissário) que a lei não estabelecesse (cfr. art.º 483.º, n.º 2, do CCiv.), posto que pelo risco apenas responde o comitente, por ser quem tem a direção efetiva do veículo (art.º 503.º, n.º 1, do CCiv.), mas sim para afastar a responsabilidade subjetiva (n.º 1 do mesmo dispositivo legal).

Porém, como esclarece Luís de Menezes Leitão ([9]), “… o art. 503.º, n.º 3, vem estabelecer uma presunção de culpa do comissário pelos danos causados, o que permite ao comitente, caso o comissário não vier a elidir essa presunção, exercer contra ele o direito de regresso pela indemnização que tiver pago ao lesado com fundamento na responsabilidade pelo risco”.

Assim, nas relações internas o afastamento da presunção de culpa do comissário assume ainda relevância, não por afastar uma sua responsabilidade objetiva, que a lei não prevê, mas por obstar ao direito de regresso do comitente que satisfaça a indemnização ao lesado no âmbito da sua responsabilidade objetiva (cfr. art.º 500.º, n.ºs 1 e 3, do CCiv.).

E acrescenta o mesmo Autor ([10]):

«Discutiu-se, porém, na doutrina se o próprio lesado poderia com base nessa presunção demandar directamente o comissário com fundamento na sua culpa presumida (…). RODRIGUES BASTOS negou essa possibilidade com fundamento de que a presunção de culpa do art. 503.º, n.º 3 valeria apenas no âmbito das relações internas, entre comitente e comissário, não funcionando nas relações externas entre o comissário e o lesado, no que foi acompanhado por alguma jurisprudência, tendo esta posição sido posteriormente seguida por MENEZES CORDEIRO. Mas a maioria da doutrina, onde se encontravam os nomes de ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, RUI DE ALARCÃO, SINDE MONTEIRO e SOUSA RIBEIRO defendeu sempre claramente que a presunção de culpa do art.º 503.º, n.º 3 tem alcance externo, ou seja, é eficaz perante o lesado. A solução maioritária foi depois consagrada no Assento 1/83 (…).

A lei faz assim recair sobre o comissário, em lugar da responsabilidade pelo risco, uma presunção de culpa, respondendo ele assim por todos os danos causados sem qualquer limite, a menos que prove não ter actuado culposamente (art. 503.º, n.º 3). Naturalmente que esta situação envolve um tratamento discriminatório do condutor por conta doutrem em relação aos restantes condutores, que a doutrina tem justificado com o fundamento de que há na condução por conta doutrem tanto um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo, uma vez que ele é habitualmente conduzido por quem não é o seu proprietário, como um perigo sério de fadiga do comissário que tenderá a conduzi-lo horas seguidas. Para além disso, sendo os condutores por conta doutrem normalmente condutores profissionais, a eles se deve exigir uma perícia especial no exercício da condução, podendo com facilidade elidir a presunção de culpa».

Assim sendo, com justificação, a discutida presunção de culpa que impende sobre o condutor por conta de outrem colhe aplicação nas relações externas, fundando a ação indemnizatória do lesado, mas também nas relações internas, não, como visto, para afastamento de responsabilidade objetiva entre diversos responsáveis pelo risco (em que se incluiria o comissário), mas para fundar o direito de regresso do comitente não culposo sobre o comissário (art.º 500.º do CCiv.).

Quer dizer, perante os lesados em consequência de acidente de viação (os titulares do direito a indemnização) sempre tem de operar a presunção de culpa do condutor por conta de outrem.

Por isso, na ação indemnizatória dos lesados por acidente causado por veículo de circulação terrestre, o condutor por conta de outrem responde pelos danos a que der causa, exceto se provar que não houve culpa da sua parte – tal como responde, do mesmo modo, em ação de regresso do comitente pelo que este houver pago em sede indemnizatória ([11]).

Ora, as aqui AA., que também pedem indemnização por danos próprios, situam-se, naturalmente, como lesadas, no plano das relações externas – o da ação indemnizatória pelo(s) dano(s) decorrente(s) do acidente, intentada contra a seguradora de responsabilidade no âmbito do seguro obrigatório automóvel –, muito embora o condutor/comissário seja simultaneamente lesante e lesado (o pedido indemnizatório incide sobre danos sofridos na esfera jurídica das AA. e do falecido condutor, que sozinho se despistou e encontrou a morte em autoestrada).

Donde que a presunção de culpa que incide sobre o condutor do veículo sinistrado, enquanto comissário, não possa deixar – a nosso ver e salvo sempre o devido respeito por diverso entendimento – de operar no âmbito desta ação indemnizatória.

Não pode, pois, nesta parte acompanhar-se a decisão recorrida, antes havendo de reconhecer-se razão à Apelante ([12]).

E, assim sendo, só pode concluir-se, ante as circunstâncias que se logrou apurar, verificada a relação de comissão – com o falecido motorista a ser condutor por conta de outrem (a sua entidade patronal) –, e não determinada a causa concreta do despiste ocorrido ([13]), de que resultou a morte desse condutor, por não ter sido, manifestamente, ilidida a presunção de culpa, já que nada mostra que o acidente não resultou de culpa do mencionado motorista (cfr. art.º 350.º, n.º 2, do CCiv.).

Em suma, o acidente tem de ser imputado a título de culpa presumida – não ilidida (mencionado art.º 503.º, n.º 3, primeira parte, do CCiv.) – do próprio condutor sinistrado, que nele perdeu a vida.

O que deixa afastada a imputada responsabilidade pelo risco.

2. - Da exclusão da garantia do seguro

Suscita ainda a R./Apelante, apoiando-se no disposto no art.º art.º 14.º, n.º 1, da LSOA, a questão da exclusão da cobertura, pela garantia do seguro, dos danos em causa, seja quanto aos sofridos pelo condutor do veículo seguro (causador culposo do acidente), seja quanto aos danos decorrentes daqueles, os sofridos pelas AA., respetivamente esposa e filha menor desse condutor.

Dispõe o invocado art.º 14.º, n.º 1, da LSOA – aplicável ao tempo do acidente e correspondente ao anterior art.º 7.º do DLei n.º 522/85, de 31-12 ([14]) – que ficam excluídos da garantia do seguro os danos corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles.

Neste âmbito, importa atender, desde logo, à noção de terceiros, no caso terceiros para efeitos de indemnização em matéria de seguro obrigatório automóvel, no âmbito da LSOA, cujo art. 4.º alude à “reparação de danos (…) causados a terceiros”.

Ora, a noção de terceiros tem vindo a sofrer progressivos alargamentos no campo do seguro obrigatório automóvel, de molde a cada vez mais, ante a função social deste seguro, incluir todas as vítimas dos acidentes de viação, garantindo-lhes a correspondente indemnização. Porém, há que atender aqui a um princípio básico dos seguros de responsabilidade civil, traduzido na oposição irredutível entre os conceitos de responsável, por um lado, e vítima, por outro lado, de modo a que ou se esteja abrangido pelo primeiro ou já pelo segundo desses conceitos, não podendo ser-se responsável e vítima ao mesmo tempo.

É, pois, na conjugação do critério postulado por este princípio básico e originário com a ideia, mais recente, de progressivo alargamento da abrangência do seguro obrigatório automóvel, ante a sua cada vez mais marcada função social, a qual leva ao paulatino estender da esfera de proteção a todos os que, sofrendo danos, são lesados – centrando o enfoque, já não tanto na relação contratual de seguro, em si, mas sobretudo na relação de respon­sabilidade decorrente do acidente –, que se alcança hoje, afinal, o recorte jurídico da figura dos “terceiros”.

Mas esta figura conceitual complexa ([15]) tem ainda limi­tes decorrentes das exclusões a que alude o citado art.º 14.º da LSOA, levando, nesta vertente, a uma definição pela negativa (“excluem-se da garantia do seguro…”), como ocorre, desde logo, com o condutor do veículo.

Este não é terceiro, estando totalmente afastada, quanto a si, a indemnização de quaisquer danos ao abrigo do seguro obrigatório automóvel. Na verdade, o condutor do veículo não tem direito, ao abrigo da garantia do seguro obrigatório, a indemnização por danos corporais, nem por quaisquer danos materiais – cfr. art.º 14.º, n.ºs 1 e 2, al.ª a), da LSOA (anterior art.º 7.º, n.ºs 1 e 2, al.ª a), do DLei n.º 522/85).

Compreende-se a razão de ser desta exclusão: trata-se de danos sofridos pelo próprio condutor do veículo seguro, isto é, o condutor responsável pelo acidente e pelos decorrentes danos. Ora, sendo o responsável pelo sinistro, não é terceiro. Os seus danos, a si próprio imputáveis, sendo da sua responsabilidade pessoal, não são passíveis de indemnização pelo seguro obriga­tório automóvel ([16]).

É que o seguro obrigatório automóvel, como seguro de responsabilidade civil que é, encontra-se estabelecido sobre a ideia de relação de oposição irredutível entre responsável e lesado, entre causador do sinistro e vítima dele, sendo a proteção do seguro dirigida aos lesados/vítimas e não aos condutores/responsáveis, cujos danos a si próprios são imputáveis, não se podendo ser, como dito, responsável e vítima.

E a exclusão de todos os danos do responsável abrange os seus familiares, no que concerne a quaisquer danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável (art.º 14.º, n.º 1, citado). Quanto aos familiares, há que distinguir, assim, consoante sejam ou não transportados no veículo ou, melhor, sejam ou não vítimas (diretas) do acidente. Se são passageiros do veículo ou vítimas diretamente atingidas pelo acidente e, por isso, nele sofreram danos, impõe-se o disposto no art.º 14.º, n.º 2, al.ªs e) e f), da LSOA, inexistindo exclusão dos danos corporais próprios. Já no caso contrário, se não são vítimas do acidente, apenas sofrendo danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável, não terão, então, direito por isso a qualquer indemnização, como no caso, por exemplo, dos seus próprios danos morais decorrentes da morte do responsável seu familiar (neste caso não terão também, obviamente, direito indemnizatório pelos danos que o próprio responsável sofreu).

A questão da cobertura pelo seguro obrigatório automóvel dos danos morais pessoalmente sofridos pelos familiares do condutor responsável em consequência da morte deste por força de acidente de viação foi objeto de divergência na jurisprudência nacional à luz do DLei n.º 522/85, vindo a mostrar-se mais clara à luz da LSOA, cujo legislador, mantendo, embora, no essencial, a construção das exclusões do art.º 7.º do DLei n.º 522/85, começou logo por aditar ao n.º 1 do art.º 14.º da LSOA o segmento “assim como os danos decorrentes daqueles”, pelo que ficam expressamente excluídos, não só os danos de natureza corporal (incluindo a morte, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, da LSOA) sofridos pelo responsável, mas também todos os danos que sejam decorrência desses danos do responsável. Ora, os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares do responsável em consequência da morte dele, mais não são do que danos decorrentes dos danos corporais (morte) sofridos por esse responsável, logo, são danos excluídos da garantia do seguro obrigatório automóvel.

Mas mesmo à luz do DLei n.º 522/85, embora a redação do respetivo art.º 7.º pudesse dar azo a algumas dificuldades, parece que a solução não deveria ser outra. Os princípios e fundamentos dos seguros de responsabilidade civil – e o seguro obrigatório automóvel continua a ser, apesar das suas especificidades, um seguro de responsabilidade civil – assim o determinam. De facto, tais seguros assentam na dualidade entre responsável e vítima, visando o seguro obrigatório automóvel apenas a proteção das vítimas. Por isso, o responsável está sempre excluído da indemnização pelas forças do seguro. E o mesmo acontece, naturalmente, com os seus herdeiros, mas também com aqueles que, não sendo vítimas do acidente, sofrem danos que são mera consequência dos danos sofridos por aquele responsável, pois que o princípio que leva à exclusão dos danos do responsável deve levar, do mesmo modo, à exclusão dos danos dos seus familiares que são simples decorrência daqueles danos excluídos.

Acontece que, entretanto, o Ac. Uniformizador do STJ de 05/06/2014 ([17]) veio dissipar as dúvidas e “Uniformizar a Jurisprudência nos seguintes termos:

No caso de morte do condutor de veículo em acidente de viação causado por culpa exclusiva do mesmo, as pessoas referidas no nº 2 do artigo 496º do Código Civil não têm direito, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a qualquer compensação por danos não patrimoniais decorrentes daquela morte.”.

Tal uniformização jurisprudencial ocorreu no quadro do direito interno – por se considerar que não estava posto em causa qualquer diploma de Direito europeu ([18]) – e à luz do DLei n.º 522/85, razão pela qual continua a valer perante o regime do art.º 14.º, n.º 1, da LSOA, que é até, como visto, mais explícito no sentido da exclusão da garantia do seguro, seja quanto aos danos corporais (incluindo a morte) do condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, seja quanto aos danos decorrentes daqueles (os reflexamente sofridos pelos familiares legalmente elencados).

Como se viu, o acidente dos presentes autos é imputável a título de culpa – presumida – exclusiva do condutor do veículo seguro, que incorreu, sozinho, em despiste e queda do tabuleiro da autoestrada, o que lhe determinou a morte, ficando afastada a aplicação do regime da responsabilidade objetiva.

Os danos a que se reporta o pedido indemnizatório dos autos são “danos corporais” ([19]) sofridos pelo dito condutor (simultaneamente lesante e lesado) – como a perda do direito à vida e os danos morais sofridos pela própria vítima – e pela esposa e filha – danos morais resultantes da perda/morte do marido e pai, respetivamente ([20]) –, a que acresce um “dano material”, de pendor patrimonial, referente a despesa com o funeral de tal condutor.

Assim, se a indemnização por todos esses danos corporais resulta excluída do âmbito da garantia do seguro obrigatório automóvel pelo preceito do n.º 1 do art.º 14.º da LSOA, também este dano material/patrimonial resulta excluído, perante o disposto no n.º 2, al.ªs a), e) e f), do mesmo dispositivo legal.

Em suma: procede a apelação, havendo de revogar-se a sentença condenatória recorrida, a dever ser substituída (cfr. art.º 665.º, n.º 1, do NCPCiv.) por decisão absolutória, ante a verificada manifesta improcedência da ação.

Com o que ficam prejudicadas as demais questões recursórias elencadas.

                                               ***

IV – Sumariando (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - Na ação indemnizatória intentada pelas lesadas (esposa e filha do falecido condutor, por conta de outrem, do veículo automóvel seguro), no âmbito do seguro obrigatório automóvel, contra a respetiva seguradora, por acidente de viação que se traduziu no despiste, sozinho, do veículo seguro, de que resultou a morte do condutor, é aplicável a presunção de culpa prevista no art.º 503.º, n.º 3, primeira parte, do CCiv..

 2. - Tal presunção legal, operando no domínio das relações externas (entre condutor/comissário, como lesante, e lesados), como resulta do Assento n.º 1/83, de 14/04/1983, colhe ainda aplicação nas relações internas (entre comitente e condutor/comissário), não para definição de responsabilidades pelo risco – a lei não prevê responsabilidade objetiva do condutor por conta de outrem –, mas para efeitos de direito de regresso, por o afastamento da presunção de culpa do comissário obstar ao direito de regresso do comitente que satisfaça a indemnização ao lesado no âmbito da sua responsabilidade objetiva (art.º 500.º, n.ºs 1 e 3, do CCiv.).

3. - Pedindo também indemnização por danos próprios, as aqui autoras situam-se, como lesadas, no plano das relações externas – o da ação indemnizatória por danos decorrentes do acidente, intentada contra a seguradora de responsabilidade no âmbito do seguro obrigatório automóvel –, não obstante a dupla qualidade do condutor/comissário de lesante e lesado.

4. - A noção de terceiros, para efeitos indemnizatórios em matéria de seguro obrigatório automóvel, vista a função social deste, tem vindo a sofrer progressivos alargamentos, de molde a, cada vez mais, incluir todas as vítimas dos acidentes de viação, garantindo-lhes indemnização.

5. - Porém, deve atender-se a um princípio básico e originário dos seguros de responsabilidade civil – o seguro obrigatório automóvel continua a ser um seguro de responsabilidade civil –, traduzido na oposição irredutível entre os conceitos de responsável/lesante, por um lado, e vítima/lesado, por outro, não podendo ser-se responsável (exclusivo) e vítima ao mesmo tempo, devendo, pois, conjugar-se este princípio com aquela ideia, mais recente, de progressivo alargamento da abrangência do seguro.

6. - Neste âmbito, operam as exclusões da garantia do seguro a que alude o art.º 14.º da LSOA, aprovada pelo DLei n.º 291/2007, de 21-08, desde logo quanto ao condutor do veículo – este não é terceiro, estando afastada, quanto a si (condutor responsável pelo acidente, ainda que por culpa presumida, e pelos decorrentes danos), a indemnização de quaisquer danos ao abrigo do seguro obrigatório automóvel.

7. - E, quanto aos familiares (no caso, esposa e filha menor), há que distinguir consoante sejam ou não vítimas diretamente atingidas pelo acidente: se são passageiros do veículo ou vítimas diretamente atingidas, impõe-se o disposto no art.º 14.º, n.º 2, al.ªs e) e f), da LSOA, inexistindo exclusão dos danos corporais próprios; se não são vítimas (diretas) do acidente (como no caso), apenas sofrendo danos decorrentes dos danos sofridos pelo responsável, não terão direito indemnizatório (designadamente, pelos seus próprios danos morais decorrentes da morte do exclusivo responsável, conforme jurisprudência uniformizada do STJ e sem contradição com o Direito da União Europeia).

***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência da apelação, em revogar a decisão condenatória recorrida, assim julgando, em substituição do Tribunal a quo, a ação improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da R./Apelante do contra si peticionado.

Custas da ação e da apelação pelas AA./Apeladas, ante o seu decaimento.

 

Escrito e revisto pelo relator.

Elaborado em computador.


Coimbra, 15/11/2016

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Em 06/10/2012 (cfr. fls. 36 dos autos em suporte de papel).
([2]) Segmento decisório de que interpôs recurso a R., com subida imediata e em separado, tendo esta Relação vindo a julgar a respetiva apelação improcedente, confirmando assim – mediante aplicação da lei civil substantiva portuguesa – a decisão de improcedência da exceção de prescrição.
([3]) Cfr. fls. 1953 e seg. dos autos em suporte de papel.
([4]) Com negrito subtraído.
([5]) Processo instaurado após 01/01/2008, mas antes de 01/09/2013 e decisão recorrida posterior a esta data (cfr. sentença aludida, a fls. 1954, bem como art.ºs 5.º, n.º 1, 7.º, n.º 1, este por argumento de maioria de razão, e 8.º, todos da Lei n.º 41/2013, de 26-06, e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 14-16, Autor que refere que, tratando-se de decisões proferidas a partir de 01/09/2013, portanto, após a entrada em vigor do NCPCiv., em processos instaurados anteriormente, mas não anteriores a 01/01/2008, se segue integralmente, em matéria recursória, o regime do NCPCiv.).
([6]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([7]) No mesmo sentido já foi decidido por esta Relação nestes autos, no âmbito do anterior recurso interposto da decisão de improcedência da exceção de prescrição (cfr. apenso “A”, de recurso de apelação em separado, e respetivo acórdão, datado de 18/11/2014, a fls. 110 a 123 desse apenso). E o aqui Relator também já tomou posição no sentido da aplicabilidade da lei civil substantiva portuguesa, em termos similares, a ação indemnizatória por acidente de viação ocorrido na Alemanha – cfr. Ac. TRL, de 27/02/2014, Proc. 2227/12.3 TVLSB.L1-6 (Rel. Ana de Azeredo Coelho), disponível em www.dgsi.pt.
([8]) De acordo com o disposto no art.º 4.º, n.º 1, da aludida LSOA, aprovada pelo DLei n.º 291/2007, de 21-08 – diploma que colocou em vigor o designado “Regime do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel”, com entrada em vigor em 21/10/2007 e, por isso, vigente ao tempo do acidente dos autos –, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade.
([9]) Cfr. Direito das Obrigações, vol. I, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 382.
([10]) Op. cit., ps. 382 e seg..
([11]) Cfr. também Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 632 e segs., e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 658 e segs..
([12]) Ainda sobre os fundamentos da opção legislativa pela presunção de culpa do condutor por conta de outrem, bem como da jurisprudência do TConst. a respeito – considerando reiteradamente que o sentido normativo fixado pelo dito Assento n.º 1/83 não padece de inconstitucionalidade (por violação do princípio da igualdade ou privilégio ao condutor por conta própria) –, vide Antunes Varela, op. cit., ps. 661 e segs..
([13]) Nem sequer se trata de colisão de veículos, em que um fosse conduzido por comissário (onerado com a presunção de culpa) e outro pelo seu proprietário (não sujeito a tal presunção) e não se lograsse apurar qualquer margem de culpa efetiva e, por isso, o caso houvesse de ser decidido exclusivamente com base numa presunção legal. E, todavia, o Assento de 26/01/1994 – DR, I Série, de 19/03/1994, com retificação em DR, I Série, de 23/04/1994 – veio afirmar que a responsabilidade por culpa presumida do comissário (art.º 503.º, n.º 3, aludido) é aplicável no caso de colisão de veículos (do art.º 506.º, n.º 1, do mesmo CCiv.).
([14]) Que excluía “da garantia do seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo condutor do veículo seguro” (n.º 1), bem como “quaisquer danos decorrentes de lesões materiais causados” ao condutor desse veículo (n.º 2, al.ª a)).
([15]) A sua feição complexa advém, desde logo, da necessidade de conjugar, em termos evolutivos, orientações nem sempre coincidentes, designadamente entre a perspetiva tradi­cional da responsabilidade civil extracontratual, vertida no CCiv., agregada à ideia de um puro seguro de responsabilidade civil, e a perspetiva do Direito europeu, de pendor mais protetor das vítimas e, assim, direcionada para o alargamento subjetivo dessa proteção, conciliada, por sua vez, com uma visão do seguro obrigatório automóvel como um fundo formado no âmbito de uma comunidade de riscos ao serviço de todas as vítimas desses riscos.
([16]) Podendo sê-lo, porém, por um seguro facultativo contra danos próprios.
([17]) Proc. 108/08.4TBMCN.P1.S1-A (Rel. Sérgio Poças), disponível em www.dgsi.pt.
([18]) Também o aqui relator já anteriormente tomou posição – como juiz adjunto – no sentido de não haver contradição com o Direito da União Europeia (cfr. citado Ac. TRL de 27/02/2014), posição que se reitera.
([19]) Estes, por contraposição aos “danos materiais”, serão os que decorrem de lesões corporais, os que atingem a integridade física das pessoas, ofendendo-a, em síntese, os danos causados em pessoas, incluindo os danos não patrimoniais. Já serão “danos materiais” os decorrentes de lesões materiais, os que atingem as coisas/património, deteriorando-as ou destruindo-as, em resumo, os danos causados em coisas.
([20]) Como refere a Apelante, os danos morais próprios reclamados pelas AA. são danos indiretamente por elas sofridos, decorrentes do dano da morte do seu familiar, condutor e único responsável (por culpa presumida não ilidida) pelo acidente que o veio a vitimar.