Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1576/08.0TJCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
UNIÃO DE FACTO
ARRENDATÁRIO
MORTE
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 05/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 85º, Nº 1, AL. C); 86º E 89ºDO RAU (DEC. LEI Nº 321-B/90, DE 15/10).
Sumário: I – Encontrando-se provado que a Ré residia no locado desde 1997, altura em que passou a viver em comunhão de vida, como se de marido e mulher se tratasse, à vista e com conhecimento de todos, incluindo os vizinhos, com o arrendatário, com quem mantinha um relacionamento afectivo, é de concluir que ambos viviam em união de facto.

II – Assim, em 01/11/2003, quando o arrendatário faleceu, tinha já decorrido o prazo previsto no artº 85º, nº 1, al. c), do RAU.

III – A omissão da comunicação prevista no nº 1 do artº 89º do RAU e/ou do envio dos documentos referidos no nº 2 da mesma disposição legal, não obsta à transmissão por morte do arrendamento.

IV – Compete ao senhorio a alegação e prova da excepção à transmissão por morte do arrendamento prevista no artº 86º do RAU.

V – Nessa disposição legal o termo “residência” não foi empregue no seu preciso sentido jurídico, mas sim no de o potencial titular do direito à transmissão ter outra casa capaz de satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas.

Decisão Texto Integral:          Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

         1. RELATÓRIO

A...., casado, contribuinte nº .... e esposa B...., casada, contribuinte nº ...., ambos residentes na ...., intentaram a acção declarativa, com processo comum e forma sumária, contra C...., residente na ...., pedindo para:

a) Declarar-se que os AA. são os exclusivos proprietários e os legítimos possuidores da totalidade do imóvel urbano descrito nos artigos 1º e 2º da petição inicial, prédio urbano composto por casa de habitação com dois andares, anexos e logradouro, sito….;

b) Condenar-se a ré a reconhecer a propriedade plena dos autores sobre aquele prédio, bem como a inexistência de título legítimo que sustente a manutenção da ocupação do anexo desse imóvel referido em 10º da petição inicial e que faz parte integrante do prédio acima descrito, bem como a entregá-lo livre e devoluto de pessoas e bens;

c) Condenar-se a ré a abster-se de sobre a totalidade do imóvel acima mencionado praticar quaisquer actos de posse.

Alegaram, para tanto, que, por beneficiarem da presunção decorrente do registo em seu nome e o terem adquirido por sucessão hereditária e por usucapião, são donos e legítimos possuidores do prédio referido, que é composto por casa de habitação com dois andares, anexos e logradouro; e que a ré ocupa sem título e, portanto de forma ilícita e sub-reptícia, um dos anexos nele existentes desde pelo menos 2000 ou 2001, circunstância que só recentemente chegou ao seu conhecimento.

A ré contestou, impugnando a factualidade descrita na petição inicial e defendendo que sucedeu no arrendamento do imóvel que ocupa a D...., com quem vivia em união de facto há mais de cinco anos, à data da sua morte.

Os AA. responderam sustentando que o relacionamento da Ré com o D.... não era de união de facto, que à data da morte dele não tinham ainda decorrido cinco anos sobre o início desse relacionamento e que a Ré possuía, naquela data, outra residência em Coimbra.

Saneada, condensada e instruída a acção, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, em cujo âmbito foi proferido o despacho de fls. 157 a 159 respondendo aos quesitos da base instrutória e decidindo a matéria de facto controvertida.

Foi depois emitida a sentença de fls. 161 a 166 julgando a acção improcedente e absolvendo a Ré do pedido.

Irresignados, os AA. recorreram e na alegação apresentada formularam as conclusões seguintes:

[…………….]

A apelada não respondeu.

Nada obstando a tal, cumpre apreciar e decidir.


***

         Tendo em consideração que, de acordo com o disposto nos artºs 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Cód. Proc. Civil[1], é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas as questões seguintes:

a) Alteração da decisão sobre a matéria de facto;

b) Prazo da al. c) do nº 1 do artº 85º do RAU;

c) Alegada deficiência da comunicação feita nos termos do artº 89º do RAU;

d) Excepção prevista no artº 86º do RAU.


***

         2. FUNDAMENTAÇÃO

         2.1. De facto

         2.1.1. Factualidade considerada provada na 1ª instância

[…………………]


***

         […………………]

***

         2.2. De direito

         No tocante à transmissão por morte do arrendamento para habitação é, a nosso ver, aplicável a lei vigente à data do decesso do primitivo arrendatário, ou seja, no caso, tendo esse decesso ocorrido em 01/11/2003, o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15/10, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 7/2001, de 11/05.

         De acordo com o disposto no artº 85º, nº 1, al. c) desse diploma legal, o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver (…) pessoa que com ele viva em união de facto há mais de dois anos, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens[2].

         Viver em união de facto é viver em condições análogas às dos cônjuges (artº 2020º do Cód. Civil) e, se bem vemos, atenta a factualidade provada, a Ré e o falecido D...., viveram nessa situação desde 1997.

         Com efeito, encontra-se provado, por um lado, que o referido D.... era arrendatário do anexo identificado nos autos e pertencente aos AA. e, por outro, que a R. reside no mesmo anexo desde 1997, altura em que passou a viver em comunhão de vida, como se de marido e mulher se tratasse, à vista e com conhecimento de todos, incluindo os vizinhos, com o aludido D...., com quem mantinha um relacionamento afectivo, tendo essa situação persistido até ao falecimento do elemento masculino do par, ocorrido em 01/11/2003.

         A Ré vivia, pois, em união de facto com o D...., primitivo arrendatário, há mais de dois anos quando este faleceu, encontrando-se não apenas decorrido como muito excedido o período previsto no acima aludido artº 85º, nº 1, al. c) do RAU[3].

         Manda, contudo, o artº 89º do RAU que o transmissário não renunciante deve comunicar ao senhorio, por carta registada com aviso de recepção, a morte do primitivo arrendatário ou do cônjuge sobrevivo, enviada nos 180 dias posteriores à ocorrência (nº 1), devendo a comunicação ser acompanhada dos documentos autênticos ou autenticados que comprovem os direitos do transmissário (nº 2).

         Sustentam os recorrentes que a Ré, embora tenha feito a comunicação aludida, não juntou os documentos indicados, o que seria fundamento para a não transmissão do arrendamento.

         Da matéria de facto provada consta que a Ré comunicou ao autor marido a morte do Sr. D...., por carta registada com aviso de recepção, em 13 de Novembro de 2003.

         Não consta que tenha junto quaisquer documentos, sendo que, se bem vemos, não havendo documento que comprovasse a união de facto, o único documento passível de ser enviado seria a certidão de óbito do D.....

         Mas os AA. aparentemente não tiveram dúvidas quanto ao falecimento do primitivo arrendatário, já que na carta enviada à Ré em resposta à comunicação dela, constante de fls. 91 dos autos, não aludiram à omissão do envio do documento.

         De resto, o nº 3 do artº 89º do RAU é bem claro: a inobservância do disposto nos números anteriores – comunicação e envio dos documentos – não prejudica a transmissão do contrato, apenas obrigando o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão[4].

        

         Mas o artº 86º do RAU preceitua que o direito à transmissão previsto no artigo anterior não se verifica se o titular desse direito tiver residência nas comarcas de Lisboa e Porto e suas limítrofes, ou na respectiva localidade quanto ao resto do país, à data da morte do primitivo arrendatário.

         Encontra-se provado que quando o Autor marido recebeu a carta que a Ré lhe enviou em 13 de Novembro de 2003 a comunicar-lhe o falecimento do arrendatário D...., o Autor marido remeteu-lhe, em 21 de Novembro de 2003, a carta junta a fls. 91 dos autos, cujo conteúdo se deu por integralmente reproduzido.

         E nessa carta o Autor marido defende que a Ré não tem direito à transmissão do arrendamento, além do mais, porque “possui outra residência nesta cidade de Coimbra, aliás na mesma localidade da minha”.

         Como escreveu o Cons. Aragão Seia em anotação ao artº 86º do RAU[5], o termo residência não foi empregue no seu preciso sentido jurídico, mas sim no de ter outra casa que possa satisfazer as respectivas necessidades habitacionais imediatas.

         Incumbia aos AA. a alegação e prova da excepção ao direito de transmissão por morte do arrendamento prevista no artº 86º do RAU. Competia-lhes, pois, alegar e provar, com vista a obstarem à dita transmissão, não apenas que a Ré tinha outra casa em Coimbra, o que fizeram, como também que essa casa estava em condições de satisfazer as necessidades habitacionais da Ré, o que não fizeram.

         Com efeito, na sequência da alegação feita pelos AA. na resposta à contestação e do aditamento à base instrutória dos quesitos 11º a 14º, a Ré, no seu depoimento de parte prestado na audiência de discussão e julgamento, declarou que antes vivia noutra casa, situada no Tovim, na Rua Joaquim Moura Relvas, da qual ainda paga a renda. Mas esclareceu que não vive lá porque a mesma está a cair, não tendo sequer água e luz, só pagando a renda porque pensou ainda ter direito a uma indemnização (cfr. acta de fls. 153 e seguintes).

Dado o princípio da indivisibilidade da confissão (artº 360º do Cód. Civil), o reconhecimento por parte da Ré de que continua a ser arrendatária da casa onde vivia antes de iniciar a união de facto com o falecido D.... só pode ser aproveitado pelos AA. se aceitarem também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias por ela referidos, já que não se provou a sua inexactidão.

         Assim sendo, não pode dar-se como verificada a excepção ao direito de transmissão por morte do arrendamento prevista no artº 86º do RAU.

         De quando se explanou decorre que soçobram todas as conclusões da alegação dos recorrentes, o que conduz à improcedência da apelação e à manutenção da sentença recorrida.

         Nos termos do artº 713º, nº 7, elabora-se o seguinte sumário:

         I – Encontrando-se provado que a Ré residia no locado desde 1997, altura em passou a viver em comunhão de vida, como se de marido e mulher se tratasse, à vista e com conhecimento de todos, incluindo os vizinhos, com o arrendatário, com quem mantinha um relacionamento afectivo, é de concluir que ambos viviam em união de facto.

         II – Assim, em 01/11/2003, quando o arrendatário faleceu, tinha já decorrido o prazo previsto no artº 85º, nº 1, al. c) do RAU.

         III – A omissão da comunicação prevista no nº 1 do artº 89º do RAU e/ou do envio dos documentos referidos no nº 2 da mesma disposição legal, não obsta à transmissão por morte do arrendamento.

         IV – Compete ao senhorio a alegação e prova da excepção à transmissão por morte do arrendamento prevista no artº 86º do RAU.

         V – Nessa disposição legal o termo «residência» não foi empregue no seu preciso sentido jurídico, mas sim no de o potencial titular do direito à transmissão ter outra casa capaz de satisfazer as suas necessidades habitacionais imediatas.


***

         3. DECISÃO

         Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a sentença recorrida.

         As custas são a cargo dos apelantes.


[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais adiante citadas sem menção da origem.
[2] O RAU na redacção inicial conferia o direito à transmissão por morte do arrendamento à pessoa que vivesse com o primitivo arrendatário há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não fosse casado ou estivesse separado judicialmente de pessoas e bens [artº 85º, nº 1, al. e)]. O período mínimo de vivência naquelas condições fora já, entretanto, reduzido para dois anos pela Lei nº 135/99, de 28/08.
[3] Se, porventura, tal período fosse de cinco anos, teria também já decorrido em 01/11/2003. Com efeito, a vivência em união de facto começou em 1997 e, contra as contas feitas pelos recorrentes, os cinco anos antecedentes a 01/11/2003 começam em 01/11/1998 e não 01/11/1997.
[4] É certo que o mencionado nº 3 foi eliminado pelo Decreto-Lei nº 278/93, de 10/08, mas essa eliminação foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional nº 410/97, de 23 de Maio, do que resultou a repristinação daquela norma, que reentrou, por isso, em pleno vigor.
[5] Arrendamento Urbano Anotado e Comentado, 4ª edição, pág. 462.