Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/17.3T8FCR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PROCESSO DE INVENTÁRIO
TRANSACÇÃO
MODIFICAÇÃO DO TÍTULO
REQUISITOS CIVIS
REQUISITOS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - F.C.RODRIGO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.1414, 1415, 1416, 1417, 1419, 1422, 1422-A CC, 59, 60, 62 CN
Sumário: 1. A lei impõe que quer a constituição da propriedade horizontal quer as suas eventuais alterações sejam objecto de sindicalização e licenciamento pela autoridade camarária.

2. Recorrendo-se à via judicial para modificar o título constitutivo da propriedade horizontal, será de exigir a aprovação/acordo de todos os condóminos (cf. os art.ºs 1417º, n.º 1; 1422º e 1422º-A do CC) e a junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração respeita as leis e os regulamentos em vigor na Autarquia (requisitos de natureza administrativa), garantia de todos os cidadãos de que não ficam postos em causa interesses próprios constitucionalmente protegidos (direito à habitação, saúde, higiene e bem estar, qualidade de vida e defesa do ambiente) ou até mesmo outros interesses mais vastos da comunidade (como o urbanismo, o planeamento e o desenvolvimento sustentado).

3. Questionando-se a validade da “transacção” - subjacente a partilha realizada em processo de inventário - que visa modificar uma das quatro fracções (“fracção A”) objecto da escritura de constituição de propriedade horizontal, importa verificar se foram observadas as pertinentes normas de natureza imperativa quanto à existência substancial e formal da pretendida unidade independente corporizada num estabelecimento comercial e respectivo local de implantação a autonomizar da primitiva “fracção”, considerando, assim, designadamente, o disposto nos art.ºs 1414º e seguintes do CC, os elementos obrigatórios previstos no art.º 1418º, n.º 1 do mesmo Código (v. g., valor relativo da nova fracção e de cada uma das restantes quatro fracções) e o prévio registo predial (cf., v. g., o art.º 62º, n.º 1 do Cód. do Notariado).

Decisão Texto Integral:      



      

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. J (…) e marido D (…)  instauraram a presente acção declarativa comum contra H (…) e mulher M (…)  (1ºs Réus), L (…)  e mulher A (…)  (2ºs Réus) e E (…)  (3ª Ré), pedindo que estes sejam condenados a reconhecer que é nula e de nenhum efeito a transacção efectuada no Processo de Inventário n.º 96/98, no qual: (1) Descrevem sob a verba n.º 4, um «Prédio urbano, correspondente à fracção A, rés-do-chão, com várias saídas para a via pública, destinando-se a fim industrial e comercial e composto de oficina, lavagem, pintura, chapeiro, bar, lavabos, vestiário, arrecadação, casa de máquinas e escritório, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 01 ( ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 02 ( ...) , pertence à fracção com todo o logradouro do prédio, com a área de 812 m2.», adjudicado à A.; e (2) acordaram em subdividir esta fracção retirando-lhe a parte destinada a café e bar, parte que atribuíram aos 1ºs Réus.

            Alegaram, em síntese: uma das verbas que lhes foi atribuída (denominada fracção “A”) e aos 1ºs Réus, na partilha, não pode ser alvo de subdivisão por já constituir uma fracção decorrente da constituição do imóvel em propriedade horizontal, nos termos do disposto no art.º 1422º-A, n.º 3, do Código Civil (CC); embora estivessem representados por mandatário, não tomaram conhecimento de que não foi respeitado e cumprido o formalismo legal, e só agora ficaram a saber da gravidade de omissões cometidas no processo de inventário, designadamente, que ninguém se pronunciou sobre a forma a dar à partilha, não foram definidos os valores das quotas disponível e indisponível, não foi proferido despacho determinando o modo como devia ser organizada a partilha, a secretaria não organizou o mapa da partilha, o qual, por isso mesmo, não foi rubricado pelo Juiz e não foi posto em reclamação, não foi proferida sentença a homologar a partilha constante do mapa; a interessada E ( ...) esteve afastada da referida transacção e dos seus direitos à herança, cujo valor se desconhece.

            Os 1ºs Réus contestaram[1], por excepção e impugnação, referindo, além do mais, por um lado, que é possível com o acordo de todos os condóminos (AA. e Réus neste processo) alterar a constituição horizontal da dita “fracção A” e que o tribunal já se pronunciou definitivamente quanto à pretensão dos AA. por despacho de 04.10.2011 dos autos apensos de inventário, sendo que, por outro lado, não é verdade que os AA. só tenham tido conhecimento da tramitação processual do processo de inventário à data da propositura da presente acção, tendo os mesmos ali apresentado um requerimento com o mesmo teor da petição inicial (p. i.), sendo certo, ainda, que sempre teriam tido pessoal conhecimento da sentença homologatória da partilha em Outubro/2007, quando citados no âmbito de Acção Ordinária n.º 160/07.TBFCR contra eles instaurada. Concluíram pela improcedência da acção.

            Os AA. responderam à matéria de excepção, concluindo como na p. i..

            Por saneador-sentença de 12.9.2018 a acção foi julgada totalmente improcedente, absolvendo-se os Réus do pedido, por se considerar que não existe fundamento para julgar nula a transacção efectuada no Processo de Inventário n.º 96/1998.

Inconformados, os AA. apelaram formulando as seguintes conclusões:

            1ª - O Tribunal julgou a acção totalmente improcedente, por entender que “não existe fundamento para julgar nula a transacção efectuada no processo de Inventário n.º 96/1998” - o Tribunal confunde, por um lado, a questão da nulidade da transacção efectuada entre as partes com a questão da nulidade da sentença que homologou essa mesma transacção e, por outro lado, a questão da tempestividade ou caducidade da dedução da presente acção com a falta de fundamento para julgar nula a transacção efectuada no Processo de Inventário n.º 96/1998.

            2ª - Os AA. deduziram a presente de acção de declaração de nulidade da transacção, ao abrigo do disposto no art.º 291º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), por via da qual se pretende obter a declaração de nulidade ou a anulação da transacção - destina-se a atacar os efeitos negociais da transacção, enquanto contrato, pelo que a sentença que declare tal nulidade ou anulabilidade pode decretar os efeitos substantivos daí emergentes, destruindo os efeitos negociais dela emergentes, sendo certo que, por força de disposição legal expressa, o caso julgado anteriormente formado com a sentença que homologou a transacção não constitui obstáculo à produção desses efeitos.

            3ª - A presente acção é tempestiva, ao abrigo do disposto no art.º 286º do CC.

            4ª - A transacção efectuada que altera a constituição da propriedade horizontal traduz-se na divisão de uma fracção já existente em outras duas, pelo que era necessário “a aprovação de tal divisão pela entidade pública”, que é a Câmara Municipal, para que fosse certificada a autonomização e independências das novas fracções, atribuída a respectiva (nova) designação, estabelecidos os respectivos acessos, as respectivas áreas e o valor relativo a cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor do prédio, resultantes da pretendida divisão, por forma a poderem ser, posteriormente, averbadas, tais alterações, no respectivo título, o que, não sucedeu, pois que, não podem os particulares substituir-se à Camara Municipal que é a entidade com competência para a verificação dos pressupostos da urbanização e da edificação e, com base num acordo de vontades e à sua revelia, criar imóveis, sujeitos a operações urbanísticas e, da mesma forma, substituir-se à Administração Fiscal que atesta a existência jurídica e física do prédio e a sua autonomização em relação ao prédio mãe.

            5ª - A preterição de formalidades administrativas prévias sempre acarretaria a nulidade do referido acordo de alteração.

            6ª - Deve a sentença recorrida ser revogada e declarada a nulidade da transacção efectuada, nos termos da qual, recorrentes e recorridos dividiram “ad hoc” a fracção autónoma designada pela “letra A”, com preterição de formalidades legais essenciais; a referida transacção é, ainda, nula por violação do procedimento legalmente previsto no art.º 1422-A, n.º 3 do CC, para a divisão de fracções, pois não constando qualquer autorização do título constitutivo da propriedade horizontal, para a divisão de fracções, a modificação do mesmo título só poderia ter sido efectuada mediante assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição e, no caso do autos, não foi.

            7ª - A sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 291º do CPC e 286º, 289º, 1248º, 1415º, 1416º, 1418º, n.º 1, 1419º, n.º 1 e 1422-A, n.ºs 3, 4 e 5, do CC e as normas do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação e do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis.

            Os Réus não responderam.

            Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa conhecer e/ou reapreciar se a transacção efectuada nos autos de inventário padece de algum vício e as consequências daí decorrentes.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:

            a) Por morte dos pais da A., L (…) [2] e M (…) foi instaurado, no Tribunal Judicial de Figueira de Castelo Rodrigo, o Processo de Inventário n.º 96/98, iniciado em finais de 1998[3] e que, devido a irregularidades do seu percurso, só veio a ser dado como findo em Junho de 2006.

            b) Do acervo hereditário deixado por óbito dos inventariados, pais da A. e do 1º Réu, foi relacionada sob o n.º 4 uma verba com o seguinte teor: «Prédio urbano, correspondente à fracção A, rés-do-chão, com várias saídas para a via pública, destinando-se a fim industrial e comercial e composto de oficina, lavagem, pintura, chapeiro, bar, lavabos, vestiário, arrecadação, casa de máquinas e escritório, inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º 01 ( ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 02 ( ...) - pertence à fracção todo o logradouro do prédio, com a área de 812 m²»;[4]

            c) Em 25.6.2002, foi apresentada no referido processo uma transacção elaborada pelos Exmos. Mandatários dos AA. e dos 1ºs e 2ºs Réus, confirmada por E (…)  a 22.5.2006, perante Juiz, na qual, além do mais, se estabeleceu:

            «A verba n.º 4 é adjudicada à herdeira J (…)  e marido D (…) , com excepção do Bar que é adjudicado ao interessado H (…)  e esposa M (…) , aos quais ficará a pertencer: rés-do-chão destinado a café/bar, incluído no prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de ( ...) sob o n.º 01 ( ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 02 ( ...) .».[5]

            d) Esta transacção veio a ser julgada válida por sentença de 27.6.2006.[6]

            e) A propriedade horizontal do imóvel onde se insere a dita “fracção A” está formalizada por Escritura Pública, encontrando-se aquela fracção e as outras fracções devidamente individualizadas, com um valor atribuído a cada uma, expresso em permilagem do valor total do imóvel, nele se descrevendo assim a dita fracção: «Fracção “A” - Rés-do-chão - Tem várias saídas para a via pública, destina-se a fins industriais e comerciais e compõe-se de oficina, lavagem, pintura, chapeiro, bar, lavabos, vestiário, arrecadação, casa de máquinas e escritórios, com o rendimento colectável de vinte e sete mil duzentos e dezasseis escudos, de onde resulta o valor matricial de quinhentos e quarenta e quatro mil trezentos e vinte escudos, a que atribuem o valor de quinhentos e cinquenta mil escudos, o que corresponde a quinhentos e cinquenta mil avos do valor total do prédio. (….) e «Que o logradouro fica a pertencer à Fracção designada pela letra ”A”[7]

            f) No processo de inventário n.º 96/98, ninguém se pronunciou sobre a forma a dar à partilha; não foram definidos os valores das quotas disponível e indisponível; não foi proferido despacho determinando o modo como devia ser organizada a partilha; a secretaria não organizou o mapa da partilha; o qual, por isso mesmo, não foi rubricado pelo Juiz e não foi posto em reclamação; e não foi proferida sentença a homologar a partilha constante do mapa.

            g) As partes intervenientes na transacção prescindiram do depósito do valor das tornas a que tivessem direito, mas as tornas não foram calculadas.[8]

            h) Em 04.10.2011, o tribunal pronunciou-se pelo indeferimento do requerimento apresentado, em 06.6.2011, pelos AA., no âmbito do processo de inventário n.º 96/98, com vista à declaração da inexistência formal e material da partilha de bens realizada entre si e todos os aqui Réus, no qual se declararam conhecedores, segundo eles, do desrespeito e incumprimento do formalismo processual previsto para o inventário.[9]

            2. E deu como não provado:

            a) Os AA., embora representados nos autos por mandatário, não tomaram conhecimento de que não foi respeitado e cumprido o referido formalismo legal, e só agora, ficaram a saber da gravidade das omissões cometidas no processo de inventário.

            b) A interessada E (…)  esteve afastada da transacção e dos seus direitos à herança.

            3. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            A confissão, a desistência e a transacção podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros actos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do art.º 359º do CC (art.º 291º, n.º 1 do CPC). O trânsito em julgado da sentença proferida sobre a confissão, a desistência ou a transacção não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação (n.º 2).

É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável (art.º 280º, n.º 1 do CC). É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes (n.º 2).

            4. Relativamente ao regime jurídico da propriedade horizontal importa considerar, designadamente:

            - As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal (art.º 1414º do CC).

            - Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (art.º 1415º do CC).

            - A falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do art.º 1418º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção (art.º 1416º, n.º 1 do CC). Têm legitimidade para arguir a nulidade do título os condóminos, e também o Ministério Público sobre participação da entidade pública a quem caiba a aprovação ou fiscalização das construções (n.º 2).

            - A propriedade horizontal pode ser constituída por negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial, proferida em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário (art.º 1417º, n.º 1 do CC). A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial pode ter lugar a requerimento de qualquer consorte, desde que no caso se verifiquem os requisitos exigidos pelo art.º 1415º (n.º 2).

            - No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, para que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio (art.º 1418º, n.º 1 do CC). Além das especificações constantes do n.º anterior, o título constitutivo pode ainda conter, designadamente: a) Menção do fim a que se destina cada fracção ou parte comum; b) Regulamento do condomínio, disciplinando o uso, fruição e conservação, quer das partes comuns, quer das fracções autónomas; c) Previsão do compromisso arbitral para a resolução dos litígios emergentes da relação de condomínio (n.º 2). A falta da especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n.º 2 e o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo (n.º 3).

- Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 1422º-A e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos (art.º 1419º, n.º 1 do CC). O administrador, em representação do condomínio, pode outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o documento particular a que se refere o n.º anterior, desde que o acordo conste de acta assinada por todos os condóminos (n.º 2). A inobservância do disposto no art.º 1415º importa a nulidade do acordo; esta nulidade pode ser declarada a requerimento das pessoas e entidades designadas no n.º 2 do art.º 1416º (n.º 3).

- Não carece de autorização dos restantes condóminos a junção, numa só, de duas ou mais fracções do mesmo edifício, desde que estas sejam contíguas (art.º 1422º-A, n.º 1 do CC). Para efeitos do disposto do n.º anterior, a contiguidade das fracções é dispensada quando se trate de fracções correspondentes a arrecadações e garagens (n.º 2). Não é permitida a divisão de fracções em novas fracções autónomas, salvo autorização do título constitutivo ou da assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição (n.º 3). Sem prejuízo do disposto em lei especial, nos casos previstos nos números anteriores, cabe aos condóminos que juntaram ou cindiram as fracções o poder de, por acto unilateral constante de escritura pública ou de documento particular autenticado, introduzir a correspondente alteração no título constitutivo (n.º 4).

E estabelecem os Códigos do Registo Predial e do Notariado (aprovados pelos DL n.º 224/84, de 06.7 e DL n.º 207/95, de 14.8, respectivamente, na redacção aplicável):

- Estão sujeitos a registo os factos jurídicos que determinem a constituição ou a modificação da propriedade horizontal (art.º 2º, n.º 1, alínea b) do C. R. Predial).

- Os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais (art.º 59º, n.º 1 do Cód. Notariado). O documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às fracções autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos números anteriores (n.º 3).

- Os instrumentos de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que importem alteração da composição ou do destino das respectivas fracções só podem ser lavrados se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos legais (art.º 60º, n.º 1 do Cód. Notariado).

- Nenhum instrumento pelo qual se transmitam direitos reais ou contraiam encargos sobre fracções autónomas de prédios em regime de propriedade horizontal pode ser lavrado sem que se exiba documento comprovativo da inscrição do respectivo título constitutivo no registo predial (art.º 62º, n.º 1 do mesmo Cód.).

5. Ante o descrito quadro normativo e a factualidade dita em II. 1., supra, afigura-se evidente que os AA. lançaram mão do adequado meio processual (cuja adequação, aliás, não é objecto de particular discussão; cf. o art.º 291º, n.º 2 do CPC)[10] e, como se verá adiante, assiste-lhes razão quanto à existência do vício (nulidade) que apontam à “transacção” aludida em II. 1. c), supra.

6. A propriedade horizontal pode ser constituída por diversas vias previstas no art.º 1417º do CC. Em qualquer dos casos, é imprescindível o respeito pelos requisitos legais do art.º 1415º, ou seja, supõe-se a existência de unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

A constituição de propriedade horizontal por decisão do Tribunal só é admissível em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário, a requerimento de qualquer consorte ou interessado, desde que sejam unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública, comprovados na forma legalmente prevista (cf. os art.ºs 1415º e 1417º do CC)[11], e os mesmos requisitos de substância e de forma se devem exigir para se proceder à sua alteração.

7. Mas não podem deixar de se verificar os demais condicionalismos legais necessários se acaso a propriedade horizontal fosse constituída por declaração de vontade (v. g., acto unilateral ou por acordo de multiplicidade de sujeitos), no pressuposto de que o processo - qualquer processo judicial - não pode surtir efeitos vedados por outra via.

In casu, importa pois apreciar se se verificam ou não as condições formais ou materiais que permitam reconhecer judicialmente a ocorrência de uma modificação legítima do título constitutivo, atribuindo efeitos jurídicos de natureza real ao que decorre da mencionada “transacção” no confronto com a originária/preexistente configuração da propriedade horizontal, sendo que não se pode dispensar a verificação dos requisitos legais que seriam exigíveis se acaso se pretendesse modificar o título constitutivo da propriedade horizontal por via extrajudicial e, designadamente, através de escritura notarial.

8. A actual redacção do art.º 1419º do CC permite que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal seja formalizada por escritura pública ou por documento particular autenticado.

Sendo viável a via judicial para obter a modificação do título constitutivo, tal efeito jurídico jamais prescindirá do acordo de todos os condóminos (cf. os art.ºs 1422º e 1422º-A do CC), além de que o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e a junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia (requisitos de natureza administrativa).[12]

9. Dos normativos enunciados em II. 4, supra, resulta que a realidade respeitante tanto às fracções autónomas como às partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal deverá estar em consonância com os requisitos legais, quer os que resultam das regras constantes do Código Civil (maxime, dos art.ºs 1415º, 1416º e 1418º), quer os que decorrem da legislação que regula o licenciamento da construção e da utilização que serviu de base à fixação daquele regime jurídico, sendo que não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fracção da outra em que estava inserida.[13]

Trata-se de uma garantia de todos os cidadãos de que não ficam postos em causa interesses próprios constitucionalmente protegidos (direito à habitação, saúde, higiene e bem estar, qualidade de vida e defesa do ambiente) ou até mesmo outros interesses mais vastos da comunidade e que se encontram em ascensão (como o urbanismo, o planeamento e o desenvolvimento sustentado), razão pela qual exige a lei que quer a constituição da propriedade horizontal quer as suas eventuais e posteriores alterações, sejam objecto de sindicalização e licenciamento pela autoridade camarária, por forma a garantir a sua conformidade às leis e regulamentos em vigor.

Assim, além dos requisitos civis do prédio para ser possível a constituição da propriedade horizontal, outros existem, ditos administrativos, impostos pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas (aprovado pelo DL n.º 38 382 de 07.8.1951 e que sofreu diversas alterações), decorrentes de exigências múltiplas - segurança, salubridade, arquitectónica, estética, urbanística -, que têm de ser respeitadas, por condicionarem a construção de edifícios e a sua utilização.[14]

10. Uma vez observados esses dois requisitos, para haver alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, em regra, terá de haver ainda nova escritura a alterar o título anterior (sendo a escritura uma formalidade ad substantiam, requisito indispensável para a validade do negócio, como decorre do disposto nos art.ºs 220º, 371º e 1419º do CC), seguindo-se-lhe depois o efectivo registo (art.º 2º, n.º 1, alínea b) do C. R. Predial), porque se quer dar a indispensável publicidade a actos tão importantes para as relações fundamentais entre os condóminos e outros interessados, designadamente credores, mas a que também não são alheias as defesas de interesses difusos ou relações de vizinhança, maxime com os demais condóminos.

Ademais, a escritura de alteração do título constitutivo de propriedade horizontal não pode ser feita sem a junção de documento camarário comprovativo de que a alteração ao título constitutivo está de acordo com os correspondentes requisitos legais (art.º 60º, n.º 1 do Cód. Notariado).[15]

11. Num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respectivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns; e, mesmo nas partes próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objecto - na propriedade horizontal há um interesse relevante plural que se sobrepõe aos interesses individuais, sendo aquele um interesse colectivo, manifestado num título constitutivo dessa forma específica de direito real; a questão do domínio encontra-se repartida entre vários sujeitos, os condóminos, entrelaçando-se os interesses individuais de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles, conseguir(em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade, a menos que o título assim o tenha previsto desde o início (art.ºs 1419º e 1422º-A, n.º 3 do CC).

Na propriedade horizontal, o direito de propriedade exclusiva só se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre partes delas (art.ºs 1414º, 1415º, 1418º e 1420º do CC), excepto se sobrevier a possibilidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal e que deverá ser levada previamente ao registo predial, pois a lei imperativamente impõe a inscrição registral da correspondente alteração da composição das fracções (cf., v. g., o art.º 62º, n.º 1 do Cód. do Notariado).

            12. Na situação em análise questiona-se a validade da “transacção” que subjaz à partilha realizada no inventário apenso, tendo presente a modificação pretendida operar numa das quatro fracções (“fracção A”) objecto da escritura de constituição de propriedade horizontal outorgada em 27.02.1987 (reproduzida a fls. 33 e seguintes dos presentes autos e a fls. 502 e seguintes dos autos de inventário).

E perante o descrito quadro normativo é irrecusável que na “transacção” dita em II. 1. c), supra, foram ultrapassados os “limites à negociabilidade” em virtude da violação das correspondentes normas de natureza imperativa (e inerentes interesses de ordem pública, inderrogáveis por vontade das partes), sendo que, designadamente, não vemos respeitadas as exigências quanto à existência substancial e formal da pretendida unidade independente identificada e corporizada no estabelecimento comercial e respectivo local de implantação a autonomizar da primitiva “fracção A”, nos termos dos art.ºs 1414º e seguintes do CC e com a fixação dos elementos obrigatórios previstos no art.º 1418º, n.º 1 do mesmo Código (v. g., valor relativo da nova fracção e de cada uma das restantes quatro fracções), faltando, pois, além do mais, a prévia alteração do título constitutivo (da propriedade horizontal) que autonomize essa parte física da fracção da outra em que estava inserida[16]e lhe fixe os seus elementos caracterizadores, sob pena de nulidade do título (cf., designadamente, os art.ºs 1418º, n.º 3 e 1422º-A, n.º 3 do CC - está em causa o regime imperativo da indivisibilidade das fracções autónomas sem que o título de propriedade horizontal preveja a divisão ou a assembleia de condóminos a autorize, devendo igualmente ser cumpridos os requisitos a avaliar e a certificar pelas entidades administrativas com competência na matéria), realidade que jamais poderia ser olvidada em sede de sentença judicial.[17]

            13. A presente acção seria formalmente adequada para a alteração do título constitutivo, porque obedece a uma das formas de processo (inventário) legalmente previstas (art.º 1417º, n.º 1 do CC), mas, como vimos, e não obstante a diligência aventada e promovida pela Mm.ª juíza a quo, a fls. 143 verso, para cumprimento dos requisitos substantivos e as formalidades administrativas (prévias) da pretendida autonomização, o certo é que as partes nada fizeram!

Assim, permaneceu o vício que desde há muito se entrevia e que as partes não quiseram afastar, com as consequências que a lei claramente prevê, in casu, a nulidade da mencionada “transacção” efectuada no Processo de Inventário n.º 96/1998 e através da qual se pretendeu subdividir a dita “fracção A” (cf. os art.ºs 291º, n.º 2 do CPC e 286º, 289º e 294º do CC).[18]

14. Procedem, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

III. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença e declara-se nula e de nenhum efeito a “transacção” efectuada no mencionado Processo de Inventário n.º 96/98, no qual, tendo-se descrito a “verba n.º 4”, como se indica em II. 1. b), supra, foi a mesma verba - fracção autónoma “A” - adjudicada à A. e se acordou em subdividi-la retirando-lhe a parte destinada a café e bar, “atribuída” aos 1ºs Réus, como se refere em II. 1. c), supra.

Custas, nas instâncias, pelos Réus/recorridos.


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12.02.2019

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Alberto Ruço



[1] Considera-se a contestação de fls. 158, apresentada na sequência do despacho de fls. 150.
[2] Que foi casado com a 3ª Ré no regime imperativo da separação de bens (cf. fls. 55 e art.º 1720º do CC).
[3] Em 04.12.1998.
[4] Cf., nomeadamente, fls. 81 (certidão matricial), 95 a 98 (certidão da Conservatória do Registo Predial/cf., ainda, certidão permanente de fls. 128 e seguintes dos presentes autos), 318 (relação de bens), 462 (requerimento dos aqui AA.), 474 (despacho de 474) e 544 e seguintes (acórdão desta Relação de 13.5.2008) do apenso/autos de inventário.

[5] Cf. fls. 316-A dos autos de inventário. 
[6] Cf. fls. 413, ibidem.
   Decisão com o seguinte teor: «Nos presentes autos de inventário em que é requerente H (…)  e mulher e inventariados M (…)  e L (…) , julgo válida, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram a transacção constante de fls. 316-A a 319 e, em consequência, condeno as partes nos seus precisos termos – art.ºs 293º, 298º e 300º do Código de Processo Civil e (…) 1248º e 1249º do Código Civil. (…) Registe e Notifique. (…)»
[7] Vide o documento de fls. 502 e seguintes, ibidem.
[8] Cf. fls. 335 e 406 (conferências de interessados) e despacho de fls. 381, ibidem.
[9] Cf. fls. 570 (requerimento dos aqui AA. de 06.6.2011) e fls. 580 (despacho de 04.10.2011), ibidem.

[10] Cf., ainda, de entre vários, os acórdãos da RP de 27.5.2010-processo 2820/07.6TBGDM.P1 e da RC de 08.3.2016-processo 1419/15.8T8FIG.C1 [constando da respectiva fundamentação que incidindo a sentença homologatória (da partilha) sobre um encontro de vontades decorrente da conferência de interessados - como era o caso, mas podendo esse acordo de vontades ter como antecedente uma transacção apresentada nos autos sobre o objecto da partilha -, será de fazer relevar e prevalecer este acordo, sendo assim defensável a aplicação das regras de ineficácia e de invalidade próprias dos negócios jurídicos (v. g., as dos art.ºs 240º e seguintes, do CC)], este, subscrito pelos mesmos relator e 1ª adjunta, publicados no “site” da dgsi.
[11] Vide, designadamente, Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6ª edição (reimpressão), Quid Juris, 2010, págs. 377 e 379.             

[12] Sobre toda a matéria cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 29.11.2006-processo 06A3355 [assim sumariado: «A constituição da propriedade horizontal por decisão judicial depende da verificação simultânea, quer dos requisitos civis previstos no art.º 1417º do Código Civil, quer dos requisitos administrativos fixados no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.»] e 06.12.2018-apelação 8250/15.9T8VNF.G1.S1 [constando do respectivo sumário: «3. A produção de efeitos jurídicos correspondentes à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via judicial, não prescinde do acordo de todos os condóminos e, além disso, deve compatibilizar-se com regras imperativas em matéria de direito do urbanismo ligadas ao licenciamento da construção e da utilização de edifícios e respectivas fracções.»], este, com abundante citação de doutrina e de jurisprudência, publicados no “site” da dgsi.
[13] Cf. ainda, de entre vários, os acórdãos do STJ de 23.9.2003-processo 03A1835 e 13.12.2007-processo 07A3023, publicados no “site” da dgsi.
[14] Vide Luís A. Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 372.
[15] Cf. o citado acórdão do STJ de 13.12.2007-processo 07A3023.
[16] Ibidem.
[17] Cf. os citados acórdãos do STJ de 13.12.2007-processo 07A3023 e 06.12.2018-apelação 8250/15.9T8VNF.G1.S1.
[18] Cf. o cit. acórdão da RP de 27.5.2010-processo 2820/07.6TBGDM.P1 [afirmando-se no respectivo sumário: «II – Como qualquer negócio jurídico, a nulidade da transacção pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado (art.º 286º do CC) e determina a destruição dos efeitos dela emergentes e a sua anulabilidade pode ser arguida pelas pessoas a quem a lei confere essa legitimidade e dentro de determinado prazo, legalmente estabelecido. (…) V – Essa acção (…) destina-se a atacar os efeitos negociais da transacção, enquanto contrato, pelo que a sentença que declare tal nulidade ou anulabilidade pode decretar os efeitos substantivos daí emergentes, destruindo os efeitos negociais dela emergentes, sendo certo que, por força de disposição legal expressa (o citado art.º 301º, n.º 2) [do CPC de 1961], o caso julgado anteriormente formado com a sentença que homologou a transacção não constitui obstáculo à produção desses efeitos. (…)»].