Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1070/08.9TBGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VIRGÍLIO MATEUS
Descritores: DANOS CAUSADOS POR ANIMAIS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 01/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: GUARDA 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 493 Nº1, 502 CC
Sumário: 1. Havendo dano causado por animal, a norma do artigo 502º do CC prevalece sobre a do artigo 493º/1 do mesmo Código.

2. Constitui risco específico ou perigo especial de um canídeo, estando solto na proximidade de uma estrada, a sua fuga para a via de modo a causar danos por colisão com um veículo que por ali circule.

3. O dono desse canídeo responde pelos danos que este causar a quem circule na via pública.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTA RELAÇÃO O SEGUINTE:

I – Relatório:
 
Aos 3.7.2008, a Companhia de Seguros A (...) SA, com sede em Lisboa, intentou contra J (…), residente em (...), Guarda, a presente acção ordinária, pedindo a condenação do réu no pagamento da quantia total de € 35.729,34 e juros à taxa legal. Sustentou o pedido invocando que se trata do quantitativo que despendeu em despesas e indemnizações por via de acidente de trabalho ocorrido em 12.8.2004, sofrido por um trabalhador por conta da empresa C (...) SA, sua segurada, acidente que vitimou aquele sem culpa própria e que se ficou a dever ao facto de (…) carteiro, circulando num ciclomotor, ter sido surpreendido pelo súbito aparecimento de um cão, de propriedade do réu. Mais alegou que o cão, solto, saiu para a estrada e atravessou-se à frente do sinistrado, provocando a queda deste, donde resultaram lesões físicas e tratamentos médicos cujas despesas, indemnizações, pensões provisórias e remição a A. foi liquidando ao sinistrado. Invocou a sub-rogação, bem como a responsabilidade do réu, fundada nos artigos 493º e 502º do CC, por os donos dos animais estarem obrigados à sua vigilância.
O réu, beneficiando do apoio judiciário mais amplo, contestou, invocando a prescrição e alegando que, como a A. não indicou a raça, a cor e o tamanho do cão, não pode reconhecê-lo como sendo de sua propriedade, e que o acidente ocorreu por a vítima seguir distraída, desatenta e com velocidade excessiva, e impugnando as invocadas lesões e despesas, por não serem consequência do alegado acidente. Acrescentou que não presenciou o acidente, mas ele réu e outros populares socorreram o sinistrado, o qual apenas se queixava de um joelho; não sabe se o acidente foi ocasionado pelo aparecimento de um cão ou de outro animal; tem dois cães, um dos quais então estava preso e nenhum saiu da sua residência; qualquer animal que surgisse na estrada era visível a distância suficiente para o sinistrado poder imobilizar o veículo sem embater.
A A. replicou.
Foi proferido despacho saneador, no qual foi definitivamente julgada improcedente a excepção de prescrição e foi elaborada a base instrutória (fls. 177 a 190). A audiência de julgamento culminou nas respostas motivadas à base instrutória, como constam a fls. 246 ss.
Foi proferida sentença, que concluiu decisoriamente julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido, com fundamento, em suma, em que se tratou de «dano ocorrido com negligência do trabalhador vitimado», porque este conduzia desatento.

Inconformada, recorre a autora, concluindo a sua alegação:
1. Em parte nenhuma do processo ou da matéria dada como provada se refere que os outros animais surgiram do lado esquerdo do sinistrado.
2. Em parte nenhuma do processo se refere ou afirma, ou sequer tenha ficado dado como provado que o sinistrado se precavia ou mesmo se desviava dos aludidos animais.
3. Muito menos que o cão do R. ora apelado seja um caniche.
4. Não se pode tentar fundamentar uma decisão, salvo o devido respeito que é muito, com factos que não só não foram carreados para os autos, como não foram alegados e tão pouco não ficaram provados, como é lógico.
5. Pelo que, pela matéria factual dada como provada, não pode concluir-se que o sinistrado teve culpa na produção do acidente.
6. Outrossim, ficou demonstrado e dado como provado que “O animal entrou na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, a correr, até ser embatido pelo ciclomotor”.
7. Ficou demonstrado que o cão pertencia ao R. e que se encontrava solto e sem vigilância na via pública e invadiu a faixa de rodagem, causando o acidente.
8. Tanto basta para que se conclua que sobre o réu impendia o dever de vigilância referido no artº 493º, nº 1, sobre ele recaindo a presunção de culpa ali prevista, que lhe cabia ilidir.
9. Cabia ao réu alegar e provar, por exemplo, que na data dos factos, o cão se encontrava preso e sob vigilância em local fechado ao público, etc.
10.O que não aconteceu.
11.O réu não logrou, pois, ilidir a presunção de culpa que sobre ele impendia, pelo que responde, ao abrigo do disposto no citado artº 493º, nº 1.
12. Estando demonstrada a existência de um evento ilícito e danoso, resta verificar a imputação da sua responsabilidade ao Réu.
13.De facto, relativamente à responsabilidade por danos causados por animais, o art.º 493º, n.º 1, do C. Civil, estabelece uma presunção legal de culpa por parte de quem tiver assumido a vigilância de animais, estatuindo que quem tiver assumido este encargo, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
14. Trata-se de uma situação típica de culpa in vigilando, em que o dano resulta da omissão do dever de guarda dos animais, cuja presunção de culpa radica na perigosidade inerente a estes, decorrente da imprevisibilidade dos respectivos comportamentos, a justificar especiais cuidados por parte da pessoa que os tem à sua guarda.
15.O acidente ficou a dever-se ao aparecimento inopinado e imprevisível de um cão a atravessar a estrada.
16.O artº 502º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse e tem como pressuposto o perigo especial que é característico ou típico dos animais utilizados, variando com a natureza destes.
17. Ao entender de outra forma, não fez correcta aplicação do direito o Sr. Meritíssimo Juiz a quo, pelo que deve a Sua Decisão ser revogada.

O réu contra-alegou, concluindo:
1º Tendo resultado da instrução da causa produzida em audiência de discussão e julgamento da causa, mormente do depoimento do (…), inquirido e contra inquirido pelas partes que «na distribuição postal, em Vila Mendo, onde reside o réu J (…), o (…) foi perseguido por vários cães que se dirigiram ao ciclomotor, um dos quais castanho»,
2º Facto que se deve entender como sendo instrumental, uma vez que só indirectamente interessam à solução do pleito, por servirem para demonstrar falsidade dos factos pertinentes alegados pela autora e por se circunscrever no âmbito da causa de pedir por esta deduzida,
3º Andou bem o Tribunal “a quo” ao considera-lo e nele assentar a sua decisão nos termos do artºs 264º, 515º, 664 e 665º do CPC,
4º Até porque constitui hoje entendimento, praticamente pacífico, que é legalmente possível dar respostas aos quesitos de forma ampliativa ou restritiva, desde que se situam dentro do âmbito matéria alegada pelas partes e do objecto da acção, e com vista a que os factos a dar ou não como assentes correspondam, o mais possível, àquilo que, na realidade, se passou ou aconteceu.
5º In casus tal materialidade veio responder de forma clara a factualidade vertida no artº 4º da base instrutória, esclarecendo que não foi ao passar pela residência do Réu J (...) , que B (...) foi surpreendido por um canídeo de pequeno porte, mais concretamente com cerca de 40cm de altura e cerca de 60cm de comprimento, de cor amarela esbatida, mas sim que foi na que na distribuição postal, em Vila Mendo, onde reside o réu J (…), que o (…)  foi perseguido, e não por um cão mas por vários.
6º Por outro lado, nada impede o julgador de em sede de fundamentação fáctica, e numa analise critica da prova produzida em julgamento por forma a alicerçar as suas respostas a matéria de facto objecto de instrução e assim de fundamentar a sua convicção de apelar aos meios probatórios apresentados em audiência, como no caso em apreço o depoimento do sinistrado B (...) que referiu “os outros animais surgiram do lado esquerdo do sinistrado”, e por forma a deles se precaver e até deles se desviar embateu no canídeo de pequeno porte castanho, de que só se apercebeu encontrar-se do seu lado direito quando nele embateu.
7º Como bem, refere a recorrente da materialidade não foi considerada demonstrada mas foi atendida em sede de decisão, para provar que não foi o canídeo que se atravessou de forma repentina, surgido de uma valete com ervas de 50 cm, atrás das quais se encontrava escondido, não permitindo ao sinistrado evitar o embate, mas sim que foi este quem nele embateu por não se ter apercebido dele pelas razões vertidas que antecede.
8º Respondendo assim de forma restritiva a materialidade acolhida no artºs 9º a 12º da Base Instrutória.
9º Pelo que o Tribunal a quo apenas se limitou a dar cumprimento ao disposto nos artºs 653º nº 2 , e 158 º do CPC.
10º Assim mal interpretou a recorrente a decisão recorrida ao entender que aqueles factos fundamentaram a decisão, pois que apenas se limitaram a fundamentar os factos provados e não provados. Sem conceder
11º Ao invés do sustentado pela recorrente, atento as respostas restritivas dados aos factos vertidas na base instrutórias não ficou demonstrado que:
a)- O cão pertença do R se encontrava sem vigilância,
b)- O cão pertença do R se encontrava na via publica,
c)- O cão pertença do R tenha invadido a faixa de rodagem,
d)- O cão pertença do R causou o acidente, atravessando-se a frente do ciclomotor conduzido pela sinistrado Altino,
e)- O Réu tivesse o canídeo em seu poder em momento anterior,
f)- O réu tivesse assumido a obrigação de o vigiar.
12º Pretendendo a aqui autora exercer o direito que lhe confere o artº 17º nº 4 do Decreto–lei nº 98/2009 de 4 de Setembro, conjugado com o artº 593º do CC e subrogar-se no direito do lesado contra os responsáveis, nomeadamente por entender ter-se verificado culpa in vigilando do Réu, cabia-lhe, nos temos do art 342º e 487º do CC provar que o agente, por acção ou omissão, praticou um acto ilícito, isto é, um acto violador de direitos de terceiro, em que o objecto cuja vigilância lhe coubesse tenha tido uma intervenção ilícita relevante,
13º Só com a prova do facto ilícito por parte do Reu estaria a autora legitimada a accionar o instituto da presunção de culpa estabelecido no artº 593º.
14º Ora em lado algum ficou demonstrado que o Réu tivesse assumido a obrigação de vigiar o canídeo ou que o tivesse em seu poder em momento anterior.
15º Pelo que bem andou o Tribunal “a quo” ao afastar a aplicação ao caso dos autos da presunção de culpa estabelecida naquele preceito legal. Ainda que a recorrente não tenha aprofundado tal questão, apenas a ela se referindo de forma evasiva, acrescentar-se-á o seguinte.
16º Também andou bem o Tribunal “a quo” ao afastar ao caso dos autos o disposto no artº 502º do CC, atendendo a materialidade considerada demonstrada que indicia que foi o sinistrado que causou o embate,
17º Pelo que o sinistro não decorreu da irracionalidade própria do animal que não se atravessou no meio da estrada mas da desatenção do condutor que o colheu, e só então se apercebeu dele;
18º Nem decorreu de qualquer outro risco próprio do canídeo, que também entendemos poder ser apenas o de morder, estragar roupa, propagar doenças.
19º Ao invés uma vez que apesar de se ter demonstrado que o local onde o sinistro se verificou correspondia a um troço de recta e que a berma existente do lado direito atento o sentido de marcha do ciclomotor, de Vila Mendo para a Qta do Ordonho, permitia apenas um corrimento de águas, sem que tenha ficado demonstrado a existência de valetas mais fundas, e de ervas secas de cerca de 50 cm por detrás das quais se teria escondido o canídeo pertença do Réu ainda assim o sinistrado apenas se apercebeu da presença do animal cuja propriedade foi atribuída ao réu quando nele embateu,
20º O sinistro deveu-se apenas e tão só a falta de atenção e cuidado na condução do motociclo por parte do sinistro.
21º Mais ainda estando a ser perseguido, como ficou demonstrado por vários cães, tendo deixado de ter percepção do que estava a suceder na via em que seguia, seguindo numa estrada de uma pequena localidade - Vila Mendo - onde pelas regras da experiência comum é habitual cruzar-se com cães e gatos e não tendo o sinistrado adequado a sua condução, quer as condições da via, e do próprio circunstancialismo que estava a viver violou efectivamente o sinistrado o disposto nos artsº 12º nº 1 e 24º nº 1 do código da estrada, constante do Decreto-lei nº 114/94 de 3 de Maio, na sua nona versão, em vigor à data do acidente, a correspondente à redacção da lei nº 20/2002 de 21 de Agosto, pelo que presume-se aqui a culpa do lesado,
22º Culpa esta que também é efectivamente por ter ficado demonstrado ter sido o sinistrado a embater no canídeo e não o contrário.
23º Pelo exposto nos termos do artº 570º nº 2 do Cód. Civil, a culpa do lesado na falta de disposição em contrário exclui o dever de indemnização daquele sobre quem recai a presunção de culpa.
Sem conceder, e a título subsidiário requer-se nos termos do artº 486-A do CPC a ampliação do recurso, o que se faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
24º Em sede de decisão recorrido ficou demonstrado para o que interessa:
a)- Em consequência deste embate e queda descritos, (…) sofreu lesões físicas que implicaram tratamentos médicos, medicamentosos e hospitalares? ( artº 13º da base instrutória
b)- Em consequência dos tratamentos médicos a que (…) foi sujeito, a autora suportou € 1.973,92, pagos a empresa de táxi, € 12,40 e € 5,00 pagos directamente ao (…) (artº14º da base instrutória)
c)- Em consequência das lesões sofridas e dos tratamentos médicos a que (…) foi sujeito, a autora, pela realização de exames por junta médica no âmbito do processo especial por acidente de trabalho, pagou 548,96 a título de honorários a perito médico ( artº 15º da Base instrutória)
d)- Em consequência das lesões sofridas e dos tratamentos médicos a que B (...) foi sujeito, a autora suportou os pagamentos de € 1.510,48 e de € 30,00, a título de despesas com centros médicos ( artº 16º da base instrutória)
e)- A assistência e as intervenções realizadas pelos Hospitais P (...) na pessoa de (…), em consequência do presente acidente, ficaram em € 2.404,36, quantia que a seguradora suportou. ( artº 18 da base instrutória)
f) – A título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, e durante o período em que se verificou – o qual não foi possível fixar – a seguradora pagou, a (…), quantia que não foi possível apurar ( artº 23 da base instrutória )
g) a título de indemnização por incapacidade temporária parcial, e durante o período em que se verificou – o qual não foi possível fixar – a seguradora pagou, a (…), quantia que não foi possível apurar ( artº 24º da base instrutória) .
25º A factualidade vertida no artigo que antecede encerre matéria de direito e/ou juízos de valor que deve ser considerado não escrita nos termos do artº 646º nº 4 do CPC, o que se requer,
26º Uma vez que da mesma intui-se o nexo de causalidade entre as despesas efectuadas e os tratamentos e entre este e o acidente,
27º Materialidade que deveria alicerçar-se nesta outra, cuja prova e alegação não foi feita:
a)- A lesão sofrida pelo sinistrado,
b)- A extensão desta lesão,
c)- Os tratamentos seguidos,
d)- O nexo existente entre os tratamentos seguidos e a lesão alegadamente sofrida,
e)- O grau de incapacidade permanente parcial,
f)- Os dias de Incapacidade Temporária Absoluta,
g)- O valor do salário auferido pelo sinistrado.
28º Só com a prova desta materialidade se poderá concluir que os pagamentos efectuados pela Autora ao Réu se reportavam ao acidente alegadamente sofrido pelo (…) em 12 de Agosto de 2004 e que foram causados de forma directa e necessária pela necessidade de recuperação da lesão do sinistrado.
29º Acresce que aquela materialidade é conclusiva por não especificar a data em que foram efectuados os pagamentos, os tratamentos específicos seguidos, em que data o foram… sendo de todo impossível relacioná-los com o evento subido alegadamente ocorrido em 12 de Agosto de 2004.
30º Face ao exposto não pode considerar-se demonstrado que os pagamentos efectuados pela autora e considerados demonstrados o foram como consequência do acidente, pelo que deverá considerar-se tal materialidade não escrita. Acresce a tudo isto
31º Quer esteja em causa a responsabilidade objectiva do artº 502, quer a presunção de culpa do artº 493º, certo é que o legislador não prescinde da prova dos danos a que nos referimos no artº 27 destas conclusões.
31º Pelo que ainda que procedesse a responsabilidade objectivo do réu por ser o dono do cão, quer procedesse a responsabilidade por culpa presumida certo é que deveria aquele ser absolvida por falta de prova de um dos pressupostos da condenação: os danos físicos.
32º Na verdade, estando subrogados nos direitos que assistiriam ao lesado, também se encontra subrogada nos seus deveres.
33º Pelo que importaria apurar os danos sofridos pelo B (...) e não os danos sofridos pela seguradora como fez o Tribunal a quo que confundiu o instituto da subrogação legal prevista no artº 593º do Cód. Civil em que o subrogado exerce [?] alheia com o instituto do Direito de Regresso previsto no artº 497º do CC, em que o credor exerce um direito próprio.
34º Ora em lado algum ficaram demonstrados ou sequer alegados os danos sofridos pelo sinistrado.
35º Pelo que mais uma vez deveria improceder a presente acção.
36º Em todo o caso o valor de € 548,96 que a Autora pagou a título de honorários a perito médico, referentes a exames por junta médica no âmbito do processo especial por acidente de trabalho, não pode ser imputado ao aqui réu por não corresponder a qualquer dano sofrido pelo sinistrado, mas apenas suportadas pela Autora, por forma a assegurar a sua defesa num processo laboral.
Sem Conceder
37º Deveria ter sido considerado demonstrado: «No momento do embate, (…) conduzia de forma distraída e desatenta» (artº 32º da base instrutória), tendo presente o depoimento do sinistrado ouvido em 15 de Abril de 2011 entre as 11:31:34 e as 11: 54: 13, e cujo depoimento se encontra gravado em suporte áudio Habilus, que declarou aos cerca de 5 min. e 18 segundos do inicio do seu depoimento referiu «Ao acabar, pronto, a distribuição naquela localidade… saio de um local de terra batida (…) entro na estrada principal e aparecem-me ali uns cães (…) e eu atento do lado esquerdo estes cães»; aos cerca de 6 min e 48 seg do início do seu depoimento «Quando saio da terra batida, aparecem-me ali uns cães de raça pequena e eu atento… por normalmente os carteiros, seja a pé, seja de mota (…) em todas as aldeias nos aparecem cães praticamente e nós temos o máximo cuidado já para não haver acidentes. E o que acontece é que eu, pronto, quando entrei na Estrada aparecem-me aqueles cães e eu fui atento, andei, não faço a mínima ideia, uns metros, poucos, é quando salta um cão do lado direito que eu não me apercebo. Não sei se foi da valeta, se foi do terreno que está ao lado, a erva na altura é seca, um cão mais ou menos da mesma cor e eu só dou conta quando estou no chão, e não tenho tempo de travar, não tenho tempo de nada, a partir daí aconteceu o que aconteceu (…)»; aos cerca de 8 min. e 18 seg. «Nessa altura os terrenos ali, pronto, presumo eu, estou a presumir que têm ervas...»; e aos cerca de 9 min. e 47 a propósito dos cães que o perseguiam «Os outros vi que vieram atrás de mim; aquele saiu dali, daquele local… eu sei que me surgiu ali de repente… este cão eu não o vi antes… a única coisa que me apercebi foi aquele vulto a saltar, ao saltar eu não tenho espaço».
38º Aliás é o próprio tribunal que já em sede de fundamentação refere: «ele, como se viu, conduzia desatento, de modo que, primeiro, atropelou o cão do réu, depois, então, viu que esse animal estava na estrada»; «No caso vertente, o ciclista é confrontado, em plena zona rural, por vários cães que se lhe deparam do seu lado esquerdo; enquanto adequa a sua condução a este facto externo, cai, porque embate num outro cão, que se lhe depara do lado direito, e o condutor só depois do embate se apercebe da sua presença. Dentre as circunstâncias relevantes e as características da estrada e do veículo, não será desajustado chamar a atenção para o facto de se tratar de um carteiro, a trabalhar na vila Mendo, local onde é frequente encontrar cães, gatos, galinhas, enfim, animais próprios das características do meio e das actividades económicas e lúdicas a que os residentes se dedicam, seguramente distintas das que seria possível enfrentar no centro histórico da sede de concelho»,
39º E concluiu a sentença pela violação por banda do sinistrado do disposto nos artºs 12º nº 1 e 24º nº 1 do código da estrada, constante do Decreto-lei nº 114/94 de 3 de Maio, na sua nona versão, em vigor à data do acidente, a correspondente à redacção da lei nº 20/2002 de 21 de Agosto.
40º Pelo que nesta parte verifica-se nulidade de sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão nos termos do disposto no artº 668º nº 1 al. c) do CPC, nulidade esta que se alega para os devidos efeitos legais.
SEM PRESCINDIR
41º Atento o disposto no artº 264º do CPC, por serem factos instrumentais relevantes para o apuramento dos factos essenciais a procedência ou improcedência da presente acção, e por a eles se reportar a sentença deveria ter sido considerada demonstrado:
a)- «O ciclista é confrontado, em plena zona rural, por vários cães que se lhe deparam do seu lado esquerdo; enquanto adequa a sua condução a este facto externo, cai, porque embate num outro cão, que se lhe depara do lado direito, e o condutor só depois do embate se apercebe da sua presença».
b)- «O condutor, como no caso vertente o carteiro que percorra a larguíssima maioria das vias públicas da área de jurisdição do tribunal da área da residência do penúltimo presidente do conselho de ministros do estado novo – como, aliás, quem circula pelas vias públicas das aldeias da periferia da Guarda – deve precaver-se contra a possibilidade de cruzar com cães, ovelhas, bovinos, ou até, simultaneamente, com dois rebanhos, o que o sinistrado não fez».
42º Violou assim o Tribunal a quo ou mal interpretou o disposto no artº 497º, 592º e seg., 563º do CC, os artº 646 nº 4, 668 nº 1 al. c) do CPC. Termos em que se deve manter a decisão recorrido ou subsidiariamente ser declarada a nulidade suscitada na ampliação do recurso, e considerada a materialidade demonstrada em sede de decisão insuficiente para a procedência da acção absolvendo-se o Réu a final.
Correram os vistos.
Nada obsta ao conhecimento do objecto do recurso.

II- Fundamentos:
A 1ª instância exarou como provada a seguinte factualidade, a que acrescentamos a indicação dos quesitos de cujas respostas positivas aquela provém:
1. A autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora.
2. No âmbito desta sua actividade, a autora celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a sociedade C (...) SA, titulado pela apólice nº (...) , que consta das folhas 11 e 12 e aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. O aludido contrato de seguro encontrava-se em vigor a 12 de Agosto de 2004.
4. O contrato apresentava na respectiva lista de trabalhadores (…) (do quesito 1º).
5. No dia 12 de Agosto de 2004 B (...) encontrava-se inserido na categoria profissional de carteiro ao serviço da sociedade C (...) e em efectivo exercício de funções (do quesito 2º).
6. Nesse dia, e nessa actividade, (…) procedia à distribuição postal em Vila Mendo, circulando num ciclomotor (do quesito 3º).
7. Na distribuição postal, em Vila Mendo, onde reside o réu J (...) , o B (...) foi perseguido por vários cães que se dirigiram ao ciclomotor, um dos quais castanho, de pequeno porte (do quesito 4º).
8. Tal animal [o de pequeno porte] encontrava-se solto ((do quesito 5º).
9. O cão pertencia ao réu J (…) (do quesito 6º).
10. A estrada, no local, e atento o sentido de marcha do ciclomotor, de Vila Mendo para a Qta do Ordonho, apresenta uma berma que permite o corrimento de águas (do quesito 7º).
11. (…) só se apercebeu da presença do animal quando embateu no mesmo (do quesito 9º).
12. O animal entrou na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, a correr, até ser embatido pelo ciclomotor (do quesito 10º).
13. (…), sem se aperceber da presença daquele animal, embateu-lhe com a roda da frente do ciclomotor (do quesito 11º).
14. Devido ao embate, (…) caiu ao solo juntamente com o ciclomotor (do quesito 12º).
15. Em consequência destes embate e queda, (…) sofreu lesões físicas que implicaram tratamentos médicos, medicamentosos e hospitalares (do quesito 13º).
16. Em consequência dos tratamentos médicos a que (…) foi sujeito, a autora suportou € 1.973,92, pagos a empresa de táxi, € 12,40 e € 5,00 pagos directamente ao (…) (do quesito 14º).
17. Em consequência das lesões sofridas e dos tratamentos médicos a que (…) foi sujeito, a autora, pela realização de exames por junta médica no âmbito do processo especial por acidente de trabalho, pagou € 548,96 a título de honorários a perito médico (do quesito 15º).
18. Em consequência das lesões sofridas e dos tratamentos médicos a que (…) foi sujeito, a autora suportou os pagamentos de € 1.510,48 e de € 30,00, a título de despesas com centros médicos (do quesito 16º).
19. A assistência e as intervenções realizadas pelos Hospitais P (...) na pessoa de (…), em consequência do presente acidente, ficaram em € 2.404,36, quantia que a seguradora suportou (do quesito 18º).
20. A título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, e durante o período em que se verificou – o qual não foi possível fixar – a seguradora pagou, a (…), quantia que não foi possível apurar (do quesito 23º).
21. A título de indemnização por incapacidade temporária parcial, e durante o período em que se verificou – o qual não foi possível fixar – a seguradora pagou, a (…), quantia que não foi possível apurar (do quesito 24º).
22. O embate ocorreu num troço de recta (do quesito 28º).
23. Antes do embate, (…) não se apercebeu da presença do animal com que veio a colidir (do quesito 32º).

Objecto do recurso:
Objecto do recurso são as questões que emergem das conclusões das alegações (artigo 685º-A, nº 1, do CPC), sem prejuízo da abstenção de conhecimento daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução de outras e sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso (artigos 660º/2 e 664º/2 do CPC). Consigna-se que, conforme jurisprudência constante, o conceito de “questões” não se confunde com meros argumentos ou razões. E o conceito de “questões” como objecto de recurso assenta nos fundamentos pelos quais se pede a alteração ou anulação da decisão (nº 1 do art. 685º-A do CPC), tendo-se em atenção, em geral, ainda o disposto nos artigos 684º a 685º-B do CPC (redacção do DL nº 303/07 de 24.8).
Em concreto, as questões objecto do recurso e sua ampliação resumem-se às seguintes:
1ª- A pretendida modificação da decisão de facto (conclusões 25ª a 30ª, 37ª, 38ª e 41ª da contra-alegação);
2ª- Se a sentença recorrida é nula, nos termos do artº 668º nº 1 al. c) do CPC (conclusões 39ª, 40ª e 42ª da contra-alegação);
3ª- Se a decisão não podia fundar-se em factos que não foram alegados e provados, ou seja: que os outros animais surgiram do lado esquerdo do sinistrado; que o sinistrado se precavia ou mesmo se desviava dos aludidos animais; que o cão do R. ora apelado seja um caniche (conclusões 1ª a 4ª da alegação);
4ª- Se na presente acção a A. exerce a sub-rogação legal prevista no artº 593º do Cód. Civil ou o direito de regresso previsto no artº 497º do CC (conclusão 33ª da contra-alegação);
5ª- Se ao caso é aplicável o disposto no artigo 493º/1 ou no artigo 502º do Código Civil e se a decisão deve ou não ser revogada (conclusões 7ª a 16ª da alegação e as restantes conclusões da contra-alegação).

A 1ª questão: Sobre a modificação da decisão de facto:
(…)
A 2ª questão: Se a sentença recorrida é nula, nos termos do artº 668º nº 1 al. c) do CPC:
Embora a parte da fundamentação de direito contradiga parcialmente o provado, a contradição que constitui causa da nulidade de sentença referida à al. c) do nº 1 daquele artigo é a contradição entre os fundamentos e a decisão. Esta contradição não se verifica e com ela não se confunde o eventual erro de julgamento.
A 3ª questão: Se a decisão não podia fundar-se em factos que não foram alegados e provados, ou seja: que os outros animais surgiram do lado esquerdo do sinistrado; que o sinistrado se precavia ou mesmo se desviava dos aludidos animais; que o cão do R. ora apelado seja um caniche (conclusões 1ª a 4ª da alegação):
É possível que os outros animais (que não o cão do réu) tenham surgido do lado esquerdo do sinistrado, enquanto o cão do réu – como se provou – apareceu do lado direito a correr em direcção ao ciclomotor. Mas realmente aquele facto não se provou, tal como não se provou que o sinistrado se precavia ou mesmo se desviava daqueloutros animais ou que o cão do R. fosse um caniche. Não importa, como pretende o apelado, que se trate de factos instrumentais; o que importa é que, sejam ou não instrumentais, não são factos provados.
A 4ª questão: Se na presente acção a A. exerce a sub-rogação legal prevista no artº 593º do Cód. Civil ou o direito de regresso previsto no artº 497º do CC (conclusão 33ª da contra-alegação):
Sendo o acidente um acidente de trabalho e de viação – como as partes fazem menção e como resulta do provado (sobretudo pontos de facto nºs 2 a 6 e 13 a 21), referindo-se aliás a 1ª instância ao processo laboral (fl. 249) – temos que à data do acidente vigorava o preceito do artigo 18º do DL nº 522/85 de 31.12, em virtude de cuja remissão para a Lei nº 100/97 de 13.9, é aplicável o artigo 31º, nº 4, desta Lei, segundo o qual «a seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente tem o direito de regresso contra os responsáveis referidos no nº 1», que são designadamente os terceiros (terceiros estranhos à relação laboral). É esse direito que a autora seguradora veio fazer valer através da propositura da presente acção, direito que diploma posterior (DL nº 98/2009 de 4.9), então ainda não em vigor, veio qualificar como de sub-rogação, ao prescrever no seu artigo 17º nº 4 que “o empregador ou a sua seguradora que houver pago a indemnização pelo acidente pode sub-rogar-se no direito do lesado contra os responsáveis”.
A 5ª questão: Se ao caso é aplicável o disposto no artigo 493º/1 ou no artigo 502º do Código Civil e se a decisão deve ou não ser revogada (conclusões 7ª a 16ª da alegação e as restantes conclusões da contra-alegação):
Aquele artigo 493º/1, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, preceitua: «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».
Por sua vez, o artigo 502º do Código Civil, ainda no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, mas objectiva, por risco, preceitua: «Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização».
Ambos os preceitos regem casos de responsabilidade civil por danos causados por animais, mas com acentuadas diferenças, das quais destacamos: o artigo 493º consagra casos de presunção de culpa de quem tiver em seu poder (de facto ou jurídico) uma coisa com o dever de a vigiar ou um animal em relação ao qual assumiu o encargo de o vigiar, tendo essa coisa ou animal causado danos; o artigo 502º consagra caso de responsabilidade objectiva, logo independentemente de culpa, por parte de quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais pelos danos que estes causem, desde que os danos resultem do perigo especial que a sua utilização envolve.
Naquele caso de responsabilidade por culpa presumida, o visado verá afastada a sua responsabilidade se o demandante não provar os factos que constituem a base da presunção legal ou se o visado ilidir a presunção de culpa, sendo que pode ilidi-la por um de dois meios: provando que nenhuma culpa houve da sua parte ou provando uma causa virtual do mesmo dano verificado. E pode verificar-se a hipótese de a responsabilidade por culpa presumida ser totalmente afastada, havendo culpa do lesado, nos termos do artigo 570º/2 do CC.
A responsabilidade cominada no artigo 502º do CC é objectiva, não depende de culpa e o artigo 570º não lhe é aplicável.
Como é fácil constatar, quanto a responsabilidade civil por danos causados por animais, o preceito do artigo 502º é especial em relação ao do artigo 493º/1 do Código Civil, pelo que a aplicação daquele prevalece (art. 7º/3 do CC). E aquele oferece mais forte protecção à vítima, pois que não ressalva a falta de culpa do agente como ocorre no artigo 493º/1.
Entende o apelado que, para funcionar a presunção de culpa do artigo 493º/1 do CC, seria necessário que ele tivesse assumido o encargo de vigiar o canídeo (o que causou o acidente) e que cabia à A. provar a ilicitude. Mas não tem inteira razão. Provou-se que o cão lhe pertence; ora, o dono de um cão, por ser dono, está obrigado a vigiá-lo de modo a que não cause danos (cf. P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. I, 1987, nota 2 ao art. 493º) ([1]). Por outro lado, quanto à ilicitude, podemos afirmar que ela consiste na omissão do dever de vigilância do animal que causou os danos ou, seguindo a lição de Antunes Varela, diríamos que o preceito não exige a ilicitude (cf. Das Obrigações em Geral, 10ª ed, pág. 636) ou, seguindo a lição de Menezes Cordeiro, diríamos que à face do preceito há presunção de ilicitude, consistindo esta na inobservância do dever de vigilância (cf. Tratado de Direito Civil, II, tomo III, pág. 584).
A sentença citou variadas vezes ambos os preceitos legais e sobre ambos teceu considerações, sem que tenha optado decididamente pela aplicação de um ou de outro, mas acabou por afastar a responsabilidade do réu por entender que estava ilidida a presunção legal de culpa do réu, por se verificar a culpa do condutor (…). A apelante, por sua vez, para afirmar a responsabilidade efectiva do réu, entende aplicável tanto o artigo 493º/1 como o art. 502º do CC.
Sucede que para um mesmo acidente causado por animal concebe-se que possa haver cumulação de responsabilidades, a título do artigo 493º/1 e a título do artigo 502º do CC, desde que haja uma pluralidade de responsáveis, cada um sob um daqueles títulos, por exemplo no caso de o utente ter incumbido alguém da vigilância dos animais ou no caso de aluguer (cf. P. Lima e A. Varela, no CC Anotado, vol. I, 1987, em nota ao art. 502º, e A. Varela, Das Obrigações, 10ª ed, pág. 652 s). Todavia, havendo um só agente, não se vislumbra que ele possa responder pelo mesmo acidente a ambos esses títulos, ao mesmo tempo por culpa presumida e por risco. E, como já dissemos, o preceito do art. 502º é especial em relação ao do art. 493º/1 do mesmo Código.
O disposto no artº 502º é aplicável aos que utilizam os animais no seu próprio interesse (o proprietário, o usufrutuário, o possuidor, o locatário, o comodatário, etc). É quanto a estas pessoas que tem inteiro cabimento a ideia do risco: quem utiliza em seu proveito os animais, que, como seres irracionais, são quase sempre uma fonte de perigos, deve suportar as consequências do risco especial que acarreta a sua utilização ([2]). Esse proveito, ou interesse, ou utilidade, pode abranger até a simples distracção ou prazer, enfim o mero interesse moral ou espiritual ([3]).
Como ensinam P. Lima e A. Varela, no CC Anotado, vol. I, 1987, nota 2 ao art. 502º, a responsabilidade – no caso previsto neste artigo – não depende da violação de quaisquer regulamentos que disciplinem a utilização dos animais, e tanto se aplica aos animais domésticos, como aos restantes animais (abelhas, animais ferozes, etc); essencial é que o dano proceda do perigo especial que envolve a utilização do animal e não de qualquer facto estranho a essa perigosidade específica.
Se, por exemplo, alguém sofreu uma apoplexia ao ver uma vaca a pastar, pode dizer-se que a vaca causou (ainda que não adequadamente) a apoplexia, mas o dano não derivou do risco específico que uma vaca representa; diferente seria se alguém tripulando um veículo sofresse um acidente porque a vaca correu para a estrada e se lhe atravessou à frente.
Mas o risco específico ou perigo especial de um animal causar um acidente estradal não se resume às vacas ou a animais de grande porte. Um simples cão pode causar grave acidente na estrada ao embater com um veículo na estrada: casos desses, de acidentes causados por canídeos em estradas ao embaterem em veículos automóveis (ou ao serem embatidos por estes, o que vem a dar no mesmo), têm originado múltiplos litígios nos tribunais, sendo amplamente conhecidos inclusive pelos profissionais do foro. Cães, atravessando-se à frente de automóveis que geralmente circulam a apreciável velocidade em auto-estradas, podem causar e têm causado graves acidentes. O perigo especial é evidente, como é sabido por experiência (própria ou alheia), não carecendo de grande explicação. Mas, mesmo que se trate de veículo a menor velocidade e noutro tipo de estrada, o cão pode provocar acidente estradal, sobretudo se for veículo de duas rodas, dado que este perde o equilíbrio mais facilmente do que um de quatro rodas.
Ou seja: um cão, estando solto na proximidade de estrada, oferece o perigo especial de invadir a estrada e colidir com um veículo que nela circule, podendo causar acidente com a queda do veículo, especialmente se se tratar de veículo de duas rodas.
Ora, no caso dos autos, (…) circulava na estrada, tripulando o ciclomotor, quando o cão do réu, estando solto, entrou na faixa de rodagem, da direita para a esquerda, a correr, até ser embatido pela roda da frente do ciclomotor e, devido ao embate, (…) caiu ao solo juntamente com o ciclomotor; em consequência do embate e da queda, (…)sofreu lesões físicas que implicaram tratamentos médicos, medicamentosos e hospitalares e as despesas provadas.
O facto ilícito consiste na infracção do dever de vigilância do cão por parte do réu porque seu dono e o deixou solto de modo a invadir a estrada, resultando daí o acidente e as lesões físicas do condutor do ciclomotor. Os danos resultam do perigo especial que o cão solto na estrada representa. O nexo de causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano é manifesto: é normal, de acordo com a experiência comum, que um cão atravessando-se à frente dum veículo de duas rodas em circulação provoque a sua queda e a do condutor e que daí resultem lesões. O réu deve responder pelos danos, nos termos do artigo 502º do CC.
Não se diga, como diz a sentença, que «se já tenho por difícil que o risco próprio de um cão exceda, em muito, o facto de ele poder morder, provocando lesões ou estragando roupa, eventualmente até propagando doenças, se não assistido devidamente por veterinário, mais ainda me custa sustentar que cabe dentro do risco próprio de quem tenha um caniche a circunstância de ele poder ser pisado ou mesmo atropelado por um ciclista que ia a olhar precisamente para o lado»… Nem se diga, como o apelado, que …« risco próprio do canídeo, que também entendemos poder ser apenas o de morder, estragar roupa, propagar doenças».
Tal fica aquém das regras da experiência. Como já dissemos, os cães soltos na estrada provocam acidentes; um cão, estando solto na proximidade de estrada, oferece o perigo especial de invadir a estrada e colidir com um veículo que nela circule, podendo causar acidente com a queda do veículo, especialmente se se tratar de veículo de duas rodas.
A responsabilidade por risco, do dono do cão, não está afastada pela culpa de (…), dado que não há factos provados conducentes a tal juízo de culpa.
Não se provou que (…) conduzisse desatento e que o acidente tenha resultado de desatenção à condução. Não se provou que (…) estivesse no momento do acidente a iniciar ou a retomar a marcha. Não se provou a que velocidade circulava. De modo que não se pode concluir pela infracção às regras dos artigos 12º/1 ou 24º/1 do Código da Estrada.
A existência de outros cães a perseguir o veículo não afasta a responsabilidade do dono do cão que se atravessou à frente do veículo que nele embateu (não se provou que houvesse embate com os outros cães ou que eles tivessem dono ou que eles tenham sido concausa do acidente). Mas ainda que a perseguição dos demais cães tivesse contribuído para a causação do acidente, o que o réu, sendo aqui condenado, teria a fazer, era demandar os donos dos outros cães, de modo a provar que eles são corresponsáveis pelo acidente e a exercer o direito de regresso contra os responsáveis solidários que porventura existam.
Não se diga, como diz o apelado, que não foi o cão do réu o causador do acidente por constar do provado que foi embatido pela roda da frente do ciclomotor, em vez de constar que o cão embateu no ciclomotor. Tanto faz dar na cabeça como na cabeça dar. Embateram um no outro. Colidiram. Com umas ou outras palavras a realidade é a mesma.
Sobre a medida da indemnização:
Os danos causados constam dos pontos de facto nºs 14 a 18, 23 e 24. Não tem razão o apelado ao defender que não estão provados os danos sofridos. Os danos são esses que estão provados.
O que tudo soma € 6.485,12, mais, de montantes ilíquidos, o que se refere às indemnizações por ITA e ITP referidas em 23 e 24. A condenação nestes últimos montantes fica sujeita a liquidação posterior, embora sem poderem exceder os montantes indicados na petição, de € 8.829,35 e € 262,34.
Pretende o apelado que o valor constante do ponto de facto nº 15 que a Autora pagou a título de honorários a perito médico, referentes a exames por junta médica no âmbito do processo especial por acidente de trabalho, não corresponde a qualquer dano sofrido pelo sinistrado e foi apenas suportado pela Autora por forma a assegurar a sua defesa nesse processo. Trata-se, todavia, de dano indirecto, causado pelo acidente de que o réu é responsável, e como tal deve ser reparado; seria aberrante que a autora tivesse de intentar outra acção contra o mesmo réu para ser ressarcida.

Em síntese final:
- Havendo dano causado por animal, o preceito do artigo 502º do CC prevalece sobre o do artigo 493º/1 do mesmo Código.
- Constitui risco específico ou perigo especial de um canídeo, estando solto na proximidade de uma estrada, a sua fuga para a via de modo a causar danos por colisão com um veículo que por ali circule.
- O dono desse canídeo responde pelos danos que este causar a quem circule na via pública.

III- Decisão:
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente, revogando a decisão impugnada e, na procedência parcial da acção, condenando o réu J (…) a pagar à autora Companhia de Seguros A (...) SA:
a)- A quantia líquida total de € 6.485,12 (seis mil quatrocentos oitenta cinco euros e doze cêntimos) acrescida de juros à taxa legal desde a citação até ao pagamento;
b)- A quantia a liquidar, após o trânsito em julgado, correspondente ao que a autora pagou a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta, em montante que não exceda € 8.829,35 (oito mil oitocentos vinte nove euros e trinta cinco cêntimos);
c)- A quantia a liquidar, após o trânsito em julgado, correspondente ao que a autora pagou a título de indemnização por incapacidade temporária parcial, em montante que não exceda € 262,34 (duzentos sessenta dois euros e trinta quatro cêntimos).
Custas da 1ª instância e do recurso pelo réu e pela autora na proporção de 30% e 70% respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário e sem prejuízo do acerto que for feito na decisão de liquidação.

 Virgílio Mateus ( Relator )
Carvalho Martins
Carlos Moreira


[1] A respeito desse dever legal de vigilância, fazemos notar, com o devido respeito, que não tem qualquer razoabilidade a extremada asserção da sentença, segundo a qual: «Acresce que defender que o animal deveria estar sistematicamente preso, e assim impossibilitado de vir a ser “arguido” de provocar a queda de um condutor de ciclomotor distraído, é, nos tempos actuais, pugnar por tratamentos cruéis, desnecessários e degradantes para o animal, entidade que, como ser vivo, não alcançou ainda a personalidade jurídica mas dispõe já de um amplo regime legal de protecção».
[2] Cf.  P. Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. I, 1987, nota 1 ao art. 502º.
[3] Cf. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. XIII, pág. 9.