Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
173/08.4GBCNT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS DESCRITOS NA ACUSAÇÃO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
MODALIDADE DE DOLO
COMISSÃO POR ACÇÃO OU POR OMISSÃO
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (SECÇÃO CRIMINAL DA INSTÂNCIA CENTRAL DE COIMBRA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 358.º E 359.º DO CPP
Sumário: I - A modalidade de dolo e a comissão por acção ou por omissão não integram o âmbito de protecção que o Código de Processo Penal pretende conceder ao arguido mediante a proibição de alteração substancial dos factos descritos na acusação.

II - Efectivamente, das referidas situações não resulta a imputação de crime diverso ou o agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis.

III - Assim, uma modificação dos factos nesses domínios consubstancia, tão só, alteração não substancial.

Decisão Texto Integral:





ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

Na Secção Criminal da Instância Central de Coimbra, da Comarca de Coimbra, o arguido A.... foi submetido a julgamento, em processo comum (colectivo), pronunciado pela autoria material de um crime de homicídio, p. e p. no art. 131º do Código Penal. No processo comum singular n.º 173/08.4GBCNT-A, (entretanto a estes apensado) o arguido vinha acusado pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. nos arts. 153º/n.º 1 e 155º/n.º 1, a) C.P.

Tomando por base o essencial da factualidade descrita na acusação pública dos presentes autos n.º 173/08.4GBCNT, vieram os assistentes D... e E... , na qualidade de pais da vítima C... , deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido e ainda contra “J... Seguros, S.A.”, por via do qual pedem a condenação solidária de ambos no pagamento da quantia total de € 171.600, sendo € 60.000 – € 30.000 para cada um deles – como compensação pela dor moral pelos assistentes sofrida em razão dos laços especiais de dependência e afectividade que os ligavam à sua falecida filha, € 20.000 pelo dano não patrimonial correspondente ao sofrimento vivenciado pela vítima nos momentos que precederam o seu decesso, € 70.000 pela supressão do direito à vida da C... , e ainda € 21.600 como indemnização por danos patrimoniais futuros advindos da morte daquela.

A demandada “ J... Seguros, S.A.” apresentou contestação ao pedido cível, na parte contra si deduzida. No essencial, argumentou que não lhe caberá suportar o valor de qualquer indemnização por causa do falecimento da vítima, visto que não derivou este decesso de acidente de viação algum, inerente aos riscos de circulação do veículo automóvel conduzido pelo arguido. Não, a viatura foi empregue pelo referido arguido como meio de perpetração de um crime voluntário e por ele bem gizado, não estando em causa, portanto, um verdadeiro acidente de viação que possa reportar-nos para o âmbito de protecção ou abrangência do contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado com a contestante. Pelo que, e em síntese, defendeu a demandada “ J... Seguros, S.A.” a respectiva absolvição do apontado pedido cível.

Foi comunicada ao arguido uma alteração dos factos descritos na acusação, nominada de não substancial, à qual se opôs o arguido, por a considerar substancial; tal questão viria a ser decidida no acórdão final.

A encerrar a audiência, viria a ser proferido acórdão, decidindo nos seguintes termos (transcrição):

«Pelo exposto, julgando-se a pronúncia e a acusação provadas e procedentes:

– Condena-se o arguido A... , como autor material de um crime de homicídio, p. e p. no art. 131º C.P., na pena de 12 (doze) anos de prisão;

– Condena-se o mesmo arguido A... , como autor material de um crime de ameaça, p. e p. nos arts. 153º/n.º 1 e 155º/n.º 1-a) C.P., na pena de 10 (dez) meses de prisão;

– Operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios previstos nos arts. 30º/n.º 1 e 77º/n.ºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a violenta personalidade revelada pelo mesmo), condena-se o arguido A... na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão;

– Condena-se o mesmo arguido nas custas-crime do processo, com 3 U.C. de taxa de justiça.

(…)

Por todo o exposto, julgando-se o pedido cível formulado nos autos parcialmente provado e procedente:

– Condena-se o demandado A... a pagar aos demandantes D... e E... a quantia total de € 125.000 (cento e vinte e cinco mil euros), a que acrescerão juros de mora, à taxa legal, contados da data do presente acórdão, até efectivo e integral pagamento, no mais se absolvendo o demandado do contra ele peticionado nos autos; – Absolve-se a demandada “ J... Seguros, S.A.” do pedido contra si formulado nos presentes autos pelos demandantes D... e E... .

Custas, quanto ao pedido cível, por demandantes e demandado A... , na proporção dos respectivos decaimentos (e sem prejuízo do apoio judiciário existente)

            Não se conformando com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

A) Incumpre analisar desde logo a questão prévia resultante de despacho datado de 16 de Julho de 2015, considerou o Tribunal uma alteração não substancial de factos, nos termos do artigo 358.º n.º 1 do Código de Processo Penal, que se concretizou no seguinte a)“ao descrever a tal curva à direita o arguido manobrou, de modo deliberado, o veículo, por forma a que este invadisse então a via contrária e consequentemente colidisse nas guardas de proteção laterais do lado esquerdo, seguindo-se daí, em termos de trajetória, o que é descrito na acusação quanto ao momento em que o veiculo ainda rolava na via; b)“o arguido entrou pelo caminho de terra batida em questão nos autos porque assim também pretendeu, tal como foi colidir com a árvore onde colidiu porque assim igualmente o quis.”c) -“após a colisão e estando a C... no interior do veículo, saiu o arguido desse mesmo interior, gerando só então ele, e de modo não concretamente apurado, o incêndio do automóvel, circunstância na qual terá sido atingido por algumas labaredas no peito, nas mãos e na cara. E, na sequência do que acaba de ser descrito, terá depois o arguido abandonado o local a pé, dirigindo-se para a sua casa.

B) Assim e no exercício do contraditório veio a defesa opor-se à referida alteração, considerando estar se perante uma verdadeira alteração substancial dos factos, nos termos do artigo 359.º a qual teria de ter o acordo do arguido, do Ministério Público e do Assistente, encontrando-nos perante fatos novos que, a serem considerados provados, implicam o agravamento da dosimetria penal e até a própria qualificação jurídica do crime. Razão pela qual se requereu a nulidade do douto despacho de fls., da comunicação de alteração não substancial dos factos, não devendo, nem podendo, vir a ser considerado na sentença final nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015; suscitando-se, igualmente o respetivo incidente de inconstitucionalidade da presente decisão deste Tribunal em comunicar ao arguido a alteração não substancial dos factos, tais com os apresenta, viola, de forma grosseira o disposto no Artº 163° do Código de Processo Penal e bem assim o disposto nos Artºs 32° da Constituição da República Portuguesa na interpretação que é dada ou tenha sido dada à norma do Artº 27°, do Código de Processo Penal, a violação do princípio acusatório (artigo 32º, nº 5 da CRP), a violação do direito a um processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da CRP), bem como a proibição do princípio ne bis in idem (artigo 29º, nº 5 da CRP);

C) No entanto foi a referida defesa apresentada alvo de indeferimento, alegando para tanto o Tribunal que “não estará em foco uma concretização fatual não constante de acusação conducente a uma alteração substancial dos fatos. Com efeito, os “pedaços fatuais” oportunamente mencionados pelo Tribunal apenas restringem e tentam definir - e adequar - melhor o que se passou em Audiência de Julgamento, não se descobrindo novos contextos ou situações espácio temporais diversas das descritas na acusação, pelo menos por forma a, por causa de tal alteração, cairmos em uma alteração substancial de fatos. É que, como se verá mais abaixo, a matéria fáctica comunicada faz com que devamos manter-nos no âmbito temático do Homicídio p. e p. no artigo. 131.º do Código Penal…. Pelo que, em síntese entende-se não ter havido extravasamento, com a comunicação efetuada do principio subjacente ao artigo 358.º n.º 1 do C.P.P.”

D) Ora, salvo devido respeito por opinião contrária, não pode o ora recorrente concordar com tal desiderato, razão pela qual recorre da referida alteração não substancial dos fatos e da sua inclusão nos presentes autos, uma vez que a referida alteração não substancial contraria assim a douta acusação e indo muito para além da mesma, na medida em que conforme já se referiu, a mesma parte de dolo eventual (em que agente prevê um resultado ou criação de um perigo como consequência possível da sua conduta), claro elemento subjetivo do crime, para dolo direto em que o agente tem clara intenção de realizar o fato, isto é, produzir a morte de C... sob a forma de um acidente e posteriormente deflagrando um incêndio, o que configura claramente uma alteração do título subjetivo da responsabilidade do agente. Não podendo assim admitir-se que os elementos do dolo, quando não descritos na acusação, possam ser deduzidos por extrapolação dos factos objetivos, com recurso à lógica, à racionalidade e à normalidade dos comportamentos, de onde se extraem conclusões suportadas pelas regras da experiência comum. Não apontando na sua fundamentação, quais os factos, quais os indícios, que motivam a alteração, incorrendo assim o referido despacho em nulidade por insuficiência de fundamentação, violando o disposto no artigo 374.º do Código de Processo Penal.

E) Ademais com a alteração perpetrada pelo Tribunal resultou assim num claro agravamento da posição processual do arguido, neste sentido acórdão do STJ datado de 21-03-2007. Assim, não poderia a douta sentença incluir fatos novos para além dos que constavam na acusação, por forma a por um lado, tal implicaria uma diminuição dos direitos de defesa do arguido, na medida em que, ficou assim irremediavelmente posta em causa a possibilidade do contraditório, de carrear para os presentes autos novos meios de prova. Sendo que, em bom rigor estes fatos cairiam na qualificação jurídica de homicídio qualificado, prevista pelo artigo 132.º n.º 2 al) h e j do C.P. no que tange à forma deliberada e intenção de matar.

F) Razão pelo qual e salvo devido respeito por opinião contrária, a presente sentença é nula nos termos dos disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal. Mesmo que assim não se entenda o que por mero dever de patrocínio se concede, padece a presente sentença de falta de fundamentação do Tribunal nomeadamente dos artigos 97º, nº 5, 283º, 361º, todos do Código de Processo Penal e do disposto no artigo 32 ° n°1 e 5 e 205 ° n ° 1, da Constituição da Republica Portuguesa. Em forma de síntese, pode dizer-se que a comunicação feita pelo Tribunal ao arguido, da alteração não substancial dos factos, não observou o legalmente exigido quanto à sua fundamentação, que no caso se traduz na explicitação ou concretização dos factos e meios de prova indiciários, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no Artº 61º, nº 1, alínea c) e 358º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, violador, pois, dos direitos de defesa e do princípio do contraditório.

G) Em qualquer caso, suscita-se, desde já, expressamente o respectivo incidente de inconstitucionalidade da presente decisão deste Tribunal em comunicar ao arguido a alteração não substancial dos factos, tais com os apresenta, viola, de forma grosseira o disposto no Artº 163° do Código de Processo Penal e bem assim o disposto nos Artºs 32° da Constituição da República Portuguesa na interpretação que é dada ou tenha sido dada à norma do Artº 27°, do Código de Processo Penal, a violação do princípio acusatório (artigo 32º, nº 5 da CRP), a violação do direito a um processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da CRP), bem como a proibição do princípio “ne bis in idem” (artigo 29º, nº 5 da CRP);

H) Nesta medida, pode afirmar-se e concluir-se que a previsível condenação do arguido, pelos factos que não integravam a acusação, constitui a nulidade do Artº 379º, nº 1, alínea b), do CPP, o que, desde já, se alega. Pelo que ao ter decidido como decidiu, violou o Tribunal a quo, entre outros, o disposto nos artigos61.º n.º 1 alínea c), 97.º n.º 5, 163.º, 283.º, 358.º, 361 379.º n.º 1 alínea b), do Código de Processo Penal. Assim deve ser declarada a nulidade da sentença, devendo em consequência ser reaberta a audiência para suprimento dos vícios supra mencionados.

I) No que diz respeito à matéria de fato dada como provada e no que se refere ao crime de homicídio, impugna o recorrente os fatos elencados sob os nºs 4,5,6,8,9,15 uma vez que não poderiam mesmos ter sido dados como provados face à prova produzida, carecendo assim de qualquer fundamento probatório.

J) Para prova dos Factos 4, 5, socorre-se o Tribunal de Relatório Técnico Pericial elaborado pelo Instituto de Engenharia Mecânica constante de fls. 837 a 904 dos presentes autos, relatório realizado com base numa simulação computacional foi feita sem ter por base o mesmo modelo da viatura objeto nos presentes autos, veja-se relatório IST, pagina 53:”na fig 62 apresenta-se o modelo do veículo ligeiro de passageiros Mini Cooper 1300 utilizado na simulação computacional, tratando-se do único modelo compatível com o modelo e ano do veículo em questão”, não tendo ainda em conta, condicionantes como a intervenção humana, estando assim o resultado obtido claramente viciado e condicionado. Desconsiderando a referida sentença o depoimento da Testemunha Dr.º K.... , professor de Física da Universidade de Coimbra, no dia 18-06-2015, tendo o seu início em 09:51:54 horas e o seu termo às 11:56:43 horas, constante do ficheiro 201506180953_2300089_2870710.wpa, minutos 01:05:17 a 01:06:06. Não resultando do referido depoimento que os referidos impactos tenham sido causados por intenção do arguido, uma vez que os mesmos poderiam ter ocorrido por outros fatores, designadamente de qualquer outra intervenção quer fosse a mesma acidental, ou provocada.

K) Por outro lado desconsiderou a presente sentença o Relatório Final do Destacamento de Transito de Coimbra – Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação, no qual se conclui: Assim e para ter uma explicação plausível para a produção do acidente é a da possibilidade de uma ação deliberada para que o mesmo acontecesse, não descurando a possibilidade de o arguido e a vítima mortal estarem a discutir no momento dos factos. Veja-se neste sentido depoimento da testemunha P... , Inspector da Policia Judiciária, na audiência de Julgamento registado no cd de gravação digital disponível no sistema habilus, com inicio às 15:30 horas e fim às 16:30 horas, constante do ficheiro 20150514153239_2300089_2870710.wma, Minuto 00.27.04 ao 00.28.15.

L) Já no que se refere ao fato n.º 8Concluindo na sua apreciação da prova que: “em suma, deparamos com um embate desejado – e nos moldes em que o foi - pelo arguido condutor do veículo DX, o que nos remete de imediato para um outro ponto de análise absolutamente incontornável: o da atitude comportamental do arguido após o embate”, para fundamentar que o mesmo tenha “sido premeditado/provocado” por este dada a atitude que o mesmo teve após o acidente. No entanto, a ausência da falta de chamada de socorro, bem como a fuga do local a pé podem claramente indiciar outras causas designadamente susto do arguido na sequência do acidente de que foi vitima, não nos podendo esquecer do deflagrar do incêndio, resultando para este queimaduras a vários níveis (mãos, peito, cara e lóbulo auricular direito), não compatíveis com a forma de deflagração constante do Acórdão. Isto é, face à localização das queimaduras no arguido, é, sem dúvida, mais credível que o incêndio tenha deflagrado e propagado com o arguido no interior do Mini, e não de forma voluntária e do exterior da viatura.

M) Pelo que, a atitude comportamental do arguido após o incidente/ acidente a nosso ver, pode por si só resultar da sua personalidade perante situações extremas e imprevistas, e não da sua intervenção no suceder dos referidos factos, orquestrar um acidente, e posteriormente um incêndio. Veja-se neste sentido relatório emitido pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, Delegação do Centro, Serviço de Clínica Forense, Psicologia Forense (relatório fls 775 e ss), no ponto 3.2: fls Incorrendo quanto a este concreto ponto incorre a douta sentença em erro notório na apreciação da prova, bem como insuficiência da referida prova, produzida para a prolação de tal fato como provado nos termos do disposto artigo 410.º n.º 2 alíneas a) e c) do CPP.

N) Ponto 9 facto provado: Tal facto, esta em clara oposição com a prova efetivamente produzida, razão pela qual não podia o mesmo ser considerado provado, sendo certo que não resultou a mínima prova quer pericial quer testemunhal de que o arguido teria sido ele quem deflagrou o incêndio.

O) É reconhecido pela presente sentença que: “é certo que do relatório de fls 420 a 428 dos presentes autos, elaborado pelo Laboratório da Policia Cientifica da Policia Judiciaria, decorre não ter sido possível determinar, por via pericial, o inicio e as exactas características do apontado incêndio, designadamente o ter surgido por causa do embate na árvore e começado na zona do motor, daí derivando para a parte traseira. Mas do relatório final elaborado pela PJ resulta a conclusão de que: face à elevada destruição dos materiais, associada à deslocalização do veículo do local do incêndio e a grande homogeneidade dos vestígios presentes no veiculo, não foi possível inferir o local exacto da eclosão/propagação do incêndio em análise…

P) Decorrendo do depoimento das testemunhas que mesmo poderá ter sido gerado na sequência do embate da viatura na árvore, Depoimento Dr. K... minuto 33:56 a 35:15 m, ou do “raspar” da parte inferior da viatura nas pedras existentes no caminho, gerando faísca e consequentemente o incêndio, ou, até, pelo facto de naquela viatura os elementos do carburador (combustível) e parte elétrica (alternador e motor de arranque), se encontrarem juntos. Minuto: 14:09 ao 17:30 minutos. E ainda do depoimento do Inspetor da Polícia Judiciária, P... , minutos 00:27:04 a 00:28:15, 00:44:38 a 00:48:53 e 00:49:43 a 00:50:44.

Q) Sendo que e atendo-nos ainda nos relatórios da Policia Judiciaria (fls 329 a 343 e 420 a 428), consta: não ter sido possível determinar o sentido da propagação das chamas, não podendo deixar de considerar que os vestígios presentes no exterior do veículo permitiriam concluir que este terá sido um incêndio com uma progressão rápida. No mesmo sentido a testemunha K... : Minuto 19 ao minuto 20:21

R) Os relatórios elaborados pela Polícia Judiciária quanto à matéria do incêndio, fls 329 a 343 e 420 a 428, corroborados em julgamento pelo respetivo Inspetor e responsável pelo relatório, P... e pelo Prof. K... , são inequívocos no que tange às diversas possibilidades credíveis e reais da eclosão do incêndio (embate na árvore, faísca na passagem do veículo pelo talude e monte de pedras que antecedem a árvore, curto circuito motivado pelos embates, atento a que no “Mini”, o carburador e os componentes elétricos se encontram muito próximos, isto é, praticamente juntos). Neste sentido, também a informação do relatório da PJ, fls 423, da qual resulta que o apoio do motor terá sido arrancado com o embate no talude de terra e pedras e que quanto ao incêndio de progressão rápida não foi possível determinar o sentido de propagação das chamas (fls 427), tendo as mesmas o seu início na zona do motor, mais exatamente no carburador e que terá acontecido após o embate na árvore, estando excluída a possibilidade de o incêndio ter tido o seu início no habitáculo, fls 303 e 339 (Relatório final da PJ que concluiu fls 343, pela prática pelo arguido de um crime de homicídio por negligência p.e.p. pelo artigo 137º, nº 2 e de um crime de omissão de auxílio, p.e.p. pelo artigo 200º, nº 2 do mesmo Diploma legal).

S) O que mais uma vez no encaminha para o fato totalmente desconsiderado na presente sentença de que, o arguido foi vitima do referido incêndio e que perante tal situação a sua atitude imediata e irrefletida foi fugir, fugir das chamas, fugir do perigo. Não podendo deixar de considerar aqui o referido pelo Instituto de Medicina Legal quando chamado a apreciar a personalidade do arguido, concluindo o mesmo que: “Aparenta ser um indivíduo pessimista, com falta de estratégias para resolver problemas que possam surgir de forma imprevista.” (fls 775 e ss). Face ao deflagrar imediato do incêndio, o arguido apenas teve tempo de abrir a porta da viatura e sair, sendo certo que qualquer tentativa para daí retirar a C... em chamas, conduziria, tão só, a que o próprio arguido, já queimado nas mãos e lóbulos auriculares, ali viesse, também a ficar imolado pelo fogo.

T) Sendo certo, que da prova decorrente, designadamente dos testemunhos supra referidos, bem como das perícias efectuadas quer aos materiais quer ao vestuário do arguido, não se pode concluir a sua intervenção na perpetração do referido incêndio. Neste sentido veja-se exame laboratorial realizado pela Policia Judiciária, folhas 261, 262, 263, no qual se conclui que nenhum dos artigos de vestuário apreendidos apresentava sinais de carbonização nem foi detectada a presença de qualquer acelerante de combustão.

U) Resulta dos fatos provados que quer arguido, quer a vítima C... detinham relações de natureza afetiva com outras pessoas, no entanto isto por si só não evidencia sem mais a falta de sentimento ou denote por si só a rutura do casal. Não tendo sido referido por qualquer testemunha que relacionamento fosse por qualquer forma violento, maus-tratos ou de outra ordem. Por outro lado, a existência de seguro de vida realizado no ano de 2007 beneficiando o arguido evidencia assim a existência de relação afetiva entre as partes, que viveram juntas e que apenas por questões de cariz familiar e profissional deixaram de ter comunhão de mesa e habitação. Sendo que o fato de não residirem juntos mais uma vez não demonstra por si só a ruptura do casal, mas sim como foi relatado pelas testemunhas em virtude de mesmo se encontrar trabalhar fora e em virtude de os pais da vítima necessitarem do apoio desta. Arguido e vítima namoraram durante sete anos, viveram maritalmente até um ano e meio antes do acidente, tendo a C... , naquela data, regressado à casa dos pais para companhia da mãe, uma vez que, durante a semana o A... estava a trabalhar em Mafra e o pai da C... se encontrava no Brasil em trabalho profissional.

V) Ponto 15 dos factos provados, Relativamente a este ponto mais uma vez insurge-se a defesa contra este fato dado como provado, uma vez que e como resulta da prova pericial produzida, a morte de C... deve-se à inalação de gases quentes…. Estando esta conclusão descrita no ponto 13 dos factos provados, ora e cumulando a referida conclusão com o facto de não se ter provado a origem do incêndio, uma vez que não foi feita prova nesse sentido. Aliás dos depoimentos recolhidos, designadamente testemunha P... (minutos 00:27:04 a 00:28:15) e testemunha K... (minutos 00:33:56 a 00:35:15, 00:14:09 a 00:17:30, 00:19:00 a 00:20:21 e 00:41:14 a 00:41:51), bem como dos relatórios periciais fls 329 a 343 e 420 a 428, juntos aos autos o incêndio pode ocorrer quer no decurso do trajeto do carro sobre o talude de pedras, quer na sequência do próprio embate, ou ainda decorrente do facto de os elementos elétricos e combustível se encontrarem muito próximos no motor do Mini. 

W) Da experiência comum, da materialidade objetivamente observada, designadamente no que ao incêndio se refere, designadamente não existir nos autos qualquer fato que consubstancie o deflagrar do incêndio como resultado da sua atuação, ou omissão haveria que lançar mão do principio “in dubio pro reo”, pelo que, deveria este fato ter sido considerado como não provado.

X) Impugna-se também a materialidade constante de pontos, 30, 31, 32, 33 dos autos, uma vez que e dada a prova produzida designadamente a resultante do depoimento das testemunhas em sede de audiência de Julgamento, deveria ter sido outra a decisão proferida devendo tais fatos na verdade sido considerado não provados, atendendo desde logo a todo o circunstancialismo em que mesmo sucedeu, designadamente o ambiente hostil em que tais factos alegadamente sucederam, bem como nas incongruências resultantes dos depoimentos quer da ofendida, quer das testemunhas por si carreadas, que nada ouviram, e se limitaram a afirmar que referida ameaça se materializou numa leitura labial ao recorrente. Ora muito se estranha que três pessoas tivessem, já que nada ouviram a olhar exatamente ao mesmo tempo para” a boca do arguido” e conseguissem depreender a pronúncia de uma ameaça…

Y) Assim foi indevidamente descurado pela douta sentença depoimento imparcial e isento de M... , constante de ficheiro áudio 20150618120335_2300089_2870710.wma. que teve seu início pelas 12:03 horas e seu termo pelas 12:06 m. Designadamente aos minutos 01:03 a 01:45, 01:59 a 02:20;para assim dar como assente o resultante de depoimentos das testemunhas F... , G... , H... , todas irmãs e primas da falecida, estando seus depoimentos cheios de incongruências e contradições, neste sentido, respectivamente: Depoimento de G... , gravação digital disponível no “habilus” com inicio às 17 horas e 20 minutos e fim às 17 horas e 25 minutos, constante de ficheiro n.º 20150611175718_2300089_2870710. Wma, Minuto 4:55 a 5.03; Veja-se depoimento de F... gravação digital disponível do habilus, constante de ficheiro n.º 20150611172430_2300089_2870710.wma, com inicio às 17h 25 minutos e fim às 18 horas, Minuto 30:17 a 30:33;

Z) Foi o recorrente condenado pelo crime de homicídio p. e p. nos termos artigo 131º do C.P, na pena de 12 anos de prisão, sem que para tanto dispusesse o Tribunal de meios de prova que pudessem formar a convicção, onde se devia ter partido de uma presunção de inocência e não de culpabilidade. Alicerçando a decisão a sua convicção em presunções judiciais, por meio de impressões ou conjecturas de difícil objectivação, incorrendo em erro notório na apreciação da prova, tendo sido dados como provados actos fora do âmbito de enquadramento factual da própria acusação, entendendo o Tribunal, ao contrário do que resultava da acusação pública, que o ora recorrente praticou todo um conjunto de actos com fim ultimo de produzir a morte de C... .

AA) Assim decidiu o Tribunal condenar recorrente por um crime de homicídio por ação, sem que da prova produzida exista qualquer fato que impute ao arguido o deflagrar do incêndio, ou qualquer outra ação apta a produzir o referido resultado, uma vez que e conforme resulta da prova produzida a causa de morte é a inalação de gases quentes, na sequência de um incêndio que conforme é reconhecido em sentença não se apurou como o mesmo foi gerado, com efeito não se conseguindo concretizar objectivamente a causa do incêndio e face às diversas possibilidades elencadas quer pelos peritos, quer pelas testemunhas não se pode concluir que a conduta do arguido preencha a previsão do artigo 131.º, no caso homicídio por ação, por não ter sido produzida qualquer prova donde resulte que mesmo teve atuação com intenção de produzir resultado morte.

BB) Pelo que, consideramos que houve erro de julgamento ao considerar verificada a consumação de crime de homicídio por ação quando na realidade o mesmo deveria ter sido considerado por omissão. O que nos leva a repensar outro ponto, se poderia ter recorrente ao agir ter evitado o resultado, poder-lhe-ia ser exigível outro comportamento? Entende a defesa que não, que face as lesões e queimaduras do recorrente e consideradas provadas e resultantes do incêndio, o mesmo fugiu, com o propósito de salvar a sua vida/ sua integridade física, para assim afastar um perigo atual para a sua integridade física, sem no entanto com isto querer produzir o resultado morte da vitima C... . Desta forma violou a sentença o artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa (Princípio in dúbio pro réu), bem como os artigos 97.º, n.º 5, 127.º, 340.º todos do C.P.P. Sendo que, e atendendo a personalidade traçada em relatório medico legal, ficou demonstrado a vulnerabilidade do arguido perante situações de stress, referindo-se claramente a sua falta de atuação perante estas situações. Por conseguinte, poderia assim estar verificada uma situação de estado de necessidade desculpante nos termos previstos no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal.

CC) Por todo o exposto deve o arguido ser absolvido da pena constante na sentença recorrida, e mesmo que assim não se entenda, deverá ser enquadrados os factos praticados pelo recorrente em crime de homicídio por omissão, verificando-se quanto a este ilícito a exclusão da culpa dado o estado de necessidade desculpante, proclamando-se assim a sua absolvição.

DD) Aplicando ao caso concreto temos que existe uma valoração não adequada sobre o exame crítico das provas e da prova existente dos autos – documental, pericial e testemunhal, produzida em audiência de discussão e julgamento que conduza à condenação do arguido A... , como autor material de um crime de homicídio, p. e p. no art. 131º C.P., na pena de 12 (doze) anos de prisão; na sua condenação como autor material de um crime de ameaça, p. e p. nos arts. 153º/n.º 1 e 155º/n.º 1-a) C.P., na pena de 10 (dez) meses de prisão e operando-se o cúmulo jurídico pertinente, de acordo com os critérios previstos nos arts. 30º/n.º 1 e 77º/nºs 1 e 2 C.P. (tomando-se em conta, em conjunto, os factos e a violenta personalidade revelada pelo mesmo), condenar o arguido na pena única de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses de prisão, o que determina a sua absolvição.

EE) O Artº 127º do CPP dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, consagrando-se o princípio já antes aceite e expresso no CPC da livre apreciação da prova, mas para além da enumeração das razões de facto e de direito, a sentença, nos termos do Artº 374º, nº 2, do CPP, reclama do juiz o exame crítico das provas, que é a sua descrição e o juízo de valor que elas oferecem em termos de suporte decisório, ou seja a crítica porque umas merecem credibilidade e outras não, impondo que o juiz indique todas as provas, a favor ou contra, que constituam a decisão e diga as razões pelas quais não atendeu às provas contrárias à decisão tomada”. Cfr por todos – Ac. do STJ, de 31-10-2007, Processo nº 3280/07, 3ª Secção;

FF) A livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova e que neste caso, não aconteceu.

GG) No que se refere ao crime de ameaças agravado, pelo qual foi arguido condenado na pena de 10 meses de prisão, não pode a defesa aceitar tal condenação padecendo a sentença de erro notório na apreciação da prova, violação do principio “in dúbio pro réu”, na medida em que assenta a sentença em juízos que assentam em critérios em que não existe certeza jurídica uma vez que, como pode condenar-se alguém quando do depoimento testemunhal, única prova produzida nos autos, não resulta a imputação ao recorrente, “não ouviu o recorrente proferir qualquer expressão hostil, mas mero registo labial”, razão pelo qual deveria o mesmo quanto a este crime ser absolvido.

HH) Mesmo que assim não se entenda o que por mero dever de patrocínio se concede, entende-se desajustada e excessiva a pena de prisão aplicada na medida em que, arguido é primário, preenchendo assim todos os requisitos para que lhe fosse aplicada pena de multa, ou suspender a pena de prisão na sua execução, sendo certo que dado o tempo decorrido da pratica do crime (2011), até presente data as necessidades de prevenção geral e especial são diminutas, não existindo qualquer fato que justifique a necessidade de pena de prisão, assim violou a sentença as normas constantes de artigos, 50.º, 51.º, 52.º 70.º, 71.º todos do Código Penal.

II) Violou pois o douto acórdão recorrido as normas constantes dos Artigos 30º, nº 1, 35º, 50º, 51º, 53º e 54º, 70º, 71º, nº 1 e 2, 72º, 73º, 131º, 132º, al. h) e j)137º, nº 2, 153º, nº 1, 154º, 155º, nº 1, al. c) e 200º, nº 2 do Código Penal, Artigos 1º, al. f), 27º, 61º, nº 1, al. c), 97º, nº 5, 127º, 163º, 283º, nº 3 e 287º, nº 2, 313º, 340º, 358º, nº 1 e 3, 359º, nº 1, 2 e 3, 361º, 374º, 379º, nº 1 al. b) e 410º, nº 2, al. a) e c) do Código de Processo Penal e Artigos 20º, nº 4, 29º, nº 5, 32º, nºs 1 e 5 e 205º, nº 1 da CRP.

TERMOS EM QUE, E NOS MELHORES DE DIREITO,

a) Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido e substituindo-o por outro, decretando-se a nulidade da acta de fls. 1190/1191v e douto despacho de fls., da comunicação de alteração não substancial dos factos, não devendo, nem podendo, vir a ser considerado na sentença final. – cfr. Acta de 16.07.2015 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015.

b) Deverá o Tribunal da Relação proceder à alteração da matéria de facto dada como provada, requalificação jurídica dos factos praticados e da medida da pena aplicada, com repercussão nos pedidos de indemnização cível, alterando-se a resposta à matéria de facto nos moldes defendidos no presente recurso, com repercussões, igualmente na matéria de direito, absolvendo-se o ora recorrente em conformidade.

c) Assim, não se entendendo, deverá ser decretada a nulidade do Acórdão/Sentença e em consequência, ser ordenada a repetição da Audiência de Discussão e Julgamento, nos termos do despacho de Acusação e pronúncia constantes dos autos, sem a alteração promovida pelo Tribunal em 16.07.2015, ao abrigo do artigo 358º, nº 1 do CPP, isto é, nos precisos termos dos referidos libelos acusatórios, mantendo-se o elemento volitivo aí constante de dolo eventual.

O recorrente juntou parecer, emitido por um Ilustre Prof. Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, concluindo nos seguintes termos:

«17. A serem pertinentes, como se nos afigura, as considerações que deixamos expandidas permitem-nos concluir com segurança:

            a) A alteração dos factos operada pelo Tribunal e comunicada na sessão de 16 de Julho de 2015 corresponde à substituição de factos subsumíveis no Homicídio simples (artigo 131º do Código penal) por factos que preenchem integralmente a factualidade típica do Homicídio qualificado (artigo 132º do Código Penal). Resultou, assim, numa alteração substancial dos factos nos termos da al. f) do artigo 1º do Código de Processo Penal.

            b) O tribunal condenou o arguido A... “por factos diversos dos descritos na acusação”, só podendo ter como consequência a nulidade do acórdão, nos termos da al. b) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.

            c) Na falta de provas directas, o Tribunal recorreu a provas indirectas ou indiciárias para suportar a prova dos factos nucleares sobre que assenta a condenação do arguido A... . Só que nenhuma das provas indirectas convocadas e utilizadas detém, só por si ou conjugada com os demais meios probatórios disponíveis no processo, o peso indiciário e probatório bastante para assegurar a prova dos factos à margem de toda a dúvida razoável.

            d) Apesar disso, o Tribunal deu os factos como provados. Tal só foi possível à custa de frontal e irremível violação do imperativo constitucional in dubio pro reo, valorando sistematicamente contra reum as consideráveis manchas de dúvida que a produção prova deixou subsistir. É forçoso, por isso, dar esses factos como não provados.

            e) Tal vale, entre outros, para os factos seguintes: o carácter doloso das manobras e acções desde a entrada na curva até ao embate na árvore; o incêndio foi desencadeado pelo arguido depois de ele já ter abandonado o automóvel; o arguido desencadeou o incêndio com a finalidade de causar a morte da vítima

            A este recurso respondeu o assistente José Gonçalves Castro, concluindo nos seguintes termos:

A) A alteração da matéria de facto deliberada pelo Tribunal recorrido tem de considerar-se não substancial porque tem relevo para a decisão da causa, porque foi comunicada ao arguido, porque lhe foi concedido o direito de defesa quanto à mesma e porque não cai na definição de alteração substancial dos factos da acusação ou pronúncia;

B) Tal decisão recorrida não sofre de qualquer nulidade, nem de qualquer inconstitucionalidade, tendo sido assegurado ao arguido o respetivo direito de defesa e de contraditório;

C) O Tribunal recorrido fez uma análise livre, criteriosa e pormenorizada de todos os elementos probatórios arrolados nos autos;

D) Por isso, não há fundamento para alterar a factualidade inserta nos pontos 4, 5, 6, 8, 9 e 15 da fundamentação de facto, não se verificando qualquer nulidade; 

E) O douto acórdão recorrido faz uma correta aplicação e interpretação, entre outros, dos normativos insertos nos artigos 358.º, 125.º, 126.º e 127.º, todos do Código Processo Penal, e artigo 131.º, Código Penal;

Nestes termos e nos demais de direito, cujo douto suprimento se invoca, deve negar-se provimento ao e recurso, mantendo-se a decisão recorrida, por ser de Lei e de Justiça.

Também o MP em primeira instância respondeu, concluindo nos seguintes termos:

1 - Alteração não substancial de factos é aquela que, representando uma modificação dos factos acusados ou constantes da pronúncia, não tem por efeito a aplicação de um crime diverso nem a elevação das penas aplicáveis.
            2 – Sendo esta a situação que se verifica indiscutivelmente nos autos, já que o arguido, apesar da alteração verificada e comunicada, vieram a sofrer condenação pelo crime de que vinham acusados e não por qualquer outro.

            3 – Quanto à falta de fundamentação, confrontação entre a prova testemunhal produzida e erro notório na apreciação da prova também não deverá proceder a pretensão do recorrente.

            4 – O recorrente reporta-se aos depoimentos de algumas testemunhas com base nos quais pretende extrair de certas referências e depoimentos conclusões diferentes, sem que relacionem essas provas com determinados factos em concreto e, sobretudo, com os factos no seu conjunto.

            5 – Por sua vez, analisado tudo quanto se deixa expresso na fundamentação do acórdão, mormente quanto à valoração da prova documental e depoimento das testemunhas em causa, conjugadas com a restante prova, carecem de fundamento as pretensões quanto a tal formuladas.

  6 – Erro notório é o erro ostensivo, de tal modo evidente, que não passa despercebido ao comum dos observadores ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta. 
7 – Trata-se de uma falha grosseira e ostensiva, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis.
8 – Só existindo quando a convicção do julgador for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum, devendo tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
9 – Não se verificando o mesmo quando a convicção do julgador é plausível, ou possível, embora pudesse ter sido outra.
10 – A apreciação da prova tem de específico a superação da incerteza de um facto controverso, através do julgamento, ou seja, da formação de uma convicção de certeza, segundo regras previamente estabelecidas, de respeito pelo contraditório, imediação, oralidade e pública discussão da causa.
 11 – Quando o julgador, em audiência de discussão e julgamento, ultrapassa o estado de incerteza ou de dúvida, a convicção assim formada, desde que obtida através de procedimentos cognoscitivos plausíveis e possíveis, é sempre válida, atento o disposto no art.º 127.º do C.P.P.

12 –No que concerne à violação do princípio da livre apreciação da prova, com a invocação da violação deste princípio, o que verdadeiramente pretende o recorrente é que o tribunal assente a sua convicção da mesma forma que o fez.

         13 – No entanto, a apreciação livre da prova tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas á sua experiência e prudência, guiando-se por fatores de probabilidade e nunca certezas absolutas, estas intangíveis, nunca entendida num sentido arbítrio, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objetiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento.

           14 - Tudo de forma a que uma resposta dada a determinado facto seja um reflexo e reflita o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade.

                                                                      

          15 - Como se deixa consignado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 116/96 de 19 de Novembro “a regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e controlo”.

                                                                      

         16 – Ou como refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal), “este princípio…significa que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base apenas num juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo…”

 17 – Pelo que esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto e contra a dúvida, nem a previsão com base na verosimilhança ou probabilidade mas antes a conformação intelectual do conhecimento do facto com a certeza da verdade alcançada.

              18 – Não podendo, consequentemente, a censura da forma de formação da convicção do tribunal assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação da convicção, como o faz o recorrente, isto é, na valoração da prova, antes tendo tal censura que assentar em qualquer dos passos para a formação da convicção, o que não acontece no caso em apreço.

              19 – Resultando da análise do acórdão recorrido que as provas produzidas em sede de audiência de julgamento se encontram corretamente apreciadas pelo Tribunal “a quo” e conduzem à matéria de facto fixada no acórdão.

  20 – Destarte não subsistindo qualquer dúvida, muito menos razoável, como os factos ocorreram, não se justificando, como tal, a aplicação do princípio do “in dúbio pro reo” invocado.
              21 – Quanto à escolha da pena e medida desta, também de improceder se torna a pretensão do recorrente.

              22 – Importa realçar que, de acordo com o disposto no art. 40.º, do Código Penal, «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

              23 – Abstratamente a pena é definida em função da culpa e da prevenção, intervindo, ainda, circunstâncias que não fazendo parte do tipo, atenuam ou agravam a responsabilidade do agente - art. 71.º, n.ºs 1 e 2 do CP.

24 – A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspetos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

25 – O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que, social e normativamente, se imponham.

26 – O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

27 – Ao definir a pena o julgador nunca pode eximir-se a uma compreensão da personalidade do arguido, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a desconformação com a personalidade suposta pela ordem jurídico-penal, exprimindo a medida dessa desconformação a medida da censura pessoal do agente, e, assim, o critério essencial da medida da pena.

28 – No caso dos autos, existem razões para condenar o arguido em penas de prisão, já que os factos são reveladores de personalidade daquele que demanda a sua condenação em penas de prisão.

29 – No que ao seu quantitativo diz respeito, há que considerar que as necessidades de prevenção geral, neste tipo de crimes são elevadas, o que significa que o limite mínimo irrenunciável haverá de ser substancialmente superior ao legal.

30 - Partindo daí, há que considerar o grau elevado da ilicitude, esta patente pelo tipo de atos praticados e o grau de relevância destes e ao nível da culpa

31 – Ora da análise do douto acórdão, concluímos que o Tribunal “a quo” levou em consideração tudo quanto o exposto tanto relativamente à escolha das penas, quanto à determinação da medida concreta daquelas, não merecendo por isso qualquer reparo.
             Termos em que deve manter-se incólume o acórdão recorrido, assim se negando provimento ao recurso.

Também a demandada J... antevendo a possibilidade de alteração da decisão cível proferida, respondeu.

Nesta Relação, o Ex.mo PGA emitiu o seu douto parecer, concluindo pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

FACTOS PROVADOS:

1 – o arguido mantinha desde algum tempo antes uma relação de namoro com C... ;

2 – no dia 1 de Maio de 2008, cerca da 1 hora e 30 minutos, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula DX (...) , na Estrada Municipal n.º 584, no sentido Portunhos-Outil, área do concelho de Cantanhede;

3 – ao lado do arguido, no banco direito da frente, seguia a referida C... ;

4 – ao descrever uma ligeira curva à direita, atento o apontado sentido Portunhos-Outil, e em zona ladeada apenas por terrenos agrícolas e florestais (sem qualquer casa de habitação ou outra construção similar nas imediações), o arguido manobrou o veículo DX de modo a invadir a via contrária e colidir nas guardas de protecção laterais do lado esquerdo;

5 – depois, o arguido fez com que o automóvel DX descrevesse uma trajectória oblíqua relativamente ao traçado longitudinal da via, derivando para a direita e indo colidir com as guardas laterais de segurança desse lado, atento sempre o sentido Portunhos-Outil;

6 – logo após, voltou a obliquar à esquerda, uma vez mais atento o apontado sentido Portunhos-Outil, e, reduzindo a velocidade, saiu da via, propositadamente utilizando para o efeito um caminho de terra batida que dá acesso a terrenos agrícolas;

7 – o caminho acabado de aludir é dotado de uma inclinação acentuada e revestido de pedras de algum porte do seu lado direito, onde existe também um desnível aparentado com uma ravina mas de pequenas dimensões;

8 – percorrendo, descendo-os, os primeiros 10 metros, aproximadamente, do ora mencionado caminho, o arguido fez então com que o veículo DX embatesse em uma árvore de médio porte ali existente, fronteira ao lado direito do caminho, atento o sentido tomado pelo aludido veículo;

9 – imediatamente após o embate, e estando a C... no seu interior, o arguido saiu do automóvel, gerando, de modo não concretamente apurado, o incêndio de tal veículo, sendo ainda atingido por algumas labaredas no peito, nas mãos e na cara;

10 – de seguida, e continuando a C... no interior do veículo DX, o arguido abandonou o local a pé, dirigindo-se para sua casa;

11 – já em casa, deitou-se sem contar o sucedido a quem quer que fosse;

12 – o arguido veio igualmente a fazer desaparecer o telefone móvel da C... ;

13 – como consequência do incêndio gerado no veículo DX, a C... veio a inalar gases quentes, sendo também carbonizada, tudo constituindo causa directa e necessária da sua morte;

14 – cerca das 16 horas e 20 minutos do referido dia 1 de Maio de 2008, o arguido dirigiu-se aos Hospitais da Universidade de Coimbra para tratar das queimaduras que apresentava nas mãos e no lóbulo da orelha direita, argumentando que tinham sido provocadas por óleo alimentar a ferver;

15 – ao agir da forma descrita, o arguido fê-lo de modo livre, deliberado e consciente, pretendendo causar, como causou, a morte da C... ;

16 – mais agiu com a noção de incorrer em factualidade prevista e punida pela lei penal;

17 – no ano de 2007, a C... havia celebrado dois contratos de seguro, do “ramo vida”, cujo beneficiário, em caso de morte daquela, seria o arguido;

18 – não obstante a relação de namoro que mantinha com a C... à data da ocorrência dos factos ora relatados, o arguido tivera, durante o mencionado período de namoro, alguns envolvimentos amorosos com outras mulheres;

19 – por outro lado, à data da sua morte, e não obstante a referida relação de namoro com o arguido, a C... mantinha, e desde algum tempo antes, um interesse afectivo por outra pessoa;

20 – a C... era filha dos assistentes e demandantes D... e de E... , e nascera em 26 de Agosto de 1985;

21 – era solteira e não tinha descendentes;

22 – a C... faleceu intestada e sem deixar qualquer disposição de última vontade;

23 – frequentou o ensino até ao 10º ano de escolaridade, abandonando então os estudos;

24 – à data da sua morte, trabalhava como empregada de um estabelecimento comercial de pronto-a-vestir, em Coimbra, auferindo o salário mensal líquido de € 456,09;

25 – morava com os seus pais e ora assistentes e demandantes, a quem – e não obstante trabalhar o assistente, em termos estáveis, como calceteiro – auxiliava também do ponto de vista económico, contribuindo mensalmente com quantias não concretamente apuradas, destinadas ao auxílio da economia doméstica;

26 – a C... desenvolvia com os seus pais e restante família uma ligação afectiva muito próxima;

27 – a morte da C... , ainda para mais nas circunstâncias em que ocorreu, constituiu para os demandantes um choque e provocou-lhes um sentimento de enorme perda e abalo psíquico, tudo os fazendo sofrer;

28 – a C... era uma pessoa saudável e normalmente alegre;

29 – mantinha relações de amizade próxima com algumas pessoas da sua faixa etária;

30 – no dia 3 de Maio de 2011, pelas 10 horas e 50 minutos, no átrio do Tribunal Judicial de Cantanhede, sito na Rua dos Bombeiros Voluntários, em Cantanhede, e por ocasião do adiamento de uma audiência de discussão e julgamento agendada no âmbito dos presentes autos principais, o arguido, dirigindo-se à queixosa F... (prima e madrinha da falecida C... ), e em tom de voz muito baixo, de modo a não ser ouvido por terceiros mas a ser perceptível pela queixosa, disse-lhe “Eu mato-te!”;

31 – atenta a seriedade da expressão que lhe foi dirigida, a queixosa receou que o arguido pudesse atentar contra a sua vida;

32 – o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as palavras por si dirigidas à queixosa eram aptas a poder fazê-la temer que viesse a atentar contra a sua vida, o que quis e conseguiu;

33 – mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal;

34 – o arguido é o mais novo de quatro filhos;

35 – estudou até ao 10º ano de escolaridade, vindo então a desistir de estudar para ingressar no mundo laboral;

36 – trabalha actualmente como canalizador por conta de outrem, auferindo cerca de € 800 mensais;

37 – vive com a sua mãe, tendo o seu pai já falecido;

38 – é tido, junto de diversas pessoas que consigo privam, por pessoa trabalhadora;

39 – tem uma relação de namoro desde há cerca de cinco anos atrás;

40 – passa por períodos de alguma instabilidade psicológica e emocional;

41 – não tem antecedentes criminais.

Não se apurou que:

- imediatamente com o embate do DX na árvore acima referida no ponto 8 (da matéria assente) se haja tal veículo incendiado, estando o arguido ainda no seu interior;

- teve a C... consciência, antes de ser consumida pelas chamas, de que iria perecer;

- os quantitativos mensais supra aludidos no ponto 25 (da factualidade provada) fossem no valor de € 150.

            Analisadas as conclusões que o recorrente retira da respectiva motivação, logo se constata que são as seguintes as questões que, através delas, coloca à nossa apreciação.

I – A questão da alteração dos factos.

II – A impugnação da matéria de facto dada como provada em 4, 5, 6, 8, 9 e 15.

III – A impugnação da matéria de facto dada como provada em 30 a 33.

IV – O vício de erro notório na apreciação da prova.

V – A questão da violação do princípio in dubio pro reo.

VI – A questão da situação de estado de necessidade desculpante.

VII – A questão da medida da pena/aplicação de uma pena de multa/suspensão da execução da prisão.

A QUESTÃO DA ALTERAÇÃO DOS FACTOS.

            Na sessão do julgamento que teve lugar no dia 16 de Julho de 2015, o Ex.mo Juiz Presidente ditou para a acta um despacho do seguinte teor:

Depois de realizada a audiência de discussão e julgamento, atendendo à produção de prova que na mesma decorreu, entende o Coletivo, e salvo o devido respeito pelo teor estrito da acusação pública, justificar-se, em uma certa compreensão das coisas, que alguns elementos factuais referentes ao episódio em juízo devam ser alterados.

Na perspetiva do Tribunal, lidamos com uma alteração não substancial de factos, é certo, mas que, em todo o caso, se perfila como mais consentânea, quer com o que se passou na audiência de discussão e julgamento, quer com o que tem que ver com a qualificação jurídica dos factos.

Concretizando, o que acaba de ser dito prende-se com dois aspetos essenciais, a  seguir enunciados.

O primeiro é atinente à forma como o despiste do automóvel de matrícula DX (...) ocorreu antes do embate. Segundo o teor literal da acusação pública, ao descrever uma ligeira curva à direita, o arguido «(…) deixou o veículo invadir a via contrária e consequentemente colidir nas guardas de protecção laterais do lado esquerdo, o que fez com que descrevesse depois uma trajectória oblíqua relativamente ao traçado longitudinal da via (…)» (fls. 459 dos presentes autos), com tudo o que a seguir se passou.

Na perspetiva do Tribunal, há melhores fundamentos para advogar a ideia de que, ao descrever a tal curva à direita, o arguido manobrou, de modo deliberado, o veículo, por forma a que este invadisse então a via contrária e consequentemente colidisse nas guardas de proteção laterais do lado esquerdo, seguindo-se daí, em termos de trajetória, o que é na acusação quanto ao momento em que o veículo ainda rolava na via. Depois, e segundo o Tribunal, o arguido entrou pelo caminho de terra batida em questão nos autos porque assim também pretendeu, tal como foi colidir com a árvore onde colidiu porque assim igualmente o quis.

Por outro lado, de acordo com a acusação pública, o veículo incendiou-se logo após a colisão, conseguindo o arguido sair do interior do automóvel sem que viesse a adotar qualquer medida para retirar desse interior a vítima ou tivesse solicitado outros meios para tal.

Para o Coletivo, pode decorrer da produção probatória efetuada em sede de audiência de discussão e julgamento a ideia de que, após a colisão, e estando a C... no interior do veículo, saiu o arguido desse mesmo interior, gerando só então ele, e de modo não concretamente apurado, o incêndio do automóvel, circunstância na qual terá sido atingido por algumas labaredas no peito, nas mãos e na cara. E, na sequência do que acaba de ser descrito, terá depois o arguido abandonado o local a pé, dirigindo-se para a sua casa.

Neste conspecto, e considerando o ora exposto, entende, pois, o Tribunal ser de fazer a aludida alteração não substancial de factos, nos termos do art. 358º, n.º 1 do C. P. Penal, concedendo ao arguido a possibilidade de defesa, tendo em conta o conteúdo, o teor e o alcance da dita alteração não substancial.

Notifique.

            Dada a palavra ao ilustre mandatário do arguido, o mesmo solicitou a concessão de um prazo para se pronunciar, o qual lhe foi deferido.

            Veio então o arguido opor-se a tal alteração dos factos, nominada de não substancial pelo tribunal, por entender que, na sua perspectiva, estamos perante uma alteração substancial dos factos.

            Notificados da oposição do arguido, os assistentes José Gonçalves Castro e E... vieram pronunciar-se, concluindo que as alterações propostas não correspondem a novos factos mas antes a alterações atinentes ao modo como ocorreram os factos concretos constantes da pronúncia.

            Aberta vista ao MP, também este concluiu pela improcedência da pretensão do arguido.

            No acórdão final, tal questão foi objecto de decisão, do seguinte teor:

«Após a produção probatória, realizou o Tribunal uma comunicação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º, n.º 1 Código de Processo Penal, por entender – como da respectiva acta de audiência consta – estar indiciada a ocorrência de alguns elementos factuais ligeiramente diferentes dos constantes da acusação pública.

Exercendo o seu legítimo direito de defesa, referiu o arguido, e no essencial, que a comunicação do Tribunal traduz um entendimento que o prejudica – a ele, arguido –, e configura uma alteração substancial de factos, pois que concretiza matéria não constante da acusação pública e conduzem à imputação, ao arguido, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. no art. 132º/n.ºs 1 e 2-h) e j) C.P., com a consequente nulidade daí advinda para o processo. Caso não lhe seja reconhecida razão, requereu o arguido a realização de diversas diligências probatórias por si devidamente identificadas.

Auscultados sobre a posição do arguido acabada de apontar, o Ministério Público e os assistentes e demandantes disseram não assistir qualquer razão a tal perspectiva, pois que não está em causa uma suposta alteração substancial, mas tão somente não substancial, de factos. Bom, pensa o Tribunal, e muito brevemente, ser de dizer o seguinte. Em primeiro lugar, e salvo o devido respeito por opinião diversa, não estará em foco uma concretização factual não constante da acusação conducente a uma alteração substancial de factos. Com efeito, os “pedaços factuais” oportunamente mencionados pelo Tribunal apenas restringem e tentam definir – e adequar – melhor o que se passou em audiência de julgamento, não se “descobrindo” novos contextos ou situações espácio-temporais diversas das descritas na acusação, pelo menos por forma a, por causa de tal alteração, cairmos em uma alteração substancial de factos. É que, como se verá mais abaixo, a matéria fáctica comunicada faz com que devamos manter-nos no âmbito temático do homicídio, p. e p. no art. 131º C.P.. Assim, cremos que todas as demais questões invocadas pelo arguido, e salvo sempre o devido respeito, não poderão ser esgrimidas nos moldes em que o mesmo arguido o faz. Pelo que, e em síntese, entende-se não ter havido extravasamento, com a comunicação efectuada, do princípio subjacente ao art. 358º/n.º 1 C.P.P..

Quanto às diligências solicitadas, diremos o seguinte: o exame às faculdades mentais não surge minimamente estribado em algo de sólido, pois que nenhum motivo se desprende dos autos para duvidar da imputabilidade do arguido (antes pelo contrário, atentos os exames anteriormente efectuados); depois, o exame pericial pretendido ao veículo automóvel em causa não se mostra côngruo para obter, neste momento, um qualquer resultado científico que possa responder às questões colocadas pelo arguido (sobretudo quando existem já dois exames de idêntico jaez efectuados no processo); por fim, as reinquirições impetradas não se mostram, também elas, aptas a trazer algo de novo aos autos, quando as testemunhas em questão (e atribua-se-lhes maior ou menor crédito probatório) foram claras nos depoimentos por si prestados. Em suma, terá o douto requerimento em causa de merecer indeferimento, o que ora se decreta

Resulta da norma do artº 359º, 1, do CPP, que, fora os casos em que ocorra acordo do MP, do arguido e do assistente para a «continuação do julgamento pelos novos factos» (nº 3), «uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância».

            A norma do artº 1º, f) do CPP, dá-nos a definição legal do que seja essa alteração substancial dos factos: «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».

            Ou seja, a tónica é posta em ambas aquelas normas na condenação do arguido por crime diverso do acusado ou a agravação dos limites máximos das penas aplicáveis.

            Este instituto processual penal (da alteração não substancial dos factos) constitui uma concessão às necessidades de pragmatismo, de forma a permitir ultrapassar situações em que a acusação ou a pronúncia contêm omissões ou imprecisões, mediante a alteração desses factos, sem contudo tocar na garantia de defesa/contraditório e no essencial desses libelos, tornando mais claros e mais condicentes com a realidade os factos ou as suas circunstâncias; do mesmo modo permitem ‘corrigir’ os factos narrados naquelas peças quando o decurso da audiência revele que o acontecimento naturalístico descrito não se processou bem daquele modo mas antes de modo diverso.

            Todavia, a lei não consagrou tal possibilidade de forma descontrolada, antes estabelecendo limites que são os que constam da definição legal que resulta daquela alínea f) do artº 1º do CPP. Ou a alteração se contém dentro desses limites (não tendo por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis) e então, após garantia do contraditório, mediante comunicação ao arguido e concessão de prazo, se requerido, para preparação da defesa, também quanto a esses pontos factuais, o julgamento poderá prosseguir quanto a eles, ou não. Neste caso, sendo a alteração de qualificar de substancial, o julgamento só poderá prosseguir quanto aos factos novos se nisso estiverem de acordo o MP, o arguido e o assistente (artº 359º, 3). Na falta deste acordo, e estando em causa factos autonomizáveis (ou seja, que não integrem um crime exaurido, de execução permanente ou uma continuação criminosa, entre outras situações) a comunicação respectiva ao MP valerá como denúncia, para que ele proceda por esses novos factos (nº 2).

            Estando nós no campo da alteração dos factos descritos na peça que procede à delimitação temática do processo, introduzindo o feito em juízo (artº 283º, 3, CPP), e vistas essas necessidades de pragmatismo, de forma a obviar a incompreensíveis casos em que,no confronto entre os direitos de defesa do arguido e as necessidades de administração da justiça penal por parte da comunidade, estas últimas tinham de ceder, em todos os casos, nas circunstâncias em que, mantendo-se inalterada a substância daquela peça, a realidade revelada pelas provas se mostrava mais rica ou não substancialmente diversa daquela ali descrita.

            Daí a necessidade, sentida pelo legislador, de estabelecer tal válvula de segurança, permitindo obviar a situações de bloqueio processual, que de outro modo ocorreriam, mediante a possibilidade de o julgamento prosseguir, de forma a fazer coincidir, na maior extensão possível, a realidade narrada na peça introdutória do facto em juízo, com a verdade naturalística dos factos. Todavia, não fez essa concessão sem estabelecer limites, visando estes, no essencial, deixar intocados os direitos de defesa do arguido, v.g. o do contraditório. Como diz Maia Gonçalves, em anotação ao artº 358º (no seu CPP Anotado), «neste artigo e no seguinte condensam-se os ensinamentos da doutrina mais autorizada sobre esta matéria, de modo a harmonizar, dentro do possível, a celeridade processual e o aproveitamento do processado com os imperativos legais do princípio contraditório e de uma defesa eficaz e em tempo útil por parte do arguido».

            E esses limites são os que resultam da distinção entre alteração não substancial e substancial dos factos.

            O arguido vinha acusado pela prática de um crime de homicídio, da previsão do artº 131º do CP e os factos provados foram integrados, a final, na previsão normativa desse tipo legal; o crime não é diverso e a moldura penal respectiva manteve-se intocada.

            Como avisadamente alerta o Ex.mo PGA, no douto parecer que emitiu, «verifica-se que a alteração efectuada se reconduz a uma narração fáctica que coloca o elemento doloso na descrição da conduta do recorrente, enquanto na acusação o mesmo se encontra na parte final do descritivo, já que se qualifica ‘o agir da forma descrita’ como efectuado (‘Fê-lo’) de forma livre e consciente. E nem se diga que tal se reporta apenas ao incêndio e aos resultados dele, pois mesmo anteriormente a conduta é relatada sem a menção explícita ao elemento doloso como se referiu, aí se incluindo o incêndio, optando-se pois por uma descrição fáctica linear à qual acresce, no final, tal elemento que tem de entender-se como perpassando toda a conduta do recorrente, como decorre mais exemplificativamente das expressões ‘deixou o veículo invadir, volta a obliquar e sai da via’. Ou seja, o que a descrição da sentença contém é apenas uma redacção dos factos elaborada de modo diverso e, diga-se, mais explícita, em que o elemento volitivo é colocado não a final, mas em cada uma das concretas acções, sendo que na acusação se descreve o iter que culmina no incêndio que sabia ‘idóneo a a causar-lhe a morte que previu’, mas mencionando aquele, como referido, como efectuado de forma livre e consciente».

            Ou seja, a realidade descrita na acusação e aquela que consta da factualidade assente a final é a mesma, ainda que com uma redacção correctiva por esta efectuada e com acrescentos factuais que não vão para além do permitido pela norma.

            Com efeito, dizer que o arguido «deixou o veículo invadir a via contrária», equivale, sem alteração de monta, a afirmar que ele «manobrou, de modo deliberado», pois que na primeira asserção, como na segunda, estão presentes a voluntariedade da conduta. O mesmo se diga relativamente à descrição factual relativa à entrada pelo caminho de terra batida e ao incêndio, ainda que aqui a situação seja algo diversa, concluindo nós, no entanto, que a alteração efectuada, também nesse aspecto, é permitida.

            O recorrente faz apelo à jurisprudência fixada pelo AUJ nº 1/2015, do STJ. Nos termos deste aresto, «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».

            Ou seja, segundo a jurisprudência assim traçada, não pode o tribunal lançar mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos para colmatar as lacunas da acusação, designadamente nos casos em que ela é omissa quanto aos factos integradores do elemento subjectivo típico. Faltando tais elementos factuais, só mediante consentimento dos sujeitos processuais poderá o julgamento prosseguir quanto a tais factos (artº 359º, 3, CPP).

            Não é esse, no entanto, o nosso caso. Com efeito, da acusação constavam factos que permitiam a integração dolosa da conduta do arguido. O que o tribunal recorrido fez, mediante a comunicada alteração, mas não foi do que contextualizar e de explicitar esses factos, o que a lei permite.

            Não se vê, assim, de que modo a decisão em causa, no pertinente segmento, possa violar:

- a norma do artº 163º, do CPP, pois que não se nos afigura ocorrer qualquer desvio relativamente a um qualquer juízo com valor probatório tarifado;

- a norma do artº 32º da CRP, pois que todas as garantias de defesa foram concedidas ao arguido, sendo-lhe deferido o solicitado prazo para pronúncia, na sequência da comunicação em causa, assim se assegurando o cumprimento do sacrossanto contraditório (seu nº 5);

- a norma do artº 27º da CRP, pois que através da garantia desse contraditório, se assegurou o seu direito à liberdade e à segurança;

- a norma do artº 20º, 4 da CRP, pois que através da concessão daquelas prerrogativas processuais, se assegurou o seu direito a um processo equitativo e justo;

- não se perspectivando qualquer violação da proibição do princípio ‘ne bis in idem’, (artº 29º, 5, CRP) já que não se compreende em que medida se pode afirmar, no nosso caso, que o arguido/recorrente haja sido julgado mais de uma vez pelos mesmos factos.

            No parecer que junta, emitido por um Eminente Professor Universitário, cuja estatura todos reconhecemos, conclui-se que ocorre alteração substancial dos factos; aí se afirma que «enquanto a acusação imputava ao arguido A... o Homicídio simples, veio o tribunal a julga-lo e condená-lo por factos que preenchiam todos os pressupostos e exigências da factualidade típica do Homicídio qualificado». Tal constituirá alteração substancial dos factos, «por se tratar de uma alteração a ditar a “agravação dos limites máximos da sanção aplicável”».

            Não é essa, todavia, a nossa perspectiva, como vimos já. Com efeito, o arguido vinha acusado pela prática do crime por que acabou condenado. A pena aplicada contem-se dentro dos limites da respectiva moldura penal, tal qual resultava da acusação. Por isso, com todo o respeito, cremos que não estamos perante uma alteração com a pretendida qualificação. Também não nos parece legítimo afirmar que a alteração efectuada traduza uma qualquer «especial censurabilidade ou perversidade», caracterizadora do homicídio qualificado.

                        Se o parecer em causa afirma e reafirma que «estes factos e estes eventos [descritos na acusação] só podem ser levados à conta de incúria, imperícia, vale por dizer, negligência do arguido», o certo é que tal juízo não encontra o mínimo de correspondência na factualidade narrada na acusação e, após tal alteração, dada como provada. A acusação imputava a morte da infeliz vítima ao arguido a título de dolo (ainda que na modalidade de eventual); o acórdão condenou-o pela prática dolosa do homicídio (na forma de dolo directo). O crime acusado e aquele por que o recorrente foi condenado é o mesmo, qualquer que seja a modalidade do dolo (artº 14º do CP), e quer seja cometido por acção, ou por omissão (artº 10º, CP).

            Ou seja, a modalidade do dolo e a comissão por acção ou por omissão não integram o âmbito de protecção que o CPP pretende conceder ao arguido mediante a proibição da alteração substancial não consentida; e isto pela simples razão de que, delas não resultando a imputação de crime diverso ou o agravamento do máximo da sanção aplicável, uma eventual alteração nesse pormenor cai sempre no âmbito da alteração possível e permitida, não substancial. Deve é, em todos os casos, dar-se cumprimento ao ritualismo garantístico que a lei do processo prevê. E isso foi feito no nosso caso, mediante a comunicação dessa alteração ao arguido.

            O artº 379º, 1, b) do CPP fulmina com nulidade (relativa, v. proémio do artº 120º, 2, do mesmo CPP), a sentença nos casos em que ocorra condenação por factos diversos dos descritos na acusação, «fora dos casos e das condições previstos nos artºs 358º e 359º». Ora, vimos já que o caso concreto cabe, de pleno, na previsão daquele artº 358º, tendo sido asseguradas ao arguido todas as prerrogativas processuais ali previstas.

            Por isso, não se pode qualificar de nulo o acórdão recorrido por extravasar, de forma não permitida, a delimitação temática operada pela acusação.

– A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO; e

– O ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA.

Seguidamente, o recorrente procede à impugnação da matéria de facto dada como provada em 4, 5, 6, 8, 9 e 15.

            É do seguinte teor tal matéria de facto:

4 – ao descrever uma ligeira curva à direita, atento o apontado sentido Portunhos-Outil, e em zona ladeada apenas por terrenos agrícolas e florestais (sem qualquer casa de habitação ou outra construção similar nas imediações), o arguido manobrou o veículo DX de modo a invadir a via contrária e colidir nas guardas de protecção laterais do lado esquerdo;

5 – depois, o arguido fez com que o automóvel DX descrevesse uma trajectória oblíqua relativamente ao traçado longitudinal da via, derivando para a direita e indo colidir com as guardas laterais de segurança desse lado, atento sempre o sentido Portunhos-Outil;

6 – logo após, voltou a obliquar à esquerda, uma vez mais atento o apontado sentido Portunhos-Outil, e, reduzindo a velocidade, saiu da via, propositadamente utilizando para o efeito um caminho de terra batida que dá acesso a terrenos agrícolas;

8 – percorrendo, descendo-os, os primeiros 10 metros, aproximadamente, do ora mencionado caminho, o arguido fez então com que o veículo DX embatesse em uma árvore de médio porte ali existente, fronteira ao lado direito do caminho, atento o sentido tomado pelo aludido veículo;

9 – imediatamente após o embate, e estando a C... no seu interior, o arguido saiu do automóvel, gerando, de modo não concretamente apurado, o incêndio de tal veículo, sendo ainda atingido por algumas labaredas no peito, nas mãos e na cara;

15 – ao agir da forma descrita, o arguido fê-lo de modo livre, deliberado e consciente, pretendendo causar, como causou, a morte da C... .

            Para fundamentar a sua convicção relativamente às circunstâncias prévias à ocorrência da morte da vítima, foram tecidas as seguintes considerações no acórdão recorrido:

«Na hipótese com que ora nos confrontamos, não poderemos deixar de referir, pela sua profundidade, clareza e exaustividade, o conteúdo (ora dado por inteiramente reproduzido) do relatório técnico-pericial constante de fls. 837 a 904 dos presentes autos, levado a cabo por técnico credenciado do Instituto de Engenharia Mecânica, Pólo do Instituto Superior Técnico de Lisboa. Efectivamente, partindo de uma análise computacional da dinâmica envolvente ao episódio em questão e, mais concretamente, a partir das marcas inerentes aos embates do veículo DX nos rails laterais da via e subsequente colisão na árvore em questão, tal relatório chegou à conclusão de que «as deformações-danos estruturais existentes no veículo (…) não são compatíveis com um impacto lateral nas guardas laterais de protecção existentes na Estrada Municipal n.º 584 a velocidade elevada e, mais concretamente, superior a 40 quilómetros por hora» (fls. 904). Ora, para além do aspecto acabado de referir – que nos mostra, portanto, terem ocorrido os embates nas guardas de protecção laterais a velocidade não côngrua com um descontrolo da marcha –, não deixa também de surpreender, pelo menos aos olhos do Tribunal, que, caso tivesse ocorrido um excesso de velocidade pelo arguido na condução empreendida, não houvesse também – e por mais ténues que fossem – sinais de uma tentativa de “reganhar” o controlo através, desde logo, de eventuais marcas de travagem no solo da via ou algo de congénere, isto é, sinais de um esforço que qualquer condutor apostado em não sair da Estrada Municipal n.º 584 certamente teria feito… E, conforme se pode constatar do relatório de exame directo ao local (e inerente croquis) elaborado(s) pela testemunha B... , elemento da Guarda Nacional Republicana (com recurso também a elementos recolhidos pela Polícia Judiciária logo a seguir à ocorrência dos factos em questão – fls. 399 a 405 destes autos), eram inexistentes quaisquer marcas ou vestígios de travagem ou derrapagem por ocasião do episódio em causa, havendo apenas marcas de tinta nas guardas de protecção do lado esquerdo e do lado direito (cfr. fls. 402, no apontado relatório de exame)…

Mas mais: o referido relatório aponta igualmente, nas suas conclusões, que «um acidente com o veículo em causa que implicasse impactos nas guardas laterais de protecção do lado esquerdo e direito da Estrada Municipal n.º 584 (sentido Portunhos Outil), nos pontos assinalados no croqui do acidente de viação elaborado pela Guarda Nacional Republicana, só culminaria com a entrada do veículo na via de acesso a terrenos agrícolas no qual este se imobilizou e incendiou, com uma acção adicional ao impacto nas guardas de segurança que alterasse a trajectória do veículo, ou seja, com uma manobra de direcção nesse sentido» (fls. 904). A propósito, não poderá deixar o Tribunal de realçar um aspecto que para si é estranho ou, porventura, não o será tanto…, se percebermos tudo o que esteve subjacente ao episódio que ora analisamos. Com efeito – e como teve o Tribunal oportunidade de perceber na deslocação que efectuou ao local –, tratando-se, na zona em questão, de uma via com rails de protecção de um e outro lado, o que pensar, para além das apontadas manobras de direcção do veículo, da saída do mesmo precisamente em um espaço no qual tais rails não existem por aí entroncar um caminho de acesso a terrenos agrícolas? Isto é, por que razão acabou o veículo DX por sair da via exactamente por um espaço não ocupado por uma guarda de protecção lateral, não se imobilizando, por hipótese, após mais um embate na referida guarda de protecção? Dito ainda de outra forma: caso tivesse ocorrido um descontrolo de velocidade na marcha do automóvel DX, como explicar, à luz das normais regras da experiência e da verosimilhança das coisas, que o mesmo condutor que se mostrou incapaz (ou insensível à natural tendência) de travar enquanto circulava na via se mostrou depois tão “hábil” para sair da Estrada Municipal n.º 584 precisamente pelo espaço de alguns metros não tapados por um rail de protecção? Crê-se que a explicação nos remete para mais uma das conclusões alcançadas no aludido relatório técnico do Instituto de Engenharia Mecânica, a saber, o de que «as deformações na zona frontal direita do veículo, zona das deformações-danos principais verificadas são características de um impacto a baixa velocidade, deduzindo-se que inferior a 20 quilómetros por hora. Isto significa que o veículo no início da descida tem de ter uma velocidade inferior a 10 quilómetros por hora» (fls. 904). Ou seja, não lidaremos com uma marcha própria de um suposto descontrolo originado por uma velocidade “desmedida”, mas sim com um percurso e uma trajectória dominados por um condutor que (e perdoe-se-nos a expressão) parece ter andado exactamente por onde quis andar e como quis andar… Em suma, depararemos com um embate desejado – e nos moldes em que o foi – pelo arguido, condutor do veículo DX. O que nos remete de imediato para um outro ponto de análise absolutamente incontornável: o da atitude comportamental do arguido após o embate. Com efeito, percebe-se com alguma dificuldade – à luz, uma vez mais, de critérios de normalidade do acontecer e da verosimilhança das coisas – como explicar a atitude de uma pessoa que acabou de ter um “acidente” – supostamente um acidente, note-se – e, vendo a sua namorada perecer (ou em vias disso), no interior do veículo “acidentado”, decide virar costas ao local e às chamas que aí lavram, e dirigir-se, a pé, até sua casa, aí pernoitar e nada dizer a quem quer que seja sobre o ocorrido. Como explicar a postura acabada de referir? Cremos que se trata este de um elemento indiciário de contornos evidentemente impressivos (e impressionantes) acerca de algo que não se coaduna com a existência de um acidente – pois que, precisamente se tivesse sido um acidente, se trataria de algo fortuito e não esperado –, deparando nós, ao invés, com uma sucessão de factos queridos pelo arguido (se bem que, queridos mais ou menos remotamente em relação ao momento da sua perpetração, não o saibamos com absoluto rigor). Importa, no entanto, aduzir – e não esquecer – a restante plêiade de elementos fácticos a considerar. Por um lado, o deflagrar de um incêndio após o embate do DX na árvore: decorrendo dos autos um choque “orientado” pelo arguido, não faria sentido, salvo o devido respeito, e à luz das normais regras da experiência da vida, fazer o arguido essa “orientação” do automóvel por uma forma tal que pudesse correr ele o risco de se “imolar” – também ele – pelo fogo. Pelo que, nos termos “controlados” em que protagonizou o despiste e o embate na árvore, não podia deixar o arguido de “controlar” igualmente o deflagrar do incêndio, ou seja, já depois de estar a salvo, no exterior do veículo. É certo que do relatório de fls. 420 a 428 dos presentes autos, elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, decorre (e ao contrário da – porventura bastante precipitada – cota exposta a fls. 303) não ter sido possível determinar, por via pericial, o início e as exactas características do apontado incêndio, designadamente o ter surgido por causa do embate na árvore e começado na zona do capot, daí derivando para a parte traseira (cfr. conclusão expressa a fls. 428 dos presentes autos). Mas o contexto probatório indirecto (indiciário) já referido – e ainda a referir de seguida – não inculca, parece-nos, ideia muito distinta da que há pouco expusemos quanto ao “domínio” do início do incêndio pelo arguido. E, por outro lado, não poderemos olvidar a pertinência da possibilidade do recurso, pelo julgador, às denominadas «(…) presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência. Esta é porém uma circunstância que respeita (…) ao princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz, mas de nenhuma maneira contende com o princípio in dubio pro reo ou reverte à aceitação – e muito menos à inversão –, em processo penal, de qualquer ónus de alegação e de prova» (cfr., no nosso ordenamento, o já acima aludido art. 127º do C.P.P.)

Se bem interpretamos tal fundamentação, o que ao fim e ao cabo se pretendeu dizer foi que o arguido procurou criar uma encenação prévia ao incêndio, de modo a fazer crer que tudo se devera a um acidente, que lhe não fora possível controlar o veiculo e que, por isso, este acabou por embater numa árvore, acabando por se incendiar. Aliás, essa encenação teria tido continuação com a retirada do arguido do local, deixando ali o veículo em chamas, com a infeliz vítima no seu interior; e com a posterior deslocação aos Hospitais da Universidade de Coimbra, para tratamento das queimaduras que ele próprio apresentava, invocando terem sido provocadas por óleo alimentar a ferver.

            O teor do Relatório Técnico Pericial elaborado pelo Instituto de Engenharia Mecânica foi considerado pelo tribunal nos termos descritos, por si só, e conjugado com outros factos conhecidos e que o tribunal também refere na sua fundamentação.

            Realmente, como ali se afirma, os danos apresentados pelo veículo não são compatíveis com a sua circulação a uma velocidade tal que determinasse que o arguido perdesse o seu controlo; daí que se compreenda a afirmação de que «nos termos “controlados” em que protagonizou o despiste e o embate na árvore, não podia deixar o arguido de “controlar” igualmente o deflagrar do incêndio».

            Como refere tal relatório, a fls. 53, «na fig. 62 apresenta-se o modelo do veículo ligeiro de passageiros Mini Cooper 1300 utilizado na simulação computacional, tratando-se do único modelo compatível com o modelo e ano do veículo em questão». Ou seja, na falta do modelo referente ao veículo em causa nos presentes autos, aquele IEM teve o cuidado de usar o modelo disponível mais aproximado, de modo a que os resultados obtidos fossem, também eles, aproximados.

            Foi com base nesse elemento pericial (mas devidamente conjugado com outros) que o tribunal recorrido formou a sua convicção, tendo, aliás, em atenção o que dispõe o artº 163º do CPP.

            Pretende o arguido que o tribunal, ao formar a sua convicção probatória, ‘desconsiderou’ o depoimento da testemunha K... , professor de Física da Universidade de Coimbra, de cujo depoimento (minutos 01:05:17 a 01:06:06) resultaria «que os referidos impactos tenham sido causados por intenção do arguido, uma vez que os mesmos poderiam ter ocorrido por outros factores, designadamente de qualquer outra intervenção, quer fosse a mesma acidental, ou provocada».

            Efectivamente, ouvida a gravação em causa, destaca-se que a testemunha refere que, para além da dinâmica de um carro, a simulação deve ter ainda em conta a intervenção humana ‘evasiva’. Mas, não obstante, acabou por reconhecer que o colega [que realizou a perícia] é cauteloso a esse nível.

            O acórdão recorrido foi claro na afirmação das razões por que atendeu ao respectivo depoimento e nas razões por que o não relevou, em determinados aspectos, ao afirmar:

«Sem pôr evidentemente em questão a competência académica e científica da testemunha, o que acabamos de expor valerá também um pouco para o depoimento de K... , físico da Universidade de Coimbra. No essencial, foi tal prestação testemunhal interessante e até útil para perceber alguns pontos da possível aerodinâmica da eclosão dos embates do DX nos rails de protecção da Estrada Municipal n.º 584 e subsequente saída pelo caminho de terra batida até à colisão com a árvore ali existente. Mas, e salvaguardando sempre o máximo respeito, ficou o depoimento (que acabou por se traduzir como que em um comentário ao acima referido relatório técnico do Instituto de Engenharia Mecânica) por não conseguir explicar a exacta “perícia” da apontada saída do DX (e a que velocidade?) exactamente pelo caminho de terra “eleito” pelo arguido

            Com efeito, a velocidade a que terão sido provocados os danos ostentados pelo veículo, e descritos na perícia, é perfeitamente compatível com a “perícia” revelada pelo arguido, que lhe permitiu sair pelo caminho de terra, por entre os rails de protecção.

            A conclusão a que chegou o tribunal não é afectada pela ‘possibilidade’, aventada no Relatório Final do DTCoimbra - que após afirmar que a explicação plausível para a produção do acidente é «a da possibilidade de uma acção deliberada para que o mesmo acontecesse», salvaguardando – de «o arguido e a vítima mortal estarem a discutir no momento dos factos». Não vislumbramos qualquer incompatibilidade entre a afirmação essencial do juízo acerca da causa do ‘acidente’ e a salvaguarda estabelecida!

            Invoca, o recorrente, como corroboração do que atrás se referiu, que no mesmo sentido vai o depoimento da testemunha P... , inspector da PJ (minutos 00:27:04 a 00:28:15 e 44:38 a 48:53).

            A pergunta do Ilustre Advogado do arguido, efectivamente a testemunha em causa começou por assentir, admitindo que isso (o afirmado na pergunta) possa ter acontecido, acabando, todavia, por manifestar a sua estranheza relativamente ao ‘comportamento’ do veículo, indiciado pelas marcas por ele deixadas no local.

            A propósito da prova do facto descrito no acórdão, em 8., vem o recorrente invocar a ocorrência de erro notório na apreciação da prova. Pretende que haverá contradição, já que o acórdão afirma, na sua fundamentação, o seguinte:

«Em suma, depararemos com um embate desejado – e nos moldes em que o foi – pelo arguido, condutor do veículo DX. O que nos remete de imediato para um outro ponto de análise absolutamente incontornável: o da atitude comportamental do arguido após o embate. Com efeito, percebe-se com alguma dificuldade – à luz, uma vez mais, de critérios de normalidade do acontecer e da verosimilhança das coisas – como explicar a atitude de uma pessoa que acabou de ter um “acidente” – supostamente um acidente, note-se – e, vendo a sua namorada perecer (ou em vias disso), no interior do veículo “acidentado”, decide virar costas ao local e às chamas que aí lavram, e dirigir-se, a pé, até sua casa, aí pernoitar e nada dizer a quem quer que seja sobre o ocorrido. Como explicar a postura acabada de referir? Cremos que se trata este de um elemento indiciário de contornos evidentemente impressivos (e impressionantes) acerca de algo que não se coaduna com a existência de um acidente – pois que, precisamente se tivesse sido um acidente, se trataria de algo fortuito e não esperado –, deparando nós, ao invés, com uma sucessão de factos queridos pelo arguido (se bem que, queridos mais ou menos remotamente em relação ao momento da sua perpetração, não o saibamos com absoluto rigor).»

            Pretende o recorrente as circunstâncias de o arguido ter abandonado o local a pé e não ter chamado por socorro, «podem claramente indiciar outras causas designadamente susto do arguido na sequência do acidente de que foi vítima». E invoca que tal atitude comportamental «pode resultar da sua personalidade perante situações extremas e imprevistas»; e chama à colação o teor do relatório de psicologia forense constante de fls. 775 e seg.s dos autos.

            O susto será um estado de alma resultante do medo, um temor profundo, uma apreensão face ao perigo.

Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»Não obstante consagrar esta norma o princípio da livre apreciação da prova, o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado e explicitado, o exercício desse princípio justifica-se desde que não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum. Assim sendo, o raciocínio lógico efectuado, deverá ser conclusivo no sentido da autoria dos factos pelo agente e da delimitação da factualidade típica objectiva e subjectiva e bem assim das circunstâncias do delito e das condições pessoais e de vida do agente. Todos os vícios referidos no nº 2 do artº 410º, para serem atendíveis, devem resultar «do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum». Ou seja, o vício há-de ressaltar do próprio contexto da sentença, não sendo lícito, neste pormenor, o recurso a elementos externos de onde esse vício se possa evidenciar.

O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada traduzir-se-á, afinal, na falta de elementos fácticos que permitam a integração na previsão típica criminal, seja por falência de matéria integrante do seu tipo objectivo ou do subjectivo ou, até, de uma qualquer circunstância modificativa agravante ou atenuante, considerada no caso. Em termos sintéticos, este vício ocorre quando, com a matéria de facto dada como assente na sentença, aquela condenação não poderia ter lugar ou, então, não poderia ter lugar naqueles termos.

            Como se diz no acórdão do STJ de 13/2/1991 (Maia Gonçalves, op. cit., pag. 825) «o fundamento a que se refere a al. a) do nº 2 do artº 410º do CPP é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, coisa bem diferente».

            O recorrente invoca a ocorrência de tal vício, de forma inconsequente já que invoca eventuais defeitos em sede de julgamento da matéria de facto – a “sentença” terá decidido com base em prova insuficiente – o que, vimos já, não integra vício da sentença mas, antes, vício do julgamento. Na sua essência é na integração nas circunstâncias típicas que reside a questão essencial – o tipo criminal está ou não integrado, nas suas vertentes objectiva e subjectiva?

            O vício do artº 410º, 2, a) há-de, assim, traduzir-se na falta de um qualquer elemento típico do crime em referência, devendo essa circunstância resultar, literalmente, da decisão recorrida.

            E não se vê onde o texto da sentença revele tal vício; com efeito, os factos dados como assentes - a não se verificar qualquer erro de julgamento, e supondo que se apoiam em provas efectivadas no decurso do julgamento - são os necessários e os suficientes à integração do tipo criminal em referência.

O vício de erro notório na apreciação da prova (al. c) daquele nº 2) traduz-se numa falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, se chamado a apreciar a prova produzida e a convicção com base nela formada; esse erro deve ressaltar de modo claro e evidente do texto da própria decisão. O seu contexto logo evidencia que, face às regras da interpretação lógica, do bom senso e da experiência do homem normal, a conclusão deveria ser outra, face às premissas referidas. E é neste contexto que apreciaremos a eventual violação de tal regra de boa conduta processual.

Desse contexto não resulta qualquer erro notório na formulação da premissa em causa, já que a essência da sentença, v.g. no que se prende com a factualidade assente e a respectiva indicação probatória, é coerente, linear, perfeitamente perceptível.

Mas o apontado vício de erro notório na apreciação da prova não ocorre pois que o tribunal recorrido, na sua fundamentação, formula um juízo, com o qual o recorrente não está de acordo, mas que é perfeitamente sustentável em termos de plausibilidade.

O arguido, após os sucessos descritos, e com o carro em chamas, com a namorada no interior, ficou com ‘medo’? Medo do quê? Poderia ter ficado desesperado, assustado, preocupado, mas isso não seria motivo para abandonar o local e, muito menos, para não providenciar por ajuda, por socorro.

Daí que se mostrem compreensíveis e justificadas as considerações a tal propósito tecidas no trecho do acórdão, atrás destacado.

E isso não é afectado pelo que é referido no citado relatório de perícia psicológica, efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, Delegação do Centro, Serviço de Clínica Forense, Psicologia Forense: “… se a personalidade do arguido é suscetível de reacção impulsiva em situações de stress”…, em sede de avaliação psicológica ficou psicometricamente determinado que o examinado é um individuo inteligente, com traços de ansiedade, de impulsividade, de irritabilidade fácil, com poucas estratégias para lidar com situações de stress que surjam de forma imprevista, pelo que é de admitir que tal eventualidade possa ocorrer.

Por isso, não ocorre qualquer vício do acórdão.

A propósito do facto provado em 9., o recorrente volta a invocar a falta da «mínima prova quer pericial quer testemunhal» de que teria sido ele quem deflagrou o incêndio.

E volta a chamar à liça o depoimento da testemunha K... (minutos 33:56 a 35:15) pretendendo que a ignição do incêndio poderá ter resultado do embate na árvore ou do ‘raspar’ da parte inferior do veículo nas pedras do caminho.

É verdade que nesses trechos do seu depoimento, a testemunha em causa admite essas probabilidades; mas como bem diz no seu depoimento, «é sempre uma questão de probabilidade». Ora, o tribunal recorrido, sem olvidar tal ‘probabilidade’, foi claro na afirmação das razões por que conclui que essa probabilidade, no caso, não ocorreu.

Aliás, a fundamentação do acórdão, também a este propósito, para além de completa, é impressiva, e por isso aqui lhe damos o devido relevo:

«Pelo que, nos termos “controlados” em que protagonizou o despiste e o embate na árvore, não podia deixar o arguido de “controlar” igualmente o deflagrar do incêndio, ou seja, já depois de estar a salvo, no exterior do veículo. É certo que do relatório de fls. 420 a 428 dos presentes autos, elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, decorre (e ao contrário da – porventura bastante precipitada – cota exposta a fls. 303) não ter sido possível determinar, por via pericial, o início e as exactas características do apontado incêndio, designadamente o ter surgido por causa do embate na árvore e começado na zona do capot, daí derivando para a parte traseira (cfr. conclusão expressa a fls. 428 dos presentes autos). Mas o contexto probatório indirecto (indiciário) já referido – e ainda a referir de seguida – não inculca, parece-nos, ideia muito distinta da que há pouco expusemos quanto ao “domínio” do início do incêndio pelo arguido. E, por outro lado, não poderemos olvidar a pertinência da possibilidade do recurso, pelo julgador, às denominadas «(…) presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência. Esta é porém uma circunstância que respeita (…) ao princípio da livre apreciação da prova e da livre convicção do juiz, mas de nenhuma maneira contende com o princípio in dubio pro reo ou reverte à aceitação – e muito menos à inversão –, em processo penal, de qualquer ónus de alegação e de prova» (cfr., no nosso ordenamento, o já acima aludido art. 127º do C.P.P.).

(…)

E “somemos”, igualmente, as significativas queimaduras (de segundo e terceiro graus) sofridas pelo arguido e que foram por ele ostentadas, a fim de obter tratamento médico, na tarde do dia 1 de Maio de 2008, junto dos Hospitais da Universidade de Coimbra, invocando terem sido provocadas por óleo alimentar a ferver (vide fotografias de fls. 37 a 43 e documentos hospitalares de fls. 96 a 101 e 103 dos presentes autos).»

As circunstâncias anteriores à ignição do incêndio, devidamente conjugadas com aquelas outras posteriores, a que fizemos já vastas referências, afastam a possibilidade de ele se dever àquelas causas apontadas pelo recorrente como prováveis. O arguido, desde o início que tinha domínio sobre os factos, na sua globalidade.

Se efectivamente o que o arguido pretendia, na «sua atitude imediata e irreflectida foi fugir, fugir das chamas, fugir do perigo», não se compreende por que razão, uma vez no exterior do veículo (presumindo ele que se encontrava no interior do mesmo) ele não providenciou por socorro, antes se colocou em fuga; fuga do quê?

Se é verdade que o relatório de exame pericial de fls. 261 e seg.s concluiu que não foi detectada a presença de qualquer acelerante de combustão nos artigos de vestuário apreendido, não é menos certo que daí resulte que o arguido não teve intervenção na ignição do incêndio.

Os relatórios periciais disponíveis nos autos, foram devidamente valorizados e apreciados, em termos de conjugação e complementaridade – artº 163º, CPP.

A propósito do facto provado em 13. e 15., o recorrente volta a lançar mão dos já referidos e analisados argumentos.

Tais pontos da matéria de facto prendem-se, por um lado, com a causa da morte da vítima e, por outro, com a integração do tipo subjectivo do crime de homicídio.

Invocando os depoimentos das testemunhas P... (minutos 00:27:04 a 00:28:15) e K... (minutos 00:33:56 a 00:35:15, 00:14:09 a 00:17:30, 00:19:00 a 00:20:21 e 00:41:14 a 00:41:51), bem como dos relatórios periciais fls 329 a 343 e 420 a 428, uma vez mais o recorrente vem pôr em causa aquela convicção motivada do julgador, contrapondo-lhe, de forma voluntarista, a sua própria.

Mas analisados tais depoimentos, e conjugados com os demais meios de prova, nos termos já referidos, não vemos razão para censurar a convicção formada pelo tribunal recorrido, relativamente ao modo como os factos se passaram.

Assim sendo, a causa da morte da vítima foi a descrita em 13., causada pela conduta do recorrente.

Já a apreciação do elemento subjectivo do tipo, por não ser objectivável na grande maioria das situações, se há-de socorrer de indícios exteriores, de onde se manifeste.

Como refere Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica», o que é corroborado por N. F. Malatesta quando diz que «exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se há-de concluir pela sua existência… afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material. O homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.» (A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss)

            No mesmo sentido se pronunciam os Acs da RP, de 23-1-1985 e de 16-1-2005 (BMJ, 343-376 e 343-377) quando referem que a prova do dolo pode fazer-se através das próprias regras da experiência comum.

Tal como se refere no acórdão da R.P., de 23 de Fevereiro de 1993, publicado in BMJ, 324, pág. 620 “(…) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência.(…)”.

Daqui que também sob esta perspectiva, o acórdão recorrido não mereça censura.

- A QUESTÃO DO BENEFÍCIO DO ARGUIDO, EM TERMOS PROBATÓRIOS, EM CASO DE DÚVIDA.

            O princípio processual penal “in dubio pro reo”, emanação do princípio constitucional da presunção (intraprocessual) de inocência (artº 32º, 2, CRP) tem como finalidade a salvaguarda dos direitos do arguido relativamente ao qual não existe prova suficiente de ser ele o autor dos factos acusados ou, pelo menos, de estes não terem acontecido daquele concreto modo; no nosso caso, as provas produzidas, porque sustentadas em termos de fundamentação, entre si concatenáveis, dotadas de um elo de ligação lógica, conjugadas com as regras da experiência e do senso comum apontam, da forma que atrás delineamos, para a ocorrência dos factos do modo descrito no acórdão. Não se trata de relevar uma ou outra prova, isoladamente considerada, mas, antes pelo contrário, de conjugar entre si diversas provas objectivas e objectivadas como sejam as provas de natureza pessoal, pericial ou documental.

O acórdão recorrido é claro na afirmação da sua fundamentação, para a qual remetemos, por isso.

Com todo o respeito, nos permitimos concordar com o que é afirmado no parecer junto pelo recorrente; ali se começa por dizer que: «Hoje seria, outrossim ocioso questionar a legitimidade da prova indiciária, pacificamente tida como irrecusável num sistema de livre apreciação da prova, como é seguramente o português (artigo 127º do Código de Processo Penal). Isto suposta naturalmente a satisfação das exigências de fundamentação e racionalidade lógica, como condição da indispensável aceitação e adesão intersubjectiva particularmente por parte dos destinatários das decisões dos tribunais.

            a) Como acontece com toda a produção e valoração da prova em processo penal, também a prova indiciária deve, como o STJ sublinha (ac. De 7 de Janeiro de 2004), respeitar “os procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundamentadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequencial ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido”. E noutro contexto (17 de Fevereiro de 2005): “ a livre apreciação das provas há-de ser, porém, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo”.

            Uma compreensão consensual das coisas com implicações naturais, também elas pacífica e consensualmente aceites por todos, autores e tribunais. De todos os lados se reconhece e sublinha que a livre apreciação da prova e a livre convicção do tribunal não significa uma convicção imotivável, incontrolável e arbitrária. Terá, pelo contrário, de tratar-se de uma convicção consonante com as regras da lógica, da experiência e da racionalidade intersubjectiva. Acolhendo-nos, ainda uma vez, à lição do STJ (ac. De 14 de Março de 2007), “uma tal convicção existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se dos factos para além da dúvida razoável e esse convencimento corresponda à síntese de um processo lógico de formação de conhecimento”.

            No mesmo sentido e louvando-se expressamente do pensamento de CASTANHEIRA NEVES, adverte, por seu turno, o Tribunal Constitucional: “ a liberdade do juiz de que aqui se fala é, como diz Castanheira Neves, uma liberdade para a objectividade (…) não é uma liberdade meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros” (18)

Após tal deixar escrito, o Ex.mo autor do parecer em causa afirma que «na ausência de qualquer prova directa destes factos, só a prova indiciária poderia suportar a sua prova objectiva e a sua imputação subjectiva. Só que o julgamento ao dispôs de nenhuma prova indirecta com a fecundidade heurístico-probatória bastante para assegurar aquele efeito probatório. Não é, na verdade, possível referenciar na argumentação de fundamentação do acórdão nenhuma prova indiciária a apontar logicamente para os factos e a impô-los à margem de toda a dúvida razoável. Em definitivo, o Tribunal não dispôs de nenhuma prova indiciária que, só por si, ou conjugada com as demais provas disponíveis, permita sobrepor a versão do Tribunal às demais e plúrimas alternativas possíveis e igualmente consonantes com os dados e os factos indiscutíveis do processo. Ou que, ao menos, possa oferecer à versão do Tribunal uma plausibilidade privilegiada face às demais alternativas. Em termos tais que só á custa de uma mais ou menos patente, mais ou larvada, mas sempre irredutível e comprometedora afronta ao princípio in dubio pro reo, pôde o Tribunal dar aqueles factos como provados

            Com o devido respeito, permitimo-nos discordar, neste pormenor.

            A operação de fixação da factualidade, resultante da prova produzida em julgamento, tem natureza complexa e nela se cruzam uma série de considerações que se prendem, por um lado, com o confronto crítico das provas, umas concordantes, outras discordantes entre si, e por outro, na sua conjugação com as regras da experiência, da normalidade do acontecer, tudo coado pelo bom senso, que é o senso comum, que deve presidir à análise lógica traduzida no raciocínio efectuado. E tudo deve ser transparente, por todos perceptível, como o é a fundamentação fáctica levada à sentença ora impugnada.

            Dispõe o artº 127º do CPP que «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»

Consagrando esta norma o princípio da livre apreciação da prova, devemos todavia acrescentar que o poder/dever que daí resulta não é arbitrário mas, antes, vinculado a um fim que é o do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade. Por isso, mostrando-se devidamente fundamentado, o exercício desse princípio torna-se inalterável, desde que se mostre apoiado na prova produzida e não demonstre raciocínios inadmissíveis, ilógicos ou contraditórios, face às regras da experiência comum, da normalidade e do bom senso, que é o senso comum. Por outro lado, é sabido que o processo de formação da convicção do tribunal é complexo e dinâmico, já que nele intervêm simultaneamente a consideração da globalidade das provas produzidas e validadas em audiência, num ambiente de imediação e de oralidade, as regras da experiência e do senso comum, da normalidade do acontecer… de modo a procurar retratar e plasmar um ‘retalho da realidade’.

O juízo crítico final – que o acórdão bem descreve em termos de fundamentação - resultou do confronto entre os diversos meios de prova produzidos e bem assim da valoração intrínseca que, de acordo com as regras processuais aplicáveis e com aquele poder de livre apreciação, o tribunal entendeu ser o que decorria de um processo racional e lógico de formação da convicção, no qual tiveram interferência cambiantes de normalidade, razoabilidade e de senso comum. E não se vislumbra que a conclusão do silogismo judiciário haja sido tirada ao arrepio dessas regras e bem assim do artº 127º, do CPP. O crime efectivamente praticado pelo recorrente é aquele por que se mostra condenado, p.p. pelo artº 131º do CP. Não se pode falar, face aos factos assentes, em crime de homicídio por negligência (artº 137º, CP) ou em crime de omissão de auxílio autonomizável (artº 200º, 2, CP).

            Sendo embora verdade que no caso, e face à falta de prova pessoal, o tribunal lançou mão de provas indirectas ou indiciárias para formular o seu juízo probatório, não é menos certo que foi muito cuidadoso na enunciação e descrição dessas provas e do seu consequente juízo. Citemos: «é também certo inexistirem testemunhas oculares daquilo que se passou no momento da perpetração dos factos pelo arguido. O que não será verdadeiramente estranho, se tivermos em mente tratar-se de um episódio ocorrido de noite “cerrada” e (como pôde o Tribunal constatar, na deslocação efectuada ao local, em sede de audiência de discussão e julgamento) em zona ladeada apenas por terrenos agrícolas e florestais (sem qualquer casa de habitação ou outra construção similar) (cfr. igualmente, a propósito, as fotografias de fls. 407 a 409, 751 a 756 e 845 dos presentes autos). Assim, teve o Colectivo de socorrer-se de um conjunto de elementos que, na sua conjugação e concatenação mais íntimas, impôs, segundo se julga, à luz das apontadas regras da normalidade do acontecer, as conclusões factuais acima dadas como assentes. Conclusões inculcadoras, portanto, de uma actuação deliberada e conscientemente orientada, por banda do arguido, no ceifar da vida da C... . Trata-se, bem vistas as coisas, de uma situação enquadrável na valoração da chamada “prova indirecta” ou “prova indiciária”, em tese geral entendível como a que incide sobre factos não exactamente coincidentes com o tema de prova mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação da qual se inferem os factos a demonstrar. Nas palavras do Prof. Manuel Cavaleiro de Ferreira, «a prova indiciária é prova indirecta: dela se induz por raciocínio alicerçado em regras de experiência comum ou da ciência ou técnica, o facto probando. A prova deste reside na inferência do facto conhecido ou provado – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido ou a provar, ou tema último da prova. Como tal, constitui uma prova em segundo grau; a prova respeita directamente ao facto indiciante e da comprovação deste se infere um indício – prova indirecta – para comprovação do facto relevante» (“Curso de processo penal”, volume I, Lisboa, 1986, págs. 207 e 208). Por outro lado, é certo exigir a avaliação da prova indiciária um conjunto de predicados que certamente nos remetem para a inteligência e sagacidade do julgador, assim como para o importante papel desempenhado – mais do que em qualquer outro meio de prova tarifado – pelo contacto directo do julgador com a sua produção (ou melhor, com os elementos através dos quais se atinge aquela demonstração probatória), assim avaliando a credibilidade do material indiciário. E, em tal avaliação, regerão enorme papel, como já dissemos supra, as normais (e não – e perdoe-se-nos a expressão e a aparente evidência – as “anormais”) regras da experiência da vida (cfr., entre nós, o art. 127º C.P.P.), assim auxiliadoras e sustentadoras da segura eleição dos meios de prova indiciários a atender em cada caso concreto. Não sendo a prova indiciária proibida pela regra geral da liberdade dos meios de prova (cfr., entre nós, os arts. 125º e 126º C.P.P.), sempre exigirá, portanto, um especial cuidado na sua mobilização e apreciação, por forma a que apenas possa ser extraído o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova, assim afastando também diversas hipóteses factuais igualmente possíveis mas descabidas em cada situação decidenda

            E essas provas são aquelas a que atrás fizemos já referência.

            Como assinala o Ex.mo subscritor do parecer em causa, com o uso de tais provas indiciárias fica sobremaneira implícita a necessidade de uma reforçada fundamentação, de forma a que a decisão seja compreensível quer para os intervenientes processuais quer, numa perspectiva extra-processual, pela sociedade em geral, que exerce uma actividade democrática de fiscalização e censura das decisões judiciais (opinião pública).

            Aliás, o próprio recorrente, aflora tal questão também, ao afirmar que «padece a presente sentença de falta de fundamentação do Tribunal nomeadamente dos artigos 97º, nº 5, 283º, 361º, todos do Código de Processo Penal e do disposto no artigo 32 ° n°1 e 5 e 205 ° n ° 1, da Constituição da Republica Portuguesa. Em forma de síntese, pode dizer-se que a comunicação feita pelo Tribunal ao arguido, da alteração não substancial dos factos, não observou o legalmente exigido quanto à sua fundamentação, que no caso se traduz na explicitação ou concretização dos factos e meios de prova indiciários, única forma e meio de salvaguardar ao arguido os direitos consignados no Artº 61º, nº 1, alínea c) e 358º, nº 1, ambos do CPP e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, violador, pois, dos direitos de defesa e do princípio do contraditório

Dispõe, a propósito, o artº 374º, 2, CPP, que a fundamentação do acórdão «consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal», sob pena de nulidade de tal peça (artº 379º, 1, a)).

            O dever de fundamentar as decisões judiciais tem por objectivo a salvaguarda do exercício democrático do direito de defesa, consagrado no artº 32º, 1 e 5 da CRP (que, por sua vez, é uma emanação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais – artº 205º). Reflexamente, este dever prende-se com a necessidade de tornar as sentenças em peças que, só por si, tornam explícita e compreensível a reacção da sociedade perante um ‘pedaço ou retalho de vida’ que por violar gravemente os princípios dirigentes da organização em sociedade é elevado à categoria de crime, merecedor de uma pena. Ou seja, a sentença há-de explicar-se por si mesma, o seu texto há-de ser de tal modo claro que demonstre qual a sequência lógica seguida, quais os raciocínios efectuados, quais as regras da experiência ou do senso comum a que foi lançada mão. Não quer isto dizer que essa obrigação seja exigente ao ponto de tornar inviável a sua observância concreta; ou seja, o dever de fundamentar não obriga a explicar a análise a que se procedeu, o raciocínio efectuado, o juízo feito, ponto por ponto, bastando-se com a indicação das mesmas segundo uma visão global e compreensiva, indicando-as de um modo tanto quanto possível completo, ainda que sucinto, no dizer da lei. O que há-de resultar necessariamente da sentença é a indicação das provas e a sindicância sobre o respectivo valor relativo. «Através da indicação dos meios de prova e do seu exame crítico, efectuados na fundamentação, como o impõe o artº 374º, 2, CPP, é possível ao tribunal de recurso apreciar se a convicção do julgador está fundamentada num processo racional e lógico de valoração da prova.» (ac. STJ de 27/5/2004, CJS-II-211)

            O tribunal recorrido foi muito cuidadoso nesse aspecto, já que procedeu a um extenso, completo e muito bem elaborado exercício de fundamentação. O processo dinâmico, lógico e sequencial de formação da convicção do tribunal ‘a quo’ mostra-se fundamentado de forma exemplar. E justificou tal fundamentação, que em muitos aspectos é mesmo descritiva, na necessidade do uso de tais provas indirectas. Do mesmo modo se afigura que a construção lógica do acórdão, na transposição dos factos para o direito, e deste para o dispositivo, não se mostra viciada por qualquer vício que inquine a sua validade, nesta actual perspectiva. O acórdão não descreve um processo de formação arbitrária da convicção do tribunal; antes informa, de forma completa e exemplar, que face à inexistência de provas directas, teve de usar mão de provas indiciárias, descrevendo os termos e o modo em que o fez. E o encadeamento lógico e sequencial dessas provas indirectas, anteriores e posteriores à morte da vítima, levam à conclusão de que os factos se passaram do modo descrito nos factos provados, para além de qualquer dúvida razoável.

            O modo como a indicação probatória se encontra elaborada torna perceptíveis todos as razões do decidido. Em todos os momentos foi respeitada a previsão dos artº 61º, c), 97º, 5 e 358º, nº 1 do CPP.

            Também por isso, não ocorre no caso a apontada nulidade do acórdão por falta de fundamentação, cominada no artº 379º, 1, a) do CP ou violação da garantia constitucional do artº 32º, 1 e 5 da CRP.

            Seguidamente, o recorrente impugna a matéria de facto provada em 30 a 33, relativa à acusação formulada no processo apenso e que se prende com a prática de um crime de ameaça agravada.

            Quanto a este pormenor, ficou dito no acórdão, em termos de fundamentação: «E o que acaba de ser dito transpareceu também da prestação testemunhal de F... , prima e madrinha da falecida, e queixosa no episódio ocorrido nas instalações do Tribunal Judicial de Cantanhede, que, assim, percepcionou em “primeira mão” o comportamento do arguido, naquilo que também foi visível aos olhos (e ouvidos) de I... , H... e L... , ali presentes. Os depoimentos “normalizadores”, neste último aspecto, de M... , da Guarda Nacional Republicana de Cantanhede, assim como de N... e O... , primo e mãe, respectivamente, do arguido, no sentido de que nada de especial se teria passado nas instalações do Tribunal Judicial de Cantanhede, não lograram convencer o Colectivo, sobretudo porque tentaram fazer passar a imagem de que o ambiente tenso de então teria sido o responsável por uma “confusão auditiva” por banda da queixosa F...

            Ou seja, o tribunal foi assertivo na afirmação de que a prova de tais factos teve por base o depoimento da ofendida F... , o qual, aliás, viria a ser corroborado pelos depoimentos das testemunhas I... , H... e L... . Foi também expresso na indicação da razão pela qual foram desvalorizados os depoimentos das testemunhas M... (agente da GNR), N... (primo do arguido) e O... (sua mãe). Aqueles ouviram a ameaça e estes, no dizer do acórdão, tentaram fazer passar a imagem de a queixosa F... teria sido vítima de uma ‘confusão auditiva’.

            Ora, como poderia a referida F... incorrer nessa confusão e nisso ser ‘acompanhada’ pelas outras três testemunhas.

            Na transcrição que faz do depoimento desta testemunha (minutos 26:03 a 26:18), o recorrente refere que ela, na resposta a pergunta do seu ilustre advogado terá respondido que “sim” à pergunta “não ouviu o som? Só entre lábios?”; no entanto, não se pode esquecer que anteriormente (m.01:15 a 2:13) ela havia dito «ao dar de caras com o arguido, ele disse ‘eu mato-te’, eu ainda olhei para a colega, porque eu vinha agarrada a uma colega, perguntei o que é que disse, e ela confirmou-me». Ao contrário do que parece pretender o recorrente, a reacção da testemunha, face ao comportamento do arguido é a normal de quem é colhido de surpresa, ficando num estado de incredulidade.

            A testemunha M... não afirma que tais factos não ocorreram; na transcrição que o próprio recorrente faz, a resposta do mesmo ilustra advogado sobre se tinha ouvido algumas palavras mais ásperas respondeu «isso assim não sei não vou, não me apercebi bem» (01:30 a 01:45) e, mais adiante (01:59 a 02:20) «se houve alguma coisa eu não me apercebi de mais nada». Assim, este depoimento não foi descurado, apenas não peremptório na afirmação de que os factos se não passaram do modo confirmado pela ofendida e pelas demais testemunhas referidas.

- A QUESTÃO DO ESTADO DE NECESSIDADE DESCULPANTE.

            Prossegue o recorrente afirmando que houve erro de julgamento quando o tribunal considerou que o crime se tinha consumado por acção e não por omissão, questão que já atrás mereceu o necessário tratamento. Daí retira a questão de saber «se poderia ter recorrente ao agir ter evitado o resultado, poder-lhe-ia ser exigível outro comportamento?». Invoca, para tanto, a verificação de uma situação de estado de necessidade desculpante, nos termos do artº 35º, 1, CP.

            No entanto, face à factualidade provada, cremos não ter tal pretensão qualquer tipo de suporte factual.

            Nos termos do disposto naquele artº 35º, 1, «age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente».

            Estamos, assim, perante um estado de necessidade interior, uma ‘coacção psíquica’ em que ao agente não é exigível outro comportamento, quando posto perante aquele perigo actual e irremovível.

            Para Carlos Suárez-Mira Rodríguez (coordenador do Manual de Derecho Penal. Tomo I. Parte General, 2ª Ed.) «concordantemente, segundo a jurisprudência, o estado de necessidade é uma causa de justificação que se pode aplicar quando existe uma situação de conflito ou colisão entre bens ou deveres, de tal modo que a preservação ou cumprimento de um e outro em simultâneo seja impossível, justificando então que se sacrifique um dos dois com certas condições, como seja que o mal causado não seja maior do que aquele que se pretende evitar, que quem pretende ver-se justificado não tenha a obrigação de aceitar o sacrifício dos eu direito ou o cumprimento do seu dever, em razão do seu ofício ou cargo, e que a situação de necessidade não haja sido provocada por quem pretende valer-se dela para justificar a sua conduta (STS de 31-1-2001, Ponente Martín Canivelli)».

            Ou seja, nos casos de ingerência, em que o perigo haja sido provocado pelo próprio agente, como acontece no caso presente, aquele não pode prevalecer-se desta causa de exculpação.

            No caso presente cai por terra a pretensão do recorrente já que a previsão normativa inicial se não verifica na hipótese concreta. O perigo foi criado por ele e, deste modo, não pode ele pretender desculpar-se com a invocação de concomitante e igualmente intenso perigo para a sua vida ou integridade física.

- A QUESTÃO DA NATUREZA DA PENA E DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO.

            Relativamente à prática do crime de ameaça em causa, o recorrente remata o seu recurso pretendendo que lhe seja aplicada pena de multa, nos termos do disposto no artº 50º do CP, considerando desajustada e excessiva a pena de prisão que lhe foi aplicada. Subsidiariamente, pede que tal pena de prisão seja suspensa na sua execução.

            No desempenho de tal desiderato, de opção entre as alternativas penas de prisão ou multa (já que ao crime de ameaça, p.p. pelos artºs 153º, 1 e 155º, 1, a), do CP, cabe pena alternativa de prisão até dois anos ou multa até 240 dias), o tribunal recorrido teceu as seguintes considerações: «ao crime de ameaça cabe pena de prisão ou de multa, pelo que importará ponderar, neste último particular, a questão da escolha da pena, nos termos genéricos do art. 70º C.P.. Como se sabe, «(…) só caso a caso, processo a processo, mediante uma apreciação dos elementos de prova disponíveis, se legitimará uma escolha entre as penas detentivas e não detentivas (…)»; daí que «(…) determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta (…)» (Dr. Adelino Robalo Cordeiro, “Escolha e medida da pena”, in “Jornadas de Direito Criminal”, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, pág. 239). Ora, a hipótese dos autos enquadra-se, como já dissemos, em um todo contextual de delicada sensibilidade, não só pelas terríveis circunstâncias em que veio a ocorrer o decesso da C... , mas também porque a fragilidade emotiva de pessoas como a vítima da ameaça perpetrada pelo arguido deveria ter merecido deste um outro tipo de comportamento. Parece-nos, pois, que quer a específica postura do arguido, ao actuar como actuou – revelando óbvia insensibilidade por um contexto geral marcado por uma terrível morte e a preocupação de descoberta da verdade dos factos por banda de diversas pessoas próximas da C... –, quer a ideia de garantia “contrafáctica” do bem jurídico (liberdade pessoal) violado pelo arguido, tal como a comunidade jurídica local o interpretará em todo este caso, reclamam a opção pela pena detentiva. Crê-se, consequentemente, e no tocante ao crime de ameaça, que o caso concreto reclama mais do que a multa, assim se alcançando a realização adequada e bastante das finalidades da punição (art. 70º C.P.), o mesmo será dizer, «a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1 do art. 40º C.P.). Escolha da pena de prisão, portanto».

            Porque estamos perante um crime cuja moldura penal é alternativa de prisão ou multa, a primeira tarefa que se impõe ao julgador é a de determinar qual delas deverá ser a eleita, já que, nos termos do disposto no artº 70º, do CP, por regra o tribunal deve optar pela medida não privativa da liberdade, sempre que ela seja susceptível de «realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

            Cremos que as circunstâncias em que os factos ocorreram, descritas na parte do acórdão atrás extractada, justificam a opção do tribunal recorrido.

Da análise dessa resenha factual logo se constata que as exigências de prevenção especial relativamente ao recorrente [quer na sua vertente de recuperação, quer de integração] são prementes já que a sua situação pessoal descrita, de arguido no processo em causa, não fez aumentar os seus níveis de auto-censura, como lhe era exigível e exigido, não se coibindo ele de, não obstante, em pleno átrio do tribunal, e num ambiente naturalmente tenso, após o adiamento da audiência de julgamento, ameaçar de morte uma testemunha no processo.

Por isso, concordando com a decisão recorrida, afirmamos que só mediante a aplicação da alternativa pena de prisão serão alcançadas, de forma adequada e bastante, as finalidades da punição.

Questiona igualmente o recorrente a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão que ao caso coube, fixada em 10 meses.

Se é verdade que tal pena de prisão, se individualmente considerada, é passível de ver a respectiva execução suspensa (artº 50º, CP), não é menos certo que tal instituto deve ser aplicado apenas à pena única que caberá, em cúmulo jurídico, no caso de concurso (artº 30º, CP), e não a cada uma das penas parcelares.

Por isso, porque ao cúmulo jurídico coube uma pena única de 12 anos e 6 meses de prisão, não pode ter lugar a pretendida suspensão da execução da pena.

Em conclusão: nenhuma norma em concreto se mostra violada, v.g. qualquer uma das referidas pelo recorrente.

Termos em que, nesta Relação, se acorda em, negando provimento ao recurso, confirmar na íntegra o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 5 UC’s.

Coimbra, 7 de Abril de 2016

(Jorge França - relator)

(Elisa Sales - adjunta)