Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
68/21.6T8LMG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: DECISÕES DOS JULGADOS DE PAZ
RECURSOS
Data do Acordão: 10/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE ... DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: INDEFERIDA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGO 62.º, N.º 1, DA LEI N.º 78/2001, DE 13-07
Sumário: I - A norma do art.º 62.º da Lei n.º 78/2001, de 13/07 (Lei dos Julgados de Paz, na sua versão atual), dispondo que as decisões proferidas por julgado de paz nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso para o tribunal de comarca, constitui lei especial, com regulamentação completa neste âmbito, que prevalece sobre as normas recursivas do NCPCiv. (lei geral), quanto a critérios de admissibilidade de recurso em função do valor e graus de recurso.

II - Não é admissível recurso para a Relação da decisão do tribunal de comarca que julgue recurso interposto de decisão proferida por julgado de paz.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra

I - Por decisão, datada de 24/06/2022, proferida pelo relator ao abrigo do disposto no art.º 656.º do NCPCiv., foi decidido julgar inadmissível o recurso interposto, não se conhecendo do seu objeto, assim findando a instância recursiva, nos seguintes termos:

I - O A., AA, com os sinais dos autos,

intentou, no Julgado de Paz ..., ação declarativa de condenação contra

BB, também com os sinais dos autos,

formulando pedido de condenação da R. a:

a) Reconhecer ser o Demandante o proprietário do veículo identificado no art.º 1.º da petição, por o haver adquirido por contrato de compra e venda;

ou, se assim não se entender,

b) Reconhecer que o Demandante adquiriu à luz institucional da usucapião a propriedade sobre o veículo, tipo Agrícola, de matrícula ..-..-TA, da marca ...;

c) Seja ordenado o cancelamento de todas as inscrições registrais em vigor sobre o referido veículo a favor da Demandada, de modo a proceder ao registo a favor do Demandante;

d) A pagar ao Demandante a quantia total de € 1.000,00, a título de indemnização por danos morais;

e) Pagar ao Demandante a quantia de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento, nos termos supra expostos;

f) Pagar as custas e demais encargos com o processo.

Contestou a R., concluindo pela total improcedência da ação, com a sua consequente absolvição.

Tramitados os autos, foi proferida sentença:

a) Condenando a Demandada a reconhecer que o Demandante adquiriu o direito de propriedade do trator, tipo Agrícola, de matrícula ..-..-TA, da marca ..., por via de usucapião;

b) Determinando o cancelamento das inscrições registais em nome de CC e BB ao abrigo do disposto nos art.ºs 8.º e 13.º do CRPredial e art.º 29.º do DLei n.º 54/75, de 12-02;

c) Determinando a inscrição do direito de propriedade sobre o veículo indicado em a) a favor do Demandante em virtude de o ter adquirido por usucapião.

De tal sentença recorreu a R. para o Juiz de Direito do Tribunal da Comarca de ... - Juízo Local de ..., pedindo a revogação da decisão recorrida, com declaração de verificação dos vícios e nulidades arguidos.

Apresentada contra-alegação, subiram os autos ao Juízo Local de ..., que decidiu o recurso nos seguintes termos:

«Pelo exposto, decide este Tribunal julgar procedente o recurso, determinando a nulidade da decisão recorrida – art.º 615º nº 1 c) do CPC

Por conseguinte, determina a remessa dos autos ao Julgado de Paz para que apure a factualidade supra exposta e profira nova decisão, caso as partes, sendo pai e filha, não logrem, entretanto, alcançar um acordo.

Custas pelo Recorrido / Demandante – art.º 527º do CPC» ([1]).

Inconformado, veio, então, o A. interpor recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), apresentando motivação e conclusões e pugnando, a final, pela revogação da decisão judicial assim impugnada, mantendo-se a decisão do Julgado de Paz.

Contra-alegou a R., pugnando pela improcedência deste recurso.

Admitida a apelação, foi ordenada a subida dos autos a este TRC.

II - No anterior despacho do aqui Relator, datado de 20/05/2022, consignou-se assim:

«O Recorrente suscitou, na sua peça recursiva, a seguinte «QUESTÃO PRÉVIA»:

«Perante a norma, de natureza especial, do art. 62.º, n.º 1, da Lei n.º 78/2001, de 13-07 (Lei de Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz), as decisões proferidas pelos Julgados de Paz poderão ser objeto de recurso para o Tribunal Judicial em que esteja sediado esse Julgado e desde que o valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância.

A norma do art. 63.º do mesmo diploma institui o CPC como direito subsidiário pelo que “é subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com excepção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes”.

Num processo judicial comum, regra geral, são possíveis duas possibilidades de recurso (para a Relação e para o STJ)

Assim num processo intentado no julgado de paz, são de igual modo possíveis dois graus de recurso, ou seja, para o tribunal da Comarca e para a Relação.

Razão por que se é de admitir o presente recurso, por ser decisão admissível de recurso e o Recorrente estar em tempo e ter legitimidade.».

Respondeu a Recorrida pela seguinte forma:

«DA IRRECORRIBILIDADE DA DECISÃO IMPUGNADA – Da inexistência de dupla jurisdição numa decisão do Julgado de Paz da violação do disposto no artigo 62º da LJP:

A primeira questão a apreciar nesta resposta, prende-se com a irrecorribilidade da sentença proferida, nos autos atento o facto de se terem esgotado as hipóteses recursivas no caso em concreto.

Como consta dos autos, estamos perante uma decisão do Julgado de Paz ..., com a qual a recorrente BB (ora recorrida) não se conformou e, por isso, dela interpôs recurso.

Veio a Senhora Juiz do Juízo Local Cível ..., a considerar procedente a nulidade invocada e nessa medida a proferir sentença, com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, decide este Tribunal julgar procedente o recurso, determinando a nulidade da decisão recorrida – art.º 615º nº 1 c) do CPC. Por conseguinte, determina a remessa dos autos ao Julgado de Paz para que apure a factualidade supra exposta e profira nova decisão, caso as partes, sendo pai e filha, não logrem, entretanto, alcançar um acordo.

Não se conformando o recorrido com tal aresto decisório dele interpôs o recorrido AA recurso para o Tribunal da Relação, recurso este a que agora se responde.

Assim, desde logo, entende a recorrida que o recurso interposto deve ser rejeitado – senão desde logo proferido despacho em primeira instância que não o admita – na medida em que, contrariamente ao que o recorrente pretende fazer crer não existe um “duplo grau de jurisdição”.

Como já foi decidido noutros processos, não cabe recurso para o Tribunal da Relação de decisões de Tribunais judiciais que apreciaram recursos de decisões provindas do Julgado de Paz (…).

Pelo que, acolhendo-se tal entendimento também neste caso ser proferida decisão que considere não admissível o recurso intentado pelo recorrente, como de direito se afigura devido, já que, nos termos da Lei, não é admissível recurso de decisão do tribunal de Comarca que decidiu recurso intentado de decisão proferida no Julgado de Paz.».

O Tribunal de Comarca admitiu o recurso para a Relação, «Embora com dúvidas, pelas razões apontadas pelos recorridos, que pugnam pela inadmissibilidade do recurso, e sempre ressalvando melhor e superior entendimento, considerando que o teor da decisão aqui proferida foi de declarar nula a decisão do Julgado de Paz (…)».

A Recorrida invoca jurisprudência fundamentada e ponderada no sentido da não admissibilidade deste recurso.

Trata-se, efetivamente, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de 24/09/2020, Proc. 25462/18.6T8LSB-A.L1-2 (Rel. NELSON BORGES CARNEIRO), disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:

«I – Não é admissível recurso para o tribunal da Relação da sentença proferida em 1ª instância em recurso interposto de processo instaurado em julgado de paz.

II – Em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado, não integra forçosamente o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição.».

E na fundamentação jurídica deste aresto do TRL pode ler-se:

«Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso – art. 9º, nº 2, do CCivil.

Primeiro, temos de concluir da leitura do art. 62º, da LJP, que este só permite que as decisões proferidas nos julgados de paz nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância possam ser impugnadas por meio de recurso a interpor para o tribunal judicial de comarca, e já não deste para o tribunal da Relação, por não haver na letra da lei um mínimo de correspondência verbal quanto à possibilidade de se recorrer para este tribunal.

E, nem se poderá fazer uma interpretação extensiva da norma, por se entender que o legislador disse menos do que queria, pois foi bem explicito ao só permitir que as decisões cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância possam ser impugnadas para o tribunal judicial de comarca.

Aliás, se o legislador quisesse que fosse admissível recurso destas decisões para os tribunais da Relação, tê-lo-ia dito de uma forma expressa e sem rodeios, como o fez em outros tipos de processos.

[Por] outro lado, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 24 de maio de 2007 ao decidir no sentido da alternatividade da competência dos Julgados de Paz, vem reforçar a ideia de que não será admissível recurso para os tribunais da Relação.

O Supremo Tribunal de Justiça, através de acórdão de 2007, concluiu pela existência de um concurso de competências materiais e territoriais entre juízos de pequena instância cível e julgados de paz. Deste modo, sempre que, atendendo às restrições da sua competência material e atendendo à sua implantação territorial efetiva, o julgado de paz puder decidir um litígio, a sua competência concorre com a comum. A opção por uma ou por outra jurisdição depende de escolha da parte. A solução parece-nos ser a boa atendendo à consagração do direito de acesso aos tribunais. Este dado poderá, no entanto, concorrer para uma diminuição do impacto que os julgados de paz têm no acesso à jurisdição estadual, sendo eventualmente menor a percentagem de litigiosidade que virão a absorver.

Assim, as partes poderão optar, expressa ou tacitamente, por outra jurisdição – a judicial ou a arbitral.

Optando pela jurisdição arbitral, sabem que as decisões aqui proferidas só poderão ser impugnadas para o tribunal de 1ª instância (e cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância), e não já deste para o tribunal da Relação, mesmo que o valor da ação seja superior ao valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância.

Se optarem pela via judicial, sabem que que é admissível recurso nas ações de valor superior à alçada do tribunal judicial de 1.ª instância.

Não podem é optar pela via arbitral e depois pretenderem recorrer para o tribunal da Relação, isto é, como se tivessem optado inicialmente, pela via judicial.

Aliás, a doutrina analisada a este propósito é no sentido da inadmissibilidade de recurso para o tribunal da Relação das decisões proferidas pelos julgados de paz.

(…)» (itálico aditado).

Parecendo consistentes estes argumentos, que conduzem à solução da inadmissibilidade do recurso – este foi admitido, à cautela, pelo Tribunal de Comarca –, configurada fica a possibilidade do não conhecimento do recurso nesta Relação [cfr. art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs b) e h), e 655.º, ambos do NCPCiv.].

Nesta perspetiva, e visto o disposto naquele art.º 655.º, se é certo que a questão foi suscitada pelo próprio Recorrente, a resposta da Recorrida trouxe elementos novos, a merecerem dedicada ponderação, razão pela qual se justifica, ainda assim, o cumprimento do disposto no n.º 2 de tal art.º 655.º.

Termos em que, antes de mais, se determina a audição do Recorrente, em 10 dias, sobre a questão do não conhecimento do objeto do recurso, atento o pendor da jurisprudência mencionada.

Após, decidir-se-á sobre tal matéria, nos moldes legais.

Notifique-se às partes.».

III - O Recorrente tomou posição, reiterando o que já expendera anteriormente, para o que invocou jurisprudência das Relações que conheceu de recursos de apelação em casos similares, quanto à origem em Julgados de Paz, e concluindo por dever conhecer-se do objeto do recurso interposto, mediante decisão de revogação da decisão recorrida nos termos invocados nas alegações de recurso apresentadas.

Para tanto, aludiu, sem prejuízo de outros, a um Ac. TRC «disponível em dgsi.pt, datado de 21-05-2019 proferido no âmbito do processo n.º 129/18.9T8MMV.C1», onde se conheceu de «questões provenientes de autos com origem nos Julgados de Paz (sem que, aliás, se tenha suscitado esta questão de conhecimento do objeto de Recurso)».

IV - Apreciando

É certo haver jurisprudência das Relações versando sobre recursos – ali conhecidos – em processos com origem em Julgados de Paz (da decisão do Julgado de Paz houve recurso para o Tribunal de Comarca e da decisão recursiva deste foi interposto novo recurso, para a Relação, que dele conheceu).

Todavia, não se mostra que em tais casos tenha sido enfrentada, especificamente, a questão – que aqui nos ocupa – da (in)admissibilidade de recurso para o tribunal da Relação da sentença proferida em 1.ª instância em recurso interposto de processo instaurado em julgado de paz ([2]).

Aliás, no mencionado Ac. TRC de 21/05/2019 ([3]) logo se surpreendeu, no âmbito do recurso de apelação, que:

«Como resulta do disposto nos artigos 57.º e 60.º do Regulamento dos Julgados de Paz (Lei n.º 78/2001, de 13/7, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31/7), naqueles Julgados a tramitação das audiências e requisitos de elaboração das sentenças, têm um cariz diferente do previsto para os Tribunais Judiciais, designadamente, naqueles – ao contrário destes –  não se procede à gravação da prova produzida, por opção legislativa, conhecida das partes que a eles recorrem.

O que, efectivamente, assim aconteceu, como se constata da análise das actas da audiência de julgamento de fl.s 120/4, 148/152 e 236 e v.º.

Por outro lado, como se pode concluir da leitura da sentença recorrida, na fundamentação da matéria de facto atinente, relativamente a grande parte da matéria dada como provada e não provada (em que se inclui a sindicada), a Juiz de Paz fundamentou-se, para além da prova documental nela referida, na prova testemunhal produzida em audiência, depoimentos de parte e inspecção ao local.

Como é óbvio, no que toca à prova testemunhal e por depoimento de parte, dado não terem sido gravados, está este Tribunal impedido de os sindicar, valendo, nesta parte, o princípio da livre apreciação da prova, inerente ao acto de julgar, tal como decorre do disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC.» (itálico aditado).

O que significa que, entre as especificidades do recurso da decisão proferida por Julgado de Paz, está a impossibilidade de sindicância quanto à decisão relativa à matéria de facto com base em prova pessoal, visto inexistir gravação das declarações ou dos depoimentos oralmente produzidos, impedindo o acesso do Tribunal de recurso a esse material probatório.

O que constitui, como bem se compreende, manifesta e importante limitação quanto ao âmbito do recurso sobre a decisão relativa à matéria de facto, inviabilizando, nessa parte, sequer o duplo grau de jurisdição, o que as partes conhecem e assumem – como vincado naquele aresto do TRC – quando optam por submeter o caso aos Julgados de Paz.

Obviamente, maiores garantias confere nesta matéria a jurisdição dos Tribunais Judiciais (comuns), permitindo aquele duplo grau de jurisdição em matéria de decisão de facto.

E as diferenças não se ficam por aqui. 

 É que, como já salientado anteriormente nos autos, há jurisprudência consistente e fundamentada – que a argumentação da parte recorrente não logra deixar abalada – no sentido de não ser admissível o interposto recurso de apelação.

Com efeito, concorda-se inteiramente com a fundamentação explanada no aludido Ac. TRL de 24/09/2020 ([4]), onde foi entendido que:

a) Não é admissível recurso para o tribunal da Relação da sentença proferida em 1ª instância em recurso interposto de processo instaurado em julgado de paz;

b) Em matéria cível, o direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado, não integra forçosamente o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição.

Fundamentação essa já citada anteriormente, à qual se adere e a que nada mais se impõe acrescentar, obrigando à rejeição da tese contrária, perfilhada pela parte recorrente.

Não tem, pois, razão o Tribunal a quo ao admitir o recurso ([5]).

E nem a decisão que admita o recurso vincula o Tribunal superior (cfr. art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs a) e b), e 653.º a 655.º, todos do NCPCiv.), devendo o relator proceder ao exame preliminar do processo, apreciando, nesse âmbito, se alguma circunstância obsta ao conhecimento do objeto recursivo.

Em suma, não é admissível a pretendida interposição de recurso, vedando a lei o recurso de apelação, para o tribunal da Relação, da decisão do Tribunal de 1ª instância sobre recurso interposto de processo instaurado em Julgado de Paz.

Donde que a decisão judicial impugnada seja irrecorrível nos moldes pretendidos, afastando a admissibilidade do recurso interposto, o que obriga à sua rejeição, isto é, in casu, ao não conhecimento do seu objeto [art.ºs 652.º, n.º 1, al.ªs b) e h), segunda parte, e 655.º, ambos do NCPCiv.].

                                                           ***

V - Decisão

Pelo exposto, e decidindo, por não ser admissível o recurso interposto, não se conhece do seu objeto, assim se julgando finda a instância recursiva.

Custas pela parte aqui recorrente (…)..

II - Discordando do assim decidido, veio o Recorrente reclamar para a Conferência, ao abrigo do disposto no art.º 652.º, n.º 3, do NCPCiv., para que sobre a matéria da decisão singular proferida recaia acórdão deste Tribunal da Relação, continuando a pugnar pela admissão e procedência do recurso interposto.

Invoca, no essencial, que o regime recursivo previsto no NCPCiv. é de aplicação subsidiária em matéria processual de Julgados de Paz, só não permitindo o recurso para o STJ, tendo em conta que “as normas que regem a matéria da admissibilidade de recursos não devem ser interpretadas restritivamente”.

Acrescenta que o “direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado deve integrar o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição sob pena de considerar-se como violadora do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º da CRP”.

Tudo para concluir, ainda, pelo seguinte modo:

«(…)

2º Os julgados de paz são tribunais não judiciais ou mistos, tendo em conta a sua natureza obrigatória (e não voluntária como os outros meios de resolução alternativa de litígios) e os métodos que utilizam na resolução do conflito, procurando sempre o acordo e afastando a conceção adversarial de litígio;

3º As decisões proferidas nos julgados de paz nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal judicial de 1.ª instância (isto é, a partir de € 2.500,01) podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para o tribunal judicial de comarca em que esteja sediado o julgado de paz;

4º E isto, ao contrário do que sucede nos tribunais judiciais onde as decisões também podem ser impugnadas através de recurso, desde que cumpram os requisitos previstos para o efeito.

5º Ou seja, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal;

6º Ora, o que torna evidente e claro que existe uma norma especial quanto à recorribilidade destas decisões do julgado de paz que tão só têm como requisito o valor da ação a partir de € 2.500,01, que não pode ser olvidada.

7º O art. 63° do mesmo diploma estabelece que “é subsidiariamente aplicável, no que não seja incompatível com a presente lei e no respeito pelos princípios gerais do processo nos julgados de paz, o disposto no Código de Processo Civil, com exceção das normas respeitantes ao compromisso arbitral, bem como à reconvenção, à réplica e aos articulados supervenientes;

8º Esta norma institui, o Código de Processo Civil como direito subsidiário, que é;

9º Assim só poderemos afirmar a existência de impossibilidade de recurso destas decisões proferidas pelos Julgados de Paz para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao regime geral de recursos do nosso sistema processual civil, pois, só neste caso, a sua admissibilidade iria possibilitar, uma terceira hipótese de recurso, o que não é previsto, como é notório, face ao regime adjetivo vigente;

10º E, ainda que não se considerasse que a norma especial (art.º 62.º) da Lei dos Julgados de Paz, por si só já previsse essa possibilidade, sendo possíveis dois graus de recurso, ou seja, para o tribunal da Comarca (que no caso funciona como o tribunal da Relação enquanto o primeiro tribunal de recurso) e para a Relação (enquanto o segundo tribunal de recurso),

11º E, de acordo com as normas subsidiárias do Código de Processo Civil seria sempre de se admitir para este último o recurso de decisões, independentemente do seu valor, que não confirmassem, sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (no caso o Julgado de Paz).

12º Tanto que, de igual modo o art. 10º, nº 1, do Código Civil estipula que os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.

13º E assim, teria sempre aplicação a chamada dupla conforme, aplicando por analogia o disposto no art. 671º, nº 3, do CPCivil, sob pena de se estar a lesar os direitos constitucionalmente consagrados;

14º Aliás, as normas que regem a matéria da admissibilidade de recursos não devem ser interpretadas restritivamente (favorablia amplianda, odiosa restringenda).

15º A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no respetivo art. 47º, consagra o direito à ação e ao julgamento por um tribunal competente e imparcial pré-estabelecido por lei (princípio do juiz natural ou do juiz legal), impondo que no julgamento da causa se proceda de forma equitativa e dentro de um prazo razoável.

16º O direito de acesso aos tribunais constitucionalmente consagrado deve integrar o direito ao recurso ou ao chamado duplo grau de jurisdição sob pena de considerar-se como violadora do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art. 20º da CRP;

17º Razões para que seja admitido o recurso e não pode deixar de ser apreciado, o que se requer seja devidamente reconhecido, assim se fazendo

inteira justiça!!!

(…)».

A contraparte nada veio dizer.

III - Apreciando

Não tem razão – salvo o devido respeito – a parte Recorrente/Reclamante.

A qual, desde logo, continua a afirmar a argumentação anteriormente expendida em tomada de posição prévia, matéria que foi objeto da decisão singular sob reclamação, cujos fundamentos aqui se confirmam.

Assim, fica prejudicada a argumentação agora reafirmada em contrário, nesta parte, pelo Recorrente – designadamente, as consequências que pretende retirar, em matéria de recurso, do caráter subsidiário do CPCiv., tal como a pretensa violação da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou da Constituição da República Portuguesa, mormente quanto à garantia do invocado duplo grau de jurisdição –, antes se dando por reproduzidas as razões constantes da fundamentação da decisão aqui reclamada, onde são explicitados – apesar da incompreensão do Reclamante – os motivos da decisão.

Ainda assim, é de vincar que o direito ao recurso não pode ser entendido como irrestrito ou ilimitado – também não o é no âmbito do CPCiv., havendo decisões irrecorríveis, designadamente em função do valor e da sucumbência ([6]) –, o mesmo se podendo dizer da garantia do duplo grau de recurso ([7]).

De salientar também que, nos termos da Lei n.º 78/2001, de 13/07 (sobre a «Organização, competência e funcionamento» dos Julgados de Paz), na sua versão atual, valem neste plano os seguintes «Princípios gerais» (art.º 2.º):

«1- A atuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes.

2 - Os procedimentos nos julgados de paz estão concebidos e são orientados por princípios de simplicidade, adequação, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.» (itálico aditado).

Isto é, estes meios de resolução de conflitos, com competência limitada a «questões cujo valor não exceda (euro) 15 000» (art.º 8.º daquela Lei n.º 78/2001), são vocacionados para a solução consensual dos litígios, de forma participada, com procedimentos marcados, em qualquer caso, pela simplicidade, informalidade, oralidade e insuperável economia processual.

Daí que bem se compreenda que, em matéria de recursos – regulada no art.º 62.º do mesmo diploma legal (norma especial) –, apenas se preveja/admita um grau de recurso:

«1 - As decisões proferidas nos processos cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas por meio de recurso a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o julgado de paz.

2 - O recurso tem efeito meramente devolutivo.» (destaques aditados).

Assim, longe de haver lacuna ou insuficiência de regulamentação na matéria de recursos em discussão, existe previsão legal específica (fechada) nessa matéria, pelo que não faz sentido invocar o CPCiv., como lei subsidiária, para defender os pretendidos dois graus de recurso (também para a Relação).

Isto é, o legislador, na dita norma especial, previu e regulou de forma completa esta matéria de impugnação recursiva, apenas permitindo o recurso para os tribunais de comarca. Assim, havendo regulamentação completa/esgotante neste âmbito, não faz sentido – salvo o devido respeito – convocar, subsidiariamente, a disciplina recursória do CPCiv., que se direciona a outro tipo de litígios e de decisões (as decisões judiciais), de pleno, aqui, no campo jurisdicional, no âmbito, pois, de processos que não se deixam limitar pelas aludidas ideias dominantes de simplicidade, informalidade, oralidade e absoluta economia processual.

Bem se compreende, pois, que haja maiores garantias recursivas na esfera das ações judiciais – dito campo jurisdicional – do que no quadro dos «procedimentos nos julgados de paz», mostrando-se «razoável» e «proporcional» que, para litígios com maior simplicidade e menor valor económico, onde prevalecem aqueloutros princípios da informalidade, oralidade e absoluta economia processual, apenas se permita um grau de recurso.

Também por isso, não faria sentido defender possibilidades mais amplas de recurso nos procedimentos nos julgados de paz do que nas ações judiciais, como parece advogar o Recorrente/Reclamante, ao invocar que seria sempre de se admitir recurso para a Relação «de decisões, independentemente do seu valor, que não confirmassem, sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (no caso o Julgado de Paz)» (cfr. conclusão 11.ª).

Ora, nem nas ações judiciais é admissível, por regra, recurso para a Relação independentemente do valor (cfr. art.º 629.º do NCPCiv.), sendo irrazoável, como é de perspetivar, pretender-se uma maior cobertura recursiva, em termos de valor/graus de recurso, do que na órbita dos processos jurisdicionais.

E nem se entenderia, por outro lado, que nos procedimentos decididos nos julgados de paz pudesse haver recurso para a Relação independentemente do critério da sucumbência, que aquele art.º 62.º (lei especial) dispensa, mas que é decisivo para as ações judiciais cíveis, como resulta do disposto no art.º 629.º, n.º 1, do NCPCiv. (norma geral).

Termos em que, inexistindo, no âmbito sob enfoque, qualquer incompletude, irrazoabilidade ou desproporcionalidade na solução plasmada na norma especial do citado art.º 62.º, é de concluir que não resultam postos em causa, mediante a interpretação aqui adotada, quaisquer princípios da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia ou ditames da nossa Constituição.

Em suma, improcedendo as conclusões do Reclamante, é de sufragar o entendimento plasmado na decisão singular proferida pelo relator ([8]).

(…).

V - Decisão

Termos em que se decide, em Conferência, indeferir a reclamação, confirmando-se a decisão singular do relator, no sentido da inadmissibilidade do recurso interposto, a determinar o não conhecimento do seu objeto, julgando-se, por isso, finda a instância recursiva.

Custas pelo Reclamante/Recorrente (vencido).

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 11/10/2022

Vítor Amaral (relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro



([1]) Cfr. decisão datada de 20/01/2022, com a ref. 89745598 (com destaque retirado).
([2]) Antes parecendo que se partiu do pressuposto – não examinado – da admissibilidade do recurso de apelação (para a Relação).
([3]) Proc. 129/18.9T8MMV.C1 (Rel. Arlindo Oliveira), disponível em www.dgsi.pt.
([4]) Proc. 25462/18.6T8LSB-A.L1-2 (Rel. Nelson Borges Carneiro), disponível em www.dgsi.pt, com pronúncia efetiva sobre a específica questão em apreciação.
([5]) É certo que o fez «à cautela», sendo seguro, por outro lado, que já foi cabalmente exercido o contraditório.
([6]) Quadro em que, como é sabido, «o legislador visou compatibilizar o interesse da segurança jurídica potenciada por múltiplos graus de jurisdição, com outros ligados à celeridade processual, à racionalização dos meios humanos e materiais ou à dignificação e valorização da intervenção dos tribunais superiores. Se, em abstracto, a multiplicidade de graus de jurisdição é susceptível de conferir mais segurança às decisões judiciais, não deve servir para confrontar tribunais superiores de forma massificada» – cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 35. E prossegue este Autor (citando Lopes do Rego): «as “limitações derivam, em última análise, da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os tribunais superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais”» (op. e loc. cits.).
([7]) Ainda segundo Abrantes Geraldes (op. cit., p. 277), «O triplo grau de jurisdição em matéria cível não constitui uma garantia constitucional generalizada», não existindo «obstáculos absolutos à previsão de determinados condicionalismos» àquele triplo grau de jurisdição (ou dupla via de recurso, mediante duas instâncias recursivas), contanto que as soluções legais não sejam «irrazoáveis» ou «desproporcionadas». E acrescenta que a «questão foi já colocada por diversas vezes ao Trib. Constitucional», em diversas matérias, o qual «vem uniformemente entendendo que as normas que, em concreto, limitam o recurso para o Supremo não estão feridas de inconstitucionalidade», o mesmo podendo dizer-se «das regras que restringem o recurso de decisões intercalares e da assunção, como regra geral, da inadmissibilidade de recurso em situações de dupla conforme» (cfr. ps. 277-278). Razões que valem, mutatis mutandis, para o duplo grau de recurso pretendido pelo aqui Recorrente, em causas iniciadas nos Julgados de Paz.
([8]) Neste mesmo sentido se pronunciou o recente Ac. TRC de 12/07/2022, Proc. 890/21.3T8LMG-A.C1 (Rel. Alberto Ruço), em www.dgsi.pt, em que foram adjuntos os aqui relator e 1.º adjunto, em cujo sumário pode ler-se: «Tendo sido instaurada a ação em julgado de paz e tendo sido interposto recurso para o tribunal de comarca, a lei não permite um segundo recurso, agora da decisão proferida pelo tribunal de comarca para o tribunal da Relação.».