Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1464/11.2TBGRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: AVAL
ERRO SOBRE OS MOTIVOS
REVELIA
EXEQUENTE
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 05/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 334º C. CIVIL; 813º E 817º, Nº 3 DO CPC.
Sumário: I – A revelia do exequente é inoperante quando a lei exija, para prova dos factos da oposição, documento escrito, o qual não pode ser suprido pela falta de contestação daquela parte.

II - O erro sobre os motivos determinantes da prestação do aval só releva, como causa de anulação do negócio jurídico cambiário correspondente, no caso de reconhecimento, por acordo, da essencialidade desses motivos, não sendo suficiente o conhecimento, pelo declarante, dessa essencialidade.

III - Não é admissível a extinção, por denúncia do avalista, da obrigação cambiária de aval.

IV - Age em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o portador da livrança que, depois de declarar aos avalistas que a conta caucionada estava regularizada, continua a conceder crédito à sociedade subscritora, através da renovação do contrato de abertura de crédito, num momento em que aqueles já tinham perdido o seu interesse naquela sociedade.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

Banco I…, SA promoveu, no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, através de requerimento executivo apresentado por via electrónica no dia 5 de Dezembro de 2011, contra A…, Lda. e outros, acção executiva para pagamento de quantia certa, para destes haver a quantia de € 33 778,29, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de € 2 862,15, e dos vincendos, contados à taxa anual de 4%, até pagamento.

Alegou, como fundamento desta pretensão executiva, que, na qualidade de tomador, é portador de uma livrança de caução, no valor de € 33 778,29, emitida no dia 3 de Julho de 2002, com vencimento no dia 7 de Julho de 2010, subscrita pela primeira executada e avalizada pelos restantes, que, apresentada a pagamento não foi paga, na data do vencimento nem posteriormente.

Os executados P…, C… e S… opuseram-se à execução pedindo, relativamente a si, a extinção dela.

Alegaram, com fundamento da oposição, que livrança foi avalizada em branco, dela constando apenas a data do seu preenchimento, que prestaram o seu aval no pressuposto do curto prazo, que eram pessoas com interesse na sociedade executada, facto que era do conhecimento da exequente, que foi informada da cessão e passou a conceder crédito à sociedade, mesmo após se terem desvinculado da empresa, razão que motivou a prestação do aval, que desde meados de 2003 que não têm qualquer interesse na executada, tendo cedido as suas participações, que, pouco tempo após se terem desvinculado da sociedade, tiveram o cuidado de perguntar junto da executada se a situação da conta caucionada prestada à empresa estava regularizada, ao que os funcionários do Balcão da Guarda responderam afirmativamente, que desconhecem a actual situação do financiamento prestado pela exequente, estando convencidos que a sociedade executada na devia à exequente, que a executada teve conhecimento de que deixaram de ser sócios da executada e que foi nessa condição que deram o aval à conta caucionada aberta em favor da executada, que foi paga no momento da cessão ou pouco depois, que a exequente deveria ter obtido, na renovação da conta caucionada a renovação das garantias, desconhecendo se a exequente renovou ou não aquela conta e se a sociedade executada ficou em dívida junto da exequente, que se soubessem que seu aval iria ter valo mesmo depois de cederem as quotas da sociedade não o teriam prestado ou não teriam cedido as quotas, que não teriam prestado o seu aval se imaginassem que iria durar para sempre, que quando renovou a conta caucionada, depois de 2004, a exequente sabia que já se sentiam desobrigados e que lhes era bastante a garantia pessoal dos restantes avalistas, que tendo prestado um aval em 2002, para uma obrigação de curto prazo, a obrigação de garantia dada está prescrita, e que não têm memória de terem concedido autorização à exequente para colocar a data aposta, sendo que obrigação relativa à conta caucionada hã muito estava vencida.

O exequente não contestou.

                A oposição foi logo no despacho saneador julgada improcedente.

É esta decisão de improcedência que os opoentes impugnam no recurso ordinário de apelação, no qual pedem a redução do montante da sua responsabilidade ao valor em dívida no momento em que deixaram de ser sócios da executada.

Os recorrentes remataram a sua alegação com estas conclusões:

Não foi oferecida resposta.

2. Factos provados.

O Tribunal de que provém o recurso julgou provados – designadamente com fundamento no ónus da impugnação a que alude o art. 490º/1 e 2, do CPC ex-vi arts. 463º/1 e 817º/2 ambos do CPC – os factos seguintes:

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC). Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC).

O objecto da acção executiva é necessariamente, e apenas, um direito a uma prestação, visto que só este direito impõe um dever de prestar e só este dever de prestar pode ser imposto coactivamente.

Sendo o objecto da acção executiva uma pretensão – i.e., uma faculdade de exigência da prestação que é correlativo de um poder de aquisição dessa prestação – tal pretensão mantém, na execução, todas as características do seu regime substantivo. É, por isso, que são oponíveis à pretensão todas as excepções peremptórias como, por exemplo, a prescrição (artº 493 nºs 1 e 2 e 814 nº 1 g) do CPC).

A exequibilidade intrínseca da pretensão respeita à inexistência de qualquer vício material ou excepção peremptória que impeça a realização coactiva da prestação. Essa exequibilidade é, na realidade uma condição processual de procedência, ou seja, uma condição da qual depende a concessão de tutela jurisdicional que, no caso concreto, é a execução da prestação.

Uma das situações típicas de não accionabilidade da pretensão é a prescrição, que constitui uma excepção peremptória.

Esta excepção atinge a faculdade de exigência da prestação e, portanto, a exequibilidade intrínseca, mas em contrapartida não atinge o poder de aquisição da prestação, dado que, apesar da prescrição, o credor continua a possuir um título de aquisição de qualquer prestação que seja realizada voluntariamente pelo devedor (artº 304 nº 2 do Código Civil).

Um dos fundamentos da oposição à execução alegados pelos recorrentes consistia, justamente, na prescrição da obrigação cambiária exequenda, fundamento que – tal como todos os demais – foi julgado improcedente logo no despacho saneador.

Na sua alegação – e o que é mais – nas conclusões com que a remataram, os recorrentes não se referiram sequer, àquele fundamento da oposição. Nestas condições, há que concluir que os recorrentes renunciaram, ainda que tacitamente, à impugnação, no tocante ao apontado fundamento de oposição e, portanto, que nessa parte, a decisão recorrida passou em julgado (artº 684 nº 3 do CPC).

Em contrapartida, esta Relação é chamada a pronunciar-se sobre uma questão que não foi colocada na instância recorrida, que não foi alegada, naquela instância, como fundamento da oposição: o abuso do direito.

 A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[1].

Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrida e das alegações dos recorrentes, as questões concretas controversas colocadas à atenção desta Relação são as de saber se:

a) A decisão da matéria de facto deve ser, com fundamento em error in iudicando, objecto de modificação e ampliação;

b) Deve anular-se, com fundamento em erro, a declaração cambiária de aval dos recorrentes;

c) O negócio jurídico de aval deve, com fundamento na indeterminabilidade, ser declarado nulo;

d) O aval foi extinto por denúncia;

e) A livrança que serve de título executivo foi preenchida em violação do pacto ou acordo de preenchimento;

f) O exequente, ao promover, contra os recorrentes, a realização coactiva da prestação pecuniária incorporada na livrança, age em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

A resolução destes problemas vincula à ponderação, ainda que leve, das regras a que obedece a distribuição, na oposição à execução, do ónus da prova dos respectivos fundamentos, da composição da oposição à execução por revelia do exequente, ao exame do título que serve de suporte à execução e das consequências da violação do pacto do seu preenchimento, da declaração cambiária de aval, da determinabilidade deste negócio cambiário e da admissibilidade da sua denúncia, dos pressupostos do erro-vício nesta declaração e, finalmente, do abuso de direito.

3.2. Ónus da prova dos fundamentos da oposição e composição da oposição à execução por revelia do exequente.

A oposição à execução constitui o meio de contestação desta (artº 813 n.º 1 do CPC).

A oposição é um processo declarativo instaurado pelo executado contra o exequente, que corre por apenso à execução, constituindo um incidente desta (artº 817 nº 1 do CPC).             A oposição fundamenta-se num vício que afecta a execução. Se for julgada procedente, a acção executiva deve ser julgada extinta, no todo ou em parte (artº 817 nº 4 do CPC).

No tocante ao ónus da prova dos fundamentos da oposição valem as regras gerais, cabendo, portanto, ao executado oponente a prova dos fundamentos de oposição invocados, dado que revestem a nítida feição de factos constitutivos da oposição deduzida (artº 342 nº 1 do Código Civil)[2].

O encargo da prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito cuja satisfação coactiva constitui objecto da execução recai, pois, sobre o opoente[3]. Portanto, a oposição não provoca qualquer refracção às regras gerais sobre a distribuição do ónus da prova. Assim, por exemplo, se o opoente impugnar a letra ou assinatura do documento particular que constitua o título executivo, cabe ao exequente, que o apresentou, a prova da veracidade de uma e de outra (artº 374 nº 2 do Código Civil)[4].

A composição da oposição à execução pode ser decisivamente influenciada pela omissão de um acto processual: a abstenção definitiva de contestação pelo exequente.

A contestação da oposição – no qual o exequente pode impugnar as afirmações do executado ou opor uma excepção – constitui um ónus daquela parte, não existindo, assim, qualquer dever de contestar (artº 487 nº 1 do CPC).

A omissão de contestação implica, se a revelia for operante, uma importante consequência – que se produz ex-lege e não ex-voluntate - quanto à decisão da oposição: a confissão dos factos articulados pelo executado opoente, excepto se eles estiverem em oposição com os expressamente alegados por aquela parte no requerimento executivo (artºs 817 nº 3 e 484 nº 1 do CPC).

Todavia, a revelia do exequente é inoperante nos termos gerais (artº 817 nº 3, 1ª parte, do CPC). Um caso em que essa revelia é inoperante é o da exigência de documento escrito para prova dos factos, a qual naturalmente, não pode ser suprida pela falta de contestação (artºs 485 d) do CPC e 364 do Código Civil).

A decisão impugnada não julgou confessados os factos alegados pelos executados opoentes relativos à sua qualidade de sócios da executada, subscritora da livrança, e à cessão das respectivas quotas. Razão: tais factos apenas são passíveis de ser demonstrados por documento e não encontram expressão na certidão do registo comercial adquirida para o processo.

Esta razão é inteiramente exacta. Realmente a qualidade de sócio de sociedade comercial e a cessão da respectiva quota só documentalmente podem demonstrar-se[5] (artºs 7 nº 1 e 228 do Código das Sociedades Comerciais – CSC). Trata-se, nitidamente, de formalidade ad substantiam (artº 394 do Código Civil). E sendo uma formalidade ad substantiam, a revelia do exequente é, no tocante, aos factos correspondentes, inoperante e, portanto, apesar da falta de contestação daquela parte, tais factos não podem considerar-se confessados.

Além disso, a cessão de quota está obrigatoriamente sujeita a registo comercial – que deve ser promovido pela sociedade e feito por simples menção ou depósito – registo que continua a constituir requisito da sua oponibilidade a terceiros (artºs 242-B nº 1 do CSC e 14 nº 1 do Código de Registo Comercial).

Como, no caso, não se mostra adquirido para o documento indispensável à demonstração da qualidade de socio e da cessão da quota, nem o registo patenteia qualquer desses factos, a conclusão a tirar é a de que tais factos – e todos aqueles que pressuponham aquela qualidade – não podem, apesar da revelia do exequente, considerar-se provados.

Todavia, em contrapartida, a revelia do exequente deve ter-se por inteiramente operante no tocante a todos os demais factos alegados pelos opoentes que – para além de não estarem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo – não exijam, para a sua prova, documento escrito.

A decisão impugnada julgou provado, por força da confissão resultante da revelia operante do exequente, que desde meados de 2003 os oponentes não têm qualquer interesse na executada, enunciado de facto que aqueles alegaram no artº 9º da petição inicial da oposição.

Assim, se não pode julgar-se assente por virtude da confissão do exequente, por exemplo, que este foi informado da cessão de quotas, nada obsta a que, se julgue provado, por força dessa confissão, que ao mesmo tempo ou pouco depois – de meados de 2003 – os executados tiveram o cuidado de perguntar junto da exequente se a situação da conta caucionada prestada à empresa estava regularizada, ao que os funcionários do balcão da Guarda responderam afirmativamente – artº 10º do articulado de petição inicial da oposição – que aquela conta foi paga em 2003, ou pouco tempo depois – artº 16º daquele articulado – e que exequente passou a conceder crédito à sociedade, mesmo após 2003 – artº 8º desse mesmo articulado.

Independentemente da impugnação do recorrente, ao enunciado de facto identificado na decisão impugnada com nº 10 – extraído da alegação produzida pelos executados no artº 23º da petição inicial da oposição – deve adicionar-se, de harmonia com aquela alegação, a menção temporal, depois de 2004 (artº 712 nºs 1 a) e 4 do CPC).

 Sendo isto exacto, então há, realmente, razão para que se conclua que a decisão recorrida, ao não julgar provados tais factos incorreu no error in iudicando dessa matéria que os recorrentes lhe assacam e, portanto, para modificar esse julgamento.

E a correcção de um tal erro importa, em resumo, a alteração da decisão da matéria de facto, através da adição, aos fundamentos dessa espécie, dos enunciados seguintes:

10. Quando a exequente renovou o acordo referido em 3), depois de 2004, fê-lo sabendo que os oponentes/executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia pessoal dos restantes avalistas (artigo 23º da petição inicial).

11. Que ao mesmo tempo ou pouco tempo depois da data referida em 8., os executados tiveram o cuidado de perguntar junto do exequente se a situação da conta caucionada prestada à empresa estava regularizada, ao que os funcionários do balcão da Guarda responderam afirmativamente.

12. A conta referida em 11. foi paga em 2003, ou pouco tempo depois.

13. O exequente passou a conceder à sociedade, mesmo após 2003.

Este fundamento do recurso deve, pois, nestes termos, proceder.

Resta, porém, saber se a reconformação da matéria de facto importa a modificação da solução de direito encontrada pela decisão impugnada para a situação jurídica objecto da oposição.

                3.3. Natureza do título que serve de suporte à execução e violação do pacto de preenchimento.

O instrumento de que o exequente é portador é legalmente qualificado como livrança, no qual a executada A…, Lda., os recorrentes e o recorrido figuram nas posições jurídicas de subscritor, avalistas e tomador, respectivamente (artº 75 da LUsLL).

A livrança é, como a letra de câmbio, um título de crédito em sentido estrito e à ordem. Contudo, diferentemente da letra, não enuncia uma ordem de pagamento de uma pessoa a outra e a favor de uma terceira - mas simples e directamente uma promessa de pagamento (artºs 1 e 75 LUsLL).

Daí que as pessoas que inicialmente figuram na livrança não são três - como ocorre na letra de câmbio - mas apenas duas: o subscritor e o tomador.

Todavia, a livrança é um título de crédito de formação sucessiva, um título susceptível de representar uma pluralidade de obrigações cambiárias, todas com igual objecto: determinada prestação pecuniária.

A obrigação inicial é a do emitente do título - o subscritor. Aquela surge com a declaração cambiária deste na forma de uma promessa de pagamento.

Por força da promessa de pagamento em que se resolve a declaração cambiária de subscrição, a executada A…, Lda. - subscritora – obrigou-se a pagá-la ao portador no vencimento, rectior, a entregar-lhe a quantidade de espécies pecuniárias nela inscrita; (artº 28, ex-vi artº 78 da LUsLL).

A esta obrigação inicial pode adicionar-se uma obrigação de garantia: a constituída pelo aval. Pelo aval, um terceiro garante o pagamento da livrança por parte do subscritor; ao lado da obrigação do subscritor da livrança vem inserir-se a decorrente do aval, que cauciona aquela.

Por força da declaração cambiária de aval – que consiste, justamente, no acto pelo qual um terceiro ou um signatário da livrança garante o pagamento dela por parte de dos seus subscritores – o recorrente assumiu uma obrigação de garantia – garantia da obrigação do avalizado, que a cobre e cauciona (artºs 30 e 31, ex-vi artº 77, XI, da LUsLL).

A lei é terminante na declaração de que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (artº 32, I, da LUsLL). Trata-se, todavia, não de uma responsabilidade subsidiária – mas de uma responsabilidade solidária, dado que não goza do benefício da excussão prévia (artº 47, I, da LUsLL). Além de não ser subsidiária, aquela obrigação só imperfeitamente é uma obrigação acessória relativamente a do avalizado: trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da obrigação do avalizado no plano formal, dado que a obrigação do avalista se mantém ainda que a obrigação garantida seja nula, excepto se nulidade decorrer de vício de forma.

Portanto, no que respeita aos efeitos do aval, do ponto de vista da situação passiva do avalista, o aspecto mais relevante é este: o carácter solidário da responsabilidade do avalista, com a dos demais obrigados cambiários: o avalista não goza do benefício da excussão prévia do subscritor da livrança, respondendo em primeira linha pelo seu pagamento diante do portador.

Para além de literal, a obrigação cambiária é também abstracta.

A criação da obrigação cartular pressupõe uma relação jurídica anterior que constitui a relação jurídica subjacente ou fundamental, causa remota da assunção da obrigação cambiária. Todavia, por força do princípio da abstracção, a causa encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrente de uma convenção extra-cartular: a convenção executiva em conexão com a relação fundamental.

A obrigação cambiária é vinculante independentemente dos vícios da sua causa: as excepções causais são inoponíveis ao portador da livrança precisamente porque decorrem de uma convenção executiva extra-cartular, exterior ao negócio jurídico cambiário (artº 17, ex-vi artº 77, 1ª parte, da LUsLL).

Mas isto só é assim nas relações mediatas – i.e., aquelas que se verificam entre um subscritor e um portador que se lhe não siga imediatamente na cadeia cambiária e que, portanto, não é sujeito da convenção extra-cartular - as excepções ex-causa só são oponíveis demonstrando-se que o portador, ao adquirir a livrança, procedeu, conscientemente, em detrimento daquele que lhe opõe a excepção (artº 17, ex-vi artº 77, 1ª parte, da LUsLL).

Portanto, o devedor cambiário não pode opor a terceiros excepções fundadas na relação fundamental ou causal da livrança, a não ser que esses terceiros tenham, ao adquirir a livrança, procedido conscientemente em detrimento do devedor.

É, portanto, indispensável que o portador tenha agido, ao adquirir a letra, com a consciência de prejudicar o devedor. No entanto, uma coisa é a intenção de prejudicar, outra, a consciência de prejudicar: o portador, ao adquirir a livrança, pode agir com o propósito de prejudicar o devedor mediante a inoponibilidade, por este, das excepções que tinha contra os precedentes portadores e pode proceder apenas com conhecimento dessas excepções e do prejuízo que é causado ao devedor com a perda delas. O adquirente da livrança, embora não a adquira com a intenção de iludir as excepções do devedor, pode fazê-lo sabendo que o devedor é prejudicado pela circunstância de não poder valer-se delas contra o novo portador.

Não é suficiente, portanto, o simples conhecimento, pelo adquirente, da existência das excepções, visto que a lei exige que o portador tenha agido conscientemente em detrimento do devedor e não age conscientemente em detrimento do devedor quem somente tem conhecimento das excepções que este poderia opor aos portadores antecedentes; não obstante esse conhecimento, pode o adquirente ter razões para supor que o devedor não será prejudicado, não excluindo, necessariamente, esse conhecimento, a boa fé do adquirente. Exige-se, assim, que o adquirente ao adquirir a letra conhecesse a existência da excepção e tivesse consciência de prejudicar o devedor: uma tal consciência significa ter o adquirente conhecimento de que prejudica, com a perda das excepções o devedor, e que ele aceita, voluntariamente, este resultado, querendo provocá-lo ou, ao menos, aceitando-o[6]. A prova deste facto incumbe, naturalmente, ao excipiente (artº 342 nº 2 do Código Civil).

Todavia, nas relações imediatas, i.e., nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato: porque os sujeitos cambiários o são simultaneamente da convenção executiva, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Quando isso suceda, o subscritor ou obrigado cambiário pode opor ao portador as excepções decorrentes das relações pessoais entre ambos.

No caso do recurso, é indiscutível que a livrança que serve de título executivo foi emitida em branco.

A livrança pode ser entregue a terceiro e entrar na circulação em branco.

Livrança em branco é aquela em que falta algum dos requisitos enunciados na lei, mas que incorpora, ao menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária.

Para que exista uma livrança em branco é necessário que lhe falte algum ou alguns dos requisitos essenciais da livrança, havendo no entanto, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário; este obrigado segundo uma opinião só pode ser o subscritor, embora segundo outra – doutrina que se tem por preferível – possa ser um diverso subscritor[7].

A lei não faz distinção nem põe limitações acerca da extensão do que falta no título, podendo ser deixadas em branco todas as declarações necessárias para a existência da livrança ou só algumas delas (artº 10, ex-vi artº 77, 11ª parte, da LUsLL). Basta, portanto, que no título destinado a tornar-se livrança exista uma assinatura que possa valer como assinatura do subscritor ou de outro obrigado cambiário, porque doutro modo não poderia verificar-se a hipótese prevista na lei de uma livrança incompleta quando foi emitida, i.e., de uma livrança susceptível de ser completada sem necessidade de uma ulterior cooperação do emitente (artº 10, ex-vi artº 77, 11ª parte, da LUsLL)[8].

Para existência de uma livrança em branco é necessário que o documento incompleto, subscrito, v.g., pelo subscritor, tenha sido emitida, ou seja entregue ao tomador, ou tenha de algum modo chegado à posse de um terceiro.

A livrança em branco não é, enquanto lhe faltar qualquer elemento essencial, uma letra plenamente eficaz, sendo, porém, para muitos autores, já um título de crédito endossável, com fundamento em que crédito e a obrigação não surgem apenas com o preenchimento, embora esta seja necessário para fazer valer os direitos cambiários. Para haver um tal livrança, é preciso que lhe falta algum ou alguns dos elementos essenciais, havendo, contudo, pelo menos a assinatura do emitente ou de qualquer outro subscritor[9].

A entrega do título é, nos termos gerais, um elemento essencial à validade da própria obrigação cambiária, e, portanto, a obrigação cambiária não surge se não se verificar a emissão da livrança pelo seu possuidor.

Tratando-se, porém, de livrança em branco, a entrega da livrança deve ser acompanhada de uma autorização, pelo subscritor ao credor, para a preencher. Faltando essa autorização o caso não é de livrança em branco – mas de livrança incompleta.

Com a entrega da livrança assinada em branco o subscritor confere, necessariamente, à pessoa a quem faz a entrega o poder de a preencher e, portanto, o acto de preenchimento tem o mesmo valor que teria se fosse praticado pelo subscritor ou se já tivesse sido praticado no momento da subscrição. Aquilo que se escreve na livrança em branco considera-se escrito pelo subscritor, sendo de presumir que o conteúdo da letra representa a vontade daquele; esta presunção pode, no entanto, ser ilidida pelo subscritor demonstrando que houve abuso no preenchimento, que a livrança foi completada contrariamente aos acordos realizados (artº 10, ex-vi artº 77 da LUsLL).[10].

Quem assina, como subscritor, uma livrança em branco pratica precisamente um acto jurídico que tem a mesma natureza que teria se a livrança estivesse, no acto da assinatura, totalmente preenchida: ninguém apõe normalmente a sua assinatura numa livrança sem ter a intenção de assumir uma obrigação cambiária.

Antes de assinar ou de entregar a livrança em branco, o subscritor – ou outro obrigado cambiário - pode, porém, convencionar com o credor em que termos deve ser feito o preenchimento, qual o conteúdo dos elementos essenciais da livrança ainda em falta. Esta convenção não está sujeita a forma especial[11].

Existindo esta convenção, se houver abuso no preenchimento, i.e., se o possuidor da livrança inserir nela contexto diverso do convencionado, pode o subscritor – ou outro obrigado cambiário - opor a excepção de abuso. A excepção consiste, precisamente, na alegação de que a livrança foi assinada e entregue em branco e que o contexto é diferente do que se ajustara. Como já se observou a prova desta excepção incumbe, claro está, ao subscritor ou subscritores ou outro obrigado cambiário (artºs 342 nº 2 e 378 do Código Civil)[12]. A excepção não é porém oponível ao portador relativamente ao qual os acordos realizados sejam inter alios acta, salvo demonstrando-se que adquiriu a livrança de má fé ou cometido nessa aquisição uma falta grave (artº 10, ex-vi artº 77 da LUsLL).

Como consequência do carácter literal e abstracto que a obrigação cambiária assume logo que o título na qual se inscreve constitutivamente entra na circulação, a oponibilidade da excepção sofre, portanto, um desvio notável: a excepção do preenchimento abusivo não pode ser oposta àquele portador que a recebe completamente preenchida, salvo se este, ao adquiri-la, estiver de má fé ou, adquirindo-a, cometer falta grave (artº 10 da LUsLL)[13].

Com o nítido propósito de facilitar a circulação da livrança em branco, estabelece-se como momento decisivo para avaliar da boa ou má fé do portador mediato, o da recepção da livrança: a má fé posterior não releva. Portanto, o conhecimento do real conteúdo da convenção de preenchimento ou o seu desconhecimento por grave negligência só relevam, para recusar ao portador a protecção, se ocorrerem no momento da transmissão do título. A má fé superveniente, que consiste no conhecimento ou na ignorância negligente daquele preenchimento abusivo, é, assim, indiferente.

Na espécie do recurso, é patente que a livrança foi – duplamente – subscrita em branco dado que dois subscritores dela – a executada A…, Lda., e designadamente, os recorrentes – assinaram o título correspondente incompleto, designadamente quanto ao seu valor. Trata-se, aliás, de uma situação típica: avalizado e avalista subscrevem ambos em branco o título, que o primeiro entrega, de seguida ao terceiro, o qual aquando do preenchimento surgirá como beneficiário.

A razão deste modo de proceder é clara – o reforço da garantia cambiária de uma dívida fundamental de carácter ainda incerto: o subscritor principal entrega o título à sua contraparte na relação extracambiária com vista a assegurar a satisfação de um direito de crédito futuro, eventual e ilíquido, normalmente resultante de uma situação de incumprimento; porém, para fortalecer a posição do credor, adiciona-se um segundo devedor no plano estritamente cambiário, ou seja um devedor que não é, em princípio, parte naquela relação fundamental, mas que materialmente se assume como garante das consequências patrimoniais desvantajosas provocadas pelo incumprimento do contrato avalizado.

Neste contexto, pergunta-se: ao avalista que subscreveu o título em branco é também facultada a excepção da violação do pacto de preenchimento?

A resposta vincula, segundo a orientação jurisprudencial corrente, a um distinguo consoante o avalista tenha ou não subscrito o pacto de preenchimento e, portanto, se situe nas relações imediatas ou mediatas.

No primeiro caso, i.e., nos casos em que o avalista subscreveu o pacto de preenchimento, segundo aquela orientação jurisprudencial, as relações entre avalista em branco são sempre relações imediatas; ergo, é-lhe lícito opor a excepção pessoal, fundada nas relações imediatas entre avalizado e credor[14]; no segundo caso, como a relação entre portador e avalista não é uma relação imediata e aquele não é sujeito da relação contratual estabelecida entre o avalizado e o portador, e como – diz-se - a excepção do preenchimento abusivo é uma excepção pessoal, fundada nas relações entre avalizado e credor, aquele jamais poderá opô-la (artº 17 da LUsLL)[15].

Esta solução tem-se por exacta, embora seja discutível a via utilizada para a alcançar. Realmente, pode perguntar-se se o problema colocado pela subscrição em branco e pela oponibilidade da excepção do preenchimento abusivo deve ser resolvido por recurso à dicotomia relações mediatas/relações imediatas – e, portanto, por recurso ao artº 17 da LUsLL – ou antes pela aplicação da norma especificamente ordenada para a regulação da subscrição em branco – o artº 10 da LUsLL – a qual permite que o avalista possa prevalecer-se de certas vicissitudes de uma relação fundamental à qual é alheio.

Realmente o credor-portador que preenche o título em desconformidade com o acordo de preenchimento que ele próprio celebrou – tenha ou não o avalista participado nessa convenção – estará quase sempre de má fé e, quando assim não seja, incorre certamente em falta grave, dado que no momento em que adquiriu o título, conhecia ou devia conhecer o acordo de preenchimento por ele próprio concomitantemente subscrito. Em tal caso verificam-se, portanto, os dois pressupostos de que o artº 10 da LUsLL faz depender a invocação do preenchimento pelo subscritor em branco e, no balanço dos interesses subjacentes, compreende-se que a tutela penda para o lado deste último, dada a inidoneidade do portador[16].

Seja como for, mesmo para o entendimento jurisprudencial corrente – que corresponde a jurisprudência firme do Supremo – assente na dicotomia relações imediatas/relações mediatas, ao avalista é também facultada a alegação da excepção do preenchimento abusivo, desde que tenha tido intervenção no pacto de preenchimento: em tal caso, porém, compete-lhe a alegação e a prova do abuso do preenchimento abusivo[17].

E é esse justamente o nosso caso. Desde que, também eles subscreveram o pacto de preenchimento, aos recorrentes é lícita a oposição ao recorrido da excepção do preenchimento abusivo da livrança[18].

Mas uma coisa é facultar-se ao avalista a oposição da excepção do preenchimento abusivo do título em branco, outra, bem diversa é a prova do abuso.

Pergunta-se: no caso a livrança foi completada contrariamente aos acordos realizados, foi preenchida, ainda que parcialmente, com um contexto diferente do ajustado? Em face da matéria de facto apurada – a resposta é definitivamente só esta: não. O cotejo dos termos do acordo ou pacto de preenchimento com os da livrança, não mostra realmente que a exequente, ao proceder ao seu preenchimento, tenha realmente violado aquela convenção.

Este motivo de oposição à execução - e de impugnação da decisão recorrida – não é, pois, procedente.

3.4. Nulidade do aval por indeterminabilidade da respectiva obrigação.

Como mostra a praxis comercial, é extraordinariamente comum a utilização de títulos em branco no âmbito de relações contratuais duradouras – como, por exemplo, a abertura de crédito[19] – como expediente para precaver o incumprimento por parte do financiado.

Como é também comum, os subscritores em branco, instados a honrar a obrigação cambiária, designadamente, a que aval traz implicada, defendem-se com a indeterminabilidade da obrigação correspondente.

Um dos requisitos do negócio jurídico – de qualquer negócio jurídico – é decerto da determinabilidade do seu objecto. O Código Civil é, realmente, terminante em declarar nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável (artº 280 nº 1 do Código Civil). O objecto do negócio jurídico pode ser indeterminado – o que não pode é ser indeterminável.

Indeterminação e indeterminabilidade são, realmente, realidades distintas: a prestação é indeterminada mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu conteúdo, mas não obstante exista um critério de determinação. Exemplos acabados são, decerto, os representados pelas obrigações alternativas e pelas obrigações genéricas; a prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à determinação. Neste caso, a única saída possível, é a da nulidade da obrigação.

O negócio jurídico deve, portanto, dar lugar a prestações conhecidas ou pelo menos, cognoscíveis, pelas partes. Podem as partes, no momento da conclusão do negócio, não fixar o conteúdo das prestações de ambas ou de algumas delas. Mas isso não torna a obrigação nula, desde que, logo nesse momento, seja convencionado o critério que permita a concretização ou determinação do conteúdo da prestação ou prestações. De resto, a própria lei disponibiliza critérios de determinação da obrigação: a determinação da prestação pode ser confiada a uma ou outra das partes ou a terceiro, devendo ser actuada segundo critérios de equidade se outros critérios não tiverem sido convencionados; e se a determinação não puder ser feita, sê-lo-á pelo tribunal (artº 400 nºs 1 e 2 do Código Civil).

Problema de solução difícil é o de saber como se articula a possibilidade de conclusão de negócios cujo objecto embora indeterminado seja determinável com os esquemas disponibilizados pela lei para a determinação, já que, por força desta última previsão, pareceria nunca haver prestações indeterminadas, dado que nunca faltariam, em última extremidade, o tribunal nem a equidade, para proceder à determinação.

A solução exacta parece ser a da interpretação conjugada dos dois preceitos, de que se extrai esta regra: o problema da determinação da prestação, nos termos do artº 400 do Código Civil, só se coloca se a obrigação não for nula, por força do artº 280 do mesmo Código[20].

Portanto, a determinação da prestação – por uma das partes, por ambas ou por terceiros – só pode ser convencionada se tiver sido estabelecido um critério – que pode ser mais ou menos vago - a que a actividade de determinação deva obedecer: o que, porém, não é admissível é que o negócio deixe, ad nutum, tudo ao arbítrio de uma parte ou de terceiro. É, portanto, nulo o negócio jurídico pelo qual uma parte se obriga a pagar à outra o que esta quiser, dado que dá origem a uma prestação absurdamente incontrolável.

O problema da determinabilidade do negócio jurídico tem sido debatido sobretudo a propósito da fiança omnibus de obrigações futuras e deu lugar a uma jurisprudência desencontrada, só tendo a unidade do direito sido reconstituída pelo acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo nº 4/2001, de 23 de Janeiro de 2001[21], que estabeleceu esta doutrina: É nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha.

Deve, portanto, exigir-se que, no momento da conclusão do negócio, se consigne um critério objectivo e limitativo de determinação, que seja determinado o título de que a obrigação futura poderá ou deverá resultar; de contrário, quando não se encontre para a determinação da obrigação um qualquer critério objectivo – com a consequente colocação ilimitada do devedor nas mãos do credor - aquela deve ter-se por irremissivelmente nula (artº 280 nº 1 do Código Civil). Como é claro, esse critério não pode ser o mero arbítrio, sem limites, do credor ou de terceiro.

A exigência de determinabilidade é transversal a qualquer prestação: é, portanto, aplicável às obrigações emergentes de negócios jurídicos cambiários.

A jurisprudência, confrontada com a invocação da nulidade do aval por indeterminação da obrigação cambiária correspondente – decorrente da circunstância de o título ter sido subscrito num momento em que se encontrava desprovido da indicação do respectivo valor e da data do seu vencimento – recusa provimento à arguição, desde que a obrigação assumida seja determinável nos termos do pacto de preenchimento[22].

E justamente isso que sucede no nosso caso. A livrança foi emitida para garantir ou caucionar o cumprimento um contrato de concessão de crédito – mais exactamente para garantia do cumprimento de quaisquer obrigações emergentes do contrato de abertura de crédito no valor de € 30 000,00 – pelo que o montante máximo da garantia foi determinado, logo no momento da emissão da livrança, e, em qualquer caso, era perfeitamente determinável em face dos termos do contrato. Manifestamente, o caso não é de aval omnibus e, portanto, não há a mínima razão para concluir, com fundamento na indeterminabilidade do seu objecto, pela nulidade dele.

3.5. Anulação, por erro, da declaração cambiária de aval.

O aval é um negócio jurídico, embora unilateral. E como qualquer outra declaração negocial exige, naturalmente, que a vontade seja formada de forma esclarecida. A esse esclarecimento opõe-se o erro.

De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que o erro-vício consiste na ignorância ou na falsa representação de uma realidade que poderia ter intervindo entre os motivos da declaração negocial. Mas só há erro quando falta um elemento ou a representação está em desacordo com a realidade existente no momento da formação do negócio jurídico. Se o caso consiste na falsa representação de uma realidade futura, que se não se chega a verificar, o caso - muitas vezes impropriamente chamado de error in futurum - não é de erro, mas de falsa ou deficiente previsão (artº 437 do Código Civil).

Para que o erro seja relevante, exige-se – de harmonia com a doutrina que se tem por preferível – um único requisito – a causalidade: é necessário que o erro seja error causam dans, causa do negócio jurídico nos seus termos concretos[23].

Se, porém, se tratar de erro sobre os motivos do negócio que o seu autor haja declarado serem determinantes da sua vontade, o erro reclama, para que seja fundamento de anulação desse mesmo negócio, que as partes tenham reconhecido, por acordo, a essencialidade desses motivos (artº 252 nº 1 do Código Civil). Note-se, de um aspecto, que se trata de acordo constituído por declarações de ciência e não de vontade, que podem mesmo ser puramente tácitas[24], e de outro, que a simples aceitação do negócio não vale como reconhecimento, no sentido exigido pelo preceito apontado. O que não é, de todo, suficiente é o conhecimento – ou o dever de conhecer – a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que recaiu o erro: é indispensável que as partes, ambas, estejam de acordo em que o aspecto em causa foi determinante da decisão do declarante.

Na espécie sujeita, os recorrentes sustentam que a sua vontade de prestar o aval foi determinada pelo facto de estar em causa uma obrigação de curto prazo e serem sócios da empresa subscritora da livrança e que a exequente conhecia a essencialidade, para os apelantes, dessas condições.

Por não se referir à pessoa do exequente nem ao objecto do aval, o erro alegado pelos recorrentes é um erro sobre os motivos daquele negócio cambiário. E a factualidade provada torna patente que, realmente, os recorrentes prestaram o aval no pressuposto do curto prazo e por terem interesse na sociedade avalizada – facto este que era do conhecimento da exequente - e que não o teriam dado, caso soubessem que iria durar para sempre.

Porém, o que os factos apurados não mostram é que os recorrentes e o recorrido tenham manifestado a sua concordância quanto à essencialidade, para os recorrentes, daqueles motivos, que estivessem de acordo, no momento da subscrição, em que aqueles elementos foram determinantes para a decisão dos apelantes de prestação do aval. Como prova de um tal acordo, competia aos recorrentes, mas este se não livraram do encargo correspondente, o referido erro é irrelevante e não constitui causa de anulação do negócio jurídico cambiário de aval.

3.6. Denúncia do aval.

É também corrente, entre nós, por força da fragilidade do tecido empresarial, com clara predominância das pequenas, médias e micro empresas, a exigência bancária, como condição sine qua non de concessão à sociedade de qualquer forma de financiamento, da assunção, pelos respectivos sócios de uma responsabilidade pessoal, designadamente cambiária, através da concessão de aval[25]. Quando isso ocorre, o património dos sócios passa a responder pelas vicissitudes da actividade societária, com a correspondente dissolução, em termos económicos, da separação estabelecida pela responsabilidade limitada – embora, em boa verdade, seja possível identificar um interesse objectivo do sócio na assunção desse risco, dado a essencialidade dos contratos garantidos para a prossecução do objecto social: a subscrição não é, realmente, de favor, antes assenta no interesse societário do sócio relativamente à sociedade financiada[26].

Neste caso há uma indissolúvel ligação entre a qualidade de sócio e a prestação de garantia que decorre do aval, o que levanta o problema de saber qual é a consequência da cessão da participação social do sócio cambiariamente vinculado como garante.

Apesar da notória diferença estrutural entre o aval e a fiança, não é erro dizer, no tocante ao aval - como se afirma, a propósito da fiança - que não é razoável, à luz das regras de interpretação do negócio jurídico, pensar que os sócios que aceitaram subscrever o título como avalistas, quiseram manter-se vinculados mesmo depois de cederem a terceiros as respectivas participações sociais, mesmo depois de terem deixado de ter interesses na empresa ou sequer contactos com ela[27]. Desde que um sócio declare que garantirá – v.g., como fiador – o cumprimento das obrigações da sociedade a que pertence venha a assumir no futuro, a sua declaração deve ser interpretada, mesmo que nela não se contenha essa restrição ou ressalva, no sentido que de que a garantia prestada abrange apenas as obrigações que venham a ser assumidas pela devedora enquanto o garante for sócio dele: é essa, seguramente, a sua vontade real e é esse, também o sentido que um declaratório normal atribuirá à declaração[28].

É certo que o aval, ao contrário da fiança, não pode ser sujeito a condição. Porém, o reconhecimento da faculdade de denúncia não colide com o carácter incondicionável do aval, dado que, tratando-se de título subscrito em branco, é no plano do pacto de preenchimento – dos acordos realizados – que se coloca a questão da admissibilidade da denúncia daquela convenção ou acordo[29].

À luz destas considerações, alguma jurisprudência admitia a possibilidade de desvinculação ad nutum ou ad libitum, ou seja a faculdade de denúncia do pacto de preenchimento. E embora não fosse acorde quanto ao modo de exercício dessa faculdade, tendia para concluir que não valia como tal a simples comunicação, pelo sócio, ao titular do crédito garantido, da cessão das quotas[30].

Todavia, o Supremo, em face da jurisprudência incerta sobre a questão, procurando restabelecer, também quanto a este ponto, a unidade do direito, terminou, pelo acordão nº 4/2013, de 11 de Dezembro de 2012 – publicado no DR, I Série, nº 14, de 21 de Janeiro de 2013 – por fixar, quase nemine discrepanti, a seguinte jurisprudência: Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que entretanto, venda a ceder a sua participação social na sociedade avalizada.

E na fundamentação, o acordão uniformizador vai mesmo mais longe, sendo terminante – com fundamento no facto de o aval não constituir um contrato, mas um acto jurídico unilateral, não receptício, autónomo, abstracto e com as mesmas características de uma obrigação cambiária – na afirmação de que o aval não pode ser objecto de denúncia.

Por aplicação, ao caso que constitui o universo das nossas preocupações, desta proposição uniformizadora, temos o resultado seguinte: mesmo que os recorrentes tivessem assumido a obrigação cambiária de aval na qualidade de sócios da subscritora da livrança e, perdido, entretanto, essa qualidade, por força da alienação das respectivas participações, sociais, não lhes é lícito denunciar o aval.

Simplesmente no nosso caso, nem sequer está demonstrado que os recorrentes subscreveram o título que serve de suporte à execução na qualidade de sócios da avalizada ou que, posteriormente, tivessem transmitido, por cessão, as respectivas quotas. É verdade que – como decorre da matéria de facto assente - que os apelantes prestaram o aval por terem interesse na sociedade subscritora, e que, desde 2003, não têm nela qualquer interesse. Como, porém, o aval – como decorre do pacto de preenchimento – foi dado sem qualquer restrição ou limite, apesar da perda daquele interesse, a sua denúncia não deve ter-se por admissível.

De resto, a denúncia, por se tratar de um negócio jurídico unilateral, exige uma declaração, embora imotivada, e uma declaração receptícia - a comunicação à contraparte da vontade de por termo ao vínculo obrigacional, não sendo suficiente, por exemplo, o simples conhecimento, pelo credor, de que os avalistas perderam o interesse que tinham na sociedade ao tempo da prestação do aval. E, no caso, a matéria de facto não documenta sequer que os apelantes tivessem produzido uma tal declaração.

O que daqui decorre para a improcedência deste fundamento da oposição – e do recurso – é meramente consequencial.

Simplesmente, tendo presente a conhecida aversão do Direito a vinculações indeterminadas e tendencialmente perpétuas – preocupação a que justamente a possibilidade de denúncia procura dar resposta – não é de excluir a possibilidade da extinção do aval com fundamento numa justa causa de resolução ou em abuso do direito.

E, no caso, os recorrentes sustentam, realmente, que o exequente, ao accioná-los como avalistas, depois de num primeiro momento lhes ter afirmado que a situação estava regularizada, actua contra factum proprium e, portanto, em abuso do direito.

3.7. Abuso do direito.

Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[31], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou á míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso do direito..

O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[32].

De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.

Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório e a supressio (supressão)[33], ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo[34] - e o desequilíbrio objectivo no exercício, comportamento abusivo cujo desvalor se objectiva na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, e que compreende todas as situações em que se exercem poderes sanção por faltas insignificantes, como sucede quando uma parte resolva o contrato, alegando uma violação sem relevo de nota, em termos de causar a esta um grande prejuízo.

Como já se notou, na doutrina portuguesa, a proibição do venire contra factum próprio tem sido localizada dentro dos quadros do abuso do direito[35]. Mas não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[36] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[37]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[38]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[39]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.

 Assim, por exemplo, uma pessoa que manifeste, por qualquer modo, a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas que acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[40].

Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[41]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[42].

O venire contra factum proprium - que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno - é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão.

Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.

Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele, quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.

Note-se que a aplicação destes pressupostos, após a sua enumeração e verificação no caso concreto, não é automática: antes devem ser objecto de uma ponderação global, in concreto, para se aferir se existe uma exigência ético-jurídica de impedir a conduta contraditória, designadamente por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante e – o que é mais – por a situação conflituar, exasperadamente, com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo.

O principal efeito do venire é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.

A este propósito, os factos capazes de inculcar o abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium são, em síntese apertada, os seguintes: os recorrentes só deram o aval por, como era do conhecimento do exequente, terem interesses na sociedade executada; em meados 2003 - momento em que os recorrentes deixaram de ter interesse naquela sociedade executada, – ou pouco tempo depois, o exequente, questionado pelos executados sobre a situação da conta caucionada, respondeu-lhes que esta estava regularizada, facto que era exacto, dado que, em 2003, ou pouco tempo depois, aquela conta, foi, realmente, saldada. Porém, a exequente concedeu, mesmo após 2003, crédito à sociedade comercial executada, tendo renovado, depois de 2004, o contrato de abertura de crédito, com inteiro conhecimento de que os executados já não se sentiam vinculados e que era bastante a garantia pessoal dos avalistas restantes; o exequente apõe na livrança, como data do vencimento 7 de Janeiro de 2010, e, no dia 5 de Dezembro de 2011, promove, designadamente, contra os recorrentes, a execução, pedindo a realização coactiva da prestação pecuniária incorporada naquele título de crédito.

Pergunta-se: o portador da livrança que tem perfeito conhecimento de que o aval foi prestado em razão do interesse que os avalistas tinham na sociedade subscritora, que lhes comunica, em 2003 – data em que aqueles deixaram de ter interesse naquela sociedade - que a conta caucionada estava regularizada, mas que continua a conceder crédito à sociedade, através da renovação, depois de 2004 do contrato de abertura de crédito, sabendo que os recorrentes já não sentiam obrigados e que era suficiente a garantia pessoal dos restantes avalistas, e termina, 8 anos depois, por exigir coactivamente o valor que inscreveu na livrança, age contra facta propria, e, portanto, em abuso do direito?

A resposta deve ser afirmativa. Realmente, uma pessoa normal, colocada na posição concreta dos recorrentes, podia objectivamente confiar que, estando a conta caucionada liquidada, no momento em que deixaram de ter interesse na sociedade, o exequente não lhes exigiria, 8 anos depois, que honrassem a garantia representada pelo aval, relativamente a crédito concedido ao avalizado em momento posterior em que deixaram de ter aquele interesse e se sentiam já desobrigados.

Em boa verdade, o portador da livrança, que, neste contexto, cria nos recorrentes aquela confiança, através da comunicação, em 2003, que a conta caucionada estava regularizada, mas 8 anos depois, lhes exige coactivamente a realização da prestação pecuniária incorporada na livrança, emergente da concessão de crédito ao subscritor, posterior àquele momento – e para a qual era suficiente a garantia dos avales restantes - age contra facta propria e, por conseguinte, de forma abusiva. Havendo abuso, a inibição do exercício, contra os recorrentes, do direito cambiário é meramente consequencial.

O abuso resolve-se excepção peremptória que impede a realização coactiva da prestação, dado que atinge a sua exequibilidade intrínseca e, portanto, importa a extinção da execução, no todo ou em parte (artº 817 nº 4 do CPC).

Nos termos gerais, o recurso é constituído por um fundamento e por um pedido. O fundamento consiste na invocação de um vício no procedimento – error in procedendo – ou no julgamento – error in iudicando; o pedido consiste na revogação da decisão impugnada. Também, nos termos gerais, por força da proibição da reformatio in mellius – que é uma consequência da vinculação do tribunal ad quem à impugnação do recorrente – aquele tribunal não pode conceder a essa parte mais do que ela pede no recurso interposto. A violação desta proibição, por pressupor que o tribunal de recurso conhece de matéria que não podia apreciar, porque excede a sua competência decisória, gera, a nulidade, por excesso de pronúncia, da respectiva decisão (artºs 668 nº 1 d) 2ª parte, e 716 nº 1 do CPC).

Na espécie sujeita, os recorrentes pediram, no recurso, não a extinção in totum da execução – mas, limitadamente, a redução do montante da sua responsabilidade ao valor em dívida no momento em que deixaram de ser sócios da executada.

Já se adquiriu, à certeza, que, por falta do indispensável documento, não pode ter-se por provada nem a aquisição nem a perda, pelos recorrentes, da qualidade de sócios. Está, porém, demonstrado, que os apelantes perderam, desde meados de 2003, o interesse que tinham na sociedade.

Nestas condições, apesar da procedência do apontado fundamento de oposição à execução, não deve declarar-se a extinção desta, mas apenas – de harmonia com o pedido formulado pelos recorrentes no recurso – a redução da sua responsabilidade ao valor da dívida no momento em deixaram de ter qualquer interesse na executada, A…, Lda.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese que:

a) A revelia do exequente é inoperante quando a lei exija, para prova dos factos da oposição, documento escrito, o qual não pode ser suprido pela falta de contestação daquela parte;

b) O erro sobre os motivos determinantes da prestação do aval só releva como causa de anulação do negócio jurídico cambiário correspondente, no caso de reconhecimento, por acordo, da essencialidade desses motivos, não sendo suficiente o conhecimento, pelo declarante, dessa essencialidade;

c) Não é admissível a extinção, por denúncia do avalista, da obrigação cambiária de aval;

d) Age em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o portador da livrança que, depois de declarar aos avalistas que a conta caucionada estava regularizada, continua a conceder crédito à sociedade subscritora, através da renovação do contrato de abertura de crédito, num momento em que aqueles já tinham perdido o seu interesse naquela sociedade.

As custas do recurso serão satisfeitas pela parte que nele sucumbe: o exequente (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC). Dada a simplicidade do tratamento do objecto processual do recurso, justifica-se que a taxa de justiça seja fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP (artº 6 nº 2 do CPC).

4. Decisão.

Pelos fundamentos, concede-se provimento ao recurso, revoga-se a decisão impugnada, julga-se procedente a oposição e, consequentemente, declara-se a redução da responsabilidade dos executados, P…, C… e S… ao valor da dívida no momento em deixaram de ter qualquer interesse na executada, A…, Lda.

Custas pelo recorrido, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                              José Avelino Gonçalves

                                                                                                              Regina Rosa


[1] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.
[2] Assim, é sobre o oponente, subscritor do cheque exequendo que recai o ónus da prova, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador a seu mando, que recai o ónus da prova da existência do acordo de preenchimento e da sua inobservância – Assento do STJ de 14 de Maio de 1996, DR, II Série, de 11 de Julho de 1996. Cfr. Acs. do STJ de 28.05.96, BMJ nº 457, pág. 401, da RP de 21.10.96, CJ, 96, V, pág. 183 e 27.01.98, CJ, STJ, 98, I, pág. 40. No caso de non liquet, aplica-se igualmente, quer as regras gerais quer as eventuais regras especiais (artºs 516 do CPC e 346 nº 2 do Código Civil). Cfr. Ac. da RP de 05.02.98, CJ, 98, I, pág. 207.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, pág. 177.
[4] Cfr., v.g., Acs. da RC de 06.02.90, BMJ nº 394, pág. 543 e da RL de 04.11.97, BMJ nº 471, pág. 448.
[5] Ac. da RE de 18.12.07, www.dgsi.pt.
[6] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, pág. 75, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, pág. 37, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, págs. 116, 126 e 127, Vaz Serra, RLJ Ano 105, pág. 376 e Acs. do STJ de 12.10.78 e 26.06.73, BMJ nºs 280, pág. 343 e 228, pág. 233.
[7] RLJ, Ano 55º, pág. 210.
[8] José A. Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito, Coimbra Editora, 2009, págs. 65 e 66.
[9] Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 6ª edição, Lisboa, 1990, pág. 76 e Vaz Serra, RLJ Ano 109, pág. 264 e Títulos de Crédito, BMJ nº 61, pág. 264 e Paulo Sendim, Letra de Câmbio, vol. I, Coimbra, 1979, págs. 32 a 34; Acs. do STJ de 24.10.02, 20.05.04 e 12.07.05, www.dgsi.pt. Em sentido diverso, concluindo que a letra em branco não tem efeito como letra, só surgindo como título cambiário após o preenchimento – embora atribua a este carácter retroactivo, cfr., José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1992, págs. 117 e 118.
[10] Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material), BMJ nº 111, pág. 168 e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra, 1985, pág. 421.
[11] Ac. do STJ de 13.12.07, www.dgsi.pt.
[12] Acs. do STJ de 28.05.96, BMJ nº 457, pág. 403, 01.10.98, BMJ nº 480, pág. 482 e 20.10.96, www.dgsi.pt.
[13] Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, vol. III, Letra de Câmbio, Coimbra, 1975, págs. 129 a 142.
[14] Entre outros, os Acs. da RP de 27.06.06, 14.11.06, 29.11.06, da RE de 01.03.07 e do STJ de 24.10.02, www.dgsi.pt.
[15] V.g., Acs. do STJ de 06.03.03, 20.03.03, 11.11.04, 05.12.06, 06.03.07, 19.06.07, da RL de 16.10.03, 30.06.05, 21.09.06, 24.04.07, da RP de 20.05.03, 20.11.06, 27.02.07, e da RC de 31.01.06 e 14.02.06, www.dgsi.pt.
[16] Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, Coimbra, 2012, 592 a 597.
[17] Acs. do STJ de 08.10.09, 23.04.09, 09.09.08, 04.03.08 e 19.06.07, www.dgsi.pt. Todavia, o carácter materialmente autónomo da obrigação do avalista, obsta a que este invoque como causa da respectiva nulidade a indeterminabilidade da obrigação que assumiu, com fundamento na ausência ou desconhecimento do pacto de preenchimento da livrança em branco: Ac. do STJ de 23.04.09.
[18] Note-se que se o demandado demonstrar, no contexto do preenchimento abusivo do título, que a quantia nele inscrita é superior à que resulta dos critérios do acordo de preenchimento, ao contrário do que sucede com o preenchimento injustificado – que leva ao afastamento da pretensão cambiária e executiva – a única consequência, seja qual for a fundamentação que se tenha por exacta, é a reconfiguração daquelas pretensões, devolvendo-as aos limites excedidos pelo credor. Cfr. Acs. do STJ de 30.03.06 e da RP de 01.06.06.
[19] De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o contrato de abertura de crédito, que é contrato nominado mas atípico, é aquele pelo qual o banco – creditante – se obriga a colocar à disposição do cliente – creditado – uma determinada quantia pecuniária – acreditamento ou linha de crédito – por tempo determinado ou não, ficando o último obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões (artº 362 do Código Comercial). Cfr., José A. Engrácia Antunes, Contratos Comerciais. Almedina, Coimbra, 2009, pág. 501, Sofia Gouveia Pereira, O Contrato de Abertura de Crédito Bancário, Principia, Cascais, 2000, págs. José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, pág. 310 e Ricardo Benoliel de Carvalho, “Notas sobre a abertura de crédito bancário”, Revista Bancária, nº 29, 1972, págs. 25 a 27; Acs. da RL de 20.04.89, CJ, XIV, pág. 141, do STJ de 25.10.90, BMJ nº 400, pág. 583, de 13.10.00, CJ, STJ, III, pág. 174 e de 21.10.08, CJ, STJ, III, pág. 78. O contrato de abertura de crédito pode assumir diversas modalidades. De harmonia com o critério das suas garantias, a abertura de crédito pode ser caucionada ou a descoberto, conforme o cumprimento da obrigação do creditado seja ou não assegurado por garantias reais, v.g., hipoteca, ou pessoais, v.g., livranças.

[20] António Menezes Cordeiro, “Impugnação pauliana de actos anteriores ao crédito – Nulidade da Fiança por débitos futuros indetermináveis – Efeitos da Impugnação, in ROA, 51 (1991) pág. 563. No mesmo sentido, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª edição, pág. 111, Almedina, Coimbra, 2002, nota 250; em sentido diverso, sustentando, de um aspecto, que a determinação per relationem satisfaz o requisito da determinabilidade, e de, outro, que o artº 400 do Código Civil não é aplicável, ao menos no tocante a determinação da prestação do fiador, por força do princípio fundamental do nosso ordenamento da proibição da livre ou arbitrária disposição do património de outrem, Manuel Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina Coimbra, 2000, pág. 665 e “O Mandamento da Determinabilidade na Fiança Omnibus e o AUJ nº 4/2001” in Estudos em Homenagem à Professora Doutora, Isabel de Magalhães Colaço, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 69 e 70.
[21] DR, I Série A, nº 57 de 8 de Março de 2001.
[22] Acs. da RP de 27.01.04, do STJ de 08.07.03 e 13.03.07, da RL de 12.07.06 e de 16.10.97, www.dgsi.pt.
[23] João de Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, Lisboa, AAFDL, 1995, pág. 108.
[24] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume, I, $º edição, Coimbra, 1987, pág. , e Acs. do STJ de 12.06.84, BNJ nº 338, pág, 385, e da RL de 13.12.72, BMJ nº 222, pág. 463.
[25] Ac. do STJ de 08.07.03, www.dgsi.pt.
[26] Ac. do STJ de 23.22.04, www.dgsi.pt.
[27] Januário Gomes, “o mandamento da determinabilidade da fiança omnibus”, cit., págs. 123 e 124.
[28] Henrique Mesquita, Fiança, pág. 27.
[29] Ac. do STJ de 08.07.03, www.dgsi.pt.
[30] Acs. do STJ de 08.07.03 e de 07.10.03, www.dgsi.pt.
[31] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124.
[32] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[33] Cfr., v.g., os Ac. da RE de 26.11.87, CJ, XII, V, pág. 268 e de 23.01.86, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454 e de 11.03.99, www.dgsi.pt.
[34] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 262 e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.
[35] A proibição era já conhecida antes do actual Código Civil. Cfr. Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73 e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[36] Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420.
[37] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 28.
[38] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 742 e 745 e Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, págs. 9, 101, 169 e 227 e Acs. do STJ de 22.11.94, BMJ nº 441, pág. 305, de 04.10.79, BMJ nº 290, pág. 352, de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454, de 03.10.91, BMJ nº 410, pág. 776, da RC de 03.12.91, CJ, V, pág. 79, da RL de 17.06.86, CJ, IV, 143 e da RC de 11.05.89, CJ 89, III, pág. 192 e de 18.11.93, CJ, V, pág. 219.
[39] Acs. da RP de 19.12.96, CJ, V, pág. 226, da RL de 29.11.94, CJ, V, pág. 50, da RP de 18.11.93, CJ, V, pág. 219, da RC de 3.12.91, CJ, V, pág. 79, e da RP de 15.05.90, CJ, III, pág. 194.
[40] Acs RP de 29.09.97, CJ, V, pág. 200 e do STJ de 3.05.90, BMJ nº 397, pág. 454. Para uma definição doutrinária de abuso de direito, cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 43.
[41] Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 294 e 295.
[42] Trata-se, aliás, de um domínio em que a invocação do venire é feita de forma intensiva. Cfr., v.g., Acs. da RE de 11.11.93, da RC de 16.01.90, da RL de 26.11.87, RP de 11.05.89 e de 29.9.97, CJ, V, pág. 283, I, pág. 87, V, pág. 128, III, pág. 192 e IV, 200, respectivamente. A solução não é inteiramente isenta de reparos. É que tratando-se de nulidade típica, esta além de arguível por qualquer das partes é de ofício cognoscível pelo tribunal (artº 289 do Código Civil). Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., vol. II, pág. 754 e Acs. da RL de 18.03.93 e de 02.02.95, CJ, II, pág. 111, e I, pág. 115, respectivamente.